Ediçao Nº. 1556

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Efeméride 19 de fevereiro de 1975

Iconografia pacense O misterioso fecho de abóbada do “Hospital Velho”

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o período medieval cristão a arte atravessou diferentes expressões plásticas e foi utilizada de modo diverso, consoante a finalidade. Num tempo em que muito poucos sabiam ler, a linguagem da arte, especialmente da escultura e da pintura, era compreendida por todos. As mensagens de Cristo, dos apóstolos, dos santos e dos doutores da Igreja estavam representadas de maneira entendível nos principais lugares de convergência de então: em igrejas, ermidas, conventos e noutras obras pias. Já o temos dito, em relação a estudos semelhantes sobre a iconografia do medievalismo que, na atualidade, qualquer um de nós, mesmo com um conhecimento razoável dos meandros históricos, revela quase sempre enorme dificuldade na compreensão de certas composições figurativas. Porque somos herdeiros da mentalidade científica que nos últimos 300 anos descurou paulatinamente o significado da simbólica cristã inerente às obras dos períodos românico e gótico, não viria mal ao mundo se continuássemos a ignorar, por uma questão de comodidade ou de total desinteresse, o misterioso fecho de abóbada da antiga enfermaria do Hospital Grande de Nossa Senhora da Piedade, fundado por D. Manuel, ainda enquanto duque de Beja, no ano de 1490, cronologia que, segundo a tradição e alguns pormenores construtivos aparentemente mais antigos, pode recuar a 1469, ao primeiro ducado de seu pai, o infante D. Fernando. Nestas lidas, a curiosidade de quem pesquisa é mais forte e, se não é hoje que decifra o enigma, será amanhã. Quantas vezes ao passarmos pelo mesmo sítio, olhando para as mesmas coisas, não as vemos, como se ficássemos cegos pela repetição. O melhor é deixar passar o tempo, esse conselheiro que ao cobrar-nos em idade, nos paga em sabedoria. Até podemos errar no desfecho, mas devido ao seu teor metafórico, já foi salutar chegar aqui. O Homem debate-se desde a sua génese entre o bem e o mal, criando

ao longo da sua evolução meios que lhe facultam bem-estar e segurança, mesmo em situações de extrema gravidade. Num tempo em que as doenças não se curavam como hoje, nem sequer as mais simples, e em que os casos psíquicos eram rotulados de possessões demoníacas, a cura maioritariamente aceite e praticada com fé, envolvia a purificação física, mediante água benta, e espiritual, invocando pelas orações a intervenção divina. Cremos que esta leitura é fundamental para desvendar o significado do fecho de abóbada figurativo, situado no 4.º tramo da nave adossada à muralha na enfermaria gótica do “Hospital Velho”, designação por que é mais conhecido no aro de Beja. Adiante. Ora, o fecho de mármore acinzentado, de Trigaches/São Brissos, material de que são feitas quase todas as obras de cantaria da cidade, com um diâmetro máximo de 30 centímetros, exibe em baixo-relevo duas figuras frontais com seus atributos. Do lado esquerdo, pequena e mais avançada, vê-se uma criança praticamente nua, com a cabeça algo transfigurada nos traços essenciais, pernas pequenas, movimentadas (estrebuchando? e também com um certo ar de feto ou de recém-nascida), acorrentada pelo pescoço e presa a uma estaca que um homem barbado, à direita, bem maior e mais recuado, segura com firmeza, ostentando na mão direita, atrás da cabeça da criança, o que parece ser o cabo de uma arma branca, cuja lâmina quase não se vê. Um gancho de ferro, colocado posteriormente no centro, afetando a leitura da dita lâmina proporcionaria uma melhor visibilidade do fecho e iluminação deste tramo da enfermaria. Alguns dos outros fechos do hospital têm decoração geométrica, vegetalista e heráldica, mas também os há, sacralizando as diferentes áreas do edifício, com o simbolismo da cruz, seja crucifixo com pedestal ou a simples cruz da ordem de Cristo, além de um vaso com a dupla simbologia de uma árvore cujos ramos e folhas caem como se fossem um chorão, uma palmeira ou a água em repuxo da fonte, portanto utilizado como fonte da vida e árvore da vida, motivos recorrentes noutros monumentos de Beja. Para finalizar este rol de fechos, sem os esgotar, pois merecem melhor inventário, destacamos mais um com cinco pombas, no género do da abobada estrelada, oitavada, da sala regral da entrada do antigo convento de São Francisco (atual pousada) e um outro presumivelmente com a imagem da lua cheia, como símbolo da noite, do silêncio e do recato que a instituição hospitalar exigia. Ainda tentámos procurar,

sem sucesso, noutros edifícios portugueses e até estrangeiros, um fecho figurativo semelhante ao de Beja, pois não acreditamos que seja único, embora seja bastante invulgar. Já vimos a representação do mistério, portanto, já só falta conhecer o que julgamos ser o seu significado. Quando colocamos um crucifixo na nossa casa estamos a repetir, porque temos fé em Deus, um gesto ancestral ligado à proteção do lar, da família, ao afastamento do mal, da doença; se um crucifixo não é suficiente, ainda nos valemos de um elenco de santos para as ocasiões mais propícias. Evocamo-los para nosso auxílio e se os representarmos parecem mais intensos e eficazes, o benefício melhora. É esta a diferença substancial entre o fecho do “milagre de São Bartolomeu”, assim o qualificamos, e todos os outros. O santo, apóstolo de Cristo, aparece-nos no ato de aprisionar o demónio, causa de todos os males. A figuração da criança estará relacionada com a roupagem de inocência de que se reveste o mal para nos enganar, manigância que não resulta com São Bartolomeu, exorcista muito venerado na região de Lamego, onde não conhecemos uma representação igual. Uma vez por ano, no dia 24 de agosto, o santo solta o diabo por uma hora, não só para descarregar tensões como para recordar aos fiéis tresmalhados os cuidados que devem ter. O santo teria viajado até à Índia, mas foi na Arménia que viu o seu fim, depois de esfolado vivo (daqui a arma branca como símbolo do seu martírio) e decapitado, próximo do mar Cáspio, no século I. Antes expulsara o diabo do corpo de uma filha do rei Polímio, acorrentando de seguida o demónio. A crença de exorcista e o seu dia de celebração, quando “o diabo anda à solta”, leva milhares de pessoas a São Bartolomeu do Mar, em Esposende, com o intuito de evitar a gaguez, epilepsia, mau-olhado e outras maleitas das crianças. Camilo Castelo Branco, nas Noites de Lamego (1908, 165), refere as “dezenas de criaturas obsessas”, principalmente mulheres possuídas pelo diabo, cujos familiares procuravam na aldeia de Caves, a cura para os seus males, com a intervenção de uma grande imagem de pedra do santo. Voltando ao fecho da antiga enfermaria de Beja, meditamos no modo como a arte tinha o poder de interceder na cura das pessoas e como ainda hoje sentimos a importância desse tempo a dizer-nos que a arte não é só obra estética, nem tão pouco tem que ser bela, nem agradável… Leonel Borrela

Resolução do Conselho de Ministros ao abrigo da qual o Estado intervém na exploração agrícola Donas Marias

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o seguimento da manifestação de 3 de fevereiro 1975, em Beja, onde os assalariados rurais do distrito exigem “a adoção de medidas antilatifundistas e antimonopolistas, isto é de medidas de limitação com vista à liquidação do poder dos grandes agrários capitalistas [sem as quais] não seria possível resolver os grandes problemas do desemprego e da sabotagem económica e iniciar o caminho da realização duma verdadeira reforma agrária”(1), o 3.º Governo Provisório, através da Secretaria de Estado da Agricultura, decide intervir, ao abrigo do Decreto-lei n.º 660/74, na exploração agrícola Donas Marias, freguesia de Santo Aleixo da Restauração, concelho de Moura. Esta segunda intervenção do Estado numa exploração agrícola do distrito de Beja, à semelhança do que já tinha acontecido no Monte do Outeiro, decorre do não pagamento de salários aos trabalhadores distribuídos e da prática de atos destinados a descapitalizar a empresa como forma de melhor explicar a impossibilidade de garantir emprego. Dia 11 de dezembro de 1974, em resultado da fiscalização feita à exploração Donas Marias que incluía as herdades Aldeia Testudos, Donas Marias, Corujeiras e Alpendres, a comissão concelhia de colocação de pessoal de Moura decide aí colocar 45 trabalhadores na situação de eventuais (35 homens e 10 mulheres)(2). Francisco Gonçalves da Cruz, o rendeiro de todas estas herdades, contesta a distribuição de trabalhadores junto da comissão distrital que confirma a decisão da comissão concelhia(3). No dia 27 de janeiro, como o rendeiro se preparava para fazer sair da herdade dos Alpendres parte do rebanho de ovelhas que aí tinha, os trabalhadores impedem-no de concretizar tal intenção, justificando a sua atitude com a falta de pagamento de salários. Perante a determinação dos assalariados rurais o rendeiro recua nos seus propósitos de vender o gado e, por documento datado de 31 de janeiro, aceita as determinações da Direção Geral dos Serviços Pecuários sobre a gestão do rebanho(4). É o facto de Francisco Gonçalves da Cruz se manter irredutível no não pagamento dos salários aos trabalhadores distribuídos alegando que, sendo rendeiro, tal responsabilidade competia aos proprietários das herdades que obrigará o Governo a intervir na exploração, nomeando como gestor do Estado o regente agrícola Manuel António Morgado Leão(5). (1) – Cf. “Declaração de Beja”, “Diário de Lisboa” de 7/2/75. (2) – Cf. Relatório da comissão concelhia de Moura, 11/12/74 – Proc.º 221 – Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas (STA) do distrito de Beja. (3) – Cf. Ata n.º 10 da comissão distrital, 16/12/74 – Arquivo do STA do distrito de Beja. (4) – Cf. Relatório da Secretaria de Estado da Agricultura, delegação de Beja, 31/1/75 – Arquivo do STA do distrito de Beja. (5) – Cf. Resolução do Conselho de Ministros publicada no DG, I Série, de 3/3/75.

Constantino Piçarra

15 Diário do Alentejo 17 fevereiro 2012

A depressão e o medo apoderaram-se dos portugueses. Os cidadãos, fartos de promessas eleitorais não cumpridas, estão hoje mais vulneráveis a propostas totalitárias de consequências imprevisíveis para o regime democrático”. Paulo Morais, “Correio da Manhã”, 14 de fevereiro de 2012


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