Outras Coisas

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outras coisas

ANO 001 N.0O1

afonso rocha almeida da silva azizi cypriano aura ariana nuala arivânio alves bruno berle davi moraes francisco mallmann febraro de oliveira gabriel stroka ceballos gê viana jjoão a. paes julia ribeiro lara fuke lara lima lucas alberto lucas canavarro luiz nadal linga acácio luiz bellini maurício pokemon   maria isabel iorio mariana rocha maria clara vianna marcela dias marina benzaquem matheus de paula mayara yamada morani natasha felix pierre tenório rafael amorim rafa cardozo rafa ella brites rheremita rodrigo barja samuel tomé tainá tiago guimarães ventura profana

número 1


today i broke your solar system oops. my bad (“pluto shits on the universe”, fatimah asghar)



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Buscando Marara


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bem, eu só queria dizer mais uma coisa, sonhei com você. sabe, em português dizemos, sonhei com você e não de você. acho que é mais preciso neste caso, de qualquer forma, estou pensando nisso agora porque estávamos exatamente como estamos agora, como um déjà vu. você sabe que há pessoas que encontram adrenalina em experiências limites do corpo, no esporte, nas drogas; é bastante fascinante para mim este sentimento entre o medo e a emoção da adrenalina. no sonho eu estava neste pequeno rio, esta formação de água no meio da floresta, nesse igarapé, você sabe, e assim eu estava olhando para cima, havia uma rocha e na rocha estava você. então atrás de mim havia uma cachoeira e de repente eu estava cercado por muitos como você, muitos bôtos, e com suas peles rosa pálido, sua textura suave, e o formato de seus corpos em um arco, vocês formavam como uma espécie de coração que flutua no ar, sempre sempre em pares, dois a dois, o que me fez entender rapidamente que vocês estavam fazendo amor, há alguns que encontram adrenalina no amor, eu acho isso muito bonito, na arte, quando você sai, sei lá… quando você dá a forma final a um objeto do seu desejo.. então eu estava neste igarapé cercado de bôtos, que estavam transando e dessas transas vocês se reproduziam. e então havia pequenas criaturas que caíam na água, essas criaturas eram metade boto e metade humanas, era como se fossem metade você e metade eu, com seus pequenos corpos boto cor-de-rosa e suas cabeças humanóides cor-de-rosa... é por isso que estou dizendo, eu sonhei com você... bem, depois que caíram na água começaram a me empurrar, a me bater com a cabeça, a me darem umas cabeçadas assim e depois de um tempo começou a doer, sabe, para mim a adrenalina


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é uma das melhores sensações, e é assim porque eu a relaciono ao fato de estar no palco. pra mim, não há nada melhor do que estar no palco. é onde sinto minha maior disponibilidade, meu maior senso de presença, de radicalidade, de imanência. não há nada que se compare à sensação de ser observado pelos olhos de outras pessoas através de uma mediação cênica, no final estamos sempre sendo observados, mas lá eu escolhi, não foi? eu escolho ser observada e neste momento as pessoas estão observando o que eu escolhi mostrar-lhes… é uma questão de maestria também, sabe? porque se eu faço bem, o que eu estou me propondo a fazer num palco, eu dissolvo a hierarquia entre quem está vendo e quem está fazendo, todos comungam da mesma experiência, todos têm o seu papel, é verdade que há coisas que vão além de mim, minha vulnerabilidade, eu dou. eu os ofereço... tudo bem, leva com você. eu entendi que essas criaturinhas me empurravam para o palco, e lá eu te vi, e era exatamente essa mesma cena que estamos vivendo agora. você me dizia sim com a cabeça, me dando passagem. eu entendia que era aqui que eu poderia encontrar com ela, que era aqui que eu deveria procurar a Marara e como uma necessidade, como algo que eu não poderia fazer de outra forma, eu entro no palco.


08 (ABRA OS OLHOS)


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abrir os olhos um de cada vez para ver o quanto de mim acordou e o quanto de mim ainda sonha


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OCEAN WAVE O artista Bas Jan Ader queria cruzar o Atlântico Norte Seu barco e sua travessia, para ele, eram um trabalho de arte O barco de Bas Jan Ader se chamava Ocean Wave Em 1975 iniciou a viagem Eduardo Pondal era o nome do barco que encontrou o barco de Bas Jan Ader

O barco Eduardo Pondal fez o resgate do barco de Bas Jan Ader A tripulação não encontrou o artista Seu barco e sua travessia são um trabalho de arte


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A coleção de Ramira


13 Dois meninos se equilibram no galho mais alto da amendoeira. O sol começa a deitar no morro de cá, depois de um dia esturricando gramados. Marolas de calor escapam da terra, em frente à casa de madeira carcomida, onde a Velha Ramira caminha em círculos, seguida pelos seus cães. O vapor quente que sobe do chão, fazendo ondas no ar como numa miragem, obriga o primeiro menino a piscar os olhos com força pra desembaçar a vista, hipnotizada pelo movimento. São dois meninos idênticos que estão lá em cima. É até estranho que sejam tão parecidos, com a mesma cara redonda e as solas dos pés encardidas. Poderiam ser gêmeos, mas não é o caso. Em todo caso, lá estão eles, observando aquela cena mais estranha ainda. O segundo menino se equilibra entre o tronco e o galho bambo, onde apoia a bunda e vai arrastando até onde está sentado o primeiro, na extremidade. “Foi difícil te encontrar aqui” – diz na última bundada. O primeiro menino balança com os tremores do galho, mas não responde. Está vidrado nas voltas que a mulher faz em volta da casa sem parar. As chinelas de couro da Velha Ramira arrastam no chão e a saia levanta pequenos voos como um rabo de papagaio. Cães de todos os tipos seguem no rastro dela (cães parrudos, cães magrelos, cães de pêlo duro e de pêlo fofo, também longos, cacheados, ralos, pelados; cães de estatura encurtada ou longilínea, cães com 4 patas, ou às vezes menos). O primeiro menino fecha a boca, comendo ar todo esse tempo, e fala sem virar a cabeça pro lado: “Ué, não vi você chegando”. O outro devolve: “Com essa cara de cachorro olhando frango assado, não ia ver nada mesmo”. O primeiro menino não se abala. Continua com os olhos presos nas patas que raspam no gramado igual raspam as solas das chinelas da velha. O rabo da saia tremula no ar. Então o segundo menino insiste: “Não imaginava que você ia escolher um lugar tão alto assim pra se esconder”. O primeiro pisca os olhos 2 vezes, irritado: “Foram os meninos que te mandaram aqui?” E apenas ouve do outro: “Lamento, mas não posso dar esse tipo de informação”.


14 Pela primeira vez, o primeiro menino desgruda os olhos da roda-viva canina, olha pra baixo (o chão distante) e vê as 4 pernas balançando iguaizinhas no ar. A visão vacila, acostumada a observar os círculos. Mas ele não deixa de se impressionar com as canelas do enxerido: até mesmo as cascas de ferida e as picadas de mosquito que estão nelas são iguais. Ele levanta a cabeça rápido com a tontura: “Você disse alguma coisa?” O segundo menino faz cara de mosca-morta. Silêncio. Lá embaixo, a mulher levanta o queixo pro alto (uma barbicha na ponta) e o rosto surge no meio da cabeleira volumosa. Ela comprime os lábios murchos num biquinho: FIUUUUUUU Os cães respondem com os rabos agitados e continuam a segui-la, agora latindo: RAUF RAUF RAUF O segundo menino percebe que os olhos do primeiro estão esbugalhados, os lábios sem cor, e dissimula: “Eu só vim mesmo pra ver se você precisava de ajuda, então acho que vou indo…”. O primeiro menino tenta agarrar o braço do seu gêmeo, mesmo sabendo que não são irmãos. Quase perde o equilíbrio na tentativa. Um sorrisinho malicioso se abre no canto da boca do segundo menino. Segurando-se no galho, com mais firmeza, o primeiro menino espicha o pescoço e espreme os olhos em direção a Velha Ramira, que balbucia alguma coisa enquanto acelera o passo. “Acho que ela tá rosnando” – o segundo menino continua atiçando a imaginação do primeiro. Este reage, com o peito estufado: “Acho que ela tá é rezando!”. “Pra mim ela tá falando daquele jeito, quando mexem com ela na rua…” – diz o segundo encurralando o primeiro. Este, gaguejando, confidencia: “E-eu acho q-que consigo entender algumas palavras”. Enquanto fala, ele olha o segundo menino de rabo de olho, mesmo sem vê-lo inteiramente, aguardando a sua opinião. O segundo menino é categórico. Pronuncia sílaba por sílaba a sua resposta: “A-qui-lo-não-é-pa-la-vra-nem-a-qui-nem-na-Con-chin-chi-na”.


15 Diante dessas palavras, o primeiro menino respira fundo, fecha os olhos e se esforça a repetir: “A-qui-lo-não-é-pa-la-vra-nem-a-qui-nem-na-Con-chin-chi-na”. As palavras sussurradas pela velha chegam até os ouvidos do primeiro menino, mesmo com os cães latindo. “Eu acho que é melhor eu ir chamar os meninos” – o segundo menino dá a cartada final. Em vez de tentar agarrar o braço do outro novamente, o primeiro menino pergunta com a voz macia: “Promete que vai ficar me olhando daqui?”.

O sol vai do laranja pro vermelho, as cigarras gritam e as sombras de Velha Ramira e seus cães se prolonga na fachada da casa de madeira. A roda acelera como um carrossel desconjuntado. O biquinho da mulher também se projeta: FIUUUUUUUU. Os cães: RAUF RAUF RAUF. Pressionado pelo tique nervoso do segundo menino, que não para de agitar as pernas sobre o galho, o primeiro menino se antecipa, garantindo ao outro: "Eu só preciso de mais um minuto”. Sem nenhuma piedade pela feição petrificada do outro, o segundo menino continua sua tortura: “A verdade é que a velha deve ter muito mais cachorros do que os meninos falam, você já tentou contar?”. O primeiro se apressa a fazer que não, dobrando os lábios pra dentro da boca, nauseando só de imaginar as cabeças peludas rodando dentro da sua cabeça. O segundo menino continua a envolver o outro na sua trama diabólica: “A verdade é que ninguém sabe de onde vem tanto cachorro assim”. O primeiro menino puxa ar puro pelas narinas, o suficiente pra retrucar: “Deixa disso, todo mundo sabe que ela os recolhe na beira da estrada”. “É, mas ninguém nunca viu ela voltando com nenhum cachorro


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debaixo do braço pra casa, nem a irmã do Nicolas!”. “E por que é que a irmã do Nicolas ia saber mais que todo mundo?”. “Porque ela já foi na Velha Ramira pedir pro namorado não perturbar mais ela”. O primeiro menino até já adivinha a cara do sabe-tudo, que está prestes a encurralá-lo: “O namorado da irmã do Nicolas, aquele da cachopa vermelha, você tem visto ele por aí?”. Silêncio. “Pois nem a irmã do Nicolas tem visto mais!”. Os olhos do primeiro menino seguem as patas peludas dos cachorros – RAUF RAUF RAUF – ao mesmo tempo que o seu pensamento é conduzido pelo outro, que finalmente chega aonde queria: “Longe de mim querer te desencorajar, mas se você prestar bem atenção, aquele lá que vai logo atrás da velha, tem o pêlo igualzinho a cachopa do namorado da irmã do Nicolas”. Como numa roleta russa, os olhos do primeiro menino passam por todos aqueles tipos caninos até parar no cão ruivo. Ele não precisa repassar outra vez pra constatar o que a coleção de cães da Velha Ramira tem em comum: olhos brilhantes e assustadiços iguais aos seus. O céu puxa as nuvens roxas e os cães uivam como se a lua fosse brotar detrás do morro de lá. O segundo menino agita as pernas no ar, daquele jeito insuportável, antes de falar: “Longe de mim querer te deixar mais nervoso, mas daqui a pouco o Nicolas e os meninos podem chegar aí”. Os uivos ecoam e os lábios da Velha Ramira espalham as estranhas palavras rosnadas no vento, que chegam até os ouvidos do primeiro menino. Ele perde a paciência e dá uma cotovelada nas costelas do pentelho. Um gemido desengonçado escapa de dentro da amendoeira. O galho bambeia. As folhas chacoalham. Lá embaixo, os cães erguem os focinhos pro alto, cheirando o ar, as orelhinhas giram como um radar. A Velha Ramira, que também não precisa olhar com os olhos pra ver as coisas, repete as palavras rosnadas com mais força. O primeiro menino finalmente se encoraja:


17 “Tá bem, eu vou, eu vou!”. Ao que o segundo olha, já sem entender as palavras que saem pela frestinha do meio daqueles dentes, tão idêntica a sua. Ele se dependura no galho com os braços esticados e solta as mãos. Seus pés tocam o chão. Tudo gira. A ciranda canina corre veloz como nunca. RAUF RAUF RAUF As pernas bambas do menino andam sozinhas em direção à casa da velha. FIUUUUUUU Ele pisa em cima dos ossos roídos que estão no gramado. O rabo de papagaio empina com as lufadas de vento e seus olhos brilham com aquela imagem irresistível. Um ronco vem subindo pela garganta. Ele apalpa o pescoço com a mão, tosse. Nada sai lá de dentro. Os pés entram no meio do redemoinho de patas. Do meio do torvelinho, ele olha em direção à amendoeira, que não para quieta no lugar. Empurrado pelas pegadas que raspam no chão sem parar, ele olha de novo, sem conseguir impedir que o tronco se divida em dois. Duas árvores iguais, muito parecidas, idênticas de tão parecidas! Como se pudesse existir amendoeiras gêmeas. Com os olhos desolados, brilhando de susto ao avistar o galho vazio, sem ninguém, ele ainda grita: “Pode falar pro Nicolas e os meninos que eu não amarelei!” – antes de dar o seu primeiro latido. RAUF RAUF RAUF


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I

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▒▒▒▒▒▒▒▒▒▒▒▒▒?

R

minha primeira memória é do meu pai me

ensinando a tocar violão na casa de placa que a gente morava de favor nos fundos da casa de minha tia não costumo lembrar dela II

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R

eu leio poesia mas não penso muito sobre as

▒▒▒▒▒▒

▒▒▒▒?

referências quando to fazendo as músicas quando tô fazendo música, penso muito no que as pessoas vão pensar. se eu tiver escrevendo sobre alguém penso no jeito daquela pessoa falando, se o que eu to dizendo tem a ver com esse jeito, se tem a ver com a poética dela III

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▒▒▒▒▒?

R

-

IV

▒▒▒▒▒▒▒

R

ser preto pobre e ter nascido numa cidade que

▒▒▒▒?

os playboys são improdutivos e não valorizam nem a si mesmos, quanto mais as pessoas da periferia V

▒ ▒ ▒▒▒

▒▒▒▒▒▒▒ ▒▒ ▒?

R

devo tudo a música, todos os dias e noites, todo

dinheiro todo amor toda vida e é tudo que eu tenho porque se não fosse música eu não seria notado, nem andaria com ninguém que ando, que admiro ou que desejo. só meu talento, minha voz, minhas ideias sobre música me levaram pra onde eu tô


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VI

▒▒▒▒▒▒▒▒

R

pra mim é que nem fazer amor

VII

▒▒▒▒▒▒▒▒▒▒▒▒▒▒ ▒ ▒▒▒▒?

R

▒▒▒▒▒?

▒▒▒▒▒▒

muita gente foi importante mas fundamental foi

e é minha mãe VIII

▒▒

▒▒▒▒?

R

é dificil sair daqui de maceió, a cidade te suga,

▒▒▒▒▒

te deixa apático, mas uma vez que eu estive fora senti uma força tremenda e cada dia q passa sinto mais rica minha presença, mais bonita nossa poesia, nosso jeito de falar... me sinto novo e valioso no sudeste como artista e isso me traz vigor p encarar a xenofobia q no meu meio é velada. IX

▒▒ ▒▒ ▒▒▒▒

R

penso todo dia sobre o futuro. ultimamente o

▒▒▒▒▒▒

▒▒▒▒?

futuro q penso é das proximas semanas, é pratico mas é lindo. to me sentindo bem de pensar em tudo q vai rolar, todo amor q tem pra acontecer, todo dinheiro pra conquistar X

▒▒ ▒▒▒▒▒▒▒▒▒?

R

saia de maceio, aqui ngm vai te entender nunca


20 4ª feira noite, 32º graus barulho de passos numa rua quase deserta nem tudo está no escuro, luzes azuis e vermelhas de uma viatura dançando pelos muros de tijolo.

oh, dotôzinho [...] dá uma palavrinha com a gente aqui. tá com pressa não, né? abre a mochila. é, a mochila. tá indo ou voltando? só que tá meio tarde pra andar aqui por essas bandas. [...] fica nervoso não, a gente tá aqui numa boa. namorada? namorada mesmo? maior de idade já? então você não mora por aqui. afasta. isso, as pernas (...) celular? essa identidade ae, mostra. confere pra mim, oh, alencar. tira o sapato. isso, a meia também. não fica animadinho, não ein. é, (...) é procedimento. faz o seguinte, afasta mais. isso, assim (...) e esse cabelo amarelo aê? a namorada aprova? vou usar da sinceridade contigo: tá escroto pra caralho porque não combina com teu tom de pele, não (...) tu tem paimãe, companheiro? pode ficar normal. tem nada não, alencar? ah.......... universitário? aqui ó, a identidade. o alencar vai só terminar de ver tuas coisas, aí a gente te libera. fica despreocupado que você quase passou batido pra gente. tem nada naqueles livros? tem não? se tiver, já viu. se tiver levando alguma coisa que não deve pra tua faculdade, a coisa vai esquentar pro teu lado. eu e o alencar aqui, a gente sabe qual é a da tua galera com paradas. tá bom, vou te liberar logo, aí a mochila. alencar, segura as pontas ae que tô indo escoltar o rapaz até o trailer pra dar um papo. [...] fica sossegado, mas tem que ficar esperto (...) se tua namoradinha mora por aqui, tu já sabe que essa área aqui não presta. a gente não vai tá sempre por aqui, não, tá bom?


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agora, escuta uma coisa: tu é rapaz novo, tá ok? a gente não achou nada contra você, deu sorte hoje. te falei, quase que tu passa batido. moreninho assim, jeitoso, boa pinta. até essa parada escrota que você fez no cabelo dá pra enganar. tua namorada gosta? é namorada mesmo, né? hoje em dia a gente tem que perguntar. porque o teu pessoal tá numa de agora falar que se a gente pergunta, a gente é preconceituoso. mas que não é normal, não é. não fica andando por aqui de bobeira a essa hora, não. além de uns vagabundos, tem uma galera que iria adorar te ver assim, sozinho, numa rua escura igual aquela que você veio. e você não faz ideia do que eles fariam contigo. ainda mais você, magrelo desse jeito, ia render fácil pra esses malucos. aí não teria namorada certa, viu? porque tem uns que tem até família, já vi muito. eles saem de madrugada pra caçar, ficam só na espreita pra fazer o que tu deve nem deve fazer ainda com essa namorada aê. mas fala, pode falar. cabaço ainda, né? nem deve ter feito nada. fica sem graça não, fica é esperto. tem que meter, meter, meter. senão metem em você. tô te dando esse papo porque fui com a tua cara. agora te adianta, vai. tua viagem é longa, nem kombi deve tá passando. te adianta, vai. e ó, cuidado com a retaguarda, ein (...) cuida dessa bundinha aê pra mim.

legenda [...] secura na garganta de um dos personagens. (...) o pesar da mão de um dos personagens sobre regiões íntimas do outro.


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tá aí? 1:05

tô fala q foi? chegou??? 1:10


24 Legenda ✓ ✓ o desinteresse de um terceiro personagem.


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chegou??? 1:10

não, mas tô quase. peguei o último ônibus, maior sorte. quer dizer... sorte, não. a polícia me parou ali na esquina da sua rua. tive que inventar uma namorada que morava por aí, fiquei nervosão. gelei demais, tranquei o cu. esses fdp achando que eu tinha maconha, revistaram minha mochila toda. isso nunca tinha acontecido comigo, cara! tô puto e me tremendo até agora. torcendo pra minha mãe não estar acorada quando eu chegar em casa minha. quero nem explicar nada. mas aqui, apesar disso, quero te ver de novo. 1:13

...

digitando

...

digitando

...

digitando

1:15

✓ ✓

1:18


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28 AO HORROR NINGUÉM DIZ BOA NOITE


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Tenho que verificar diante de duas tristezas se não são uma só tristeza. Não vou fazer isso sozinho. Ouço o dia dizendo eu não sou triste. Não me confunda. Aguento até duas crianças que nunca vão se despedir. Duas crianças que pensam que a morte é uma brincadeira. Ao horror ninguém deseja boa noite. E é noite. Se eu botar as duas tristezas na mesma sala numa noite dessas e disser a elas que estou trabalhando para reconhece-las que estou trabalhando para escrever farei, sem querer, uma, depois a outra, rir. A sala não mudará de tamanho. Nela, seremos três crianças que pensam que a morte é uma brincadeira. Três tristezas que nunca vão se despedir.


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SIESTA Uma Paula sentando na minha cara uma Ana me dizendo adeus um Carlos me vacinando um Pedro me ensinando a fazer parte de uma banda um russo lutando comigo e com o meu irmão minha irmã fumando um palheiro e pescando seus filhos correndo e gritando nossa prima se escondendo no mato uns garotos brincando de ser pivetes umas senhoras sentindo orgulho um garçom trazendo um drinque de cortesia para si mesmo torresmo frito água fria fria um almoço em paz e cada pessoa do mundo tirando uma siesta.


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DECLARAÇÃO e nesta cidade, a todos que enlouquecem sem prenúncio, não espalhamos notícia que fulano enlouqueceu, dizemos assim, fulano se declarou.


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Carta para cartas


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O chão parecia ser um lugar propício para brincadeiras, perfeito para espalhar o que quer que fosse, tudo a depender do peso de cada corpo e da sua gravidade frente às estruturas. Leves e fáceis de voar com a dança de ventos cortantes que brigavam entre os basculantes das janelas, as cartas se apresentavam como células perfeitas em textura, cor e cheiro, maleáveis a depender do fabricante, acredito assim, que alguns são seduzidos por elas e encantados pela suas possibilidades e sistemas. Há quem as encontre nas ruas, em chãos molhados e derradeiros, como pequenos recados entrelaçados em imagens que revelam vaticínios. As mãos atentas recolhem as cartas em seu estado maior, sejam esborratadas, sujas, rasgadas, são guardadas em carteiras, livros, gavetas, porém a única exigência para que continuem a ser memoradas, é que ainda revelem o segredo. Há quem as faça falar, as entendem como não-objeto e e atravessadoras de fronteiras, talvez como peixes voadores ou até mesmo abissais, advindas de pontos indecifráveis. A sua origem é completamente turva, deixa lastros, mas existem mais ficções do que concordâncias, elas são vivas pois suas histórias ainda são contadas, ativadas por alguém que joga.


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As jogadoras criam uma tensão, cada olhar é um desvio para as mãos que embaralham, a respiração acentua a adrenalina que percorre o chão, a mesa, os dedos, há uma eletricidade. A jogadora performa junto com a carta, e a depender do jogo que se joga, a jogadora pode assumir um lugar de dissimulação ou de total verdade. A dissimulação é uma maestria. Jogada de mestre que pode, de preferência, ser acompanhada por uma bebida. O gingado na mesa distrai o oponente que ao notar o canto dos pássaros acaba por se esquecer do jogo. A lembrança é o trunfo. Em uma outra prática a mentira deve ser pouco exercida, se ela existe é como feito do imaginário, como licença poética, mas nunca para enganar. Trago a mentira aqui como o improviso, a narrativa de um bom contador de histórias que ao narrar se surpreende com algo que não estava em seu planejamento, mas que torna suas palavras um ritornelo, um canto a ser repetido. Neste ambiente suspenso, a cartomante delineia seu corpo. Em tiradas únicas, o adivinho nunca faz uma leitura prévia ao verbo, mas sim simultânea a ele. Tudo que é dito reflete diferentes tempos e também o silêncio. Não há como dissociar o baralho comum do tarô, suas ciências se encontram nesta terra em saberes dos mestres e mestras, estes que também fazem do mundo a sua biblioteca. Antigos gestos se alastram desse livro sobrevivente, o baralho, que continua a migrar entre territórios, ou melhor, cidades de encantos. Quem apenas enxerga papel nas cartas, pouco vê do universo.


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SENTI VERGONHA DO MEU PAI NÃO O CONTRÁRIO

ELE DISSE QUE PREFERIA MORRER DO QUE TER UM FILHO COMO EU

Poiselebem, senhor morreu.

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Lembro como ontem o diado emarmário que fugi


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NÃO QUERO QUE VOCÊ SE COMPROMETA COM O QUE VOCÊ TEM NAS MÃOS.

esse é um exercício de esquecimento. quero que você se comprometa com a finitude das coisas. assim como quando eu tentava explicar a uma criança que eu nunca tinha visto na vida como se formava o petróleo a milhares de quilômetros abaixo do oceano. assim como quando ninguém sabia quantos centímetros tinha um fio de cabelo seu quando você recebeu a notícia da morte da sua mãe. esse exercício não é sobre desmaterializar angústias. é sobre entender que as coisas nunca foram sólidas em momento algum. existem sim as fibroses, as fronteiras, os fragmentos, as ficções todas as palavras que começam com a letra f e a falta de fé (e os sons antes de serem palavras e os tempos que a gente falava a língua do que não é gente) e a finitude das coisas. ou das coisas como elas são. ou das coisas como você as conhece. ou de você.


41 palavra não explica coisíssima nenhuma. e com explica eu quero dizer captura. as peles que se roçam são para lembrar algo, assim como as sinapses que transmitem quando o fogo queima, quando o pau entra, quando sente o cheiro de alho fritar na panela, quando ouve a voz da irmã caçula gritar quando chega em casa é inconcebível se manter pretensioso quando se encara de frente a impermanência das coisas. quando o ponto de partida não se fixa e o ponto de chegada é todo passo que você dá. é necessário não se levar tão a sério. quero que você se comprometa com a finitude das coisas. e preste atenção, com finitude não quero dizer finalidade; o tempo aqui é espiral e a história é metáfora do labirinto. a verdade é que você sabia de tudo isso mesmo antes de nascer. mas mesmo assim te escrevo esse pedido, só para que você esqueça de novo. (esqueça até que foi você mesmo que fez esse pedido.) esse é um exercício de esquecimento. quero que você se comprometa com a finitude das coisas.


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SEVERAS MÃOS tempo 4/4 Dm7/9 Am7/9 Dm7/9 G7/13 Dm7 Am7/9 Dm7/9 G 7/13 % Dm 7/9

Am 7/9

Severas mãos Dm 7/9

G 7/13

Deveras foram doces Dm 7/9

Am 7/9

Severas mãos Dm 7/9

G 7/13

Deveras foram doces Dm 7/9

Am 7/9

Uh Uh Uh Uh Dm 7/9

G 7/13

Uh Uh Uh Uh Uh Uh Uh


44 POEMAPÓSSONHO eu intui que tinha que seguir não carregava nada comigo se não a mim meu destino ali seguindo esse caminho me levou até meu avô eu me surpreendi a gente tomou banho entre quatro e usávamos esponjas-do-mar era importante esfregar, sacar, tirar pele morta um do outro eu me surpreendi minha intuição tão mais sábia que minha mente minha razão u r  n u s é um planeta que assim chamamos meu cú é meu universo minha base meus anos meus estudos meus cuidados passado presente futuro qualquer impulso que me faça rimar cada palavra cada curso com o tempo eu espero aprender mais sobre ele mesmo por enquanto, sinto o pulso e ele é rápido e ele é marcado e ele é não tenho certeza se conseguimos daqui diminuir a marcha a essa altura já foi aberta a rachaDura e é importante atravessar a grande água


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aceitar rendição humildade, muita reza é o que nos resta de verdade deixar de estar dispersa ver em cada erro próprio uma brecha que por um lado possibilita crescimento por outro mostra limitação lembra que a gente tem nosso lado são e tem também o lado que não sobre amor é do que se trata o meu clamor é cansador o caminho longe disso é importante ter juízo ser juiz é outra coisa eu não quero que se exploda a menos que isso seja outra palavra pra dizer bloom

florescer expandir renascer trocar de pele trocar de forma como resposta instintiva a essa força poderosa que ta dentro do meu ser


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OLHOS tempo 4/4 F# % Ebm %

Ebm

F#

F#

Olhos são como canoas

Nesse mundo encantador

Ebm

Ebm

Viajam na beira do tempo

De dor e de prazer repleto

F#

B

Sonhos são como pessoas

Calma não cabe na palma

Ebm

F#

Desvendam ao olhar atento

Do ser inquieto

B

B

Calma não cabe na palma F#

Ebm

Do ser inquieto

B

Alma só cabe no mundo F#

Ebm

Do que é secreto F#

Somos filhos do amor

E que prevaleça o afeto

Ebm

Alma só cabe no mundo F#

Ebm

Do que é secreto


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NÃO TENHA PENSAMENTO RASO Ninguém olha pra si mesmo, o quanto o outro. Ninguém te julga o quanto o outro. Não sei nós, mas quando perdemos e eu só e não nós. Na linha do carretel nós. Será difícil de desfazer nós. No meio do céu, cai chuva na minha boca a gosto de mel Não tenha pensamento raso, em alto mar no dia chuvoso.


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Eu não sei dizer

Um corte foi feito

Eu não sei falar

Na minha garganta

Gritei tão alto

Caí da cama quando criança No seio da jamanta Não há mais perseverança

Meu olhar sabe dizer Meu olhar tem o que falar

Fiz um gesto e do meu corpo

O mundo vai gritar

Fiz do corpo mangue De escuridão com luar

Aprendi a dizer o teu nome

Fiz com ele um feitiço Pois esse nome Não pode mais Me matar


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Arquitetura como acontecimento


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Me formei em arquitetura na Universidade Federal do Ceará dentro de uma abordagem extremamente "clássica" do ensino da matéria. Encharcam a cabeça da gata com um certo repertório conceitual e visual e esperam que isso resulte em alguma produção de desenho na prancheta. E essa produção está sempre mais ligada a uma viciada análise formal, pouco relacionada a outras questões que escapam da materialidade arquitetônica. Falo das disciplinas de projeto. Contudo, foi durante o curso que me envolvi com outras dinâmicas associadas à vida estudantil. Me aproximei do centro acadêmico e passei a organizar atividades como festas, semanas culturais e encontros estudantis. Produzi diversas cenografias para esses eventos, além de assumir a cabine de som em alguns desses momentos. Me tornei arquiteto à medida que fui me tornando dj. Já morando em São Paulo, após a graduação, fiz uma especialização onde conheci a arquiteta Marta Bogéa, responsável naquele momento pelo componente de museografia do curso. Após o fim da disciplina, fui chamado por ela em 2010 para colaborar numa exposição que seria montada no Mam de São Paulo. A mostra se chamava “A cidade do homem nu” e era curada por Inti Guerrero. Achei chique e aceitei o convite. Algum tempo depois, fui coordenador da sua equipe na 29a. Bienal de São Paulo. A parceria deu certo e até hoje colaboro com ela montando exposições. Na mesma época da especialização, fiz um curso de expografia com o arquiteto Humberto Pio na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Pouco tempo após o fim do curso, me tornei sócio do


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Humberto, além do arquiteto Marcelo Costa e da designer Juliana Amaral. Constituímos o Estúdio Risco que executa projetos para exposições além de outras produções. A expografia para o 36o. Panorama da Arte Brasileira no Mam de São Paulo em 2019 foi o nosso último projeto juntos. Hoje praticamente só trabalho com projetos de exposição, curtindo os prazeres e chorando as dores de trabalhar com arte no Brasil. Enquanto fui me aproximando da arquitetura de exposições em terras sudestinas, continuei a atuar na noite como DJ e produtor de festas.. Antes da mudança de cidade em 2005, já tocava ao lado de alguns DJs profissionais de Fortaleza como o Marquinhos Ribeiro. Tivemos por mais de um ano uma festa semanal chamada “Fliperama” em uma mezanino de uma pizzaria próxima ao Centro Cultural Dragão do Mar. Já em São Paulo, comecei a tocar nos locais que frequentava assiduamente. Em 2009 tive minha primeira residência no Alley Club que ficava na Barra Funda. Tocava aos sábados em um projeto chamado “Overdancing”. Permaneci por lá por três anos. Em 2015, lancei a Tenda com o designer Guilherme Falcão. O projeto que durou três anos ocupava um antigo puteiro perto da Praça da República. Além de tocar, éramos responsáveis por coisas como produção de material gráfico, agendamento de performance e projeto de iluminação da festa. Foi um grandíssimo babado. Por anos mantive esses dois caminhos apartados. Até dois nomes adotei para dar conta do arquiteto e do dj/produtor de festas. Tiago Guimarães ou Tiago Guiness? Dependia do endereço, do dia da semana e da


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hora. Uma grande besteira. Desde a graduação procuro outros entendimentos sobre arquitetura que alargam o campo. Meu trabalho de conclusão da graduação investigou o efêmero ao propor um assentamento humano para situações de emergência. Na especialização, estudei o improvável a partir das ideias de Herman Hertzberger onde o uso de quem frui determina a forma do objeto. Agora penso arquitetura como um acontecimento que se manifesta numa exposição ou numa festa. Em exposições, para além dos dispositivos expográficos que desenho, só vejo arquitetura quando os encontros esperados entre público e obras de arte acontecem. Rola então uma consideração do tempo do fenômeno arquitetônico para além de sua matéria. Tenho dito em algumas falas que hoje defenderia a Tenda como um projeto de arquitetura e urbanismo. Acionávamos corpos e espaços naquele território que aconteciam mensalmente. Mesmo que eventualmente, produzíamos cidade com a festa, tendo que lidar com efeitos positivos e negativos de nossas ações. Por fim, estou realmente interessado em dança. Interesse recente. Talvez “movimento” seja a palavra mais especial para mim no momento. Mas isso é assunto para uma outra conversa. Só trouxe a dança para esse fim de texto porque ela também funciona a partir da lógica do acontecimento. Então não consigo mais pensar em arquitetura sem pensar nas relações entre esses dois campos. Seria arquitetura uma dança onde o tempo é suspenso e uma certa qualidade de presença é instaurada? Pode ser.


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tanto ódio pra cuidar, arando mainha. pacto para findar com a paz, noites livres de culpa por onde a vitória corre. lembro: não me dei descanso, lembro: ceifam o amor até às profundezas. aliançada estou aos infernos. passei um ano branco embalando frios presentes com papel de rancor, até lembrar-me que não vivo esse tempo, nem estou presa à ele. até asseverar-me que nasci na bahia, mas antes daqui, já havia sido e pintado ali e acolá. não desço à terra, se não pro acerto de contas. tenho muito ódio pra cuidar.


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noite passada seduzi o filho do coronel, em plena cheia da lua ariana, com a rigorosa empinada da bunda - sentinela avançada, guarda imortal - que chamo de mc lanche feliz; preparei previamente o bisturi, reservei a linha exata e em seguida vesti os olhos do pagante com uma venda dourada, certificando-me de sua completa imobilidade, costurei seu cu, com fios de cobre. dona do ouro e da prata é jesus, viver como trava é o prêmio da guerra. estou forjada na eternidade embebedada de amor. sei de tudo labutando no vento. sou a vadia a faturar milhões na feitura dos homens, quero que me desejem até não poderem mais.que deixem suas casas, hipotequem seus bens, que caiam em tentação ao avistarem o movimento de um cu que mata e não se ressente. tenho clamado por orgias presidenciais, coquetéis banhados à sexo o governador do estado de são paulo petrificado com minha chupada enquanto seus assessores disputam ferozmente quem vai socar no meu cu antes de toda repartição.


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TENSÃO E ANSIEDADE DEVIDO AOS CONFLITOS ENTRE ESPERANÇA E NECESSIDADE, SEGUIDO DE DESAPONTAMENTO INTENSO. ACREDITO QUE EXISTA UMA LARVA DENTRO DE MIM COMENDO O FIM DESTA MASSA. TALVEZ ELA DURE PARA SEMPRE EU REZO PARA QUE ELA TENHA FOME SONHO SEM IMAGENS COM O DIA EM QUE NÃO HAVERÁ MAIS ESPAÇO PARA ELA AQUI. PROCURO SEMPRE, EM CADA ERUPÇÃO DESTA PELE, UM SINAL DE SAÍDA.

Imagino em frequência o movimento que ela faz abrindo túneis para emergir da minha terra

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Lembro como ontem Ao tentar ser humana, me percebo dissimulando.do armário


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Seis declarações de desamor


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I (querido nunca mais a língua foi inocente nunca mais eu pude ser distraída) II não tem tempo dentro do susto uma nuvem que esmaga corpo tem corpo dentro do susto ficar viva fora da hora do extermínio III (nós em guerra com tudo) IV na pedra te dizer pedra te dizer pedro eu não quero esse nome eu não quero te encontrar no escuro eu posso fazer coisas com as mãos fazer coisas eu posso desfazer com as mãos coisas posso desfazer mas não tem nada nada que me tire de mim V (não ser não existe ainda ainda não existe não ser) VI não posso te dar meu coração mas o cu eu posso


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QUARTA-FEIRA DE CINZAS 1 Chego em você equivocada. Dessa vez em um corpo vestido de escamas pronta para ser escovada à contra pelo a lâmina debaixo da sua língua suave vem morna em silêncio tranquila minha pele não espera ela solicita. o ritual é este e não tem volta.

2 Chego em você equivocada. Pedaço por pedaço. Acabei por engolir facas entre os blocos clandestinos tento disparar sentenças que escapam em meio às purpurinas. tento alimentar nossa gramática tento dizer o amor às vezes é isto alguém que corta e oferece os dedos dedicada e alguém que só quer mastigar. até pode ser que revezem a tarefa embora quase sempre não.


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67 VIRIAM RITA E MARIA PARA QUE FREUD PUDESSE procura por um conceito rápido de sinthoma não acha reconhece a palavra “castração” e o verbo “envolver”, mas nunca a linguagem: apegar-se a isso associa nó, matemática básica os escudeiros, a fidelidade e o indispensável sobre ovos, pães e promessas imagina o que seria de nós duas se freud postasse vídeos semanais sobre as crianças na era da comunicação, os aplicativos de 15 segundos, as dancinhas, sobretudo as dancinhas


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INTERFONE

REVERTER

ESCUTA


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ARRANCARIA OS DENTES TODOS PEDRO NUM REVEZAMENTO DE PORRADA E ENGASGAMENTO TE PRESSIONARIA A GARGANTA BATENDO SUA CABEÇA NA PAREDE BICO DE JACA SEU SANGUE MI SANGRE NO CHÃO GLÓBULOS DE GORDURA SEUS OSSOS QUEBRADOS EU QUEBRARIA ABIERTO COMO EL HÍGADO PARA QUE VOCÊ TAMBÉM SAIBA COMO É TE CONHECER AOS NOVE ANOS.

VER AINDA PEDRO QUE POSSO EU PENSO ACESSAR AS MANGAS DAS MÃOS SALTAR VERMELHO OS OLHOS LIMPAR SUA PORRA DE MIM COMO QUEM DIZ QUE QUER MAIS DIRIA PEDRO QUE VERTEBRAR ESSA RUA SEJA DE FATO FUNÇÃO NOSSA NÃO SEI EU ACHO PENSO — QUERIA QUE ME COLOCASSE DE QUATRO.

EXPLOSÃO ESSA NÃO SEI MEU ROSTO INDO EXIBIDO SOL VAI E VOLTA ROSTO QUE DELÍCIA PEDRO NAQUELA FESTA A MARICONA VOCÊ VIU QUANTOS ANOS ELA TINHA QUARENTA E DOIS NÃO É MARICONA AINDA NÃO FICA TRANQUILA PEDRO EU TAMBÉM JÁ DEI PRA OUTROS HOMENS INFESTAR A CASA DELES COM QUEROSENE JÁ FIZ SIM NÃO SE EXIBA TANTO PEDRO TAMBÉM SEI QUEBRAR CARROS CASAS DENTES JOELHOS JÁ QUEBREI O JOELHO TRÊS VEZ SÓ TEM PÓ AQUI EU NÃO CHEIRO.


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espero estar mais distante daquilo que sempre temi do público os apalusos


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sonho com o dia em que tudo isso acaba e não sobrará mais ninguém escrevo esses recados simplesmente pq vivo em função do desespero de esquecer de algo amarrando uma linhada em cerol no mindinho para não esquecer correr o risco de não esquecer


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apavorada/apaixonada pelos passeios noturnos


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Burning from the inside Cremated from the inside out * Tarântula me revelou que a sua ardência inevitável talvez seja a sua maneira de parecer estar viva e bem distante dos planetas sólidos


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COMEÇAR PELAS PEDRAS o pior é dedicar-se a pequenos jogos pelos quais ganhar não produz festa e perder não gera comoção extrair qualquer coisa da precariedade do possível (começar pelas pedras) e a sedução do espetáculo nos pede armar um micro-feitiço que desarranje qualquer coisa: probabilidades barrigas trilhos de cortina cozinhar uma crueldade fundar sua própria violência decidir pela localização das pontes inventar uma oração e alguém para ouvi-la desacreditar das ortopedias e dos ortopedistas descobrir qualquer versículo que perdoe todo mundo ainda que algumas tristezas precisem ser vividas sozinhas para que me torne menos alheia ao meu próprio sofrimento mesmo que vire um piripaque-furacão começar pelas pedras


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É possível nadar em um cemitério?


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Na infância eu não gostava de ir à praia porque tinha medo de entrar no mar. Me lembro de quando, ainda muito nova, eu permanecia sentada na areia e encarava o horizonte, as ondas, a parte rasa, a profundidade do oceano… Fitar o olhar para todas essas nuances me deixava enjoada e o que vejo do mar ainda me causa estranheza, mesmo que dele eu não tenha visto nada além do azul. Com o tempo, criei coragem para caminhar rumo a cada vez mais perto do beira-mar. Ainda me recordo da sensação de sentir, ao final da faixa de areia, a água gélida envolver os meus pés, por entre eles escorrer e retornar ao mar enquanto também penetrava a areia, deixando-a cada vez mais escura, úmida, pesada, mas nada rígida. Esse é o chão do oceano. Não demorou muito para que eu me desse inteira pro mar. A sensação de sentir a corpa tomada, submersa, me encantou tanto que passei a ficar mais tempo dentro d’água do que fora. Na imensidão das águas salgadas eu era um ser de muitas escamas, que se movimentava ora como tartaruga-marinha, ora como polvo, e que gostava de criar grandes redemoinhos aquáticos, em nados espirais. Eu não tinha medo da água do mar, mas sim do atlântico. Do nome dado ao oceano que me cerca, que o torna um território de disputa, um equívoco. O atlântico é o cemitério, e as existências que nele habitam são profundamente sábias. São elas os mistérios marítimos, as embarcações fantasmas, as aparições reveladas pelo farol, os seres híbridos: existências que acontecem além dos ossos e apesar do banzo.


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Para a ancestralidade manifestada no meu corpo, adentrar o atlântico é rememorar a tragédia afro-atlântica. No entanto, conviver com o medo de entrar na água salgada é também driblar o trauma da diáspora, expandindo as rotas de fuga entre vias marítimas que, com suas covas, ainda resguardam as presenças subaquáticas de minhas ancestrais. Quando me entrego ao mar, aprendo a reverenciar as inúmeras presenças que ali ainda dançam. Encaro-o não mais como lugar de despejo, mas como placenta que regenera a vida em terreno aquoso, amalgamada sobre as algas e protegidas pelas rígidas conchas que carregam tanta riqueza e fartura em seu interior. Já imersa, vejo as catacumbas como tesouros e os epitáfios transmutados em búzios. Minhas ancestrais nadam ao lado das jamantas e erguem moradas nas zonas abissais, que são as sombras do oceano, a parte intocada pela luz. Cardumes que festejam a memória neste grande cemitério. Todas guardadas sob os olhos sempre atentos de Iya Mi Yemonjá, mãe de todas as peixas, sereia retinta vigilante das cabeças.


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80 EDITORIAL

Esse é o tipo de sonho que te engana, começa pedindo que você acorde. Você acorda dentro de um barco virado dentro do mar. A realidade do trauma é o que permite a brecha pro sonho que engana. O coração interiorano, a metrópole brasileira, o cochilo depois do almoço - dormir dentro do sonho. Quando se está convencido da barreira fina entre o sonho e a ficção, a realidade e o etéreo, é que se está pronto para encarar a única verdade universal do nosso tamanho pequeno. É saber da verdade que significa finalmente abrir os olhos. O pós sonho é o corpo, o cu, os planetas distantes. Visitar o corpo sem esquecer da mente, lembrar que ela está contida. A morte e a violência não são o fim. Se me permite lembrar, nós começamos pelo sonho, a morte é uma fase de terror entre a violência e o deleite. Aprender a falar seu nome, dela zombar com respeito. Terminamos traçando uma nova trilha de pedras, o fim é um novo começo. Os poemas, contos, imagens, prints e cenas não foram reunidos a partir de um tema. Não houve uma frase, um pedido específico. O máximo que aconteceu foi que entre outubro e novembro de 2021 foi aberta uma convocatória sem idade máxima baseada no poema honoris, de minha autoria, autopublicado na zine nova grande coisa acontecendo no brasil, cujo título sampleia um verso deste mesmo poema.


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82 Escrito na mesma época em que se honrava o nome da escritora Carolina Maria de Jesus com um doutorado honoris causa pela UFRJ, o poema relaciona a ideia de sucesso, fama e realização profissional dentro das letras. Eu reflito minha própria posição enquanto algo que almeja ser grande, e por isso já se considera. A abordagem é essa porque entendo o sucesso como uma ficção que já está posta para um certo tipo de corpo dentro do ramo das Letras. Nos anos de formação básica eu li muitos homens cisgêneros e todo o contato com literatura afro-brasileira se deu em pesquisa independente sobre o assunto. Honoris causa nasceu como uma ironia com esses meios tradicionais que estão dispostos a reconhecer os corpos à margem, geralmente anos depois de sua passagem desse plano para o outro. Termina esse um exercício de metalinguagem que pouco vejo dentro da literatura brasileira. Pouco sei sobre como meus colegas que escrevem enxergam suas carreiras, porque muitos não dependem delas para viabilizar suas finanças. Ser poeta custa, mas isso é um segredo mesmo entre poetas. Mas isso sou eu falando das diretrizes do meu próprio poema, que foi o mais próximo de um texto motivador para aqueles que tomam lugar nessas folhas. Dentro dessas diretrizes foram feitos convites posteriores tanto para artistas visuais, quanto para outras pessoas que escrevem respeitando um único parâmetro: a descentralização, ou heterogeneidade. Falando do jeito mais simples que posso, me assusta analogias organizadas nessa década que pouco se propõem a explorar o que seria uma poesia escrita pelo corpo transgênero. Não por nenhuma ligação específica a movimentos sociais mas porque basta frequentar os slams que se popularizaram em nosso país como meio mais acessível para poetas e consumidores de poesia para encontrar muitos desses corpos. Eu não me sentiria confortável organizando nada coletivo a partir da homogeneidade de perspectivas. Uma escolha que preciso falar é a de omitir até aqui a autoria de cada página, no intuito de friccionar os trabalhos e pensamentos. Também no intuito de promover uma segunda leitura profunda e relacionada com cada texto ou imagem tão especiais aqui reunidos. A seguir, o índice:


ÍNDICE

04 06 08 08 09 11 12 12 18 20 26 28 30 31 32 33 34 38 39 40

buscando marara, cena, mayara yamada the marara kelly art show, imagem, mayara yamada o tempo açucarado, colagem, gê viana abra os olhos, poema, lara lima alcântara sem cor saindo, colagem, gê viana ocean wave, poema, jjoão a. paes a coleção de ramira, cena, luiz nadal mobiliário/edificação, fotografia, rafa cardozo formulário, ensaio, bruno berle

(4ª feira, noite, 32º graus), conto, rafael amorim igual a ju, meme, davi moraes ao horror ninguém diz boa noite, poema, maria isabel iorio cadeira- cama, desenho, samuel tomé siesta, poema gabriel stroka ceballos declaração, desenho, marcela dias declaração, poema, matheus de paula carta para cartas, ensaio, ariana nuala sonhar com lama, desenho, mariana rocha armário, poema, pierre tenório não quero que você se comprometa com o que você tem nas mãos, texto, matheus morani

40 41 42

compromisso i, desenho, rodrigo barja compromisso ii, desenho, rodrigo barja pequeno quintal dos silêncios, desenho, lucas canavarro


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severas mãos, cifra, composição: bruno dilulo e tainá, interpretação: tainá, brilho (2022)

44 46

poemapóssonho, rheremita cera cachoeira de ferro impregnou a lança pra sempre, desenho, lucas canavarro

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olhos, composição rafael rocha, interpretação: tainá, brilho (2022)

48 49 50 51 52 52 55 55 58 59 60 62 63 64 65 66 67

molho romesco, receita, julia ribeiro não tenha pensamento raso, afonso rocha sonhar com terra úmida, desenho, mariana rocha

(eu não sei dizer/um corte foi feito), poema, rafa ella brites que porra tenho eu pra contar?, charge, luiz bellini arquitetura como acontecimento, tiago guimarães zona de remanso, imagens, linga acácio (tanto ódio pra cuidar), poema, ventura profana apoptose, imagem, aura apoptose, poema, aura seis declarações de desamor, poema, francisco mallmann bananal do senhor raimundo i, fotografia, maurício pokemon pé, fotografia, marina benzaquem bananal do senhor raimundo ii, fotografia, maurício pokemon quarta-feira de cinzas, poema, natasha felix cachorra, pintura, arivânio alves viriam rita e maria para que freud pudesse,


poema, maria clara vianna

68 69 70 74 75 76 79 80

peixe, fotografia, marina benzaquem interfone/reverter/escuta, poema, febraro de oliveira tarântula, prints, almeida da silva pedras, desenho, lara fuke começar pelas pedras, poema, lucas alberto miranda de souza é possível nadar em um cemitério?, ensaio, azizi cypriano zona de remanso, fotografia, linga acácio editorial


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outras coisas

número 1


87 organização, curadoria e revisão: matheusa dos santos produção e acompanhamento pedagógico: luana andrade design gráfico: juca

esta zine foi produzida a partir da bolsa de incentivo à criação cultural (BICC), promovida junto da pró-reitoria de extensão da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no período entre outubro de 2021 e abril de 2022.


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outras coisas número 01 Recife 2022


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