Digesto Econômico nº 454

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Pablo de Sousa/LUZ

O Brasil precisa de planejamento estratégico

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os dias de hoje, qualquer empresa séria, com uma administração profissional, sabe onde deseja estar daqui a cinco ou dez anos. São definidos os seus valores, a missão e elaborado um plano estratégico para atingir os objetivos que se quer alcançar. Alguns países desenvolvidos trabalham dessa forma, com metas e planos de médio e longo prazos, o que, infelizmente, não é o caso do nosso Brasil. Todos os especialistas ressaltam que o País tem excelentes oportunidades para se tornar uma nação rica e desenvolvida. Com crise ou sem crise econômica, a população do planeta deve chegar a mais de 7 bilhões de pessoas em 2015, o que deverá aumentar substancialmente a demanda por alimentos, segmento que o Brasil vem despontando no cenário internacional, apesar de todas as dificuldades internas. Somos hoje o maior exportador de carne – o volume é superior ao que os Estados Unidos e Austrália exportam juntos. Como disse o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, que nos concedeu uma excelente entrevista, o Brasil não tem estratégias na área do agronegócio. Enquanto os americanos fizeram uma lei estabelecendo que em 2022 eles vão consumir 132 bilhões de litros de etanol, e estão investindo 2 bilhões de dólares em pesquisas, por aqui ninguém sabe dizer quanto iremos produzir de álcool no próximo ano. Tudo depende de uma série de circunstâncias do momento. Por conta dessa falta de estratégia, também temos perdido oportunidades valiosas. Na opinião do exministro, devíamos ter aproveitado a crise econômica para transformá-la em oportunidades, já que os estoques mundiais de commodities estão baixos. Se o governo olhasse para o futuro, teria montado um grande plano estratégico para impulsionar o agronegócio, com linhas de créditos abundantes e sem burocracia, facilidade de importar insumos, como sementes e defensivos, estimulado a transgenia etc. Principalmente, teria evitado a ação nefasta dos sem-terra, que prejudicam o segmento da nossa economia que mais contribui com as exportações e a geração de divisas. Com isso, o Brasil teria uma supersafra no ano que vem, tomando mercados que os países desenvolvidos não conseguirão reconquistar. O ex-secretário da Agricultura de São Paulo, João Carlos de Souza Meirelles, profundo conhecedor da Amazônia, também observou essa falta de estratégia na ocupação das regiões que fazem parte da Amazônia Legal. Os primeiros projetos de agronegócios ficavam isolados no meio do mato, com acesso apenas por avião ou barco. Para ele, o governo deveria fiscalizar melhor as áreas que não podem ser desmatadas, mas sobretudo dizer com clareza onde pode ser ocupado e como deveria ser ocupado, criando condições para isso. O Brasil é chamado de "a grande fazenda do mundo", mas todo fazendeiro sabe que, se a propriedade não for bem administrada, ela não prospera.

Alencar Burti Presidente da Associação Comercial de São Paulo e da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo

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ÍNDICE Newton Santos/Hype

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Como o ipê, que floresce na dificuldade,... ... assim é o espírito da agricultura

Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030 CEP 01014-911 - São Paulo - SP home page: http://www.acsp.com.br e-mail: acsp@acsp.com.br Presidente Alencar Burti

Valter Campanato/ABr

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Superintendente institucional Marcel Domingos Solimeo

Desafios do agronegócio: tirar leite de pedra Carlos Ossamu Albari Rosa/AE

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De Quioto a Copenhague: novos desafios ao agronegócio brasileiro? Roberto Fendt

ISSN 0101-4218 Diretor-Responsável João de Scantimburgo Diretor de Redação Moisés Rabinovici Editor-Chefe José Guilherme Rodrigues Ferreira

Alfer

Editores Carlos Ossamu e Domingos Zamagna Chefia de Reportagem José Maria dos Santos Editor de Fotografia Alex Ribeiro Pesquisa de Imagem Mirian Pimentel Editor de Arte José Coelho Projeto Gráfico e Diagramação Evana Clicia Lisbôa Sutilo Ilustrações e Infográficos Alfer e Jair Soares

Rogério Cassimiro/Folha Imagem

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Adeus Reforma Agrária? Henrique Rattner

Gerente Comercial Arthur Gebara Jr. (agebara@acsp.com.br) 3244-3122 Gerente Executiva de Publicidade Sonia Oliveira (soliveira@acsp.com.br) 3244-3029 Gerente de Operações José Gonçalves de Faria Filho (jfilho@acsp.com.br) Impressão Lene Gráfica

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O pasto invade a Amazônia Carlos Ossamu

REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE Rua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911 PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055 FAX (011) 3244-3046 www.dcomercio.com.br

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DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2009

CAPA Ilustração: Paulo Zilberman


Cesar Diniz/Hype

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Alberto César Araujo/Folha Imagem

Amazônia Legal: a expansão da fronteira

Wilson junior/AE

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O deserto dos gringos Olavo de Carvalho

Juan Carlos Ulate/Reuters

A Nação Guarani e a ameaça à soberania nacional Denis Rosenfield

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Honduras: a ponta do iceberg de um quadro complicado Paulo Diniz Zamboni

Reprodução

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Dez tendências do varejo no século 21 Sergio Kulpas

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Fordlândia, uma epopéia na selva Renato Pompeu Eduardo Nicolau/AE

80 Reprod

ução

Um ponto na imensidão azul José Maria dos Santos

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Panorama econômico da Amazônia Pimentel Gomes

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Newton Santos/Hype

Roberto Rodrigues: o Brasil tem tudo para criar uma economia verde, mas é preciso uma decisão política e criar uma estratégia negociada entre os setores público e privado, com o apoio da sociedade.

Como o ipê, que floresce na dificuldade,...


... assim é o espírito da agricultura

O

currículo do agrônomo João Roberto Rodrigues, 69 anos, é de tal ordem que poderia muito bem ocupar cerca de um metro de papel. No entanto não é necessário promover leitura tão longa para se ter uma ideia das suas qualificações. Por ora, basta dizer que foi ministro da Agricultura do governo Lula até 2006 e que atualmente, além de ser professor de Economia Rural da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), comanda o Centro de Agronegócios da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo. E, é claro, continua atuando como empresário rural em São Paulo e no Maranhão. A vitalidade que exibe é típica das pessoas que estão satisfeitas consigo próprias – a explosão de energia temperada pelo humor. Esta sensação, percebida instantaneamente em sua sala no prédio da FGV que se debruça sobre a Avenida Nove de Julho, junto ao túnel do mesmo nome, passa a ideia de que transborda para os variados locais onde costuma dar expediente. Ali, um vistoso vidro de balas oferece várias opções aos visitantes que recebe, menos para o anfitrião. Rodrigues prefere usar a cota diária de açúcar a que tem direito para manter o peso em dia com as barras de cho-

colate que abarrotam a gaveta de baixo da sua escrivaninha, longe, aliás, de olhares curiosos. Algum desavisado poderá até evocar a velha piada dos mineiros econômicos que guardam rapidamente o prato de comida na estratégica gaveta da mesa caso sejam surpreendidos por alguma visita durante as refeições, no evidente intuito de poupá-la do pecado da gula. Não se trata disso. Também chama a atenção na sala duas imagens de ipê amarelo florido, uma num grande quadro a óleo e a outra em fotografia encaixilhada. Ambas foram presenteadas por admiradores conquistados após ouvirem suas palestras nas quais, recorrentemente, o ipê amarelo é utilizado como metáfora para celebrar a persistência do esforço, e, sobretudo, o agigantamento quando as condições são adversas. Ele constrói com graça a analogia: já no calor de agosto, quando o campo ainda está ralo e seco, coberto de folhas mortas, e os morros pelados, tudo recendendo a poeira, o ipê faz brotar nos galhos nus e aparentemente ressequidos a maravilhosa florada, que confirma a vida. Nesta entrevista, Rodrigues fala de tudo que possa interessar tanto aos leigos como aos experts em em questões agrárias.


Epitacio Pessoa/AE

Digesto Econômico - Vários setores da economia mostram sinais de recuperação. Qual foi o impacto da crise financeira no agronegócio e qual a situação hoje? Roberto Rodrigues - Esta é uma pergunta difícil de responder de maneira objetiva, pois não há apenas uma agricultura no Brasil, existem várias agriculturas. Não dá para comparar a agricultura da Serra Gaúcha com a de Rondonópolis, no Mato Grosso, ou com um produtor de cana em Pernambuco – são realidades diferentes, condições climáticas, tecnológicas, fundiárias, étnicas, e portanto culturais, diferentes. A crise afetou o agronegócio de maneira distinta em cada cadeia produtiva. Mas é possível, como regra, afirmar que as empresas que estavam endividadas sofreram dramaticamente. Há também casos de empresas que haviam conseguido financiamento, estavam com o dinheiro guardado, veio a crise e eles puderam comprar três vezes mais do que planejavam. Tem empresas que ficaram muito mal e outras que ficaram muito bem. Agora, exemplificando a regra: as culturas anuais, em geral – milho, soja, algodão, arroz, feijão etc. –, tiveram queda de preços nos primeiros cinco meses deste ano em comparação ao mesmo período do ano passado, uma queda média de 17%. Mas dois fatos compensaram: o primeiro foi que os preços do ano passado eram os mais altos da história recente, de modo que os preços caíram 17%, mas ainda estão acima da média histórica dos últimos 20 anos. E mais, como houve um ajuste cambial valorizando o dólar, mesmo a queda de 17% foi compensada pelo dólar mais alto, isso para exportação. A renda dos agricultores em geral não foi afetada dramaticamente este ano, não obstante os custos terem subido espetacularmente no ano passado (fertilizante, mão-de-obra etc.), mas a rentabilidade não foi afetada, salvo em dois casos: no Sul do País, onde houve seca, em particular Paraná e Rio Grande do Sul; e no Nordeste, principalmente Maranhão e parte do Ceará, onde houve muita chuva. Nestas duas regiões houve perdas. Mas em termos nacionais, as culturas anuais deram uma boa rentabilidade ao produtor rural, com as diferenças regionais. As culturas permanente são diferentes, pois estão muito ligadas a processos industriais, agregação de valor – pecuária de corte, cana de açúcar, laranja, café. Neste caso houve prejuízo importante e pode piorar. Sobretudo cana de açúcar e álcool, que vinham se alavancando antes da crise por causa do crescimento enorme da oferta de etanol no Brasil; todos se endivida-

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Miguel Portela/Diário do Nordeste/Futura Press

As culturas anuais, como milho, soja, algodão, arroz, feijão etc., tiveram queda de preços nos primeiros cinco meses deste ano em comparação ao mesmo período de 2008, uma queda média de 17%, mas os preços do ano passado foram os mais altos da história recente.

Renoir Sampaio/AE


ram, se comprometeram a crescer. Quando veio a crise, elas já estavam muito alavancadas e o crédito acabou, inclusive para a exportação. Por outro lado, o preço do petróleo despencou de US$ 140 para US$ 50. O etanol, que era um projeto brilhante até então, perdeu completamente a consistência, particularmente o etanol americano, que vem do milho e não tem como competir com o petróleo. Com isso, os mercados se estreitaram dramaticamente e as usinas, apertadas, acabaram passando o "mico" para o produtor de cana, que não tem para quem repassar esse mico. Então, está havendo um recesso dramático entre os produtores de cana pela questão do endividamento das usinas de açúcar e álcool, que não é por causa da crise, mas é agravada por ela. Este é um processo cuja resolução está próxima. O preço do açúcar subiu muito, pelo fato de a Índia, que é um grande exportador desse tipo de produto, ter passado por uma grande seca. Para ter uma ideia, o Brasil este ano vai exportar 50% do açúcar do mundo. Mas no ano que vem, a Índia já retomou sua produção e irá voltar a exportar. O etanol não se definiu em termos de mercado e o petróleo continua barato. Este é um setor com complicações muito sérias e eu não vejo no curto prazo uma situação para isso. E o setor está sujeito a duas situações: uma é a concentração – as usinas que estão bem, tinham dinheiro guardado e têm crédito estão comprando as que quebraram. Outra é a internacionalização – a Bunge entrou, a BM, a Cargil, tem fundo de investimento comprando usinas no Brasil. Um setor que era de empresas nacionais, rapidamente começa a se internacionalizar e a se concentrar. Imagino que o setor tenha em torno de 250 grupos em atividade. O próprio segmento calcula que em dez anos restarão 50 grupos. E o produtor rural está ainda sem solução. DE - O senhor comentou sobre a indefinição do etanol. O governo levantou essa bandeira e muita gente apostou neste segmento. Qual a perspectiva que o senhor vê para o etanol como negócio? RR - O que existe no Brasil neste aspecto é uma total falta de estratégia. Os americanos têm uma lei que estabelece que em 2022 eles vão consumir 132 bilhões de litros de álcool e tem um projeto de apoio para quem quiser produzir etanol nos EUA, com 2 bilhões de dólares só para pesquisas de etanol de celulose. Eu pergunto: alguém sabe quanto iremos produzir de etanol no ano que vem? Ninguém sabe, pois não temos estratégia. E aqui não é só governo, tem o setor privado também. A culpa é de ambos, ninguém

tem estratégia. Todo mundo se endividou para produzir cana, para reformar ou construir usina nova e não tem nenhum projeto estratégico. Nós não sabemos quanto vamos produzir para o mercado interno e externo, para gerar contratos de exportação, quem cuida da logística, da armazenagem, da distribuição, qual modelo que queremos, quem cuida da tecnologia, de recursos humanos, quem cuida da alcoolquímica, quem cuida do financiamento. Temos 12 ministérios cuidando de álcool no Brasil. Tem gente técnica boa, da melhor qualidade, mas um não conversa com o outro. Há quatro anos eu peço para criar uma secretaria de agroenergia. O ProÁlcool saiu porque o João Camilo Pena (ex-ministro da Indústria e Comércio do governo João Figueiredo) criou a Cenal - Comissão Executiva Nacional do Álcool, colocou todo mundo junto e criou uma estratégia. DE - Como seria essa secretaria de agroenergia? RR - Seria composta por técnicos de todos os ministérios envolvidos com a questão e que defina a estratégica completa – o zoneamento ecológico, o financiamento, a logística, o es-

O preço do açúcar subiu muito, pelo fato de a Índia, que é um grande exportador, ter passado por uma grande seca.

Valter Campanato/ABr

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Antonio Costa/Gazeta do Povo

coamento, o tamanho da produção, os mecanismos de promoção comercial etc. Seria uma secretaria de nível ministerial, um ministério. Temos o Ministério da Pesca, mas o que significa a pesca no Brasil? Uma renda menor do que a da banana. Por que não temos um ministério da banana, ou do café ou do arroz? É preciso uma ação política para definição estratégica, pois nós temos o discurso, mas não temos o recurso. Cadê a regra? Não tem. DE - Além do álcool, quais outros segmentos foram prejudicados pela crise? RR - O segundo segmento foi o dos frigoríficos de carne bovina, pois o de frango e suínos vão indo bem, tem mercado muito grande na Rússia, o Japão está comprando muito frango brasileiro, estamos exportando para mais de uma centena de países – o Brasil é o maior exportador mundial de carne de frango. Para mim, o frango é a síntese do agronegócio: é um ovo, que junta com milho e sai voando. Um ovo sozinho não vira frango e o milho sozinho também não (risos). Os frigoríficos de carne bovina enfrentam os mesmos problemas das usinas de álcool. Aqueles que estavam alavancados foram para o vinagre e aqueles que estavam bem, estão comprando os que quebraram. Isso também gera concentração. Essa concentração tem consequências: o pecuarista não recebe de quem quebrou. O governo colocou dinheiro para capital de giro para usinas e frigoríficos, mas as regras da burocracia para chegar o dinheiro ao produtor não funcionam – quem está endividado não pode pedir dinheiro novo. É preciso flexibilizar as regras. Um outro setor que sofreu foi o de suco de laranja, mas aqui é um problema estrutural. Com a crise, o consumo mundial de suco de laranja despencou, os estoques mundiais são grandes e o setor é muito pequeno no Brasil do ponto de vista industrial – três ou quatro empresas. Há inclusive uma discussão no CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) se este é ou não um cartel. E de novo o produtor de laranja ficou com o mico na mão. Não é culpa de ninguém, é da crise. Por último, tem o café, cujos mercados se estreitaram por causa do crédito para exportação, variação do câmbio, e o produtor também ficou com os custos de produção maior do que o preço. São quatro setores com dificuldades e eu não vejo uma solução para eles no curto prazo, salvo se houvesse uma decisão política, com dinheiro à vontade, claro que com garantias reais, mas é preciso flexibilizar um pouco

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Albari Rosa/Gazeta do Povo

Os frigoríficos de carne bovina enfrentam os mesmos problemas das usinas de álcool. Aqueles que estavam alavancados foram para o vinagre. Já os de frango vão bem. O Brasil tem exportado frango para vários países.

as regras, senão as coisas vão complicar. O cenário geral é este: as culturas anuais tiveram rentabilidade e as permanentes estão com mais dificuldade por causa do processo industrial, que está atrapalhado no seu processo de desenvolvimento e acaba jogando para baixo, para o produtor rural. DE - E quais as perspectivas para o setor? RR - Pra frente, é preciso pensar no curto e médio prazo. Na parte estrutural, as coisas são muito claras: o que há é um descompasso entre o crescimento da demanda e da oferta – não é só alimento, são também roupas, sapato, papel, tudo isso faz parte da agricultura. Imagina-se que a população do planeta cresça 2 bilhões de habitantes em 25 a 30 anos; só que 85% desse crescimento ocorrerão na América Latina, África e Ásia, nos quais a renda per capita está crescendo muito mais do que nos países desenvolvidos. Atualmente, a demanda está explodindo, já que a crise atingiu menos os países emergentes, e a oferta não está crescendo por causa da crise. O resultado é que os estoques mundiais estão despencando e isso explica os preços ainda altos das commodities acima da média histórica. Nos úl-


timos dez anos, o mundo inteiro produziu 100 milhões de toneladas de grãos a menos do que consumiu; e o Brasil, no mesmo período, produziu 180 milhões de toneladas a mais do que consumiu. Se não fosse o Brasil, haveria um déficit de 300 milhões de toneladas. O Brasil já vem contribuindo com uma posição interessante. O mercado ainda é demandante por produtos agrícolas, pois os emergentes continuam crescendo, assim como a população e a renda. DE - Estas são perspectivas boas para o Brasil, não é mesmo? RR - Exatamente. O Brasil tem hoje 72 milhões de hectares de terras agricultáveis produzindo, tem perto de 200 milhões de hectares de pastagens – não é Floresta Amazônica nem Pantanal, é pastagem, tem boi comendo capim lá. Desses, 92 milhões são bons para agricultura. Nós temos uma área agricultável em pasto, sem derrubar uma única árvore na Amazônia, maior do que a área agricultada. É por isso que os estrangeiros vêm aqui e ficam apavorados com o Brasil. Ele vão para o Mato Grosso, Tocantins e Goiás e percebem que o Brasil tem tudo para crescer, e é verdade. O Brasil tem condições excepcionais, que eu acho que a crise valoriza e potencializa. Tudo indica que a crise começa a arrefecer, mas como eu disse, em alguns setores ainda vai piorar, mas em termos globais ela começa a arrefecer, e os mercados continuarão demandantes. Eu tenho dito muito, inclusive para o governo, que nós devemos aproveitar a crise e transformá-la numa grande oportunidade. Se você tivesse crédito à vontade, com pouca burocracia, sem complicação e insumos à vontade – abre a importação de insumos, sementes, a legislação facilitando a transgenia etc. –, nós poderíamos ter uma safra gigantesca no ano que vem e ocupar mercados que os países desenvolvidos não vão conseguir reconquistar, porque eles recebem em dólar, não é como nós que temos uma vantagem no câmbio. Eu acho que há uma enorme oportunidade e gostaria que o governo olhasse esse tipo de coisa, e o setor privado também, criando uma expectativa grande de produção para o ano que vem. E colocando dinheiro para capital de giro na indústria de açúcar, frigorífico e suco de laranja, vai irrigar para baixo, para não matar este povo que está produzindo hoje. Depois que morre não tem mais jeito, o futuro não interessa aos mortos. Nós precisamos manter os caras vivos, produzindo hoje, olhando as oportunidade já no ano que vem. No longo prazo, com a população e renda crescentes, o céu é o limite.

O Brasil em 1998 exportou 21 bilhões de dólares em produtos agrícolas; e em 2008, 71 bilhões de dólares, três vezes e meia a mais. DE - Não seria o caso de se ter um superministério da Agricultura, com mais poderes, traçar objetivos e revisar a legislação, que em vários aspectos acaba tolhendo qualquer projeto de produção agrícola? RR - Não acho que deva haver um superministério. Muita gente diz que não tem política agrícola no Brasil. É mentira. Tem política agrícola, aliás, muito boa, porque ela foi criada no Ministério da Agricultura por uma equipe técnica muito boa. Eles estão lá há 30 anos e sabem tudo sobre agricultura. O ministério tem um política agrícola, o que não tem é estratégia para implementar esta política. Ela está lá, mas onde está o dinheiro? O Ministério do Planejamento faz o orçamento. E quem libera o dinheiro? O Ministério da Fazenda é quem libera, de acordo com a sua política econômica. E o preço mínimo? É o Ministério da Fazenda quem define. O câmbio? É o Banco Central. A taxa de juro? Também é o BC. A estrada, ferrovia, o porto? É o Ministério dos Transportes. A negociação internacional? É o Itamaraty. As regras de comércio? É o MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior). O dinheiro para a tecnologia? É o MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia). O biocombustível? É o Ministério das Energias, Petrobras e ANP (Agência Nacional do Petróleo. Gás Natural e Biocombustível). A floresta plantada? É o Ministério do Meio Ambiente. Então, a política existe, mas os instrumentos estão dispersos em "n" agências do governo e sem estratégia.

Os produtores de café passam dificuldade por causa da falta de crédito e variação do câmbio.

Paulo Liebert/AE

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DE - O Ministério da Agricultura seria competente para estabelecer essa estratégia? RR - Lógico que sim. Quando eu assumi o Ministério da Agricultura, eu disse que queria conhecer o pessoal de planejamento estratégico. Disseram que não tinha planejamento estratégico. Como é que se vai desenhar regras para a agricultura sem estratégia? Então eu criei uma coordenadoria de ação estratégica. Chamei uma meninada brilhante da Embrapa, do Ipea, gente da melhor competência. Disse a eles: vou fazer três perguntas para vocês. Estudem, pesquisem e me respondam. O que o mundo vai consumir ao longo dos próximos 30 anos? Que pedaço desse consumo o Brasil tem potencial para assumir? O que eu preciso fazer para assumir esse pedaço? Esse pessoal foi lá e fez. Está pronto o projeto. Só precisa de uma estratégia de governo. Se não tiver essa estratégia, não adianta. Eu vivi isso, eu enfrentei a maior crise agrícola dos últimos 40 anos. O câmbio despencou, os preços subiram dramaticamente, teve febre aftosa, gripe aviária, seca no Sul com produção despencando, foi uma tragédia. Eu sou agricultor, tenho 40 anos de experiência nesta área como líder rural. Eu sabia exatamente o que fazer. Mas fazer como, se essa não era a visão do governo? Eu entendo, dentro do governo tem outras autoridades, tem diferenças. DE - Essa falta de estratégia é deste governo ou é histórico? RR - Isso tem mais de 40 anos. Começou nos anos 50, quando o Brasil optou pelo modelo de urbanização do País. Com que dinheiro? Com o da agricultura, que era praticamente a única atividade do País. Montaram um sistema de drenagem de dinheiro da agricultura. O agricultor reclamou. A sociedade falou: estão tirando dinheiro da agricultura, tem gente quebrando, todo mundo chorando, que negócio é esse? Anos depois, o governo criou programas, como crédito rural, financiamento, subsídios em alguns casos, que em geral foram elitistas. Quem não tinha acesso, continuou chorando. O governo dizia que tinha dado vários mecanismos, e tinha, só que segmentado. O governo, para se defender, criou a ideia de que o agricultor é chorão, perdulário, incompetente. Essa imagem foi multiplicada pela mídia, que não tinha informação suficiente, transmitiu-se para a academia e virou opinião pública. Num regime democrático, as políticas públicas são monitoradas pela opinião pública. Na medida que tem a imagem que você é incompetente, explora o meio ambiente, tem trabalho escravo, a sociedade não vai ficar do seu lado.

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DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2009

Num regime democrático, as políticas públicas são monitoradas pela opinião pública. Na medida que tem a imagem que você é incompetente, explora o meio ambiente, tem trabalho escravo, a sociedade não vai ficar do seu lado.

DE - Não seria o caso de assumir a vocação histórica do Brasil, que é um país principalmente agrícola, de forma a criar uma base mais sólida de desenvolvimento? A França não é um bom exemplo disso? RR - NãosepodedizerqueaFrançaeosEUA sejam países agrícolas, mas são países com enorme lobby agrícola. O Brasil, ao contrário, não tem nenhum, apesar de ter uma bancada agrícola aguerrida, vigorosa, mas é minúscula. Essa bancada não tem o poder de persuasão dentro do Congresso como os americanos. O Charles Grassley, senador por Iowa, está lutando contra a eliminação das tarifas para importação de álcool do Brasil. O Obama quer eliminar, mas o Congresso não deixa. O lobby agrícola americano é poderosíssimo, pois existe uma consciência política do setor. No Brasil não tem isso, há uma bancada pequena, lutadora, mas ela é mal alimentada. Por isso não se vê resultados. O que nos falta é essa visão estratégica de longo prazo, não de um Brasil agrícola, mas da agricultura como uma mola propulsora. Uma vez fui procurado por u m d i re t o r d a (Rede) Globo, que comentou que a agricultura não anunciava. Como não? Quais anúncios têm na televisão? Calça jeans, por exemplo. E se faz jeans sem algodão? Bolsa, sapato, cinto, se faz sem couro? Revista e jornal, se faz sem papel? Vinho, uísque e guaraná, nascem na garrafa? As pessoas perdem de vista o fato de que a agricultura não é só comida, é a vida, é o dia a dia. Todo mundo gosta de bombom, chocolate, mas não sabe a vida que leva o coitado do baiano que está produzindo cacau contra tudo e contra todos, lutando contra a vassoura de bruxa no Sul da Bahia. Também vejo muito comercial de cerveja. O cara que planta cevada em Guarapuava, no Paraná, não tem subsídio, não tem seguro, têm o juro e o imposto mais altos do mundo, e tem que competir com o agricultor subsidiado do Canadá, França, Estados Unidos. E é esse agricultor de Guarapuava que dá emprego a todos os operários das fábricas de cerveja, de garrafa, de latinha, de caixa, de geladeira, do butiquim e inclusive dá emprego ao publicitário que faz o comercial. Sem a cevada, a cadeia produtiva não existiria, mas as pessoas não têm essa noção. Na França, de vez em quando se ouve que soltaram 500 porcos no ChampsElysées. Acham que são os produtores rurais?


Não, são os bancos, os fabricantes de ração, que não conseguem vender porque o produtor não tem renda e colocam o produtor na frente. Nos EUA toda hora se vê isso, pois há o conceito de cadeia produtiva. Aqui não há isso porque cada setor se desenvolveu às custas de favores governamentais. Falta estratégia do governo. DE - Essa estratégia a que o senhor se refere também incluiria questões sociais agrárias? RR - Sem dúvida nenhuma. O agronegócio hoje representa 1/4 do PIB, 1/3 das exportações e 1/3 dos empregos. Só que o saldo comercial do agronegócio é o dobro do saldo comercial do Brasil. Ele gera riqueza, emprego. DE - O Itamaraty, com aquela constelação de diplomatas, está preparado para levar essa discussão quando se senta à mesa para tratar com outros países as questões de subsídios? RR - Ele está se preparando. O Itamaraty é um dos organismo mais competentes do governo brasileiro. O Itamaraty, Banco do Brasil e Banco Central possuem pessoas muito competentes, só que eles não têm obrigação de entender de agricultura. Quando eu estava no ministério, criei uma secretaria para assessorar o Itamaraty, de forma que eles hoje estão se preparando. Eu achava que deveria haver um adido agrícola nas embaixadas brasileiras. Tem adido agrícola de países como Holanda, EUA e até da Argentina. Depois de 20 anos consegui que se criasse essa figura em seis embaixadas brasileiras. O papel deles é a de promoção, criar exposições de produtos brasileiros. DE - Lá fora, o Brasil tem uma imagem de vilão do desmatamento. O que o senhor acha disso? RR - O produtor rural é o maior preservador de recursos naturais. Quem não aduba, não faz curva de nível, não protege o solo contra erosão, não preserva a mata ciliar, não protege encosta de morro, perde a fazenda. A erosão leva tudo embora. Sem saber, ele é ambientalista, ele protege o meio ambiente. Todos os agricultores profissionais pensam assim, mas nem todos os agricultores são profissionais. Ao longo da história, a ambição, a ignorância os levaram a não cuidar disso. Com o avanço do ambientalismo, eles viram fazendas com erosão, a mata destruída na beira do rio e disseram que o agricultor destrói o meio ambiente, generalizando, o que não é verdade. Do outro lado, o agricultor que não toma todos os cuidados diz que os ambientalistas são contra o progresso, o que não é verdade, é só uma parte. Houve um radicalismo de ambos os lados,

que é burro. O radicalismo é filho da burrice e do preconceito. Tanto um como o outro quer desenvolvimento sustentável. Então, é preciso inteligência, bom senso e equilíbrio para encontrar mecanismos que levem a isso. Enquanto existir o desequilíbrio, o radicalismo e os erros, pois eles existem, isso tudo é usado contra nós, inclusive porque há o interesse comercial. O Brasil vai crescer e a agricultura vai explodir, então lá fora eles dizem que estamos destruindo a Amazônia, que há trabalho escravo, para tirar o poder de fogo da agricultura brasileira. É verdade que tem trabalho escravo, mas é uma incidência muito pequena, insignificante, mas é essa a imagem que aparece. E isso é usado pelos nossos concorrente lá fora. Por outro lado, são coisas que têm lastro com a verdade. No ano passado, a Europa cortou a compra de carne bovina por causa de falta de rastreabilidade. Falei sobre isso durante três anos e meio e dizia que uma hora eles iriam fechar, mas eles diziam que não. Resultado: agora, na marra, estão fazendo a rastreabilidade que eu quis fazer por boa vontade. Por não termos a lição de casa feita nós ficamos com uma exposição, vulnerável, e os adversários aproveitam a oportunidade para fazer campanhas. Nós temos que cuidar das coisas certas e impedir que generalizem como se todos fizessem errado. DE - Em dezembro ocorrerá em Copenhague a Conferência de Mudança Climática da ONU. O senhor acredita que de alguma forma as decisões ali tomadas trarão impactos para o agronegócio brasileiro? RR - Eu tenho um ceticismo em relação a estas questões. A FAO há 15 anos luta para diminuir a fome no mundo, montou um plano bem

Precisamos ter desmatamento zero na Amazônia. Quem desmatar, cadeia nele.

Sebastião Moreira/AE

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feito, organizado, mas outro dia anunciou que existem mais de 1 bilhão de pessoas com fome no mundo. O que acontece é que esses organismos fazem regras, programas bem organizados, mas os países, em nome da soberania, não cumprem. Então, tenho esse ceticismo em relação a ONU, FAO, OMC, acho que os países não estão dando muita importância a eles. A OMC condenou os americanos em relação ao protecionismo do algodão, eles não cumprem e não acontece nada. A ONU não queria que os americanos invadissem o Iraque. Eles invadiram e não aconteceu absolutamente nada Por outro lado, o aquecimento é uma questão global. Eu espero que de Copenhague surja uma orientação que os países sigam. Em relação à Amazônia, o que precisa é o País se decidir, é a sociedade se decidir. Precisamos ter desmatamento zero na Amazônia, precisa ser uma opção nacional, as pessoas têm de tomar essa decisão. Quem desmatar, cadeia nele. Também não pode ficar só na punição, tem de criar estímulos para quem fizer certo. O Brasil tem tudo para criar uma economia verde, mas é preciso uma decisão política e criar uma estratégia negociada entre os setores público e o privado, com o apoio da sociedade. DE - Na sua visão, como equacionar uma estratégia que envolva o agronegócio e a agricultura familiar? RR - O Brasil é o único país do mundo que tem dois ministérios da Agricultura, como se fossem adversários: o agronegócio e a agricultura familiar. O agronegócio é a soma da cadeia produtiva, que começa na prancheta do cientista e termina na gôndola do supermercado. Qualquer produtor faz parte deste meio, qualquer que seja o seu tamanho. Claro que é preciso políticas diferentes, pois eles têm demandas diferentes. Grandes e pequenos produtores precisam trabalhar juntos e o elo é o cooperativismo. O pequeno produtor, sozinho, não tem condições de evoluir. A atividade produtiva tem um círculo vicioso. Quem tem baixa renda não consegue comprar tecnologia, ocasionando baixa produtividade e baixa renda. É preciso romper esse círculo vicioso em algum lugar, com subsídio, com créditos, com tecnologia barata, algum mecanismo que permita uma elipse positiva. Eu acho que o mecanismo ideal é o cooperativismo, ele agrega valor, permite acesso à tecnologia e ao crédito, ajuda na comercialização. DE - Qual a sua opinião sobre os transgênicos? RR - Indiscutivelmente é um avanço. A

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Epitacio Pessoa/AE

Lucio Piton/A Cidade/Futura Press

Os grandes e os pequenos produtores precisam trabalhar juntos e o elo é o cooperativismo. Quem tem baixa renda não consegue comprar tecnologia, ocasionando baixa produtividade e baixa renda. Um círculo vicioso.

transgenia tem dois efeitos: um de custo e outro ambiental. O de custo é que o produtor pulveriza menos, usa menos insumos e tem um custo de produção menor, permitindo competir em melhores condições com quem já usa a transgenia. Na questão ambiental, por pulverizar menos, ele gasta menos água e insumos, causando menos impactos. Então, são duas vantagens claras. No Brasil, a utilização é muito bem feita, com critérios rigorosos, passando por exames de avaliação; e só vai para o mercado com a segurança de que não irá afetar o meio ambiente e a saúde pública. A lei é muito boa, muito sábia e bem desenhada. DE - Em entrevistas, o senhor defendeu a integração entre a lavoura, pecuária e silvicultura. O senhor poderia explicar o que seria essa integração? RR - Desenvolvemos isso na Embrapa, no meu tempo de ministro. É um "ovo de Colombo". Imagine uma pastagem degradada: sem nenhuma cabeça por hectare, a erosão está comendo tudo. Você prepara o solo para a agricultura, corrige tudo com calcário e planta soja ou milho, o que for. Simultaneamente, você


planta capim de pasto e pulveriza com um defensivo agrícola para que o capim não cresça – ele nasce e fica ali quietinho, mas a outra cultura cresce. Na hora da colheita, o efeito (do defensivo) sobre o capim já passou e ele está crescendo. Você acabou de colher e automaticamente tem um pasto rico, adubado e com resíduos da produção agrícola colhida, que é comida para o boi. Você planta a soja ou o milho em outubro ou novembro, colhe em março e abril, quando vem a seca, você tem um pasto riquíssimo, adubado e da melhor qualidade. O rebanho engorda na seca, raspa todo o pasto e o agricultor planta novamente no local. A integração dessa estratégia com a silvicultura está crescendo. A cada distância, dependendo da área, se planta duas, quatro ou seis linhas de eucalipto. Aí você tem o pasto, a agricultura e a madeira, mais um produto para agregar. Isso permite o aumento da renda do produtor rural, ele não fica na monocultura, usa a área mais vezes ao ano e agrega valor à sua produção. DE - Na sua opinião, por que o governo tolera, e algumas entidades até apoiam, as invasões de terras e os ataques ao agronegócio brasileiro? RR - O fato não é deste governo, vem de algum tempo. São movimentos sociais, declaradamente políticos e que reivindicam a reforma agrária, um argumento vendável no cenário brasileiro, daí o apoio, mas que está caindo por causa da violência. Mas a democracia é isso, um choque de culturas e interesses. Em relação ao atual governo, o presidente, na campanha eleitoral, tinha compromisso com movimentos sociais, o que se converteu em vigoroso apoio, inclusive financeiro. Foi um compromisso político que permitiu essa situação, mas acredito que o governo vai apoiar menos. Particularmente, sou a favor de uma reforma agrária, por uma razão singela: nos últimos 40 ou 50 anos tivemos erros sucessivos de governos, tirando as pessoas do campo. Algo precisa ser feito para compensar quem perdeu o que tinha sem culpa nenhuma , por causa de planos econômicos (Plano Collor, Plano Real) que tiveram impactos na renda, corrigindo débitos por um índice e os preços por outro. O produtor teve descompasso contábil – ele não teve culpa nenhuma, fez tudo certo, mas perdeu tudo que tiJosé Cruz/ABr

nha. Sou a favor da reforma agrária com critérios, com a venda da terra casada com crédito rural adequado, tecnologia, com o setor funcionando e com o fortalecimento das cooperativas. Não se trata de criar cooperativas indiscriminadamente. Ao desapropriar a terra para reforma agrária, define-se qual a melhor cultura para a região. Depois, verifica-se qual a melhor cooperativa para essa cultura. Ela monta uma base ali, procura o assentado, que já entra com o trem andando. Já existe a cooperativa, que oferece assistência técnica, sabe como funciona o crédito rural, como comercializar etc. A cooperativa ganha com mais produção, tem mais produtos para vender, ganha maior poder de barganha no mercado. A reforma agrária deve ser feita, mas com o apoio das cooperativas. DE - O que o senhor acha dessa queda de braço entre os ministros do Meio Ambiente (Carlos Minc) e da Agricultura (Reinhold Stephanes)? RR - Isso é histórico. Com bom senso, equilíbrio e boa vontade, tudo tem solução. Produtor agrícola e ambientalista querem a mesma coisa: sustentabilidade. Todos querem isso, até porque você não vai ter mercado no mundo se não for sustentável – social, econômica e tecnologicamente. É preciso acabar com o radicalismo que existe de ambos os lados, buscar o acordo. Defendo, por exemplo, desmatamento zero na Amazônia e no Pantanal, obrigatoriedade de a área de preservação permanente ser recomposta, mas com a manutenção do que já foi conquistado nos últimos cem anos – a Serra Gaúcha com a uva, Minas Gerais com o café, Rio Grande do Sul com o arroz, eles estão lá há cem anos. Vai botar os caras pra fora? Com meia dúzia de itens acho que se consegue encontrar um caminho adequado, com boa vontade e inteligência.

Queda de braço entre o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes (esq.) e Carlos Minc (dir.), do Meio Ambiente: com bom senso, equilíbrio e boa vontade, tudo tem solução.

Wilson Dias/ABr

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agronegócio brasileiro é um dos mais avançados do mundo e responde por um terço do PIB nacional. Apesar de sua importância na economia, o setor enfrenta inúmeras dificuldades, como falta de incentivo, alta carga tributária, problemas de logística, queda nas exportações por conta da crise econômica mundial, a desvalorização do dólar e as incoerências do Código Florestal Brasileiro, só para citar alguns itens; além de um enraizado preconceito contra fazendeiros, muitas vezes associados à grilagem de terra, trabalho escravo e desmatamentos. "Não dá mais para admitir que um setor que representa tanto para a economia nacional, que tem trazido tantos progressos e é admirado lá fora, seja tratado como um setor atrasado, reacionário, que trata mal seus trabalhadores e agride o meio ambiente", desabafou Kátia Abreu, presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), que no fim de maio proferiu uma palestra na Associação Comercial de São Paulo sobre os desafios do agronegócio frente à conjuntura econômica atual. Segundo dados da CNA, em 2007 o setor movimentou qua-

se US$ 330 bilhões, dos quais a pecuária participou com 29% e a agricultura com 71%. Este montante equivale a cerca de um terço do Produto Interno Bruto (PIB) do País. O setor também participa com mais de um terço das exportações do Brasil – em 2008, as exportações do setor somaram US$ 71,8 bilhões ou 36,2% de tudo o que o País exportou no ano. Já em relação à geração de emprego, o setor emprega 37% da mão-de-obra nacional. "No início de 1995, um salário mínimo comprava 70% de uma cesta básica; já em fevereiro de 2008, um salário era suficiente para comprar quase duas cestas. Isso foi possível graças à tecnologia e ao aumento da produtividade, fruto de pesquisas brasileiras", afirmou Kátia Abreu. "Ao mesmo tempo, o valor pago aos produtores, principalmente de grãos e de carnes, vem caindo assustadoramente nos últimas décadas". Em relação aos desafios que o agronegócio enfrenta, a presidente da CNA apontou primeiramente o custo financeiro, que varia nas principais regiões produtoras. "Temos uma carga de juros ao final de cada safra. Nas regiões Sul e Sudeste, o percentual é de 15,3%, enquanto que os produtores do Centro-Oeste

Jonne Roriz/AE

Desafios do agronegócio:

Em 2007, o setor movimentou quase US$ 330 bilhões, dos quais a pecuária participou com 29% e a agricultura com 71%.

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arcam com uma carga de 21%. Além disso, esses produtores do Centro-Oeste possuem um custo mais elevado, pois estão mais longe dos portos e não possuem infraestrutura de logística, como hidrovias, ferrovias, portos etc.". Ela é da opinião de que o setor da agricultura e pecuária no País deveria seguir os exemplos dos EUA, onde 34 Estados não tributam alimentos, e do Reino Unido, que não tributa o setor. "O Brasil tem a maior carga tributária na cadeia de alimentos do mundo. Enquanto a média mundial é de 5%, aqui é de 16,9%", observa. Além da carga tributária, outro grande desafio é a questão ambiental, que tem trazido transtornos imensos à produção e também para a construção da infraestrutura, cujos projetos são atrasados por questões ambientais. "Temos um Código Florestal que foi editado pela segunda vez em 1965 e de lá para cá tivemos 11 legislações e 60 mudanças no código em relação ao campo e isso tem trazido uma insegurança jurídica enorme. Essas mudanças são no sentido de ampliar a cobertura florestal sem considerar que os produtores já tinham plantado suas áreas quando a lei assim permitia. Quando é divulgado na imprensa

que os produtores querem o perdão pelo desmatamento ilegal, 90% das vezes isso não é verdadeiro, pois eram produtores que desmataram quando assim a lei permitia", afirma Kátia. Ela lembra que em 1965 a realidade do Brasil era bem diferente e a ocupação era ainda em áreas da Mata Atlântica. O Código Florestal foi criado em cima desta realidade. "Naquela época, não tínhamos ainda a Embrapa, não havia um mapeamento preciso, não havia o Radam, criado em 1970 e que é um radar poderosíssimo para rastreamento de desmatamento, não havia a Embrapa Satélite, que está fazendo 20 anos agora. A Constituição também tratava a questão ambiental como matéria exclusiva da União e hoje Estados e municípios podem legislar sobre esta matéria", disse. Ela lembrou que em 1965 o Brasil era um grande importador de carne, feijão e leite e o País ainda não havia desenvolvido a tecnologia do cerrado. Esta região se desenvolveu entre 1975 e 1985, quando se descobriu que as terras poderiam ser fertilizadas. "Nesta época não se exigia a cobertura florestal do cerrado, ela só veio em 1989, quando a região já havia sido des-

Carlos Ossamu

Valter Campanato/ABr

tirar leite de pedra

O Brasil tem a maior carga tributária na cadeia de alimentos do mundo. Enquanto a média mundial é de 5%, aqui é de 16,9%.

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matada. Hoje, toda essa região que foi plantada tem sofrido a 3,18% da área do Estado. Para cumprir a lei, seria necessário exigência de reflorestamento, sem o financiamento ou ajuda um investimento de R$ 37 bilhões, sem considerar os prejuízos do governo", reclamou. para a sociedade com a retirada de áreas para plantio de aliDe 1965 a 2006, os números mostram como o agronegócio mentos, de cana de açúcar, por exemplo. "Nesta discussão, nós, brasileiro teve um salto em desenvolvimento. A área ocupada produtores rurais estamos optando pela Constituição e pela pelos produtores cresceu apenas 30,5% (de 272 milhões de hecciência. Não queremos mais discutir percentuais e metragens tares (ha) para 355 milhões de ha, mas a área de lavouras aumende rios, pois não é a nossa competência. Decidimos entregar tou 145%, a produção de grãos cresceu 624%, a produção de carpara a Embrapa e ela define o que nós devemos fazer; e obene aumentou 1.000% e a população rural teve queda de 25%. "O decendo a artigo 24 da Constituição, tratamos o assunto como Código Florestal não é uma bíblia e deve ser atualizado à mematéria concorrente – a União pode apenas legislar as normas dida que a sociedade e o desenvolvimento assim exigem. Essa gerais e os Estados legislam suas peculiariedade, como Santa atualização não significa mais desmatamento, pois isso não inCatarina fez", esclareceu Kátia Abreu. teressa ao setor agropecuário. O que nos interessa hoje é a reUma outra questão importante levantada pela presidente da gularização ambiental e a segurança jurídica", salientou. CNA foi em relação a questões fundiárias. "Todos devem ter Kátia afirma com veemência que o Brasil não é o vilão do desacompanhado o que aconteceu no Estado do Pará em relação ao matamento no mundo, como alguns afirmam. O Brasil é o seabuso das invasões e o descumprimento de reintegração de posgundo país em cobertura florestal nativa, com se. Mais de 111 mandatos de reintegração de 450 milhões de hectares (de um total de 850 miposse sem cumprir, 300 processos de reintegralhões). Em primeiro lugar está a Rússia, com 800 ção em andamento e mais de mil invasões. InfeAlém das milhões (esse país tem uma grande região inalizmente, a governadora (Ana Júlia Carepa - PTbitada, muito fria), e em terceiro o Canadá, com PA) entende que ainda estamos no século 17, oninvasões do MST, 280 milhões de hectares. "Outro mito que falam de ainda imperava o Absolutismo e ela acha que estamos muito por aí é o fato de o Brasil ser campeão de emissão representa o Judiciário, o Legislativo e o Execupreocupados com as de CO2 por causa do plantio. Lembro que a métivo e recusa-se a cumprir as reintegrações de invasões das canetas dia mundial de emissão é de 4,5 toneladas por posse", comentou. "Isso não resolve as invasões, habitantes ao ano, a América Latina tem uma nós não estamos discutindo a reforma agrária, Mont Blanc, através média de 2,5 ton/hab/ano, os Estados Unidos que é um programa de governo. O que nós comdos ministérios e do emitem 20 ton/hab/ano, enquanto no Brasil, a batemos todos os dias não é a reforma agrária, Executivo, por meio média é de apenas 1,8 ton/hab/ano", disse. não são os assentamentos no Brasil, que são nosde decretos e Para demonstrar o absurdo que é a legislação sos parceiros. Nós somos radicalmente contra as instruções normativas, ambiental atual, Kátia mostrou um levantainvasões e o descumprimento da Constituição, mento feito pela Embrapa Monitoramento por que geram intranquilidade e a insegurança ao que invadem o direito Satélite, que demonstra que, se a legislação fosdireito de propriedade", comentou. de propriedade se cumprida à risca, 71% do território nacional "Além das invasões do MST (Movimento dos disfarçados de estaria comprometido com cobertura florestal, Trabalhadores Rurais Sem Terra), estamos muibandeiras sociais. restando apenas 29% para as cidades, a produto preocupados com as invasões das ‘canetas ção agropecuária e a infraestrutura. Fazem parMont Blanc’, através dos ministérios e do Execute deste cálculo as unidades de conservação e tivo, por meio de decretos e instruções normaterras indígenas (27%), reservas legais (32%) e áreas de presertivas que invadem o direito de propriedade disfarçados com banvação permanente, como margens de rios e topos de morros deiras sociais para justamente inibir o diálogo e fazer com que o (17%), totalizando os 71%. "A legislação ambiental foi feita coCongresso Nacional possa se calar diante do descumprimento mo se todos os rios fossem idênticos e se todos pudessem ter do direito de propriedade. Uma hora vem um decreto tratando uma metragem de margem de 30 a 600 metros, enquanto a Emdos quilombolas, levantando uma bandeira social que trata dos brapa Floresta do Pará demonstrou que a legislação está equidireitos dos negros, depois um decreto que trata de ampliação de vocada, pois é baseada totalmente na largura do rio", comentou. reservas indígenas, outro que trata de terras de fronteira em noSegundo disse, para a Embrapa Floresta, o que determina o que me da defesa nacional. Casos assim são um desrespeito ao direito plantar nas margens é a própria margem e não a largura do rio. de propriedade disfarçado de bandeiras sociais", afirmou. Foi o que Santa Catarina fez, já que a necessidade de uma margem mais larga ou estreita é determinada pelo seu declive, a proLogística fundidade do solo e se ele é arenoso ou argiloso. O que vai prejudicar o rio não é a sua largura, mas a enxurrada que ele receA falta de infraestrutura em logística é outro entrave no seberá. "Esse conceito equivocado da legislação prejudica tanto a tor, que faz com que os custos aumentem, fazendo com que o preservação ambiental quanto a produção", afirmou. produto brasileiro perca competitividade no mercado externo Como exemplo ilustrativo, São Paulo deveria, segundo a lee pese no bolso dos consumidores brasileiros. "Nós temos hoje gislação vigente, ter uma área de reserva legal de 4,4 milhões no Centro-Oeste 40% da produção nacional, e esta foi a verdade hectares, o que corresponde a 20% do Estado. Mas hoje exisdeira reforma agrária que aconteceu no Brasil. Tínhamos uma tem apenas 700 mil hectares de área coberta, equivalente a ocupação no Rio Grande do Sul, que depois foi transferida pa-

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ra Santa Catarina e Paraná, por conta da produção de frangos e suínos. Posteriormente, essas famílias se deslocaram para o Centro-Oeste voluntariamente e fizeram esta belíssima reforma agrária, mas infelizmente a logística não acompanhou este desenvolvimento", comentou Kátia Abreu. Segundo ela, o transporte rodoviário de uma tonelada por mil quilômetros custa US$ 42,60. Por ferrovia, este custo cai para US$ 26,80, e por hidrovia, que é o meio de transporte com menor custo, o valor cai para apenas US$ 18,30. E as vantagens da hidrovia não param aí: para viabilizar mil quilômetros de rio navegável são necessários US$ 53 milhões, enquanto que na ferrovia o custo de construção é de US$ 909 milhões e de rodovia, US$ 250 milhões. "É incompreensivel que matemos os rios do Brasil com construções de hidroelétricas sem a construção simultânea das eclusas para permitir a passagem das barcaças com a produção nacional. Apenas no Centro-Oeste há três ‘Mississipis’ - os rios Tocantins, Teles Pires/Tapajós e MadeiAlan marques/Folha Imagem ra/Guaporé, com os quais poderíamos dar condições de logística apenas construindo as eclusas simultaneamente às hidroelétricas. Nunca existiu, não apenas neste governo, uma conexão entre os ministér i o s d a E n e rg i a e d o s Transportes. Falta planejamento", afirmou

mentar a produção nesta proporção no mundo. A Índia e a China, que possuem grande número de famintos, não têm um palmo a mais para aumentar a produção", observa Kátia. Dívida

Entre as atuais bandeiras da CNA, a entidade vem reivindicando uma nova política de crédito rural. "As pessoas têm acompanhado o endividamento rural brasileiro, vendo as manchetes que chamam os produtores rurais de caloteiros, de mal pagador etc. A cada ano de prorrogação da dívida dos produtores há um acréscimo de 25%. O que pode parecer para a sociedade um bem, na realidade está nos atirando num inferno; diante das dificuldades não temos políticas ágeis e consistentes que possam preparar o setor para enfrentar momentos mais complicados", observou. Nós não somos formadores de preços, somos tomadores. Quando a Bolsa de Chicago define preços da soja, não leva em conta que temos a maior carga tributária do setor de alimentos, uma carga trabalhista impraticável etc. Em geral, os preços que são definidos são inferiores aos custos da produção. Estamos trabalhando no nosso limite máximo. A safra atual está totalmente comprometida e não sabemos o que irá acontecer. Tivemos por três safras consecutivas Oportunidades ferrugem asiática, uma praga da soja em que cai a Para a presidente da produtividade e é preciso Kátia Abreu: o Brasil tem 120 milhões CNA, enquanto a China e gastar uma fortuna em dede hectares para a produção de alimentos, a Índia são a indústria e o fensivos; tivemos uma vasem desmatar um palmo de floresta. serviço do mundo, resriação cambial, plantamos pectivamente, o Brasil secom o dólar em alta e coria a grande fazenda. Selhemos com a moeda em gundo a ONU, atualmente 1 bilhão de pessoas passam fome no baixa; tivemos a queda na demanda por causa da crise; e tivemundo. A Meta do Milênio da entidade é reduzir pela metade mos uma seca assustadora, que atingiu o Rio Grande do Sul, esse número até 2015. Pelos cálculos de Kátia Abreu, o consuSanta Catarina e Paraná", relata a presidente da CNA, revelanmo per capita é de 219 Kg/ano. Levando isso em conta, para do que o setor tem uma dívida de R$ 23 bilhões. erradicar a fome no mundo seria necessário produzir mais 219 Segundo Kátia Abreu, no mundo todo, principalmente nos milhões de toneladas de alimentos, o que exigiria mais 78 miEUA, Canadá, Europa e Japão, eles praticam US$ 365 bilhões de hectares de terra. Somente para cumprir a meta da lhões/ano em subsídios, eles não são mais eficientes do que os ONU até 2015, seria preciso aumentar em 39 milhões de hecprodutores brasileiros, mas são mais bem preparados, e isso tares as terras agricultáveis. acontece com ou sem crise, segundo disse a senadora. "Dessa "O Brasil tem 120 milhões de hectares disponíveis para a forma, será necessária a associação de mecanismos de governo produção de alimentos, sem desmatar um palmo de floresta, e de mercado para amparar o setor, e é em prol disso que a CNA apenas implementando a tecnologia que já existe no País. Mas está trabalhando", disse. por que não fazemos isso? Não fazemos por dois motivos: priUma outra reivindicação dos ruralistas é levar produtores à meiro pela falta de investimento público, não temos financiacondição de pessoa jurídica, mas dentro de um regime diferenmento, principalmente na pecuária, para que seja implemenciado. "Nós não conseguiremos transformar os produtores em tada mais tecnologia. Também há a questão do mercado, que pessoa jurídica com o formato existente hoje. Queremos uma não está preparado para absorver toda essa produção. Mas o maior transparência do setor, o que proporcionará financiaBrasil é a grande solução, o único que tem capacidade de aumentos mais baratos".

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Albari Rosa/AE

De Quioto a Copenhague: novos desafios ao agronegócio brasileiro?

A retomada da Rodada Doha, que trata da liberalização comercial no âmbito OMC, é prioritária para o agronegócio brasileiro.

1. O American Clean Energy and Security Act Divulgação

Roberto Fendt Economista e colaborador regular do jornal Diário do Comércio

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comércio internacional do agronegócio brasileiro continua sofrendo as consequências da crise internacional. Em julho, as exportações do agronegócio totalizaram US$ 6,3 bilhões, com queda de 20,7% sobre julho de 2008. Não se trata de fenômeno isolado, embora o indicador mensal apresente resultado pior que o refletido no acumulado dos últimos doze meses, quando as exportações brasileiras do agronegócio totalizaram US$ 67,8 bilhões (menos 0,4% sobre igual período anterior). Nesse quadro, causam preocupação para o agronegócio brasileiro a conjugação do "American Clean Energy and Security Act", com a realização da Cúpula de Copenhague e a ausência de finalização da Rodada do Desenvolvimento de Doha, da Organização Mundial de Comércio (OMC). Já foi aprovado, em primeira votação em 26 de junho último, pela Câmara dos Deputados dos EUA, o projeto de lei de mudanças climáticas, o "American Clean Energy and Security Act" (ACES) de 2009. O projeto de lei tramita agora no Senado americano. Em dezembro próximo, na Cúpula de Copenhague, pretende-se chegar a um acordo para uma expressiva redução na emissão de poluentes, tanto pelos países desenvolvidos como emergentes e em desenvolvimento. Já a Rodada Doha de liberalização comercial no âmbito OMC é prioritária do ponto de vista do agronegócio brasileiro. Ela trata da redução das barreiras à entrada de produtos do agronegócio provenientes de países emergentes. Trata também da imposição de tetos e da negociação de um cronograma para a eventual eliminação de subsídios às exportações agrícolas dos países desenvolvidos. Esses subsídios há muito estão distorcendo o comércio internacional desses produtos e impedindo uma redistribuição da produção com base em vantagens comparativas.

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O projeto serve de marco para o governo dos EUA nas negociações internacionais a terem lugar em dezembro próximo com vistas a um novo acordo sobre mudanças climáticas. O ACES estabelece uma meta de redução de emissões de dióxido de carbono, metano e outros greenhouse gases superior à proposta pelo presidente Barack Obama – uma redução, até 2020, de 17 por cento nos níveis observados


AFP/Greenpeace

A União Europeia já sinalizou uma meta de redução de 20 por cento das emissões até 2020, tomando por base as emissões observadas em 1990.

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em 2005, comparativamente a uma redução de 14 por cento proposta pelo presidente. Tanto o plano Obama como o projeto ACES estabelece uma redução nas emissões americanas de 80 por cento até 2050. O ACES estabelece também um padrão de eletricidade renovável ao requerer que até 2020 cada geradora que forneça mais de quatro MWh produza 20 por cento da sua eletricidade a partir de fontes renováveis (energia de fontes eólica, solar ou geotérmica). Há uma expectativa de que a aprovação do ACES aumentará a probabilidade de que um substituto do Protocolo de Quioto possa ser aprovado na Conferência-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima a ter lugar em Copenhague em dezembro próximo. Saul Loeb/AFP

Obama já deu indicações de que a meta americana é de reduzir em 80 por cento as emissões de greenhouse gases até 2050.

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2. A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima Em dezembro próximo, os 192 países aderentes à Convenção Quadro sobre Mudanças do Clima deverão dar prosseguimento às negociações originárias do compromisso assumido em Bali, em 2007, para pôr em prática ações concertadas contra as mudanças climáticas. Dessas negociações se espera que os resultados sejam postos em prática antes de janeiro de 2013. Como apontou Yvo de Boer, secretário executivo da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, da sigla em inglês), o Acordo pretende, primeiro, estabelecer ambiciosas metas quantitativas de limitação de emissões para os países industrializados. Há um entendimento que a falta de acordo com relação a metas quantitativas

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inviabilizará qualquer tentativa da comunidade internacional de enfrentar os problemas decorrentes das mudanças climáticas. Além disso, entende-se que a ausência de acordo sobre metas quantitativas não induzirão os países emergentes e em desenvolvimento a aderir aos esforços de redução das emissões. A União Europeia já sinalizou o apoio a uma meta de redução de 20 por cento das emissões até 2020, tomando por base as emissões observadas em 1990. Sinalizou também que poderá apoiar uma meta de redução de 30 por cento sobre a base de 1990, caso os demais países industrializados apoiem sua proposta. Conforme assinalado anteriormente, o presidente Obama já deu indicações de que a meta americana é de reduzir em 80 por cento as emissões de greenhouse gases até 2050 e de voltar, até 2020, aos níveis de emissões de 1990. Todos esses comprometimentos, evidentemente, pressupõem que o necessário esforço será feito também pelos países emergentes e em desenvolvimento, sem o que será difícil obter apoio político nos países desenvolvidos para o cumprimento das metas. Entre os BRICs, Brasil, China e Índia (a Rússia deve anunciar sua posição em meados deste semestre), além da África do Sul, estão levando adiante políticas nacionais voltadas para atenuar o problema, dentro, evidentemente, de suas restrições de caráter político. Afinal, as prioridades do desenvolvimento podem conflitar com a preservação do meio ambiente e ambos os objetivos devem ser levados em conta no desenho das estratégias energéticas desses países. Além disso, não está ainda claro qual o custo, em termos de PIB perdido, de atingir as metas propostas. Tampouco estão claras quais as fontes de recursos disponíveis, e seus custos, para o financiamento dos programas de reduções de emissões pelos países emergentes e em desenvolvimento. Por fim, também não está claro ainda como se dará o acesso a tecnologias limpas a esses países. Não será por falta de soluções criativas que se deixará de chegar a algum acordo em Copenhague. Emission trading e outros mecanismos de mercado estão entre as alternativas propostas para incentivar o controle de emissões pelos países emergentes e em desenvolvimento. Alguns questionam, contudo, o comprometimento dos países industrializados em promover uma efetiva cooperação e transferência de recursos aos países menos desenvolvidos para que esses possam também estabelecer metas factíveis de redução de emissões – ponto já acordado em Bali.


Por fim, a maioria dos países em desenvolvimento quer, por razões óbvias, determinar como os recursos disponíveis para custear o controle das emissões devem ser geridos, um ponto ainda carente de definição.

4. As preocupações do agronegócio brasileiro A liberalização do comércio internacional de produtos do agronegócio é a meta principal do País na Rodada Doha. As preocupações do agronegócio brasileiro estão centradas nos possíveis efeitos de não conseguirmos reduzir de maneira significativa nossas próprias emissões. Quaisquer que sejam os resultados da reunião de Copenhague, empresas americanas interessadas em barrar o acesso de nosso produtos no mercado dos EUA poderiam buscar, junto ao US Trade Representative Office ou outras agências do governo americano medidas de defesa comercial contra países que não cumprissem suas metas de redução de emissões. Conforme observou um empresário brasileiro participante das discussões que levarão à posição empresarial sobre o assunto, "caso o Brasil não esteja comprometido com metas, isso poderia ser considerado um subsídio às empresas nacionais, deixando-as sujeitas à retaliação americana". E arrematou: "É preciso acompanhar de perto esse projeto porque sua definição influencia diretamente o cenário de Copenhague".

Simon Zo/Reuters

Não se poder falar de fracasso na Rodada Doha. No entanto, após o "pacote de julho de 2008" e da versão revista do texto preliminar de "modalidades" circulado pelo embaixador Crawford Falconer em 6 de dezembro do ano passado, que preside as negociações agrícolas, o fato é que houve muito pouco progresso deste então – devido, argumentase, à fase mais aguda da crise que ora atravessamos e à prioridade dos países envolvidos na negociação agrícola na OMC com o combate aos efeitos da crise. O draft do texto sobre modalidades contém os necessários ingredientes para iniciar-se uma discussão séria a respeito dos temas de interesse do agronegócio – fórmulas para o corte de tarifas aduaneiras, subsídios que distorcem o comércio e outras provisões relacionadas com essas questões. Resta agora retomar as negociações. Como diz a expressão inglesa, contudo, isso é mais fácil de dizer que fazer. A conferir.

Filipe Araújo/AE

3. A Rodada Doha da OMC

5. Conclusões Ainda não há consenso entre os cientistas a respeito das causas do atual ciclo de aquecimento. Se assim é, talvez seja prematuro um esforço da magnitude proposta na Convenção de Copenhague. Não se tem uma noção clara do custo, em termos de PIB perdido, do total de recursos necessário para fazer cumprir as metas. Se os países desenvolvidos europeus julgam que esse custo é pequeno, talvez não seja essa a opinião dos países Sub-Saharianos ou mesmo de alguns vizinhos nossos na América Latina. O risco de que à inobservância dos parâmetros a serem acordados em Copenhague sigam-se represálias protecionistas é alto – particularmente nos EUA, onde o American Clean Energy and Security Act está por ser aprovado pelo Senado americano.

A maioria dos países em desenvolvimento quer, por razões óbvias, determinar como os recursos disponíveis para custear o controle das emissões devem ser geridos, um ponto ainda carente de definição.

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Adeus Reforma Agrรกria?


B Henrique Rattner Professor na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA/USP); e na pós-graduação no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Fundador do Programa LEAD Brasil e da ABDL - Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Lideranças

andeira de partidos revolucionários ou populistas, a mudança de estrutura da propriedade da terra consta dos programas de partidos políticos, geralmente oposicionistas, em quase todos os países emergentes onde predominam os latifúndios ao lado de uma massa de "sem-terras" indigentes. Nesses casos, a reforma agrária preconiza a criação de uma sociedade mais igualitária, abolindo as relações do tipo servidão feudal para assegurar maior participação dos camponeses na sociedade. As medidas adotadas visam alcançar maior eficiência econômica, com elevação de investimentos e da produtividade ou a imposição de padrões coletivistas de propriedade, tais como foram implantados na ex-URSS e seus países satélites. Nos países emergentes que adotaram o regime comunista, como China, Cuba e Vietnã, houve uma coletivização extensa, enquanto em Moçambique e Etiópia todos os títulos de propriedade de terras foram declarados pertencentes à nação, com concessão e garantias de direitos aos proprietários das terras e seus descendentes. Algumas reformas agrárias em países asiáticos conseguiram aumentar o número de camponeses proprietários das terras por eles ocupados, tais como Taiwan, Coréia do Sul e Malásia, onde adotou-se um sistema cooperativista de colônias semelhante ao dos kibutzim em Israel. No Brasil e na América Latina, esse processo foi prejudicado pela presença de um número significativo de propriedades estrangeiras, o predomínio de plantações em grande escala e a oposição ferrenha dos latifundiários, com grande poder de influência e pressão políticas. A redistribuição de terras, lá onde foi bem-sucedida, na forma de fazendas familiares, teve quase sempre o efeito de aumentar a produtividade e reduzir a pobreza entre a população rural. Portanto, é falaciosa e carregada de preconceito ideológico, a concepção de que a agricultura familiar seja a causa de atraso tecnológico, estagnação econômica e pobreza social. Ao contrário, longe de representar atraso, a agricultura familiar foi um fator de modernização do campo nos Estados Unidos, na Grã Bretanha e na Europa ocidental e contribuiu de forma decisiva para uma distribuição da renda nacional mais equitativa.


O assalto às terras No começo deste ano (2009), o rei da Arábia Saudita recebeu um brinde – um saquinho de arroz – cultivado na Etiópia, onde investidores sauditas gastaram US$ 100 milhões para plantar trigo, cevada e arroz, em terras alugadas por aquele país. Os investidores estão isentos do pagamento de impostos nos primeiros anos e podem exportar toda a colheita para seu país de origem. Ao mesmo tempo, o WFP – Programa Mundial para Alimentação – gastou quase a mesma importância que os investidores sauditas (US$ 116 milhões) para proporcionar 230 mil toneladas de ajuda alimentar, na Etiópia, onde 4,5 milhões de habitantes estão ameaçados pela fome e desnutrição. O programa saudita é apenas um exemplo de uma tendência perversa que continua a ameaçar os países pobres: países ricos, exportadores de capital e importadores de alimentos, estão deslocando sua produção agrícola para países carentes de capital, mas com terras supostamente ociosas. Em vez de comprar alimentos no mercado mundial, governos e grandes corporações com forte influência política compram ou alugam terras no exterior, cultivam seus produtos e os mandam para abastecer seus mercados domésticos. Aqueles que apoiam essas transações alegam que elas proporcionam sementes, tecnologia e financiamentos para a agricultura que constitui a base das economias em países pobres e que têm sofrido por causa de poucos investimentos, por décadas. Os que se opõem e resistem ao que chamam de "roubo de terras", alegam que essas fazendas constituirão ilhas privilegiadas e isoladas do resto do país, enquanto os camponeses pobres serão expulsos das terras por eles cultivadas durante gerações. Sem dúvida, os projetos são grandiosos e arriscados, mas controvertidos, nos países onde estão sendo implantados. Investimentos em fazendas no exterior não constituem propriamente novidade. Após o colapso da ex-União Soviética, em 1991, investidores estrangeiros se lançaram freneticamente na corrida para capturar fazendas, anteriormente de propriedade coletiva ou do Estado, à imagem do que aconteceu com os grandes estabelecimentos industriais e companhias energéticas. Antes disso, houve uma tentativa malograda da Grã Bretanha, de transformar na Tanzânia uma vasta área de terras em um imenso campo de cultivo de amendoins. A conotação "república de bananas" referiu se originalmente a regimes ditatoriais servis na América Latina,

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Em vez de comprar alimentos no mercado mundial, governos e grandes corporações com forte influência política compram ou alugam terras no exterior, cultivam seus produtos e os mandam para abastecer seus mercados domésticos.

cujos países foram dominados por companhias estrangeiras, plantando e exportando frutas. A diferença com os negócios atuais é marcante: antigamente, uma grande aquisição de terras envolvia aproximadamente 100 mil hectares. Agora, as transações alcançam valores significativamente bem mais altos. Somente no Sudão, a Coréia do Sul assinou contratos para alugar 690 mil hectares; os Emirados Árabes Unidos conseguiram 400 mil ha, e o Egito assegurou-se de uma área semelhante, para cultivar trigo. Fontes oficiais sudanesas declaram que o governo pretende reservar 1/5 de todas as terras cultiváveis do país, considerado tradicionalmente o celeiro para os países árabes. Não são somente os países do Golfo que compraram terras. A China conseguiu a concessão, para a produção de óleo de dendê, matéria prima de biocombustível, num território de 2,8 milhões de hectares, no Congo. Ao mesmo tempo, está negociando a aquisição de dois milhões de hectares para biocombustível, na Zâmbia. Segundo observadores internacionais, um milhão de trabalhadores agrícolas chineses irão trabalhar na África, algo qualificado como "catástrofe" por políticos africanos. No total, segundo o IFRPI – Instituto Internacional para a Pesquisa de Políticas de Alimentos – entre 1525milhões de hectares de terras em países pobres são objeto de negócios e transações envolvendo estrangeiros, desde 2006. A título de comparação, isto corresponde ao tamanho de toda a terra cultivada na França ou a 1/5 da área agrícola da União Européia. O IFPRI calcula que esses negócios valem de 20 a 30 bilhões de dólares, ou seja, ao menos dez vezes o valor de um pacote de ajuda emergencial à agricultura, anunciado recentemente pelo Banco Mundial. Admitindo-se que essas terras, quando cultivadas, produzirão duas toneladas de grãos por hectare (duas vezes a média africana) elas renderão entre 30 a 40 milhões de cereais por ano, mais do que o suficiente para saciar a demanda por importações do Oriente Médio. Seria, nas palavras de um pesquisador, a terceira onda de "outsourcing" – a encomenda e procura por insumos e produtos no exterior – após a de manufaturas nos anos 80 e de tecnologias de informática, nos anos de 1990. Diferentemente do passado, quando terras foram utilizadas para produzir "cash crops" – safras de liquidez imediata, atualmente os projetos se concentram na produção de "commodities" ou biocombustíveis, tais como trigo, milho, arroz, soja ou cana de açúcar. No passado, investimentos agrícolas estrangeiros costumavam ser de capital privado, tendo como parceiros proprietá-


J.F. Diorio/AE

A China vai produzir óleo de dendê, matéria prima de biocombustível, num território de 2,8 milhões/ha, no Congo.

rios privados. Este processo continua, particularmente na ex-URSS, onde uma companhia sueca comprou 128.000 hectares, a Hyundai, da Coréia do Sul, pagou 6,5 milhões de US$ pela participação num projeto localizado na Sibéria oriental e o banco Morgan Stanley comprou 400.000 ha de terras na Ucrânia. Graças ao valor crescente das terras e das "commodities", a agricultura em grande escala permanece atrativa, mesmo durante a crise de crédito. Entretanto, a maior parte dos negócios foi concluída entre os governos – os compradores são países estrangeiros ou companhias estrangeiras ou empresas estreitamente a eles ligadas, tais como os "fundos soberanos". Os vendedores são os governos que cedem terras, nominalmente de sua propriedade. Assim, Camboja aluga terras ao Kuait, após uma reunião em nível de primeiro ministros.

Em 2008, os governos do Sudão e do Qatar criaram uma "joint venture" para investir no Sudão e os ministros do Sudão e do Kuait assinaram uma parceria gigantesca com o mesmo objetivo. Missões sauditas têm visitado a Austrália, Brasil, Egito, Etiópia, Cazaquistão, Filipinas, Sudão, África do Sul, Turquia, Ucrânia e Vietnã, para negociar a aquisição de terras. Essa estratégia pela qual os compradores contornam o mercado mundial, tendem a causar efeitos prejudiciais na formação e no funcionamento das cadeias produtivas nos países "beneficiados" pelos negócios de terras. A razão desse comportamento deve ser procurada no aumento contínuo dos preços de alimentos e a queda dos estoques em escala global. Mesmo dispondo de enormes reservas em moeda estrangeira, os países árabes não podem aceitar passivamente as tarifas e os controles sobre os alimentos exportados, impostos pelos governos dos países produtores. Ucrânia e Índia proibiram as exportações de trigo e a Argentina aumentou rapidamente os impostos sobre produtos alimentícios exportados, o que levou os países importadores à busca de auto-suficiência para garantir o abastecimento de suas populações. Uma resposta adequada seria o aumento dos investimentos na agricultura doméstica e elevar o nível dos estoques. Países que dispõem de recursos, tais como a China, investem pesadamente na infraestrutura rural e os países europeus prometem manter suas políticas protecionistas. Quem ganha e, quem perde? Mas, os grandes exportadores de petróleo não tem essas opções, apesar de investimentos multibilionários da Arábia Saudita na produção agrícola nos seus desertos. O programa foi abandonado em 2008, quando se descobriu que os agricultores produziram grãos drenando os preciosos aquíferos situados abaixo das dunas de areia. Não confiando no mercado mundial, o governo saudita partiu em busca de terras cultiváveis no exterior, assim como a China e a Coréia do Sul. Foi a escassez de água que estava por trás do impulso para conseguir concessões de terras, pois com a aquisição de terras vem o direito de retirar a água nelas encontrada e que se revela, em muitos países, como a parte mais valiosa do negócio. Para os países pobres, vender ou alugar terras parece ser um grande negócio. O Sudão permite exportar até 70% das safras, mesmo sendo o maior receptor de ajuda alimentar no mundo. O Paquistão oferece meio milhão de hectares e

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Marwan Naamani/AFP

promete aos países do Golfo a mobilização de uma força de segurança de 50 mil homens, para proteger suas propriedades. Em todos os países pobres, as colheitas diminuíram ou estagnaram, particularmente na África, onde ocorre a maior parte dos negócios de terras. Nigéria, Mali, Egito, Etiópia, Sudão, Quênia, Congo, Malaui, Moçambique, Tanzânia e Madagascar estão sendo envolvidos em transações de terras. Será que os novos proprietários de terras ajudarão aos pequenos lavradores no acesso a crédito, sementes, fertilizantes e bombas de água? A julgar pela escala dos empreendimentos planejados ou em execução, os investidores apostam em uma agricultura tecnologicamente sofisticada, deixando os pequenos agricultores bem atrás em termos de produtividade. Uma parte dos empreendimentos bem sucedidos passou a produzir flores e frutas que rendem bem mais do que os grãos tradicionais. Ademais, grandes fazendeiros e companhias tem acesso facilitado as autoridades e conseguem fazer "lobby" que favorecem seus interesses. A política coloca outros desafios, mais sérios, a alguns projetos: Em Madagascar, uma transação envolvendo 1,3 milhões de ha – metade da área cultivável da ilha – despertou a ira da população e da oposição, causando a derrubada do presidente da república. Em Zâmbia, o líder da oposição posicionou-se contra um projeto chinês de dois milhões de ha para produzir biocombustíveis, o que levou o governo chinês a ameaçar com o cancelamento do projeto, caso a oposição for eleita. O diretor da FAO – Organização das Nações Unidas pa-

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A Arábia Saudita fez investimentos multibilionários para produção agrícolas em seus desertos, mas o projeto foi abandonando, já que drenava preciosos aquíferos debaixo da areia.

ra alimentos e agricultura – qualificou alguns projetos como "neocolonialistas". As objeções aos projetos não podem ser caracterizadas como "ludditas" ou contra o progresso, mas os negócios propostos ou em andamento produzem ganhadores e perdedores. Os governos afirmam que as terras oferecidas para venda ou aluguel são ociosas ou de propriedade do estado, o que não corresponde à verdade. Entretanto, terras não ocupadas legalmente servem muitas vezes para o pasto de gado e, embora oficialmente de propriedade estatal, há populações que vivem e trabalham nelas por gerações, sem escritura legal que sancione seus direitos. O governo brasileiro estuda a legalização de terras públicas – quase 70 milhões de ha, somente na Amazônia – que estão sendo cobiçadas por empresas de agronegócios, madeireiras e de mineração, interessadas em contornar a legislação ambiental para aumentar a lucratividade de seus projetos. Pressionam para aumentar o limite de 20% permitidos para o desmatamento, em nome do desenvolvimento, isto é, a expansão dos cultivos de soja e de cana de açúcar. Discutese no Congresso os prazos permitindo a venda dessas terras, patrimônio da nação cujo valor é estimado em 70 bilhões de reais. Como resolver os conflitos entre os donos de grandes empreendimentos e os pequenos agricultores, frequentemente expulsos de terras que consideram suas? A resistência popular levou a Arábia Saudita a cancelar um megaprojeto de 4,3 bilhões de US$ para cultivar arroz em 500.000 ha na Indonésia. A China adiou um projeto de 1,2 milhões de ha nas Filipinas e, no Quênia, pequenos agricultores e ambientalistas se opõem a um projeto do Qatar de construir um porto no delta do rio Tana, em troca de colheitas de cereais. Seria possível impor às empresas um código de conduta que assegure os direitos da população, nos países concessionários e que compartilhem os benefícios, criando empregos para a mão de obra local e não exportar os produtos colhidos, caso haja fome no país, como no Sudão e na Etiópia? No Brasil, o cultivo da cana de açúcar para alimentar a indústria de etanol, inicialmente concentrado em São Paulo e Mato Grosso tem levado à expulsão de pequenos lavradores, in-


Referências G

Abramovay, R. Paradigmas do capitalismo agrário em questão, Editora da Unicamp, Campinas/SP, 1992. G FAO – Organização das Nações Unidas para Alimentos e Agricultura, várias publicações,

Li Zhong/Imagine China Joa Souza/A Tarde/Futura Press

capazes de competir por causa de custos cada vez mais elevados dos insumos e da terra. Em vez de produzir etanol com um esforço de inclusão social e a expansão da agricultura familiar, o aumento da demanda por biocombustível tem atraído a cobiça do capital estrangeiro e dos grandes fazendeiros que procuram adquirir vastas áreas para o cultivo da cana. A tendência do mercado energético, em médio e longo prazo, apesar da crise financeira que varre o mundo, segue na elevação da demanda, o que fatalmente repercutirá na oferta de alimentos. Segundo o Banco Mundial, os preços dos alimentos duplicaram nos últimos três anos, afetando mais de dois bilhões de pessoas, das quais cem milhões estão no limite da fome. Na segunda metade do século 20, a produção de milho, trigo, arroz e soja triplicaram, o que criou a sensação de oferta ilimitada de alimentos. Mas, a "idade de ouro" deu lugar a uma escassez de alimentos agravada pela crise econômica global. O agribusiness emergiu no momento histórico quando a demanda por alimentos aumentou, devido à entrada de centenas de milhões de novos consumidores nos BRICs, particularmente na Índia e na China. Entretanto, com essa expansão da agricultura chegou-se a consumir ¾ da água potável do planeta, tornando este recurso mais caro e disputado. A complexidade dos problemas de aumento da produção de alimentos exige um planejamento sistêmico que considere os principais fatores que compõem a cadeia de produção, seus insumos e o transporte para o escoamento das safras. O problema central continua sendo a disponibilidade de terras cultiváveis e acessíveis. São poucos os países que dispõem de terras virgens, ainda não ocupadas pela agropecuária. No Brasil, a expansão da fronteira agrícola para criação de gado e plantio de soja, já atingiu regiões consideradas reservas ecológicas, como o cerrado, a caatinga, o agreste e até as florestas amazônicas, todas localizadas a grandes distâncias dos centros de consumo e de portos de exportação. Estima-se que para atender a demanda crescente por etanol, do mercado interno e para exportação, se-

riam necessários 30.000-40.000 quilômetros quadrados de terras, hoje em parte ocupadas por outros cultivos ou ainda virgens. Finalmente, posto que quase todos os países envolvidos na venda ou no aluguel de terras são governados por regimes autoritários, de caudilhos, patrimonialistas e corruptos, é licito admitir que o dinheiro auferido com as transações de terras irá para os bolsos das "elites" e/ou nas suas contas em paraísos fiscais.

O problema central continua sendo a disponibilidade de terras cultiváveis. São poucos os países que dispõem de terras.

entre elas "The State of Food and Agriculture", relatórios anuais, desde 1993 até 2007. G IFPRI – International Food Policy Research Institute, várias publicações, entre as quais, "Food and the financial crisis: implications for agriculture and the poor", 2009. G The Economist, 23 a 29 de maio de 2009.

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Rogério Cassimiro/Folha Imagem

O PASTO INVADE A AMAZÔNIA

Entre 1990 e 2006, o rebanho bovino brasileiro aumentou cerca de 40%, saltando de 147 milhões de cabeças para 206 milhões.


U

m estudo divulgado no início do ano pelo instituto de pesquisas Imazon, chamado "A Pecuário e o Desmatamento na Amazônia na Era das Mudanças Climáticas", mostra a relação que haveria entre o aumento do rebanho bovino brasileiro e o desmatamento na Amazônia Legal. Por conta de pressões do mercado e da sociedade (ou mesmo como artifício de marketing), algumas empresas anunciaram que não irão mais comprar carne e couro de bois oriundos de áreas desmatadas ilegalmente, exigindo de seus fornecedores essa garantia. Entre essas empresas estão grandes varejistas como Walmart, Pão de Açúcar e Carrefour, e fabricantes de calçados, como Nike e Timberland. Os ambientalistas torcem para que essa iniciativa se multiplique. Uma das principais preocupações do Imazon é com o aumento na emissão de Gases do Efeito Estufa (GEE), resultantes das queimadas para limpar o solo antes do plantio de pastagens. Os GEE emitidos por todos os países vêm causando o aquecimento do planeta e desequilíbrios climáticos, como o aumento de chuvas e secas. Além disso, cientistas projetam que a continuação das emissões causará catástrofes ainda neste século, como secas, extinção de espécies, colapso de produção agrícola e migrações. A redução dos desmatamentos será essencial para reduzir as emissões brasileiras, pois as queimadas contribuíram com mais de 50% (em equivalente CO2) das emissões nacionais em 1994, segundo o Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT). Entre os fatores que têm contribuído para o desmatamento ilegal na região Amazônica, o relatório do Imazon destaca falhas na fiscalização, a existência de frigoríficos clandestinos, o crédito subsidiado, a ocupação de terras públicas por grileiros e a morosidade da legislação em retomar essas terras. Segundo o instituto, entre 1990 e 2006, o rebanho bovino brasileiro aumentou cerca de 40%, saltando de 147 milhões de cabeças para 206 milhões, de acordo com dados do IBGE. O fato fez com que o Brasil se tornasse em 2004 o maior exportador de carne bovina do planeta. Porém, grande parte desse crescimento se deu a partir do desmatamento ilegal, afirma o instituto. Os números mostram que 80% deste crescimento ocorreu na Amazônia Legal, cujo rebanho saltou de 26 milhões (18% do total nacional) para 73 milhões de cabeças, o equivalente a 36% do total nacional. Mato Grosso e Pará somaram cerca de 60% do total do rebanho da região. Rondônia dobrou sua participação relativa de 7% para 16% do total do rebanho regional, passando de quinto para terceiro maior rebanho entre 1990 e 2006. O rebanho cresceu em um grande número de municípios da Amazônia, avançando de leste para oeste e de sul para o centro da região. Entre 2005 e 2006, o rebanho caiu no Mato Grosso (2,2%), Pará (3,1%) e Tocantins (2,5%), enquanto ficou estável ou cresceu nos demais Estados. De acordo com o estudo, as pastagens fora da Amazônia estão diminuindo por causa da substituição de pastos por culturas mais rentáveis, principalmente cana-de-açúcar, algodão e grãos. Por outro lado, na Amazônia, onde o rebanho mais cresce, a área de pastos aumentou expressivamente. Entre 1990 e 2006, foram desmatados 30,6 milhões de hectares na região, conforme estimativas do Instituto Nacional de Pesquisas

Carlos Ossamu Espaciais - Inpe. Descontando desta área 5,3 milhões de hectares destinados à agricultura e reflorestamento, o Imazon estima que 25,3 milhões de hectares foram potencialmente ocupados por pastos entre 1990 e 2006. Porém, o total de pastos pode ser maior, considerando que a área agrícola foi reduzida em 2,2 milhões de hectares entre 2005 e 2006, mas não há certeza se essa área foi transformada em pastos em 2006. Por outro lado, o pasto pode ser menor, pois parte do aumento da área de culturas agrícolas na Amazônia Legal ocorreu no cerrado, cujo desflorestamento não é medido pelo Inpe. De qualquer forma, essa estimativa revela que a pecuária continua como a principal ocupação das áreas desmatadas na Amazônia, ocupando de 75% a 81% do total desmatado entre 1990 e 2005. Essa estimativa é compatível com dados do IBGE , que afirma que 70% das áreas desmatadas foram ocupadas por pastos em 1995. Segundo o estudo do Imazon, uma outra análise faz a conexão da expansão da pecuária com o desmatamento. Dados indicam que 73,4% da variação da área desmatada anualmente entre 1995 e 2007 decorreu da variação do índice de preço do boi gordo (IGP em São Paulo) no ano anterior (entre 1994 e 2006). Na maioria dos anos, o desmatamento subiu e desceu conforme a subida e queda do preço do gado no ano anterior. Em alguns anos ocorreu o contrário, mas esse fato é explicável pela influência do preço da soja no desmatamento. Isso ajuda a explicar o fato de que entre 2001 e 2003 o desmatamento tenha subido, seguindo um padrão similar à subida do preço da soja, enquanto o preço do gado caiu. Nos anos em que os preços do gado e soja caíram juntos, as taxas de desmatamento caíram mais rapidamente. O gado produzido na Amazônia é comercializado por várias vias, seja como gado vivo, seja como carne. A estimativa do Imazon é que a produção total de carne a partir de gado da Amazônia ficou em torno de 2,8 milhões de toneladas em 2005. Destes, 2 milhões de toneladas, ou 71%, foram processados por 65 frigoríficos inspecionados pelo Serviço de Inspeção Federal (SIF), conforme levantamento de campo realizado. O restante, cerca de 800 mil toneladas equivalentes em carcaça, foi comercializado como boi vivo e carne processada por frigoríficos com inspeção estadual e por matadouros clandestinos. A estimativa é que os frigoríficos com SIF destinaram 95% da produção para o mercado nacional e 5% para outros países, considerando os dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Do total destinado ao mercado nacional, 88% foram consumidos fora da Amazônia e apenas 12% na região. A participação da Amazônia nas exportações de carne brasileiras cresceu expressivamente entre 2000 e 2006, de 6% (10 mil toneladas) para 22 % do total (263,7 mil toneladas). As exportações cresceram mais rapidamente depois de 2005, pois a região ganhou parte do mercado que deixou de ser abastecido pelos Estados do Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná em decorrência de casos de febre aftosa em Mato Grosso do Sul e Paraná. O controle da febre aftosa nos principais polos produtores da região facilitou as exportações e pode haver um crescimento ainda maior. Em 2005, cerca de 30% dos frigoríficos no Mato Grosso, Tocantins, Rondônia e Pará estavam autorizados a ex-

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portar carne e subprodutos animais (farinhas de carne e osso, miúdos congelados e produtos agregados diversos). Entre 2000 e 2006, o Mato Grosso foi o principal exportador e o maior responsável pelo crescimento das exportações da Amazônia. Os principais importadores de carne da Amazônia entre 2000 e julho de 2006 foram europeus e sul-americanos, consumindo, respectivamente, 54% e 35% do volume total exportado. A União Europeia comprou 48% do volume total exportado, o que correspondeu a US$ 123 milhões, 71% do valor total. A distribuição do mercado de gado e carne, excluindo o mercado dos frigoríficos inspecionados pelo governo federal, é pouco conhecida. Em 2007, aproximadamente 1.107 frigoríficos inspecionados pelos governos estaduais e matadouros informais forneciam principalmente carne para os mercados locais. Gado vivo tem sido comercializado entre os Estados da região, para outros Estados e, em menor número, para outros países. O Pará é o único exportador de boi vivo para outros países – inicialmente para o Líbano, em 2005, e também para a Venezuela, em 2007. O Pará exportou 18,6 mil e 47 mil toneladas de gado vivo, respectivamente em 2005 e 2006, segundo dados do MDIC. Em resumo, o Imazon estima que as exportações internacionais diretas da Amazônia, considerando boi vivo e carne, somaram cerca de 4% e 10% do total da produção da região, respectivamente em 2005 e 2006.

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Crédito subsidiado O estudo do Imazon afirma que os subsídios financeiros públicos para a pecuária estão estimulando o desmatamento na Amazônia. O empréstimo subsidiado fornecido pelo Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO) deveria ser usado apenas para melhorar a qualidade e produtividade da pecuária legal, pois ele não pode ser usado em desmatamento. Entretanto, como o FNO constitui um subsídio, ele tende a aumentar o investimento nessa atividade mais do que seria o normal (usando taxas de juros de mercado) e pode estimular indiretamente o desmatamento. Por exemplo, um fazendeiro pode desmatar novas áreas sem empréstimo, pois sabe que obterá bons rendimentos usando o empréstimo subsidiado para comprar o rebanho. Com essas condições atrativas, os pecuaristas receberam R$ 1,89 bilhão em empréstimos entre 2003 e outubro de 2007, distribuídos em 14.500 contratos. Do total do financiamento, 45% foram para pequenos produtores (FNO Especial) e 55% para produtores médios e grandes (FNO Normal). Nesse período, o pico de empréstimo ocorreu em 2004, coincidentemente um ano de pico de desmatamento, e declinou nos anos seguintes. É relevante notar que desde 2005 a proporção de empréstimos para o FNO Especial – que tem taxas de juros menores – tem


Jorge Araújo/Folha Imagem

aumentado, chegando a dois terços do total em 2007. Isso parece indicar que, com a queda dos preços do gado, somente os empréstimos com maiores subsídios continuaram atraentes. Grilagem de terra De acordo com o relatório do Imazon, a expansão da pecuária na Amazônia tem sido facilitada pelo uso gratuito de terras públicas. Fazendeiros que se apossam de terras públicas ganham mais do que o normal, pois não compraram a terra nem pagam aluguel pelo seu uso. As terras apropriadas ilegalmente se tornam um patrimônio privado, pois os imóveis são comercializados informalmente ou no mercado formal, com Para o Imazon, o crédito rural subsidiado para a Amazônia deveria registro em cartório, por meio de docuexcluir a agropecuária, pois indiretamente estimula o desmatamento. mentos falsos. Segundo o próprio governo, a área "privatizada" gratuitamente e ilegalmente na região é enorme. Em 2001, o governo federal suspeição institucional. É preciso concluir os ZEE (Zoneamento tava da ilegalidade de títulos (grilagem) de 2 mil imóveis ruEcológico Econômico) dos Estados da região, exceto Rondôrais, equivalentes a 70 milhões de hectares. Além disso, em nia e Acre, para definir as regras sobre a recuperação da Re2003, a área de posses ilegais sem documentos somava 42 miserva Legal (onde estão localizados de 50% a 80% do imóvel). lhões de hectares; o que equivale a soma dos Estados de São Isso facilitaria a cobrança mais segura do cumprimento do Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraíba e Sergipe. A aproCódigo Florestal e poderia reduzir a resistência sobre a exipriação de terras públicas também resulta em outro subsídio gência do licenciamento ambiental. O licenciamento, por não-contabilizado. Os fazendeiros exploram a madeira sem sua vez, facilitaria a monitoração do desmatamento por remunerar o governo e, portanto, acumulam capital gratuitameio do cruzamento dos polígonos dos imóveis rurais com mente para investir na pecuária. mapas de cobertura vegetal. A opinião do Imazon é que o crédito rural subsidiado para a Finalmente, segundo recomenda o Imazon, é essencial enAmazônia deveria excluir a agropecuária, pois indiretamente focar a responsabilidade dos frigoríficos pela compra de gaestimula o desmatamento. Se for para manter algum tipo de do de origem ilegal, ou seja, oriundos de fazendas sem licensubsídio para a região, que seja direcionado para atividades ça ambiental. O plano atual de punir quem compra das áreas que produzam benefícios públicos, como os serviços ambienembargadas pelo Ibama é positivo, mas difícil de aplicar, tais e ecológicos, por exemplo, o reflorestamento que estimula pois falta o rastreamento do gado. O controle poderia ser faa conservação da biodiversidade e o sequestro de carbono cilitado trocando-se o foco de verificação, ou seja, verificar Para o instituto, o governo já aumentou expressivamente o nos frigoríficos a entrada do gado de origem legal (de fazenesforço de fiscalização contra crimes ambientais na Amazônia. das com licenças ambientais). Porém, falta torná-lo mais efetivo, aplicando as penas previsPara isso, o governo deveria divulgar para os frigoríficos a tas em lei. Pelo menos duas medidas poderiam melhorar a lista das fazendas com licenças ambientais. Depois, deveria aplicação dessas penas. Primeiro, focar na cobrança dos maioverificar se os frigoríficos compraram apenas destas fazenres casos (por exemplo, 20% do total de casos) que correspondas. Considerando que a grande maioria das fazendas não é dem a cerca de 80% do valor total de multas e dos danos. Isso licenciada e que se pode facilmente estimar a produção das ajudaria a acelerar a conclusão dos casos e, consequentemente, fazendas licenciadas, seria fácil detectar a fraude potencialaumentaria o efeito preventivo do controle. Segundo, é crucial mente mais comum: tentar comercializar gado de origem ileaumentar o pessoal do setor jurídico dos órgãos ambientais gal via fazendas legais. para acelerar a condução desses casos nas esferas judicial e adAlém disso, a fiscalização seria facilitada pelo fato de que ministrativa. Atualmente, esses órgãos gastam muito nas opeum número pequeno de frigoríficos processa e comercializa rações de campo, mas deixam pilhas de processos nos escritógrande parte do gado da região. Essa abordagem causaria resrios sem continuidade por escassez de pessoal jurídico. trições econômicas em municípios com alta dependência da Para restringir o desmatamento será também necessário pecuária, mas seria uma forma eficaz de estimular um acordo fazer cumprir o Código Florestal; tarefa que demandará o mais amplo para transformar a pecuária em uma atividade baaumento de escala de outras políticas e uma maior integraseada na legalidade e sustentabilidade.

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Amazônia Legal: a expansão da fronteira Reprodução

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le é um apaixonado pela Amazônia desde pequeno e se tornou um grande conhecedor da região. O engenheiro civil João Carlos de Souza Meirelles, 74 anos, foi presidente da Associação dos Empresários da Amazônia e também do Conselho Nacional de Pecuária de Corte, desenvolveu grandes projetos agropecuários, que originaram em cidades como Juruena, Matupá e Cotriguaçu, todos no Mato Grosso, na Amazônia Legal; e ainda foi secretário de Agricultura do governo Mário Covas e da Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do governo Geraldo Alckmin. Em plena atividade, entre uma viagem e outra, Meirelles

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recebeu a equipe do Digesto Econômico em seu escritório em São Paulo. Servindo-se de água guardada em uma moringa de barro, hábito que adquiriu em suas andanças pelo interior do País, Meirelles contou, com riqueza de detalhes, típico de quem viveu a história, como se deu (e ainda vem se dando) a ocupação do Centro-Oeste e Norte do País, uma região conhecida como Amazônia Legal. Na sua opinião, o processo ocorreu de forma desordenada, sem planejamento, o que ocasionou distorções e injustiças sociais. Porém, foi essa região que permitiu ao Brasil se tornar o maior exportador de carne e um dos principais produtores de grãos do mundo. Acompanhe, a seguir, uma aula sobre a Amazônia.


Foi no governo de Juscelino que se teve a audácia de transferir a capital para o centro do Brasil, que foi um marco importante para a história do País. E é este marco que deu início à ocupação da Amazônia. João Carlos de Souza Meirelles Cesar Diniz/Hype

Digesto Econômico - O senhor é um grande conhecedor da Amazônia. Ao longo da história, como tem se dado a ocupação dessa região? João Carlos de Souza Meirelles - Para falar de Amazônia é preciso esclarecer alguns pontos para não ser envolvido por visões deformadas, resultado de uma análise superficial da história. É preciso lembrar quando começou esse processo. Basicamente, existem duas grandes etapas na história do Brasil. A primeira começou com a chegada dos portugueses, já sobre a égide do Tratado de Tordesilhas – em que já havia uma visão macrogeográfica – e disto surgiu todo o processo de ocupação do Brasil, até o governo de Juscelino (Kubitschek). Em uma análise bem simplista, mas só para mostrar por que o Brasil é o

país que é, creio que devemos muito ao espírito audacioso e desbravador do povo português. Imagine naquela época o sujeito com uma caravela pequena, subir pelo rio Amazonas, entrar pelo Madeira, pelo Javari, pelo mundo afora, o que resultou no Brasil de hoje. E graças a esse mesmo espírito, conseguimos mais um pedaço, que foi a conquista do Acre, no início do século 20. Estou dizendo tudo isso porque quando se fala em Amazônia, os símbolos são as águas, a floresta e a motosserra, e as coisas precisam ser tratadas com racionalidade. Durante todo esse período de 1500 a 1955, ou um pouco mais, ocupamos as costas do Brasil, numa distância máxima, em alguns lugares, de 500 Km. Então, tínhamos a propriedade do Brasil, mas apenas uma posse muito relativa.

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A Amazônia Legal representa 61% do território brasileiro, com mais de 5 milhões de Km².

Foi no governo de Juscelino que se teve a audácia de transferir a capital para o centro do Brasil, que foi um marco importante para a história do País. E é este marco que deu início à ocupação da Amazônia. Mato Grosso só foi dividido em 1977, com Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Em 1959/60, no governo Juscelino, com Brasília, é que foi dado um acesso, ainda que precário, a Cuiabá. Para chegar à capital do gigantesco Estado de Mato Grosso, caso não tivesse avião, era preciso ir de barco por Buenos Aires. Para ir a Belém, no Pará, era preciso pegar um ita (um tipo de embarcação), como diz naquela música – "Peguei um ita no norte e vim pro Rio morar". Não tinha estrada. O início de um processo de tomada de posse de um território de que nós tínhamos a propriedade começou efetivamente nessa época, pois havia uma dificuldade brutal – não estou falando das capitais dos territórios, como Acre e Rondônia, por exemplo. Eu assisti a construção da rodovia que liga São Paulo a Campo Grande. Minha família tinha uma fazenda no que hoje é o Mato Grosso do Sul e atravessávamos de balsa o Rio Paraná, subíamos um trecho do Rio Pardo e seguíamos depois por uma estrada boiadeira, abrindo e fechando porteiras durante o caminho. Logo em seguida veio o golpe e a ditadura militar e eles tinham uma visão mais estratégica – vale lembrar que eu fui rigorosamente contra o golpe, fui preso como vereador de São

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Paulo. Mas os militares possuíam uma política nacional de ocupação racional da Amazônia, evidentemente, com ferramentas ainda precárias na organização desse processo. A ocupação foi feita sob os auspícios e pressão do governo federal, que substituiu, a partir de 1966, a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) pela SUDAM – Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, quando então se definiu o que é a Amazônia Legal. É preciso entender bem do que estamos falando. Uma coisa é a Amazônia Legal, que foi criada para que se houvesse instrumentos de política de desenvolvimento. A Amazônia Legal original, que foi definida por um decreto em 1966, começava no meridiano 44, a oeste do Estado do Maranhão, depois vinha, antes da divisão de Goiás e Tocantins, até o paralelo 14, e no caso de Mato Grosso, que ainda não estava divido com Mato Grosso do Sul, até o paralelo 16. Com a criação dos dois Estados (Tocantins e Mato Grosso do Sul), o que é a Amazônia Legal hoje? Ela começa no mesmo meridiano 44, no Maranhão, que passa perto de São Luís, inclui o Estado inteiro do Tocantins e o Estado inteiro do Mato Grosso. Não tem nada a ver com a Floresta Amazônica – mais ao sul tem o Pantanal. A região é chamada de Amazônia Legal porque ali se aplicam determinados benefícios fiscais, isenção de impostos para investimentos, para estimular a aplicação de dinheiro para o desenvolvimento etc. A Ama-


Rodrigo Baleia/Folha Imagem

zônia Legal representa 61% do território brasileiro, com mais de 5 milhões de Km². Nós só temos 39% do território fora da Amazônia Legal. DE - Como foi o início da ocupação na Amazônia Legal? JCSM - Na região temos diversos biomas, um em particular hoje é o mais complicado, que é a floresta. Eu só queria lembrar que estes dados todos nós trabalhamos intensamente quando fui presidente da Associação de Empresários da Amazônia. Discutimos muito qual seria a estratégia correta de ocupação da região. Ela se deu, de um lado, pelo governo federal, com a Sudam e os incentivos fiscais, que estimulou vigorosamente grandes empresas do Sul do País a investir na Amazônia. Todas as grandes empresas foram convidadas e estimuladas a investir na região, de forma a ter um adensamento na ocupação da Amazônia. Só que esse processo ocorreu principalmente dentro do chamado Arco de Ocupação, que é uma faixa que vai de Rondônia, norte do Mato Grosso, entra pelo Tocantins e pelo extremo leste do Pará e vai até o Maranhão, formando um arco. Foi isso que produziu esse adensamento, com cidades nesta faixa, que começou no fim de década de 60 e durante toda a década de 70. Em paralelo a essas empresas que formaram os chamados projetos agropecuários, em Rondônia já estava em curso um processo de ocupação estimulado pelo governo federal, antes mesmo da criação do Incra, com agricultores de baixa renda – a primeira ocupação de Rondônia foi feita com famílias que vieram do Espírito Santo. Era entendimento do governo militar a necessidade de ocupar as fronteiras. Hoje, a ocupação de Rondônia é um misto de grandes projetos de assentamento do Incra e da chegada de médias e grandes empresas; depois completada com a ocupação do Acre. Em meados da década de 70, começou alguma ocupação mais intensa de agricultores do Sul do País em Roraima. O Estado do Amazonas tem pouca atividade agrícola. Em 1975, foi feita a abertura da rodovia CuiabáSantarém, que facilitou a ocupação em alguns trechos. Em termos de ciclos, houve um preliminar, que foi fundamentalmente o pecuário. Abriam-se as fazendas pela Sudam para se produzir alguma coisa que podia sair de lá por conta própria. Não dava para plantar no sul do Pará, pois não havia estrada para escoar a produção. Boi você toca na estrada. Esse foi o grande início de ocupação, com exceção de Rondônia, que começou com agricultura de subsistência dos colonos. Em um determinado momento, o governo entendeu que precisava estimular alguns projetos grandes de colonização para trazer agricultores do Sul do Brasil, porque percebia também que no Sul estava se esgotando um ciclo de ocupação, que começou no século 19 no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, e depois no século 20, no sudoeste do Paraná, de pessoas que vinham da Europa – Polônia, Rússia, Itália, Alemanha etc. Esse ciclo se esgotou, o sujeito ocupava o seu lote, não havia restrições de desmatamento, eram povos extremamente trabalhadores, produziam tudo, passaram a criar suínos, frango etc. e não cabia mais gente. A família tinha oito, dez filhos e precisava ir para algum outro lugar. Passou-se a estimular, não só a colonização oficial do Incra, que não foi bem feita, até pelas inúmeras dificuldades encontradas, como ter de atender sem-terras, mas também as colonizações particulares, dentre elas Sinop, Alta Floresta e ou-

Em meados da década de 70, começou alguma ocupação mais intensa de agricultores do Sul do País em Roraima.

tras no norte do Mato Grosso, no eixo da rodovia Cuibá-Santarém. Eu mesmo construí algumas, como Matupá e depois no extremo oeste mais duas colonizações – Juruena e Cotriguaçu, na margem esquerda do rio Juruena. E houve outras que foram iniciativas do governo do Mato Grosso, caso de Juína e Juara, que foram colonizações meio oficial e meio privada, abrigando justamente esses agricultores do Sul do País e que foram extremamente importantes no processo de ocupação. Num primeiro momento, a maioria desses agricultores, que estavam acostumados a terras muito boas no Paraná, Santa Catarina e noroeste do Rio Grande do Sul, enfrentaram dificuldades. Depois vieram os agricultores de escala, com agricultura mecanizada, não necessariamente grandes empresas, que foram para o cerrado e começaram a fazer a ocupação da Chapada dos Parentins. Nessa mesma época também houve uma colonização de agricultores médios e pequenos do Rio Grande no Sul no Vale do Araguaia. Essa foi uma história interessante, de um pastor protestante chamado Norberto Schwantes. Preocupado com o empobrecimento no oeste do Rio Grande do Sul, ele levou esse pessoal para o Vale do Araguaia, com apoio do governo federal, através do Incra, dando origem a cidades como Canarana e Água Boa. Resumindo: a ocupação se deu com grandes empresas, colonizações, uma segunda leva de colonizadores e agricultores de grãos, que vieram para áreas que já estavam desmatadas no cerrado.

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Em termos de ciclos econômicos, houve um preliminar, que foi fundamentalmente a produção pecuária.

DE – Essa ocupação ocorreu de forma desordenada ou houve um certo planejamento? JCSM – Esse crescimento foi desordenado. Quando eu presidi a Associação dos Empresários da Amazônia por oito anos, chegamos a brigar com o governo federal (no bom sentido da palavra) para que houvesse uma ordenação. A primeira grande briga foi em relação a esse processo de ocupação pecuária, que era a entidade que eu presidia – os associados foram levados para lá para fazer isso. Era um processo absolutamente desordenado. Um indivíduo comprava uma terra do governo e implantava um projeto, podendo desmatar até 50%. Ele era estimulado e cobrado para fazer isso. Não havia nem estrada e um outro projeto ficava a 100 Km. Não havia uma articulação. Não se faz uma ocupação, e isso é parte de um conceito militar milenar, se não há capacidade de retrocesso ou de abastecimento. Aquele modelo de empresas agropecuárias isoladas obrigava a ter na fazenda um ambulatório com enfermeiro formado, pois qualquer coisa que acontecesse, era preciso pegar um avião para levar a pessoa para a cidade, que muitas vezes estava a 500 Km. Era um modelo burro e absolutamente inconsequente. O certo seria fazer estradas e ir ocupando de forma inteligente. Esse foi o primeiro equívoco: não se deu articulação a esse processo. Isso gerou uma série de deformações e injustiças, inclusive so-

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ciais. Em muitos desses projetos, a ocupação era na mata e na floresta, e não havia outra saída a não ser a motosserra. Faziase esse trabalho fundamentalmente com trabalhadores do Maranhão e Ceará, que iam para lá levados pelos "gatos". Faziam o serviço, ganhavam um dinheiro e muitas vezes ficavam por lá. Não havia núcleos urbanos para organizar essa gente, ou seja, criar um processo de ocupação inteligente. DE – O senhor comentou que o primeiro ciclo de ocupação na Amazônia Legal foi feito com a pecuária. Um estudo do Instituto Imazon afirma que o crescimento da pecuária brasileira se deu fundamentalmente com a expansão da pecuária na Amazônia, juntamente com o desmatamento. O senhor concorda com essa afirmação? JCSM – Não concordo. Em certo aspecto ocorreu uma coincidência. Até 1978, o Brasil era importador de carne. Naquela época, o País tinha um rebanho que não chegava a 90 milhões de cabeças de gado. Sei bem disso porque eu saí da presidência da Associação de Empresários da Amazônia e fui instado por grandes empresários do País a militar junto ao Conselho Nacional de Pecuária de Corte – a pecuária no País era uma vergonha, tínhamos tudo para fazer um grande projeto mundial de carne. Eu tinha conseguido na Associação de Empresários da Amazônia fazer o que muita gente tem di-


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Invasão de áreas que não poderiam ser ocupadas é bandidagem, não é atividade empresarial.

ficuldade, que é juntar todo mundo, e abri uma avenida de diálogo com o governo. A partir de 1983, nós criamos o Conselho e em 25 anos nós transformamos o Brasil no maior exportador mundial de carne. Em 1983, o índice de abate, que é o grande índice de produtividade do rebanho, era de 11,5%. De cada 100 cabeças de gado, se abatia 11,5%. Hoje é de 23%. A média dos outros países que fazem pecuária extensiva como o Brasil está entre 20% e 24%. Naquela época, a média de abate do boi brasileiro era de cinco anos e meio. Hoje é um pouco inferior a três anos. Outro índice mede o número de bezerros que nascem de cada cem vacas, que naquela época era de 50 bezerros. Havia duas vacas comendo, tomando remédio, consumindo sal e só uma tinha bezerro. Hoje, esse índice é de 85%. O Brasil passou de 90 milhões de cabeças de gado para 190 milhões, éramos importador de carne e hoje somos o maior exportador do mundo, exportando mais que a soma dos EUA e Austrália. A razão não foi a expansão horizontal, foi a vertical. Havia regiões no País em que se usavam 10 hectares por cabeça de gado, hoje a pecuária intensiva usa 0,7 hectares por cabeça. Houve um grande aumento de produtividade. Esses dados é que precisam ser cruzados, os do Imazon têm um grande viés ideológico, que não é mentiroso, mas incompleto. O que não pode é radicalizar. Vou dar um exemplo de São Paulo, que ajudei a produzir. Fui

secretário (de Agricultura) e acertamos uma série de índices de qualidade sanitária de 1978 a 1983. Fizemos um programa que coincidiu com a expansão de outras atividade no Estado, como a cana-de-açúcar, que diziam que iria acabar com a pecuária na região de Araçatuba, São José do Rio Preto, Votuporanga, Fernandópolis etc. O que aconteceu nesse período? O Estado de São Paulo, que tinha mais de 11 milhões de cabeças de gado, aumentou o seu rebanho em 1,5 milhão e reduziu a sua área de pastagem também em 1,5 milhão de hectares. A pecuária que ocupava muito mais espaço deixou de ser rentável. No Rio Grande do Sul o rebanho foi confinado e não diminuiu. Com o do Paraná ocorreu a mesma coisa. No lugar em que o gado estava solto, hoje tem cana, soja, milho, e o rebanho aumentou. A mesma coisa no Mato Grosso do Sul, que tinha rebanho no cerrado e no Pantanal. Houve um adensamento e um aumento de produtividade no rebanho e na terra, com muito mais animais por hectare e uma tecnologia muito mais avançada. Hoje, se caminha para a integração da pecuária com a agricultura. Na região do Parentins tem confinamento com 100 mil cabeças de gado e é uma região de agricultura, não era uma região de pastagem nativa. Está se usando resíduos dessa agricultura, o farelo de soja, de milho. No Vale do Araguaia há um confinamento ao lado de um empreendimento que estamos fazendo, com 150 mil cabeças de gado. Isso está crescendo de forma vertiginosa. A leitura precisa ser fei-

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Fabio Motta/AE

ta a partir do processo de desenvolvimento da pecuária, o que não quer dizer que não houve também uma série de invasões de áreas que não poderiam ser ocupadas, mas aí é bandidagem, não é atividade empresarial – invade para se tirar madeira, que passou a ser viável nos últimos 30 anos, o que não era há 40 anos, e a maneira mais fácil de ocupar é jogando semente para fazer pastagem e aí vira uma fronteira de pecuária. DE - Como é possível fazer uma ocupação sem agredir o meio ambiente? JCSM - O que a Amazônia precisa, e estamos brigando há 30 anos por isso, é, em primeiro lugar, a definição de tudo o que há de ser preservado. São parques nacionais, reservas ecológicas, reservas biológicas, áreas indígenas, ou seja, existe uma coleção de atividades que precisa ser preservada e ponto final. Tem que preservar e colocar polícia no local, porque bandido e malandro têm em qualquer lugar do mundo. Hoje, essas áreas de preservação já representam mais da metade da Amazônia. Em primeiro lugar, é tomar conta disso. Em segundo lugar, é olhar onde pode ser ocupado e como pode ser ocupado. A ocupação foi desordenada porque faltou esta definição. O governo federal demorou mais de 20 anos para fazer as primeiras florestas de exploração. São florestas públicas, é do governo federal, mas que permite fazer um manejo florestal sustentável. Suponha que haja uma área de 120 mil hectares. O governo delimita, faz um inventário, divide esta área em 40 anos, que é o prazo que ele estimou, por conta da variedade, o prazo de regeneração. Essa área é dividida em 40 lotes, cada um com 3 mil hectares, e se faz um leilão. O madeireiro vai em cada um desses lotes em cada ano e só corta as árvores maduras. O madeireiro não precisa comprar a terra e a fiscalização é facilitada, pois se tem controle de tudo. Disse 40 anos para simplificar a conta, quem definirá o prazo é o engenheiro florestal, que sabe em quanto tempo aquela floresta estará regenerada. E dizem os especialistas que muitas vezes a floresta regenerada fica mais enriquecida, pois a medida que se tem tudo natural a vida inteira, têm árvores gigantescas que não dão lugar para outras nascerem. Todo mundo pensa que é difícil entrar na floresta, mas ela é mais ou menos limpa por baixo. Então, esse manejo florestal sustentável permite que se faça o uso da madeira por serrarias, gerando emprego e legalizando a atividade. É uma forma de ordenar a produção de madeira. A segunda forma de ordenar é estipular algo que se deseja. Olhe só a fronteira do Brasil: nós somos um vazio na fronteira. O Brasil está totalmente vulnerável em toda a região da Cabeça do Cachorro (noroeste do Estado do Amazonas) até o Rio Solimões. A região está ocupada pela guerrilha, que vira e mexe vai bater lá em São Gabriel da Cachoeira (margem esquerda do Rio Negro, a 850 km de Manaus). DE – O que o senhor acha das pressões que algumas ongs estão fazendo para que supermercados não comprem carne de boi criado na Amazônia? JCSM - Vão se criando definições de interesses político e comercial. Várias indústrias, para ficarem bem com as suas matrizes multinacionais, assim como vários supermercados para ficarem bem na fotografia, dizem que não vão comprar boi da Amazônia. Mas não é boi da Amazônia. Como disse no início,

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O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, participa de evento contra o desmatamento no centro do Rio de Janeiro.

de que Amazônia estamos falando? Boi de desmatamento ilegal, sou absolutamente favorável. Se é ilegal, é assunto policial. Para corrigir as injustiças que o pequeno estaria sofrendo por conta das ocupações ilegais – muitas vezes ele não teve escolha, conheço muitos casos de pessoas que foram contratadas para limpar uma área anos atrás, terminou o serviço e eles ficaram por lá –, há três meses, aprovaram aquela lei em que se faz a regularização fundiária daqueles que tenham posse legítima, que não sejam grileiros. Já se deu o tratamento oficial a isso. Isso quer dizer que o produto desse sujeito, que a lei brasileira disse que está regular, ou que o governo brasileiro vai regularizar, ele não pode vender? É preciso ter cuidado com as coisas, senão nós ficamos por conta de grandes multinacionais, que querem ficar bem com o supermercado de Londres. Não dá para generalizar, não é o boi da Amazônia, é o boi criado a partir do desmatamento ilegal, que também pode ser da Serra do Mar em São Paulo, Santa Catarina, da Bahia e também da Amazônia. Qualquer produto no mundo que não venha certificado, terá dificuldade em ser comercializado. A carne que vem de desmatamento ou propriedade irregular, estou inteiramente de acordo que não deva ser comprada. Mas sou contra as ilações que quiseram fazer sobre esse tema, como por exemplo, dizer que o grão do Mato Grosso empurrou a pecuária para a floresta. Isso não é verdadeiro. Basta pegar as esta-


Antonio Ledes/AE

O manejo florestal sustentável permite que se faça o uso da madeira por serrarias, gerando emprego.

tísticas das regiões que tinham pecuária, o grão aumentou e a pecuária também. Ficamos sempre com meia informação. Pegando o Estado de Mato Grosso, só a partir da década de 60 ele passou a estar conectado ao Brasil, e mal conectado por sinal, mas em 40 anos ele é o maior produtor de grãos e o maior rebanho do País. E é um Estado que ainda tem grandes áreas de florestas intocadas, pois existem muitas reservas indígenas. Ao lado do Vale do Araguaia tem a reserva de São Marcos, Areões, Parque Nacional do Xingu. É preciso levar a discussão para a sociedade. O que é ilegal, não pode, mas o que é legal, como aqueles produtores pequenos que eu mencionei, é outra coisa. O que o resto do mundo tem usado contra o Brasil? Tem usado barreiras não tarifárias como jogo comercial – não compra mais carne porque teve febre aftosa, mas quando precisa, compra; não compra porque vem de transgênico, mas quando precisa, compra. Acho que o grande debate é o seguinte: como é que nós podemos incorporar, em um continente chamado Brasil, um processo de certificação. O bezerro que nasceu em Rondônia, em um processo completamente legalizado, foi criado em uma fazenda no Mato Grosso, foi engordado em Goiás e foi abatido em Minas Gerais. Isso é um processo característico do Brasil, que também acontece nos EUA. Se você criar um método de certificação, que vale para o boi, a soja, o milho, o frango, não há como contestar. É um conceito de incorporar me-

todologias de certificação, que por outro lado, é absolutamente imprescindível quando se pega uma estatística como do Imazon, que não é mentirosa, só não retrata o que ocorreu, está incompleta, só mostra um lado da vertente. DE – O senhor não acha que, além dessa campanha de não comprar carne de áreas desmatadas da Amazônia, também deveria haver outra contra o garimpo, que é uma atividade muito mais danosa do que a pecuária? JCSM – Sem a menor dúvida. O garimpo é uma chaga de difícil recuperação. Em uma cidade que eu construí tinha um megagarimpo, que é um negócio trágico, acaba com tudo. Lá perto de Porto Velho eles fazem garimpo com mercúrio e escafandro. O mercúrio vai para o rio e contamina o peixe. Dada a complexidade, as maravilhas e o volume de oportunidades que este País oferece, precisamos mostrar este Brasil real, o que aconteceu com a família que saiu no século 19 da Itália, da Alemanha e foi para o Rio Grande do Sul. Lá iniciou uma atividade, pulou para Santa Catarina e para o Paraná, depois foi para o Mato Grosso e por aí a fora. Tudo isso foi oportunidade e é preciso disciplinar para que não seja caótico. Mas também há contradições do processo. Na Amazônia, até o governo Fernando Henrique, se podia ocupar 50% da propriedade no bioma floresta. De repente, mudaram isso para 20%, pois

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80% tem de ser preservado. Imagine que o Incra vá fazer um projeto de colonização. Pega uma terra pública de 1 milhão de hectares, ele vai ter de fazer a infraestrutura, vai fazer lotes, por exemplo, de 100 hectares, e o sujeito só pode ocupar 20 hectares. É preciso planejamento para fazer a ocupação ordenada e racional.

grandes centros por causa do emprego, da faculdade. Se fizessem (como se fez depois em algumas cidades) como Bauru, que criou um polo universitário, que veio em cima das oficinas, depois teve Marília, que criou indústrias de alimentação, isso não teria ocorrido. Mas eram iniciativas eventuais, não tinham um projeto como aconteceu nos EUA, por exemplo. DE – Por que depois da ocupação do norte do Paraná os paulistas Qual foi o segundo grande erro histórico cometido por São perderam a dianteira de ocupação para os gaúchos? E essas pessoas Paulo? Foi não ter entendido que não era mal o processo de inque estão ocupando possuem consciência de preservação ambiental? dustrialização, ao contrário, era absolutamente importante. Mas JCSM – Eu diria que a percepção da preservação ambiental, não deveria ser um processo de concentração. Agora, 50 anos deem geral todo produtor tem, é instintivo. Nenhum agricultor pois, começa um processo de desconcentração, a cidade de São faz malvadeza com a terra ou com a natureza. Não é que ele seja Paulo parou de crescer. Se o governo tivesse criado condições paum protecionista, ele não faz aquilo que acha que é errado. Mas ra agregar valor ao produto rural, que foi o programa que eu fiz existe uma porção de leis que diz que tem de ser daquele jeito, quando secretário da Agricultura, isso seria evitado. O governamas ele não entendeu nada daquilo. Há cerca de dois anos, a dor Mário Covas não entendia nada de agronegócio, mas conRede Globo fez uma série de reportagens com os sem-terra que fiava em nós. Mostrei a ele que o Produto Interno Bruto da foram assentados no norte do Mato Grosso. Eles estavam deagroindústria de São Paulo era o maior e ele passou a entender a sesperados porque não podiam ter empréstimos em banco, importância das coisas que São Paulo tem – cana-de-açúcar, laporque ninguém disse para eles que ranja, frigoríficos etc. O que vai reverter Reprodução não podiam desmatar mais do que esesse processo, o que vai fazer com que os tava na lei. O assentado desmatou e interiores do Brasil possam crescer? quando foi ao banco disseram que não Agregar valores. E, respondendo a pertinha empréstimo. É preciso fazer um gunta, o que fez as famílias do Rio Granmodelo mais racional e inteligente. Se de do Sul, Santa Catarina e Paraná tomadão 100 hectares, mas ele só pode ocurem a dianteira nesse processo de ocupapar 20, então dê somente os 20 que ele ção foi a mentalidade de colonos, eram pode ocupar, o resto é área de preservafamílias grandes e que não cabiam nos loção e o governo deve fiscalizar. tes em que estavam. O grande processo Já em relação a São Paulo, acho que de ocupação é sobretudo social. Perceba são níveis de demanda. O que acontea malha de cidades que foram criadas no ceu de diferente com Rio Grande do norte do Mato Grosso, Rondônia, Acre, É preciso ocupar as áreas de Sul, Santa Catarina e Paraná em relação sul do Pará, onde estas pessoas estão – fronteiras com atividades econômicas. a São Paulo? O Estado de São Paulo tersão cidades de 50 mil habitantes. minou seu processo de ocupação no fiDE – Mas essa mentalidade de metrópole nal da década de 50. Nessa época, as e colônia, em que a metrópole é a mais importante, tem diminuído. nossas ferrovias chegaram no noroeste do Estado e atravessaHoje, o interior vem ganhando mais status, não é? ram para Campo Grande. As ferrovias Paulista, Noroeste e SoJCSM – Antes, o sujeito da cidade tinha uma fabriqueta no rocabana cruzavam o Estado inteiro. Na década de 50, criou-se fundo do quintal e era tratado como industrial, mas o outro, que a concepção de que o País deveria se industrializar, começou tinha 50 mil cabeças de gado no pasto era um caipira e cheirava com Getúlio e depois com Juscelino. Criou-se a ideia de que o a estrume. Hoje, há uma maior valorização ao agronegócio. Em único emprego bom era o urbano e na área industrial. No Braoutros países, como EUA, eles se orgulham bastante de sua agrisil, de 1970 a 85, o crescimento da população foi de 78%. O crescultura; na Argentina é honra nacional; na França é um fascínio. cimento do Estado de São Paulo, no mesmo período, foi de No Brasil, o eixo está mudando, mas é preciso dar suporte a este 102%, e o da Grande São Paulo foi de 118%. Ao longo dessas processo, levando educação, saúde e gerando emprego. ferrovias, que depois foram margeadas por rodovias, cidades como Bauru, Marília etc., nenhuma empobreceu, ao contrário, DE – O senhor comentou a necessidade de ocupar as fronteiras do estão cada vez mais ricas. Mas enquanto o Estado de São Paulo País. O agronegócio poderia de expandir para essas áreas? crescia 102% em sua população, a região servida pela Cia. PauJCSM – Não acredito, até porque nós temos ferramentas dilista cresceu 52%. Quando eu era secretário, eu viajava muito ferentes hoje. Quando eu fui trabalhar na Amazônia não havia para o interior e perguntava para as pessoas quem é que não nenhuma informação, não havia GPS e fotos de satélites. O votinha um parente em cidades grandes, nem precisava ser só lume de informação que temos hoje permite ordenar a ocupação São Paulo, podia ser Campinas, Sorocaba etc., Todo mundo tidas fronteiras que julgarmos importantes. Em áreas de florestas nha. Quando os filhos chegavam à idade de 17, 18 anos, as que não se deseja tocar, se faz um projeto de manejo, constrói uma mães ficavam desesperadas, pois elas sabiam que eles deixacidade, gera emprego, concentra indústrias madeireiras, coloca riam a família para morar na cidade grande. Qual foi o erro da um fiscal do Ibama, que fiscaliza tudo, pois é um manejo florestal falta de coordenação? É que se esqueceu de gerar emprego nessustentável. É preciso ocupar com atividade econômica, criar petas cidades pequenas. Os filhos tiveram de migrar para os

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Rodrigo Baleia/Folha Imagem

Um estudo do INPE mostrou que o desmatamento na floresta representa 2,5% da emissão de gás carbônico.

quenas colonizações para produzir comida e assim por diante. Hoje, as nossas fronteiras da Amazônia estão absolutamente vulneráveis. Nós temos condições de fazer isso, só depende de decisões políticas, do governo entender os riscos da soberania nacional. Hoje, todo mundo dá palpite sobre a Floresta Amazônica. Existe uma imensa gama de gente neste País que deseja novas oportunidades. Onde é que vai haver efetivamente oportunidade de emprego? É uma decisão de política nacional. DE – O senhor acha que o governo está preparado para responder a esse desafio? JCSM – Governoésempretransitório.OEstadobrasileiroestá em condições, tem informações requintadas com o Projeto Radam, o Cindacta 2, sistema de satélite que cobre o Brasil todo, e outras informações. O que tem de fazer eu já disse: define o que pode e não pode mexer, e principalmente o que nos convém. Hoje, o governo não dá isenção de IPI para gerar emprego na indústria? Por que não dá incentivos fiscais como no passado? Hoje, é preciso definir o que deve ser ocupado do ponto de vista de oferecer oportunidades e ao mesmo tempo garantir a soberania nacional, que só se garante mediante a posse. Há um caso que eu sempre menciono, de um sujeito que herdou de seu avô um terreno no extremo leste de São Paulo. Tinha a escritura, pagava os impostos, mas nunca ia lá. Um dia, foi ver o terreno e estava tudo

ocupado. Ele tinha o documento de propriedade, mas não tinha a posse. O risco da perda da soberania é real. DE – O que puxaria esse processo de ocupação racional que senhor acaba de comentar, o que serviria de locomotiva? JCSM – Na minha opinião seria uma política nacional proposta pelo presidente da República. É a história da liderança. É preciso que alguém lidere o processo, como foi a criação da indústria automobilística no País em 1955, com Juscelino. Mais recentemente, a criação de uma nova política de petróleo para explorar a camada do pré-sal, que é uma nova fronteira, tanto quanto a fronteira Amazônica. DE – Qual a sua opinião em relação às críticas que o País recebe a respeito do desmatamento da floresta Amazônica, que por causa das queimadas isso aumentaria a emissão de gases de efeito estufa? JCSM – O INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) divulgou recentemente um estudo mostrando que o desmatamento e a queimada da floresta representam 2,5% da emissão de gás carbônico, que é metade do valor divulgado pelos países desenvolvidos, os quais são efetivamente os maiores poluidores. Eles diziam que a derrubada da floresta contribuiria com 5% da emissão de gases. Eles chutavam um número e não havia quem contestasse, mas agora há um estudo sério do INPE.

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A Nação Guarani e a ameaça à soberania nacional Celso Junior/AE

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Epitácio Pessoa/AE

O Mapa Guarani Retã englobaria o Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná, Rio Grande do Sul, Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai.


F

oi anunciado no final de 2008 e divulgado em 2009 o Mapa Guarani Retã, que englobaria o que já se chama de Nação Guarani: Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná e Rio Grande do Sul, além dos seguintes países vizinhos – Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai. A atual unidade federativa brasileira seria fragmentada, não mais valendo tampouco a presente configuração dos Estados nacionais. A ideia é uma América Latina concebida como Ameríndia. Não podemos esquecer que essa iniciativa propriamente política já é fruto da homologação da Raposa Serra do Sol. Lá também começou assim: algumas aldeias, algumas tribos, um mapa e logo uma continuidade territorial que amputou daquele Estado parte de seu território. A história se repete. Dentre os apoiadores constam, por exemplo, os governos da Espanha e da Noruega; o CIMI e seu braço na elaboração do mapa, o Centro de Trabalho Indigenista; Universidades como a Universidade Federal de Grande Dourados (MS) e a Universidade Nacional de Missiones, na Argentina; as Pastorais Indígenas da Argentina e do Paraguai; e instituições religiosas alemãs, como Brot für die Welt (Pão para o Mundo) e Evangelische Entwicklungsdienst (Serviço de Desenvolvimento Evangélico). ONGs estão igualmente presentes, como o Instituto Sócio Ambiental – ISA (Brasil) e Survival (Inglaterra). Para que se tenha uma ideia dos montantes envolvidos: a Brot für die Welt teve um orçamento, em 2008, de 90,3 milhões de euros; a Evangelische Entwicklungsdienst, de 150 milhões de euros; o Instituto Sócio Ambiental (ISA), de 13,6 milhões de reais. O financiamento internacional dos "movimentos sociais" fica aqui manifesto. Imaginem se o Brasil apoiasse e financiasse uma nação basca, que englobaria partes da Espanha e da França. Como reagiriam esses países, com a mesma condescendência do Brasil em relação a eles quando se imiscuem em nossos assuntos internos? Não falariam eles de soberania nacional? E o que faz o governo brasileiro? Nada, se omite, quando não compactua. O mapa tem a função política de dar início ao processo de formação da opinião pública, tanto no nível nacional, quanto internacional. Nacionalmente, envolve o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), ala esquerdista da Igreja Católica, o MST, a Funai e um conjunto de ONGs que repassam, então, essa mensagem aos formadores de opinião e aos que decidem politicamente. Para granjear a simpatia da opinião pública

Ueslei Marcelino/Folha Imagem

internacional, criaram um site global, hospedado nos EUA, assumido por uma ONG holandesa e alimentado pela regional do CIMI do Mato Grosso do Sul. Observe-se que é o próprio CIMI que elabora o conteúdo de um site internacional (www.guarani-campaign.eu), visando a interferir, desta maneira, nos assuntos brasileiros, escolhendo como alvo o Estado do Mato Grosso do Sul. Aliás, o site é muito bem-feito, começando por uma apresentação gráfica da América Latina sem fronteiras, sob o nome de Ameríndia. A verdadeira América Latina seria a pré-colombiana. Provavelmente pensam, no futuro, expulsar todos os brancos e negros, europeus, africanos e asiáticos, que deram, pela miscigenação, a face deste nosso Brasil! Como não poderia deixar de ser, o site comporta várias versões: português, inglês e holandês, estando prevista a sua ampliação para o alemão. Para quem se preocupa com a opinião pública internacional, busca apoio político e financiamento na Europa e nos EUA, uma ferramenta deste tipo é vital. É ela que terminará alimentando as pressões exercidas sobre o Brasil e subsidiará, também, os formadores de opinião nacionais e internacionais. Segundo a ONG inglesa Survival: "Cremos

Denis Rosenfield Professor de Filosofia com doutorado na Universidade de Paris

Com a criação dessa nação, a ideia é uma América Latina concebida como Ameríndia.

Ormuzd alves/Folha Imagem

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Gildo loyola/Gazeta de Vitória

A soberania nacional sobre essa nação se veria restringida, com repercussões políticas e territoriais.

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que a opinião pública é a força mais eficaz para a transformação. Seu poder fará com que seja cada vez mais difícil ou, inclusive, que chegue a ser impossível, que os governos e as companhias continuem com sua opressão contra os povos indígenas". Segundo o CIMI: "O Mapa guarani será uma ferramenta de luta dos povos Guarani e será preciso que sua existência cartográfica e humana seja considerada pelos governos nacionais perante o privilégio exclusivo que têm os mapas dos agressores, os de sempre e os de turno, na hora de privilegiar só o mapa do lucro e do agronegócio (o grifo é deles)". Criarse-ia uma nação dentro da nação brasileira, que, segundo a Declaração dos Povos Indígenas da ONU, poderia pleitear um processo de autodeterminação, de autogoverno. Os riscos aqui envolvidos são enormes: a) criação de uma nova nação, que englobaria vários Estados brasileiros e países vizinhos, tendo como objetivo a sua autonomia com reconhecimento internacional; b) a soberania nacional sobre essa nação se veria restringida, com repercussões políticas e territoriais; c) a nação guarani estaria constituída sobre o Aquífero Guarani, a maior reserva de água do planeta, que poderia vir a ser considerada patrimônio indígena e, logo, internacional (patrimônio da humanidade); d) as empresas localizadas nessas áreas seriam banidas, tal como o direito de propriedade, que perderia a sua validade. Eis o projeto que está sendo armado! Há aqui uma questão de fundo, que diz res-

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peito à integração dos indígenas à sociedade nacional e à própria natureza da história brasileira. Nossa história se caracteriza por um processo de aculturação e miscigenação racial e não por um isolamento cultural ou uma suposta pureza racial. Ou seja, a atual política indigenista se coloca em oposição à nossa história, obedecendo a uma perspectiva ideológica onde se misturam vários elementos: a) uns contrários à propriedade privada, alimentados pelo marxismo; b) outros defensores da pureza racial, correspondendo às posições de um antropólogo do regime nazista, Walther Schoenichen; c) a tentativa de varrer a história brasileira, como se todo o continente devesse voltar a ser uma "Ameríndia". Vejamos o que significa a aculturação. Ela decorre de vários fatores, desde os que podem, a nossos olhos, parecer anódinos, como vestimentas, até modificações religiosas, que alteram profundamente o modo mediante o qual um povo se representa e se sente, transformando profundamente a idéia que tem de si. A introdução de novas técnicas e tecnologias, como o machado de ferro em tempos mais remotos ou automóveis e celulares hoje, tem a propriedade de transformar as relações vigentes em uma determinada tribo. Muda, assim, o seu comportamento com outros agrupamentos humanos, como sertanejos, caboclos, mestiços e brancos. Tais elementos modificam a forma não apenas de trabalhar, mas de pensar, sentir e representar. Outros elementos igualmente poderosos são a indumentária, o dinheiro, a língua, a escola e a religião, que solapam os fundamentos mesmos dessas culturas indígenas. Observe-se que se trata da introdução de fatores que são inevitáveis em toda relação que se estabeleça com a moderna civilização brasileira, não podendo, na verdade, ser barrados por uma política indigenista. O que, sim, pode ela fazer consiste em minimizar os seus efeitos do ponto de vista social, o que significa dizer do ponto de vista de uma melhor e mais humana integração dessas tribos à sociedade brasileira. O problema não é novo, apesar da avalanche tecnológica que caracteriza a civilização atual. Egon Schaden dá o exemplo desintegrador produzido pela introdução do machado de ferro. Até então monopólio da tribo Trumái, no Xingu, o machado de pedra cai em desuso, retirando desta tribo não apenas um objeto de comércio, mas também de prestígio grupal. Ela perde uma posição de prestígio e, desta maneira, de consciência étnica. Historicamente, depois do machado de ferro, vieram outros instrumentos de ferro, que foram incorporados ao dia-a-dia


Andrei Bonamin/Luz

indígena, como facões, machetes, facas, tesouras e anzóis. Pense-se, agora, na impossibilidade de resistir à introdução de modernas tecnologias nas tribos indígenas, que são atraídas por elas e, ao mesmo tempo, se colocam numa posição de inferioridade cultural. Neste sentido, uma política indigenista deveria controlar esses efeitos, fazendo com que ocorram gradativamente, assegurando políticas sociais e mesmo econômicas, sabendo, de antemão, que esse processo se apresenta como irreversível. O índio passa a depender de elementos e fatores estranhos - como os produtos do mundo civilizado, sem ter os meios próprios de compreender como esses são feitos e podem ser adquiridos. Em todo caso, o fascínio é irreversível e se coloca a questão de sua aquisição por intermédio do trabalho e do comércio, e não de políticas assistencialistas, que só desmerecem e desonram os que são delas beneficiários. Egon Schaden dedica um importante capítulo ao problema da aculturação indígena a propósito das tribos guaranis, que pode ser visto, também, sob uma ótica mais geral. Ele distingue duas grandes fases, reconhecendo, preliminarmente, a dificuldade, senão a impossibilidade, de saber como seria a concepção religiosa dessas tribos em estado puro, anterior às missões jesuíticas e ao trabalho de catequese próprio da colonização. A primeira fase seria a da incorporação dos valores religiosos cristãos, que, reinterpretados, viriam a fazer parte da cultura original, sem alterar suas noções centrais. Seria uma incorporação religiosa do cristianismo que funcionaria como uma concepção subalterna à religiosidade primitiva. Nessa forma de assimilação religiosa, a cultura assimilada introduz alguns conceitos que ganham, porém, uma outra significação. O seu antigo paganismo continua essencialmente válido, sem que seus conceitos estruturantes tenham sofrido qualquer abalo. A figura do Cristo termina, assim, incluída no panteão primitivo. A segunda fase seria a de uma espécie de "recristianização", em que o cristianismo, graças a um contato mais intenso com o mundo indígena, consegue se impor junto à religião primitiva, não ocupando mais um papel secundário e subordinado. Nesses momentos, tem lugar simultaneamente uma transformação da base social indígena, sofrendo essa uma desintegração, produzindo como conseqüência, do ponto de vista da identidade religiosa, o fato desses indígenas se dizerem católicos e professarem concomitantemente a religião dos seus antepassados. Observe-se que, nesta fase, as ideias alienígenas co-

Arquivo DC

meçam a ultrapassar o sistema tradicional de valores, de tal maneira que as ideias velha e nova entram em conflito, criando problemas graves do ponto de vista não só da identidade tribal, mas também individual. O mecanismo da reinterpretação cessa de operar. Uma terceira fase, que é, na verdade, um desdobramento da anterior, ocorre quando, junto à desorganização social, intensificam-se os conflitos entre as diferentes concepções religiosas, fazendo com que os indígenas percam o seu arrimo identitário, particularmente de cunho religioso entre os guaranis. A organização social entra em fase – definitiva – de desestruturação e a religião torna-se vítima de idéias conflitantes entre si, arruinando a sua coerência. Mesmo que o cristianismo viesse a substituir a concepção religiosa primitiva, o

O índio passa a depender de elementos estranhos - como os produtos do mundo civilizado, sem compreender como esses são feitos e podem ser adquiridos.

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problema não encontraria ainda aí uma solução satisfatória, pois um povo místico teria um duplo confronto pela frente: o da incorporação a uma sociedade que o rejeita como "inferior ou quase humano" e um ideal identitário - cristão e civilizado, que se estrutura segundo valores completamente distintos dos seus. Ressalva é feita, em 1950, à aldeia guarani de Dourados (Ñandéva e Kayová), por esta ser objeto de uma missão presbiteriana. Dela, constata que seu núcleo de ação não reside na conversão, mas na assistência social e médica – aliás altamente meritória segundo o autor –, atenuando os duros efeitos da desorganização social e religiosa. A questão é colocada, sobretudo, em termos de sobrevivência, de natureza claramente social, em que sobressaem os seguintes problemas: precárias condições de saúde, declínio biológico, destruição dos primitivos recursos de subsistência, exploração econômica dos patrões, falta de efetiva integração econômica e alcoolismo. Observe-se que essa crise, apenas parcialmente de natureza fundiária, se concentra também em questões de ordem social e trabalhista, que poderiam ser objeto de uma intervenção estatal, que não se reduzisse a tentar criar condições primitivas de existência que já foram abolidas e às quais todo retorno é culturalmente impossível. A demanda, no caso, é por postos de saúde, com enfermeiras, médicos e medicamentos, e não pela volta do pajé. A demanda é por uma educação que, resgatando as tradições indígenas, ofereça a eles a possibilidade de uma boa integração ao mundo civilizado. A demanda não é por ausência de trabalho, mas por condições dignas de trabalho, não tornando o indígena um novo miserável urbano. Convém ressaltar o relato feito por Galvão de vários casos de pajés suspeitos de feitiçaria, que foram acusados pela morte de membros da tribo, inclusive chefes. Num caso, o pajé foi abatido a golpes de facão pelos próprios indígenas. Eles não são aqui apresentados segundo o virtuosismo medicinal defendido pelo CIMI, que procura revitalizá-los, na verdade, praticamente recriálos. Clamam, de fato, uma vez o contato feito com a medicina ocidental, por uma verdadeira política de saúde, com o intuito de que ela seja implementada entre eles. Querem mais cuidados de saúde e não menos. Os casos de corrupção da Funasa, que só se propagaram nos últimos anos, mostram um órgão estatal que não cumpre as funções para as quais foi criado. Tal situação ilustra a verdadeira condição indígena atual, que exige cuidados e o controle dessa instituição, para que os políticos que dela se apode-

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Os casos de corrupção da Funasa, que só se propagaram nos últimos anos, mostram um órgão estatal que não cumpre as funções para as quais foi criado. Tal situação ilustra a verdadeira condição indígena atual, que exige cuidados e o controle dessa instituição (...)

O problema fundamental é a resistência que essas tribos oferecem à aculturação religiosa - e não econômico. A questão reside em de que forma pode a integração religiosa e social prosseguir (...)

raram não desviem os recursos públicos. Tratase de um problema eminentemente social e político e não fundiário. Ainda a propósito dos Guarani, em particular de suas subtribos Ñandéva, Mbüá e Kayová, Egon Schaden ressalta como eles são profundamente apegados à sua primitiva visão de mundo, que vem a ser, porém, desestabilizada pela integração com a população não-índia. Em decorrência, surgem problemas de instabilidade emocional e psíquica, com sentimentos de inferioridade que repercutem, também, numa recrudescência do misticismo. O problema fundamental é a resistência que essas tribos oferecem à aculturação religiosa - e não econômico. A questão reside em de que forma pode a integração religiosa e social prosseguir, vindo a fazer parte, por assim dizer, do processo histórico, qualquer volta à situação original sendo meramente utópica, como se séculos de transformações não tivessem existido. Os seus efeitos já se produziram. Assinale-se, ainda, que, atualmente, tais tribos apresentam elevadas taxas de suicídio, atribuídas rapidamente pelo CIMI e pela Funai a causas fundiárias, quando o problema é bem mais profundo, dizendo respeito à própria atuação religiosa das diferentes igrejas, inclusive a católica, que patrocina o próprio CIMI. O Brasil já naquela época – e com muito mais razão hoje – apresentava, no que concerne à população indígena em geral, salvo algumas exceções, um processo acentuado de aculturação, com assimilação e miscigenação racial. Naquele então (1950) (e atualmente também), os remanescentes das tribos indígenas correspondiam a aproximadamente 0,25% da população nacional. Qualquer retorno a supostas condições originárias torna-se totalmente inexequível. As condições culturais desapareceram para isto. A integração corre o seu curso e a melhor política seria de levá-la a cabo com o menor número de conflitos possíveis, evitando a marginalização e propiciando um maior entrosamento através de relações de mercado e de trabalho. Em outros termos, estamos diante de um processo histórico irreversível, contrário ao que é apregoado pelo CIMI e pela Funai, a partir seja de posições românticas, seja francamente políticas de cunho marxista. O trabalho do etnólogo, neste sentido, estaria inserido neste "avanço inexorável da sociedade", compartilhado, quer se queira ou não, pelos próximos indígenas, que fazem parte deste processo e são por ele atraídos. Uma coisa, ainda observa Egon Schaden, é o trabalho do etnólogo preocupado com a solução dos problemas humanos, uma outra a sua conduta sendo determinada por vícios ideológicos.


Wilson junior/AE

Christian Rizzi/Folha Imagem

A educação dos jovens, por exemplo, é uma forma de adaptação que se escalona no tempo e propicia, se bem feita, uma integração harmoniosa.

A questão consiste numa adaptação eficaz e controlada ao mundo civilizado, de tal maneira que esta cause a menor dor possível aos indígenas e que esses possam usufruir dos produtos da sociedade ocidental, almejados por eles mesmos. Tudo depende, evidentemente, do grau de aculturação em que se encontrem as diferentes tribos, não devendo haver uma regra de conduta única, mas políticas adaptadas a cada situação. A educação dos jovens, por exemplo, é uma forma de adaptação que se escalona no tempo e propicia, se bem feita, uma integração harmoniosa. Isto implica que tal política educacional seja feita segundo princípios que viabilizem a integração, não sendo conduzida ideologicamente de modo que se inviabilize, o que só aumentaria a dor e os problemas dessas pessoas. O peso da ideologia se traduziria por

uma maior marginalização. Uma interação satisfatória deveria necessariamente contemplar a interação econômica, condição de novas formas de prestígio cultural, auto-estima e aquisição de bens. Soluções utópicas estão descartadas, salvo para os ideólogos que as perseguem por seus próprios princípios políticos, provocando, por suas atitudes, uma maior desorganização social. A crise aculturativa já está instalada na quase totalidade das populações indígenas. O que se impõe é o controle dos seus efeitos e conseqüências. Uma política indigenista deveria aqui "organizar a crise", reconhecendo o seu caráter inexorável. Trata-se do controle e da organização dos efeitos sociais perversos, da marginalização, promovendo políticas de integração e assimilação. Os indígenas, no interior desse processo, estão cada vez mais impelidos a uma identificação nacional, representando-se, para além de sua cultura de origem, como brasileiros. Os indígenas, na verdade, já se encontram, mal ou bem, semi-integrados à economia do mundo civilizado. Têm, ao seu alcance, se uma política indigenista for bem conduzida, os recursos técnicos e educacionais propícios a essa integração numa sociedade aberta. Eles devem aprender a operar nessa nova sociedade. Isto passa, evidentemente, pela criação de novas fontes de renda e, principalmente, no caso da produção agrícola ou de peças artesanais, por uma política pública de preços, que os mantenha ao abrigo de oscilações abruptas para baixo - dos valores de mercado. Trata-se, reiteremos, de criar condições para uma integração bem sucedida a uma economia aberta. O objetivo consiste em que o índio passe a agir livre de tutela, vindo a decidir por si mesmo. Uma expectativa bem razoável seria criar condições para que os indígenas, num futuro não muito longínquo, possam se tornar, em condições especiais, pequenos agricultores familiares, produtores autônomos. Darcy Ribeiro , por sua vez, parte da constatação realista de que o avanço da sociedade brasileira "não deixará lugar para a conservação de culturas tribais plenamente autônomas" e sustentar tais posições seria signo inequívoco de "tolo romantismo" e "larvar ingenuidade". A aculturação deveria marchar espontaneamente segundo os casos particulares de cada tribo, conforme as demandas e condições destas, seguindo a sua progressiva transformação e substituição de valores. Esse processo, no entanto, não se faz sem solavancos e reações que podem tanto adotar formas religiosas quanto propriamente políticas.

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Ricardo Leoni/Agência O Globo Arquivo/Agência O Globo

O projeto de Henry Ford de produzir borracha na Amazônia foi um dos maiores fiascos do mundo corporativo.

FORDLÂNDIA, UMA


Ricardo Leoni/Agência O Globo

EPOPEIA NA SELVA Renato Pompeu Reprodução


S

e a alemã Elisabeth Nietzsche, irmã do famoso filósofo, tentou em 1886 instalar nas selvas do Paraguai uma colônia tipicamente "ariana" e vegetariana, cujo produto mais notável, gerações depois, foi o ditador Alfredo Stroessner, também Henry Ford, que em 1903 havia fundado em Detroit a fábrica de automóveis que hoje é a multinacional que leva seu nome, por volta de 1926, há mais de 80 anos, tentou transformar em realidade a sua própria utopia amazônica, à beira do rio Tapajós, afluente da margem direita do Amazonas, em terras dos então municípios de Aveiro e Itaituba, no Estado do Pará, a mil quilômetros do Oceano Atlântico. Daquela mesma região, décadas antes, contrabandistas ingleses haviam levado sementes de seringueira – na época o Brasil era o maior produtor mundial de borracha, o que enriqueceu Belém e Manaus – para o Real Jardim Botânico de Londres. Ali as sementes foram desenvolvidas em mudas, estas a seguir transportadas para a Malásia, hoje Maláisia, e para o Ceilão, hoje Sri Lanka, então colônias britânicas. Os ingleses adotaram nessas regiões da Ásia o sistema de plantagem, isto é, a monocultura, no caso, de imensos seringais, e logo conseguiram produtividade muito maior do que no Brasil, onde as seringueiras nativas ficam espalhadas isoladamente pela floresta, misturadas a muitas outras árvores e plantas em geral, obrigando os seringueiros a longas caminhadas. Nos trópicos, não existem florestas de uma espécie só, como os carvalhais e os pinheirais das regiões temperadas. Não existem florestas de jequitibás, por exemplo... ou de seringueiras. O que os ingleses fizeram na Ásia foi criar florestas artificiais só de seringueiras, exploradas por técnicas mais industriais do que extrativistas. Com isso logo a Grã-Bretanha suplantou o Brasil como fornecedora mundial de borracha e a Amazônia entrou em decadência. Os britânicos, praticamente com o monopólio da borracha, impunham seus preços, o que irritava Ford, que julgava pagar muito caro pela borracha necessária para os pneus e para as mangueiras dos radiadores de seus carros, os limpadores de parabrisas etc. Além disso, na época, a ambição das hoje montadoras de autopeças produzidas por fábricas de fornecedores independentes, era produzir tudo o que era necessário para a fabricação de automóveis. E surgiu a idéia, na cabeça de Ford ou de algum seu subordinado: por que a Ford não poderia ter as suas próprias plantagens de seringueiras? Sem maiores estudos – Ford odiava especialistas que se atrevessem a saber mais do que ele de qualquer assunto – logo se escolheu o Brasil, mais exatamente aquela região à beira do Tapajós. O governo do Estado do Pará cedeu, para a empreitada, um milhão de hectares, que só teriam de ser devolvidos trinta anos depois, em 1956. Na verdade, a Ford, que gastou 20 milhões de dólares (valor da época; seria muito mais hoje) no empreendimento, entregou ao Brasil as terras e suas grandiosas benfeitorias, em 1945, onze anos antes do previsto, por apenas 200 mil dólares.

Fotos: Reprodução

Ricardo Leoni/Agência O Globo


Reprodução

Ricardo Leoni/Agência O Globo

Henry Ford gastou 20 milhões de dólares (valor da época, seria muito mais hoje) no empreendimento, entregou ao Brasil as terras e suas grandiosas benfeitorias, em 1945, onze anos antes do previsto, por apenas 200 mil dólares.

O que tinha acontecido? A explicação oficial da Ford é que, durante a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazista, privada de recursos naturais, havia desenvolvido a borracha sintética, a partir do petróleo, que resultava ser mais barata. A tecnologia alemã ficou disponível para empresas de outros países logo com o fim da guerra, o que tornou obsoleta, para a quase totalidade das aplicações industriais, a borracha natural. Mas na verdade o fracasso havia começado muito antes. Ford havia introduzido, em suas fábricas nos Estados Unidos, o chamado fordismo: a combinação das técnicas de programação dos gestos dos operários na linha de montagem, gestos rigorosamente cronometrados e especializados, com altos salários, limitação a oito horas da jornada de trabalho, construção de conjuntos habitacionais para os trabalhadores, exigência de rígidos padrões morais e de higiene e alimentação por parte dos trabalhadores, incluindo a proibição de bebidas alcoólicas, a preferência pelo vegetarianismo e pela estrita religiosidade cristã, a proibição da prostituição e das "danças lascivas", a garantia de assistência médica e aposentadoria – tudo isso e mais uma dura disciplina no trabalho... e fora dele. Para a plantagem, havia necessidade de mão-de-obra, que a Ford julgava abundante no Brasil. Para a mão-deobra, havia a necessidade de casa, comida e roupa lava-


Ricardo Leoni/Agência O Globo

Houve revoltas dos trabalhadores, com quebra-quebra e tudo, por causa da alimentação.

da. Em suma, havia a necessidade de se instalar uma cidade moderna no coração da Amazônia. E a Ford não teve dúvidas: transplantou para o meio da selva uma típica cidade pequena americana, com Main Street (rua Principal) e tudo. Veio tudo pronto dos Estados Unidos: "casas, hospitais, cafeterias, drugstores, cimentos, areão para as canchas de tênis, aparelhos sanitários, bulldozers, serrarias, uma cidade completa por armar", conta o escritor Vianna Moog, em seu livro "Bandeirantes e pioneiros", que nos anos 1950 comparou os destinos do Brasil e dos Estados Unidos. Havia até campo de golfe em Fordlândia, nome que foi dado à cidade erguida, ou melhor, transplantada para junto do Tapajós. Não faltavam as cerquinhas baixas que separavam o jardinzinho de cada casa da calçada, como numa típica cidadezinha industrial americana. De fato, havia mão-de-obra abundante na Amazônia, com seus índios e caboclos, mais nordestinos expulsos pela seca que haviam migrado para a grande floresta. Mas esses trabalhadores não estavam acostumados à disciplina de gestos, horários e costumes necessários para o trabalho e a vida sob o capitalismo avançado. Estavam acostumados a circularem livremente pela floresta, a trabalharem quando e como bem entendessem, a trocarem entre si produtos in-natura, sem intervenção de dinheiro. Ao contrário dos americanos natos e das famílias de imigrantes nos EUA, grande parte dos brasileiros, com exceção dos índios – estes por demais arredios –

não tinham constituído família. Aquelas multidões de homens solteiros gostavam de embebedar-se, quando bem quisessem, em casas de prostituição. Ora, a Ford estava acostumada a trabalhadores que, em troca de dinheiro, aceitavam a disciplina no trabalho, e, casados e com filhos, aceitavam a disciplina no comportamento, em troca de dinheiro e conforto. Os brasileiros não precisavam tanto de dinheiro, pois havia produtos da natureza à sua disposição, não precisavam do conforto de aquecimento e de banheiros, pois tomavam banho nos rios e faziam suas necessidades na mata, além de estarem imersos na mornidão tropical mesmo quando fazia "frio". Assim, muitos só ficavam no emprego da Ford até reunir o dinheiro necessário para alguma coisa específica de que estivessem precisando. Havia mais problemas. Conta a historiadora Elaine Lourenço em sua tese de mestrado de 1999 na USP, sobre Fordlândia, "Americanos e caboclos – Encontros e desencontros em Fordlândia e Belterra-PA", que até o uso das torneiras, diante das casas e não dentro delas, e a circulação das poucas mulheres casadas em torno delas, estavam permanentemente sob rígido controle da Ford. Houve revoltas dos trabalhadores, com quebra-quebra e tudo, por causa da alimentação: no fim dos anos 1920, em protesto contra a dieta de arroz integral, pão integral e frutas enlatadas, para uma população acostumada com arroz branco, feijão e carne de caça ou de boi. No fim dos anos 1930, os protestos e quebra-quebras foram contra a in-


Reprodução

Os brasileiros não precisavam tanto de dinheiro, pois havia produtos da natureza.

trodução do desconhecido sistema de self-service, para homens acostumados a serem servidos por garçons com os quais mantinhas relações bonachonas. Um outro fator, desta vez da natureza e não das pessoas, atrapalhou a Ford. Havia na Amazônia uma doença vegetal endêmica das seringueiras, o chamado mal-das-folhas, que reduzia a produção de látex, piorava a sua qualidade e acabava até matando a árvore. No extrativismo, o mal-das-folhas não provocava maiores problemas, porque sua propagação era dificultada pela grande distância que havia, na mata, entre uma seringueira e outra. Nas plantagens asiáticas, não havia o mal-das-folhas. Mas nas plantagens brasileiras da Ford, com centenas de milhares de seringueiras enfileiradas uma das outras, a propagação do mal-das-folhas foi devastadora. Com isso, boa parte da população e dos seringais de Fordlândia foram transferidos para Belterra, mais distante das margens do Tapajós, consideradas particularmente insalubres. E, mesmo sendo ilhas de civilização num oceano de floresta virgem, Fordlândia e Belterra eram assombradas pelo

que vinha da mata: insetos transmissores de doenças... e feras. Muitos brasileiros expulsos da mata pelas novas construções eram recusados como trabalhadores pela Ford, principalmente por serem doentes crônicos, e iam para Santarém, a dez ou quinze horas de navio, sobrecarregando a saúde pública e vivendo de caridade, já que não podiam se sustentar nem pelo modo antigo, nem pelo modo moderno.. E altos executivos estrangeiros da Ford, americanos, noruegueses, escoceses, argentinos, isolados do mundo, enlouqueciam: um se suicidou atirando-se no rio infestado de jacarés que o devoraram, outro comprou perfumes caros e passou a borrifá-los em animais como pacas e cutias, berrando para os bichos que eles deviam agradecer à Ford por ficarem cheirosos. O sonho tinha acabado e hoje os monumentos maiores que restam daquela época são as torres das caixas d’água de Fordlândia e Belterra, com o grande emblema característico da empresa. A saga está romanceada em "Fordlândia", ficção documental do argentino Eduardo Sguiglia, em edição esgotada da Iluminuras.


Panorama econômico da Amazônia Pimentel Gomes

Alberto César Araújo/Folha Imagem

Digesto Econômico nº 17 Abril de 1946, pp. 56-61 O Autor passa em revista as riquezas naturais e as possibilidades econômicas do famoso vale do norte do Brasil, descrevendo os seus principais aspectos, a variedade extraordinária de sua flora – em que avultam plantas oleagionosas, a seringueira e as fibras – o seu comércio de peles silvestres e o desenvolvimento de sua pecuária.

Agradecimentos ao Núcleo de Biblioteca e Memória da Associação Comercial de São Paulo

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Dida Sampaio/AE

Aspectos

C

omo me dizia anos atrás, em Recife, o professor Melo Morais, na Amazônia o que de princípio mais impressiona o viajante é a extensão. Ali tudo é tremendamente amplo, absurdamente grande. O Tapajós, por exemplo, em seu último trecho, tem cerca de 15 km. de largura. Isto do alto, de avião, é um lindo golfo marítimo, com praias de areia alvinitente. As águas são verde-escuras. Em frente e Manaus, a cidade-sorriso, uma cidade de 100 mil habitantes, onde são encontrados todos os requintes da civilização numa clareira de nossa selva equatorial, tem o Negro quase 2 km. de largura e dezenas de metros de profundidade. Se o Amazonas secasse, as águas o mar iriam até aí, formando uma espécie de fiorde com alguns milhares de quilômetros de cumprimento. Em seu curso médio, o Negro, que é um rio relativamente raso, chega a ter 50 km. de largura. Forma, em seu curso médio, uma espécie de lago de águas escuras, semeado de ilhas. Os fortes temporais tornam a navegação muito difícil. Em Óbidos, as serras de nossa fronteira com a Guiana vêm à margem setentrional, sob a forma de cerros íngremes e florestosos. Até a cidadezinha, contrastando com quase todas as outras da região, alcandora-se

numa colina, onde se chega por uma rua íngreme, pedregulhada, de aspecto colonial. No alto, domina-se todo o rio. Tem ele, neste passo acertado, 1892 metros de largura – ele que penetrou no Brasil com mais de 2 km. de margem a margem. – e 80 metros de profundidade. Na embocadura só o Amazonas tem cerca de 300 km. de largura. De Belém a Cruzeiro do Sul, navegam-se talvez 4.500 km., uma distância maior que todo o cumprimento do nosso país, superior à que vai de Lisboa à Sibéria. Há campos naturais – pequenos trechos se os compararmos com o tamanho desmedido da planície – na parte oriental de Marajó e em pontos dos territórios de Amapá e Rio Branco. Há ainda outros campos na parte norte do Pará, em duas ou três áreas mínimas do Amazonas e em muitas ilhas do Baixo Amazonas. Toda a área restante, isto é, talvez 98% da Amazônia, cobre-se de espessa floresta, riquíssima em espécies, magnífica em sua grandeza avassaladora – salvo trechos mínimos, clareiras insignificantes abertas para a construção das cidades, das sedes dos seringais e de outras propriedades rurais, e o plantio de lavouras ainda muito escassas – uma agricultura rotineira, incipiente, ainda de pouco valor econômico.

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Tiago Queiroz/AE

Riquezas vegetais A flora é riquíssima. Há, talvez, milhares de espécies, o suficiente para deslumbrar todos os botânicos que visitaram a região. Conhecem-se algumas centenas delas. E só têm nomes vulgares e científicos. Centenas de outras ainda não possuem denominação vulgar. Indaga-se o nome de árvores, e o mateiro responde: - Pau doido -, isto é, madeira desconhecida. Os botânicos, os próprios botânicos, ignoram grande parte da flora. O que se conhece, porém, principalmente depois de uma visita ao maravilhoso Museu Emílio Goeldi, onde trabalha um sábio, o Dr. Carlos Estevam, o Museu Comercial de Belém, o INstituto do Norte, em Sousa, arredores de Belém, onde um grupo de agrônomos sob a chefia do Dr. Felisberto de Camargo lança as bases científicas do desenvolvimento econômico da Amazônia, os hortos do Ministério da Agricultura, e as exposições permanentes das Associações Comerciais das cidades de Guajarina e Baré, o que se conhece, porém, depois de tudo isso, dá para entusiasmar o mais frio, o mais cético dos economistas. De fato, as possibilidades econômicas vegetais são verdadeiramente extraordinárias. É o que procurarei mostrar no estudo perfunctório que a escassez de espaço me permite. Plantas oleagionosas A Amazônia é riquíssima em plantas oleaginosas. Há centenas de espécies. Citarei algumas das mais importantes: andiroba, bicuíba, castanha brasileira, copaíba, camuru, curuá,

Tabela 1

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macaúba, murumuru, ouricuuri, patauá, pau rosa, pracaxi, tucuruá, babaçu, bacaba, buruti, cacau do Peru, cacau azul, cacauí, cacaurana, ucuuba, abricó, andorinha, assacu, assaí, bacuri, bacupari, baratinha, caiati, churá, castanha de anta, castanha de arara, castanha de macaco, castanha de cotia, comadre de azeite, compadre de azeite, cumururana, cupuaçu, caruatinga, curuapiranga, fava de arrara, faveira grande do igapó, inajá, jaboti, jauari, jupati, mamorana, marajá, marinama, miriti, mucapá, munguba, paperá, piassava, piquia, piquirana, pirirema, pupunha, sapucaia, saboneteira, sapucainha, seringueira, sumaúva, tacacazeiro, taquari, tucumã, uchi, ucumbarana, umari, urucuri e muitas outras. Apenas algumas oleaginosas estão sendo aproveitadas em quantidades comerciais. Vejamos qual a produção de algumas delas, atualmente as mais importantes, em três anos, 1935, 1939 e 1940. (Tabela 1) É notável o preço unitário da essência de pau rosa superior, a Cr$ 100,00 o quilo. É o óleo mais caro que possuímos. É finíssimo – delicadamente perfumado, muito apreciado pela indústria norte-americana de essências. É retirado da madeira, por meio de uma destilação. O cavaco do pau rosa é deliciosamente perfumado. A fábrica recende suavemente a rosa, a uns cem metros de distância. Foi o que notei nas que se encontram em Itaquatiara, à margem do gigantesco Amazonas. Una tonelada de madeira rende 8 a 14 quilos de essência. A madeira, de um amarelo acastanhado, é fácil de trabalhar. Os índios empregam-na no fabrico de canoas.

A flora é riquíssima. Há, talvez, milhares de espécies, o suficiente para deslumbrar todos os botânicos que visitaram a região. Conhecem-se algumas centenas delas.


Dida Sampaio/AE

A andiroba é encontrada de preferência em lugares pantanosos, ilhas alagadas, nos igapós. As sementes descascadas têm 58 a 60% de gordura amarela-clara, se as sementes são frescas e bem conservadas; amarela-escura se velhas. Há um processo químico que retira as resinas e deixa o sebo vegetal perfeitamente branco. É empregado no fabrico de velas e sabão. Há muitas espécies de murumurá. A amêndoa dos coquilhos dessas palmeiras tem cerca de 40 a 42% de óleo. O óleo é branco, insípido, quase inodoro, sólido nos climas temperados, com a consistência de manteiga nos quentes. Acidez muito pequena. Muito apreciado no norte da Europa, como substituto da manteiga. O óleo de copaíba, claro e perfumado, é retirado abundantemente do tronco da árvore por meio de um furo aberto a trado. Colhem-se de cada vez, conforme a árvore, dez ou mais litros de óleo. Esgotada a árvore obtura-se o furo com um pedaço de pau. A seringueira e as fibras A seringueira, a preciosa seringueira, produtora de borracha, é a responsável maior pelo povoamento da Amazônia e da conquista d o Acre. É uma das árvores que mais fizeram pela grandeza do Brasil. A produção de borracha silvestre, que já atingiu a 42 mil toneladas, em seu apogeu, baixara a cerca de 10 mil toneladas, passando depois a subir lentamente. Em 1945 a produção deve ter-se aproximado das 30 mil toneladas, valendo cerca de Cr$540.000.000,00. O caucho dá uma borracha especial que tem o seu nome. A balata fornece um látex branco que, coagulado, fornece um produto de igual nome, sucedâneo da guta-percha. Há muitas fibras interessantes na Amazônia. O algodoeiro do Pará, na zona da Bragantina, é cultivado em escala mínima. Verifiquei que o Acre produz algodão em excelentes condições. E em uma grande vantagem: o algodão lá é planta sem pregas. Elas ainda não chegaram àquele longínquo rincão. Não é possível, porém, agricultá-lo nas condições atuais, dadas as dificuldades de transporte e a tremenda

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Divulgação

angústia de braços. Uma fábrica de fiação em Rio Branco, se não se quisesse ir até a tecelagem, como seria de desejar, resolveria o assunto favoravelmente, pelo menos para os vales do Purus e afluentes. A juta, proveniente da Índia, é cultivada nas ilhas amazônicas em quantidades crescentes. A produção aproxima-se das 4 mil toneladas. Ainda é bem pequena. A planta, porém, desenvolve-se magnificamente em toda a Amazônia, mesmo no Acre, como verifiquei em experiências em grande escala. A escassez de braços reduz as possibilidades de produção. A piaçava existe principalmente no vale do rio Negro. Figura nas exportações amazônicas. A jarina, uma palmeirinha de nome bonito, fornece, com seus frutos córneos, quando maduros, o marfim vegetal utilizado na fabricação de botões e outras utilidades. Só uma quantidade mínima da produção é aproveitada. A Amazônia tem madeira de lei em quantidades incríveis. As espécies são muitas. Contam-se dezenas. Na coleção existente no Serviço de Economia Rural, no Rio de Janeiro, figuram 65 espécies. Algumas, preciosas. O aguano, por exemplo, é enviado para os Estados Unidos em grandes quantidades, lá alcançando preços altíssimos. Encontram-se na Amazônia algumas das maiores serrarias da América Latina. Estabelecem-se à beira de um rio navegável, principalmente na região do estuário. Os pequenos portos madeireiros, com suas grandes pilhas de tábuas de madeira duras e de várias cores, algumas de tonalidades variegadas e belíssimas, são uma das características de nossas terras equatoriais. São pito-

Tabela 2

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rescos esses portos madeireiros que surgem às vezes ao cair da tarde, no curto crepúsculo equatorial,, numa pequenina clareira de relva, no dédalo de rios, furos e canais que é o estuário da Amazônia. Riquezas animais A Amazônia ainda é uma região escassamente povoada, onde pululam os animais silvestres. A fauna é riquíssima. Um naturalista encontrou mais espécies de borboletas em torno de Belém do que existem em toda a Europa. Há mais espécies de peixes no Amazonas do que no mar Mediterrâneo. A exportação de peles silvestres é enorme, como se pode ver pelos

Um naturalista encontrou mais espécies de borboletas em torno de Belém do que existem em toda a Europa. Há mais espécies de peixes no Amazonas do que no mar Mediterrâneo. A exportação de peles silvestres é enorme (...) A piscicultura concorre de maneira surpreendente para a alimentação dos brasileiros amazônicos.


Alex Almeida/Folha Imagem

dados abaixo, referentes aos dados do ano de 1943 e ao porto de Belém. Há exportação por outros portos. (Tabela 2) A piscicultura concorre de maneira surpreendente para a alimentação dos brasileiros amazônicos. Os rios, todos o sabem, são enormes e numerosíssimos. Há também milhares de lagos de todos os tamanhos e formatos. Vistas do alto, algumas regiões se apresentam salpicadas de lagos abundantíssimos, uma verdadeira Finlândia equatorial. Podem ser observados vários de uma só vez. E existem de todas as cores: escuros, avermelhados, amarelados, esverdeados, claros, e cobertos ou não de vegetação hidrófita. Muitos têm a forma de U. São antigas curvas de rio que as águas cortaram no ponto mais estreito, transformando, a princípio, penínsulas em ilhas. Depois, o rio fechou as aberturas com terras de aluvião formando o lago. O pirarucu é o peixe mais importante. Tem o couro preto. Possui mais de dois metros de comprimento, quando adulto. Vem vez por outra à superfície, respirar. A fêmea cria os alevinos. Nadam sobre ela durante muito

tempo. O pirarucu é caçado com arpões. É o nosso bacalhau d’água doce, como o tubarão o é d’água salgada. As tartarugas infestam as praias dos rios e lagos do Brasil equatorial. Hoje, diminuíram bastante. Encontram-se, porém, diariamente, à venda nos mercados de Belém e Manaus. Há algumas com mais de cem quilos. Há pelo menos duas espécies de jacaré. Uma delas é comestível. Chega a ser um bom prato. E há jacarés aos milhões, principalmente nos lagos e em alguns rios, igarapés e igapós. São vistos aos centos nas praias, em dias claros, tomando sol. São mortos aos milhares. A pele curtida chega ao Rio e a São Paulo com o nome de crocodilo. Essa mudança de denominação custa caríssimo aos consumidores. A carne salgada é cada vez mais consumida. O jacaré é um lagartão tímido durante grande parte do ano. No período do cio é perigosíssimo. A pecuária é incipiente. O gado é pequeno, feio, seródio, escasso. Quase nada se tem feito em seu benefício. O Governo Federal, por inDida Sampaio/AE

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Itamar Miranda/AE

Marco antonio Teixeira/O Globo

termédio do Ministério da Agricultura, começa a amparar esta pecuária rotineira, que não honra aos grandes fazendeiros de Marajó e Baixo Amazonas. Reprodutores zebus estão sendo introduzidos ainda muito timidamente. Fazendas há em Marajó com mais de 30 mil bovinos. O governo do Território do Amapá está abrindo estradas para aos campos gerais, o que vai permitir o seu melhor aproveitamento. O mesmo vai realizando o governo do Território do Rio Branco.

suínos e aves tomou grande impulso no município de Rio Branco, graças ao esforço do Departamento da Produção, ultimamente organizado. A pecuária amazônica é, como se vê, pequenina – embora, em seus algarismos, mais ou menos igual à portuguesa – muito havendo a fazer se quiser a sua população alimentar-se com seus próprios recursos e ainda exportar para aas Guianas – mercado que se torna cada vez mais amplo.

Há búfalos em Marajó.

Riquezas minerais

Em 1940, segundo as estatísticas do Ministério da Agricultura, antes da criação dos três novos territórios do Amapá, Rio Branco e Guaporé, era a seguinte e pecuária amazônica em comparação com a brasileira, tomada em seu conjunto. (Tabela 3) Em 1945, calculava-se haver 45 mil bovinos no Amapá, território desmembrado do Pará. Em 1943, em Rio Branco, desmembrado do Amazonas, acreditava-se haver, arredondando-se os algarismos, 119 mil bovinos, 9 mil equinos, 81.100 asininos e muares, 1.400 ovinos, mil caprinos, 2.200 suínos e 7 mil aves domésticas.. A do Acre é em campos artificiais, abertos nas matas, numa demonstração forte de nossa capacidade de trabalho. Nos últimos anos a criação de

As riquezas minerais existem, embora ainda pouco conhecidas. Sabe-se da existência de muito ouro nos Territórios do Amapá e do Rio Branco, nos limites do Pará com o Maranhão e às margens do Tocantins. Há diamantes e cristal de rocha, pelo menos no Tocantins. Há ferro tão bom quanto o de Itabira, que é o melhor do mundo, no Amapá, a cem quilômetros do rio Amazonas. Parece haver petróleo no Acre. Por que progride tardigradamente a Amazônia? Muitas razões concorrem para isto. Algumas, sanáveis desde já. Tratarei disso noutro artigo.

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Dida Sampaio/AE

Jonne Roriz/AE

Pedro Bernardo/Folha Imagem

Em 1945, calculava-se haver 45 mil bovinos no Amapá, território desmembrado do Pará. As riquezas minerais existem, embora ainda pouco conhecidas. Sabe-se da existência de muito ouro nos Territórios do Amapá e do Rio Branco, nos limites do Pará com o Maranhão e às margens do Tocantins.

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O DESERTO DOS

Alberto César Araujo/Folha Imagem

e para cada página que se escreveu alertando contra a internacionalização da Amazônia fosse retirada daquele território uma área de vinte metros quadrados, a Amazônia já seria internacional faz muito tempo. O terror da cobiça estrangeira incorporou-se ao imaginário nacional pelo menos desde a presidência Arthur Bernardes (1922-1926), alimentado menos pela iminência de perigos reais do que pela máconsciência de possuirmos um território bem maior que a nossa capacidade de defendê-lo, só preservado como unidade, precisamente, pelo desinteresse blasé dos presumidos invasores que, como os tártaros de Italo Calvino, não se fazem notar senão por sua longa, humilhante, insuportável demora em atacar-nos. A tagarelice que ainda hoje e com intensidade crescente fomenta o perpétuo e jamais recompensado estado de alarma contrasta, da maneira mais patética, com a incapacidade nacional de fazer face às duas únicas ações efetivas empreendidas até agora para violar a nossa soberania naquele pedaço do planeta: a transferência de imensas faixas de terra para “nações indígenas” biônicas e a intensa presença das Farc na região amazônica. Tanto se gritou contra ameaças imaginárias, que nada se pôde fazer contra as agressões efetivas, principalmente porque não vieram da direção tradicionalmente esperada – o tão execrado e temido "imperialismo ianque" –, mas do flanco simetricamente oposto: a esquerda internacional. Que esta era de fato a única fonte possível de arranhões e fraturas na nossa integridade territorial, eis uma obviedade que eu já vinha advertindo faz mais de uma década, sem merecer atenção, é claro, de ouvidos programados para ouvir tão-somente o contrário. O caso Raposa Serra do Sol ilustra, da maneira mais deprimente, a facilidade com que os organismos internacionais, diretamente ou através da imensurável rede de partidos de esquerda, ONGs militantes e órgãos de mídia cúmplices, nos impõem as mudanças que bem entendam, sem suscitar senão reações débeis e impotentes. Com a mesma desenvoltura arrogante com que nos proíbem de fumar, de ler notícias tidas como indesejáveis, de ter armas para defesa da nossa vida e propriedade, de usar certas palavras em público ou de julgar as coisas segundo a nossa própria religião, elas removem milhares de brasileiros de suas terras para entregá-las a ongueiros travestidos de índios, e todo o clamor nacional contra isso, ao esbarrar na vontade implacável de nossos mandantes estrangeiros,

Divulgação

vai definhando, definhando, até esvair-se num lamento inaudível. Quanto às Farc, senhoras absolutas do narcotráfico na América Latina inteira graças ao Plano Colômbia do Sr. Bill Clinton, que as deixou intactas enquanto removia do caminho os seus concorrentes, suas atividades no Brasil, sob o patrocínio político e moral do Foro de São Paulo, estendem-se deste a floresta amazônica, onde entram e saem como se fosse sua própria casa, trazendo drogas, comprando armas, matando uns brasileiros, recrutando outros, até as es-

Olavo de Carvalho Jornalista, escritor e professor de Filosofia


GRINGOS

Se para cada página que se escreveu alertando contra a internacionalização da Amazônia fosse retirada uma área de 20 metros quadrados, a Amazônia seria internacional há muito tempo.

colas onde vendem cocaína impunemente às nossas crianças; desde os altos escalões da República onde seus parceiros brilham nos ministérios e no comando do PT, até as ruas das grandes capitais onde seus agentes terceirizados do Comando Vermelho e do PCC mantêm a população sob o regime do terror, contribuindo com uma quota significativa para o nosso recorde mundial de 50 mil homicídios por ano. É chocante comparar a passividade nacional ante esses duas desgraças efetivas e presentes com o reiterado empenho alarmista voltado

contra a fantasiosa e a rigor impossível “invasão ianque”, empenho movido, sobretudo, pelos próprios membros, amigos, simpatizantes e idiotas úteis do Foro de São Paulo. Que os invasores reais mantenham a nação hipnotizada e sonsa, desviando suas atenções para o temor de invasões hipotéticas, é mais que compreensível: a mentira e a camuflagem são da essência mesma da estratégia. Mas que elites políticas, intelectuais, econômicas e militares sem nenhum interesse direto nesse engodo se deixem iludir por ele, é sinal de um estado de alienação que o mero comodismo não explica. Este fenômeno não pode ser compreendido sem um breve exame das peculiaridades do nacionalismo brasileiro. Por toda parte, a idéia nacionalista, desde que existe, está associada ao sentido histórico, ao culto de valores e símbolos consolidados por uma longa experiência comum e transmitidos de geração em geração. No Brasil não há nada disso. O desprezo pelo passado, o total desconhecimento das conquistas históricas e das grandes criações culturais que poderiam dar fundamento a um nacionalismo genuíno já se tornou um dado constante da mentalidade pública ao ponto de que a simples menção a esse patrimônio é recebida, nas escolas ou em qualquer conversa doméstica, com estranheza e chacotas. O elemento mais essencial de uma cultura nacionalista – o amor à língua – falta por completo nos nossos hábitos e afeições. Entre os intelectuais, o desprezo aos fundadores do país e aos heróis que consolidaram a nacionalidade é quase um dever moral, exceto quando o personagem, acidentalmente, pode ser aproveitado como símbolo do ressentimento esquerdista, como é o caso do marinheiro João Cândido ou da figura vaga e nebulosa de Zumbi dos Palmares. No tempo dos militares, o primeiro e único filme brasileiro que glorificava em grande estilo os heróis da Independência foi recebido pela elite intelectual com nada menos que nojo, ao passo que o livro de Júlio José Chiavenato, “Genocídio Americano”, que acusava o país de uma infinidade de crimes hediondos imaginários, recebia aplausos e louvores. Nada ilustra melhor o caráter paradoxal e autodestrutivo do nosso nacionalismo do que o Movimento Modernista de 1922, cuja máxima expressão literária, o “Macunaíma” de Mário de Andrade, retrata o caráter nacional com as feições mais abjetas e desprezíveis, enquanto a pretensa afirmação da “língua brasileira”, rompendo os laços culturais com Portugal, e privan-

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Joedson Alves/AFP

do-nos assim do influxo benéfico das poderosas conquistas culturais portuguesas do século 20, tornou-nos escravos da moda francesa e institucionalizou um linguajar de um artificialismo sufocante, miseravelmente datado. Nessas condições, o mais lógico seria dizer que no Brasil não há nacionalismo nenhum, que a tendência nacional é para uma cultura de ódio à Pátria. Essa cultura, de fato, existe, mas, como camuflagem e compensação psicológica, colocou-se em cima dela um tipo peculiar de falso nacionalismo, voltado não para os valores espirituais da história, mas para a geografia e o valor material do território. Ao desprezo por tudo o que de mais elevado os brasileiros criaram ao longo dos séculos faz contraponto o culto idolátrico das terras, do minério, do potencial hidrográfico e, mais recentemente, da “biodiversidade” – tudo isso acompanhado, é claro, do temor de que os estrangeiros nos roubem essas maravilhas. Expressão de uma mentalidade provinciana, deformada pelo materialismo mais vil, esse tipo de nacionalismo jamais poderia fomentar, nas almas que ele afeta, uma reflexão frutífera e realista sobre os problemas nacionais. Muito menos poderia alimentar, nelas, aquele tipo de vida intelectual superior que é necessário para que a classe dos formadores de opinião chegue a ter uma compreensão séria da posição do país na história política e espiritual do mundo. O nacionalismo brasileiro é apenas uma forma quase demencial de alienação da realidade. Esse gênero de deformidade mental aparece sobretudo quando a atividade das inteligências não é movida por um desejo sincero de conhecer a realidade, muito menos de elevarse espiritualmente, mas passa a refletir motivações menores, oportunismos de momento. A tendência nacional para uma forma degradada e impotente de nacionalismo, que já existia pelo menos desde a proclamação da República, veio a ser fortalecida por quatro oportunismos sucessivos: 1. Quando Stalin, na década de 30, ordenou que os Partidos Comunistas explorassem as tensões entre nações ricas e pobres, bem como entre diferentes grupos étnicos, dando-lhes o teor de "luta de classes", isto imediatamente gerou um falso nacionalismo de esquerda que se permitia depreciar todas as tradições nacionais, apenas odiando o "imperialismo americano" mais do que odiava a elas. A retórica gerada por esse tipo de nacionalismo fazia o possível para aviltar os heróis e símbolos nacio-

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nais, a religião majoritária que unificara o país, as Forças Armadas etc., exaltando, ao mesmo tempo, o "povo anônimo" que, significativamente, nunca aparecia simbolizado por honestos trabalhadores, mas por bandidos e prostitutas. 2. A Revolução de 30 e a ditadura Vargas buscaram implantar, em oposição a isso, uma imagem nacionalista rósea, de agência de turismo, dando aos comunistas ainda mais motivos de desprezo e chacota. 3. Novo empenho nesse sentido foi feito pelos governos militares entre 1964 e 1978, sobretudo na base da publicidade maciça sustentada por slogans de uma estupidez sem

(...) faz contraponto o culto idolátrico das terras, do minério, do potencial hidrográfico e, mais recentemente, da “biodiversidade” – tudo isso acompanhado, é claro, do temor de que os estrangeiros nos roubem essas maravilhas.


Divulgação

João Wainer/Folha Imagem

Macunaíma (foto no alto), de Mário de Andrade, retrata o caráter nacional com as feições mais abjetas e desprezíveis. Acima, os 'quadrilheiros' das Farc, que já dominam grande parte do nosso território e, através do Foro de São Paulo, governam o Brasil.

par. Um governo que fora elevado ao poder por um movimento de reação anticomunista absteve-se, vergonhosamente, de toda luta cultural contra o comunismo, buscando, ao contrário, desviar as atenções para um patriotismo postiço incumbido de superar por mágica as tensões ideológicas. 4. Após a redemocratização, muitos militares, sentindo sua classe acossada e humilhada pela mídia, buscaram alívio na exploração de um discurso nacionalista que os aproximasse da esquerda. Nada podia aviltar mais as Forças Armadas do que essa tentativa de seduzir seus inimigos que, por seu lado, nada cediam, mas continuavam diariamente, na mídia e nas

instituições de cultura, a mover guerra aberta contra a honra dos militares, recorrendo até ao expediente de acusá-los de crimes imaginários, impossíveis. Na revista de ESG sucediam-se artigos "anti-imperialistas" – muitos deles na base do alarmismo amazônico – que não se distinguiam em nada daquilo que se podia ler em publicações comunistas. Num círculo de oficiais nacionalistas, cheguei a ouvir o apelo de um conhecido líder esquerdista a que a antiga esquerda armada e os militares esquecessem suas antigas desavenças e se unissem num esforço comum contra "o imperialismo" e o "neo-liberalismo". Os aplausos que se seguiram foram a prova de que a honra militar era coisa do passado. Aplausos idênticos vi e ouvi de quase setecentos oficiais militares, no Clube da Aeronáutica, quando da apresentação do então candidato presidencial Luís Inácio Lula da Silva. O ressentimento militar pelo corte de verbas durante o governo Fernando Henrique tinha levado aqueles homens a cortejar o apoio daqueles que diariamente cuspiam na imagem das Forças Armadas e não davam um minuto de descanso aos acusados de “tortura”. Como é possível que um nacionalismo inspirado em oportunismos tão torpes e mesquinhos gere uma visão correta da realidade, um diagnóstico adequado da situação e a defesa eficaz dos interesses nacionais no quadro do mundo? Um nacionalismo genuíno ainda está para surgir no Brasil. Como ele é o pressuposto de uma verdadeira compreensão do problema amazônico, esta compreensão ainda vai demorar um pouco. No momento, até mesmo oficiais militares, excitados ante a perspectiva de um caso de amor com seus inimigos de ontem, estão mais preocupados com as bases americanas na Colômbia do que com os quadrilheiros das Farc que já dominam grande parte do nosso território e, através do Foro de São Paulo, governam o Brasil. Nunca houve um só caso de ocupação permanente de um país estrangeiro por tropas americanas. Mas há casos e mais casos de dissolução de soberanias nacionais por penetração insistente de tropas guerrilheiras, mesmo não tão equipadas, ricas e politicamente bem sustentadas como as Farc. A constância com que os nossos pretensos patriotas cedem tudo para o lado mais ameaçador e se intoxicam de alarmas contra perigos inexistentes é a prova mais evidente de uma alienação que torna o país cada vez mais fraco, mais indefeso contra os perigos reais.

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Quase não está sendo considerado que Zelaya planejou um referendo ilegal, contra uma decisão do Judiciário hondurenho e contrariando a constituição do país.

Honduras: a ponta do iceberg de um quadro complicado

Juan Carlos Ulate/Reuters

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Tomas Bravo/Reuters

A

remoção do presidente hondurenho Manuel Zelaya por uma intervenção militar abriu as portas para uma série de considerações, nem todas fáceis de serem encaradas ou analisadas, especialmente pelo fato de vivermos em tempos politicamente corretos, onde discursos demagógicos e retórica populista se impõem sobre os fatos concretos. Por exemplo, quase não está sendo considerado que Zelaya planejou um referendo ilegal, contra uma decisão do Judiciário hondurenho e contrariando a própria constituição do país, demonstrando que seus movimentos podiam ser tudo, menos bem intencionados. Ou que a mobilização internacional que se seguiu à sua deposição agrupou políticos que não possuem autoridade moral alguma devido à suas ligações com o totalitarismo – Daniel Ortega, Hugo Chávez, Evo Morales, Rafael Correa e a provecta liderança totalitária cubana. Contribuindo para tornar a situação ainda mais suspeita, temos a figura do deposto presidente hondurenho, Manuel Zelaya. Político até então considerado de direita, em-

presário, eleito com apoio da classe média e das elites, tinha o perfil do típico reacionário aos olhos das esquerdas. Entretanto, por uma soma de sede de poder e influência do ditador Hugo Chávez, Zelaya "pulou o muro", e resolveu seguir o figurino que tem sido adotado por várias republiquetas latinoamericanas. Dizendo-se defensor da democracia, insistiu na realização de um referendo popular para conseguir mudanças constitucionais, dentre as quais a possibilidade de reeleição ao cargo de presidente. O intuito disso, claro, era iniciar um processo de manipulação que levasse ao mesmo quadro que ocorreu na Venezuela, Bolívia e Equador, ou seja, perpertuação no poder. Para tentar entender o que está em jogo, vale a pena lembrar alguns fatos que hoje estão enterrados sob o maciço esquecimento da opinião pública nacional, mas que são de fácil comprovação. Inicialmente, a situação atual é um desdobramento lógico da atuação do Foro de São Paulo - FSP, organização que reúne as esquerdas radicais latino-americanas. Não é objeti-

Paulo Diniz Zamboni Formado em História, foi organizador do livro Conspiração de Portas Abertas, sobre o Foro de São Paulo, e é Editor do site www.midiaamais.com.br

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vo deste artigo tratar do FSP e para maiores informações sobre este, sugiro a leitura do livro Conspiração de Portas Abertas (Editora É Realizações, São Paulo, 2007), mas, de forma geral, o papel do Foro, fundado em 1990 com a participação decisiva do Partido dos Trabalhadores e de Luís Ignácio Lula da Silva, era o de manter viva a chama do socialismo radical, ou melhor, do comunismo de estilo cubano, então seriamente abalado com o desmoronamento da URSS. Após a vitória de Fernando Collor de Mello na eleição de 1989 - o mesmo Collor que hoje abraça o presidente Lula - a mensagem liberal de defesa da livre iniciativa, liberdades individuais, e tudo que is-

de direita" ao candidato petista, o sociólogo e ministro Fernando Henrique Cardoso, chegou a oferecer o cargo de vice-presidente ao petista em sua chapa. As duas vitórias do candidato social-democrata Fernando Henrique Cardoso, somadas à subserviência política cada vez maior de forças tradicionalmente consideradas como conservadoras, favoreceram as propostas socialistas no Brasil de tal forma que a chegada do PT ao poder era uma questão de tempo. De 1993 em diante, o PT, assumindo uma postura muito mais palatável ao grande capital e a variados grupos de in-

Oswaldo Riva/Reuters

O presidente deposto Manuel Zelaya era um político até então considerado de direita. Empresário, eleito com apoio da classe média e das elites, tinha o perfil do típico reacionário aos olhos das esquerdas.

so implica, que o novo presidente parecia defender, gradualmente entrou em parafuso, e após a queda do presidente Collor de Mello, também caiu em desgraça, associada à imagem de um político corrupto. Mais do que nunca o socialismo entrou na ordem do dia como alternativa aparentemente inevitável para as elites políticas brasileiras. Em meados de 1993, ocorreu um evento nos EUA, na Universidade de Princeton, chamado "Alternativas para a América Latina: Um painel dos candidatos presidenciais 19931994", envolvendo os candidatos de vários partidos de esquerda latino-americanos ao cargo de presidente da república em seus respectivos países. E o destaque foi o então candidato petista, Luís Inácio Lula da Silva. Este evento é pouco conhecido e divulgado, mas é sintomático que, após sua presença nele, Lula tenha começado a circular com maior desenvoltura entre as elites norte-americanas, situação que seria ampliada a partir de 1994, quando a vitória do candidato petista era dada como certa nas eleições presidenciais – época em que a "alternativa

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teresse, iniciou uma escalada rumo ao poder. Aparentemente essa escalada de alguma forma foi favorecida pela presença de Lula no evento em Princenton, o qual foi organizado por pessoas como o ex-militante comunista mexicano Carlos Castaneda, figura sempre presente na grande mídia e meios intelectuais norte-americanos, e que previu no começo da década de 1990, num insight notável, que em uma década "os governos da América Latina estariam nas mãos de partidos de esquerda". Essa explanação em linhas gerais sobre o cenário político brasileiro da década de 1990 ajudará na compreensão dos porquês de determinadas situações verificadas hoje, i.e., na política latino-americana, inclusive Honduras. Um ponto importante: e os EUA, ou melhor, o que as elites dirigentes americanas pretendem diante dos fatos que se apresentam? Um exemplo de organização norte-americana interessada nos rumos da política latino-americana é o Diálogo Interamericano. Em face da recente crise em Honduras, em um artigo


publicado em seu site, o DI destaca a preocupação com os rumos dessa situação, e chama a atenção para o fato de que as indefinições da administração Obama sobre o ocorrido estavam levando o país a fazer o jogo de inimigos declarados dos EUA, como o ditador venezuelano Hugo Chávez (para maiores detalhes ver http://www.thedialogue.org/page.cfm?pageID=32&pubID=2046). Apesar disso, fica a dúvida se a aparente confusão e incerteza da administração Obama em relação aos fatos em Honduras são mesmo resultado do despreparo de Barack Obama, ou faz parte de uma política oficial que, de algum

que hoje endossa a volta do deposto presidente Zelaya ao poder -, El Salvador foi arrasado por uma guerra civil patrocinada por Cuba e a URSS e países como Honduras e Guatemala enfrentavam organizações radicais de esquerda. Considerando que a busca pela criação de blocos de poder regionais é uma tendência e dado o quadro de confusão e despreparo das tradicionais elites latino-americanas, especialmente as brasileiras, não seria de se duvidar que um projeto de poder minimamente embasado, como parece ser o do ditador venezuelano, lograsse sucesso. Seria lógica a busca pelo apoio de potências como a Rússia, interessada em conseguir merca-

Tomas Bravo/Reuters

Fica a dúvida se a aparente confusão e incerteza da administração Obama em relação aos fatos em Honduras são resultado do despreparo, ou faz parte de uma política oficial. Na foto, o presidente interino, Roberto Micheletti.

modo, poderia vir a ser interessante para o grupo que atualmente ocupa a Casa Branca? O analista norte-americano Cliff Kincaid, editor-chefe do site AIM - http://www.aim.org/ - dedicado a análises políticas, chama a atenção para as afinidades existentes entre as agendas de Obama e Chávez. Kincaid alerta inclusive para o fato de que uma diretriz da ONU, para a qual contribuíram decisivamente organizações internacionalistas, poderia ser usada como justificativa de uma eventual intervenção militar internacional em Honduras (para maiores detalhes, leia http://www.midiaamais.com.br/eua-e-geopolitica/853-cliff-kincaid-). Para quem acredita que as opiniões de Kincaid são exageradas, é importante lembrar que foi um presidente americano eleito pelo Partido Democrata, Jimmy Carter, o responsável direto por permitir que a AL, especialmente a América Central, entrasse numa espiral de violência revolucionária na década de 1980, época em que a Nicarágua caiu em mãos de uma ditadura comunista – liderada, aliás, pelo mesmo Daniel Ortega

dos, com uma poderosa indústria bélica e grande know-how em termos de negócios obscuros e autoritarismo. Antes que alguém pense que isso são "teorias da conspiração", ou que os EUA jamais deixariam que tal situação acontecesse em seu quintal, é sempre bom lembrar os exemplos históricos em situações parecidas. Os governos e muitos membros do establishment americano sempre tiveram ótimas relações com ditaduras socialistas, desde os tempos da URSS, passando pela Cuba castrista e chegando à China atual. O que menos importa para essas elites é a defesa de uma suposta ideologia conservadora ou liberal (de estilo europeu). O que realmente conta são os negócios e os mercados. A própria vitória de Barack Obama, até há poucos anos um obscuro militante de esquerda dentro do Partido Democrata, demonstra que a política americana pode estar, ela própria, passando por um período de mudanças radicais, onde o populismo esquerdista está se tornando uma alternativa antes impensável.

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Diante da interferência venezuelana nos acontecimentos recentes em vários países latino-americanos, com Hugo Chávez lançando mão das receitas do petróleo para financiar políticos, mídia e grupos armados, somente uma elevada dose de ingenuidade - ou cumplicidade – poderia levar a acreditar que os acontecimentos desencadeados por Manuel Zelaya foram fruto de sua exclusiva autoria. Favorecido pelas altas receitas provenientes da exportação do petróleo e atuando agressivamente nas esferas política, econômica e militar, Chávez ocupou um espaço que seria, naturalmente, do Brasil.

sendo colocado de lado, surgindo a UNASUL, um projeto de inspiração chavista, onde o ditador venezuelano exerce um papel mais ativo e preponderante. Diante disso, nota-se que o papel desempenhado pelo governo petista tem sido duplo: de um lado, faz as vezes de "moderado" , para ser aceito como um contraponto aos desmandos chavistas – os quais o governo petista não só não condena, como justifica, afirmando que são "problemas internos da Venezuela", ou qualquer outra desculpa frágil – e de outro, funciona como fonte financiadora indireta ou direta, da agenda revolucionária – além de expropriações de empresas brasileiras, há

Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

Para o atento observador, entretanto, a "moderação" do governo Lula é apenas uma fachada muito frágil que tenta esconder as simpatias pela agenda chavista e o radicalismo socialista que se apossa do continente.

Chegamos assim à outra peça importante do quebra-cabeças que está sendo montado: o papel do Brasil. Um país de dimensões continentais, tradicionalmente adepto de uma boa diplomacia e que sempre salvaguardou o interesse nacional de forma inteligente, desde a ascensão da administração petista, tem sido, na melhor das hipóteses, um autêntico tolo em termos diplomáticos, e, na pior, um financiador de uma agenda revolucionária, permitindo que empresas nacionais, estatais e particulares, sejam nacionalizadas ou tornem-se alvo de pedidos de indenizações de governos da Bolívia e Equador, fortemente ligados a Chávez. Mais recentemente, houve o caso do governo paraguaio, que conseguiu renegociar em bases tremendamente desvantajosas para o contribuinte brasileiro, e sem qualquer justificativa factível, aumentos nos valores pagos pela energia elétrica de Itaipu. Outro exemplo do fracasso do governo brasileiro é o MERCOSUL, outrora um objeto de cuidadosos esforços da diplomacia brasileira que foi aos poucos

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ainda os financiamentos diretos para projetos dos governos venezuelano e cubano. Para o atento observador, entretanto, a "moderação" do governo Lula é apenas uma fachada muito frágil que tenta esconder as simpatias pela agenda chavista e o radicalismo socialista que se apossa do continente – um exemplo disso é que a diplomacia brasileira endossou todas as posições de Zelaya e dos países ligados a Chávez durante as tentativas de moderação da crise hondurenha promovidas pelo presidente da Costa Rica, Óscar Árias. Sempre lembrando: o PT e Lula foram elemento chave no surgimento do Foro de São Paulo e o socialismo radical defendido pelo FSP está impregnado nos métodos e na agenda secreta "não tão secreta" do partido, como um terceiro mandato para o presidente Lula e o controle da mídia, para citar dois exemplos notórios. Considerando o tamanho do Brasil, o seu potencial econômico e dinamismo produtivo, é fácil imaginar que o fato de ser administrado por um governo que é, ou finge ser, incompetente quando se trata de defender os interesses eco-


nômicos e estratégicos nacionais, sempre favorecendo governos ou organizações que fazem parte do esquema revolucionário chavista, abre perspectivas quase infinitas para os grupos revolucionários. Isso favoreceria ainda mais um quadro político que é uma mescla dos velhos esquemas de poder populistas – Estado forte, paternalista e intervencionista – somado a um componente socialista radical – expropriações, aparato repressivo, controle da mídia, militarização da sociedade, discurso de luta de classes e repressão interna -, fortalecendo um modus operandi que está sendo exportado para todos os países latino-americanos, em maior ou menor escala. Países que não estão entrando facilmente na órbita desse esquema, começam a sofrer todo o tipo de pressão diplomática e/ou militar. O Peru, após anos de relativa tranqüilidade interna, tem enfrentado problemas com "questões indígenas" e o ressurgimento da violência de organizações comunistas armadas que haviam sido praticamente eliminadas. É impossível não perguntar: A quem interessa a desestabilização peruana? A Colômbia, no limiar de um sucesso total contra as guerrilhas que há décadas afligem o país, liderada por um presidente que não se encaixa no perfil chavista/lulista, sofre uma agressiva campanha de desinformação via mídia – aliás, aí entra outro componente importante na atual caminhada rumo ao socialismo radical, a desinformação via imprensa, seja por razões ideológicas ou mera venalidade. O governo colombiano tem sido alvo de pressões devido a acordos militares com os EUA – que, aliás, existem há anos, sem que tenham causado maiores problemas – surgindo uma situação sui generis: a Venezuela, liderada por um ditador, assume a liderança dos países sul-americanos e manifesta "preocupação

com as bases americanas na Colômbia" e fala em "guerra", e não se faz a pergunta óbvia: qual a moral do governo venezuelano - que fornece armas à guerrilha colombiana e agride cotidianamente o que ainda resta de liberdade no país - para ser o porta-voz de países que se dizem preocupados com a democracia? Outro ponto: a quantidade de armas compradas pela Venezuela nos últimos anos é tão grande que se uma pequena parte delas for repassada às FARC – a principal guerrilha colombiana -, elas podem ressurgir como força militar perigosa e desestabilizadora, levando o conflito a um impasse que forçaria o governo colombiano a negociar, abrindo as portas de uma vitória política para as FARC. Com apoio bélico e reconhecimento de um governo como o de Hugo Chávez e de seus dependentes equatorianos e bolivianos, haveria a concretização de tal situação. (A este respeito, recomenda-se a leitura do livro Uma Democracia Sitiada, Bibliex, 2006. A resenha encontra-se em http://www.midiaamais.com.br/resenhas/890-uma-democracia-sitiada). Enfim, a situação em Honduras é a somatória de todo este quadro anteriormente descrito. É inegável que de alguma forma, a reação dos militares, da justiça e da população hondurenha foi um duro golpe para esses interesses, ainda que numa escala diminuta e localizada. Porém, a grande pergunta é: conseguirão os hondurenhos resistir a uma agenda tão difusa e poderosa? Pelas últimas informações, a situação se encontra num impasse, embora as negociações prossigam, aparentemente rumo a antecipação de eleições. E, finalmente, qual a influência desse quadro sobre a política interna brasileira, onde muitos dos elementos encontrados em todos os acontecimentos recentes na América Latina estão também presentes? Convido o leitor a refletir sobre isso.

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Dez tendências do varejo no século

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Sergio Kulpas

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1- Programas de sustentabilidade

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ecididamente, a maior tendência para o varejo neste começo de século são as iniciativas de sustentabilidade e responsabilidade sócio-ambiental adotadas pelas grandes redes de varejo. O ambicioso programa anunciado recentemente pelo Walmart pretende estabelecer um "índice ambienDivulgação tal": uma etiqueta que será fixada em todos os produtos vendidos na rede, de camisetas a aparelhos eletrônicos, trará todas as informações sobre origem, prod u t o r, c o n s u m o d e energia, impacto ambiental e medidas de responsabilidade social. Outras redes dos EUA e Europa estão seguindo o mesmo caminho, e o mesmo ocorre no Brasil, como as iniciativas anunciadas pelo grupo Pão de Açúcar. O varejo é a atividade humana que envolve o maior número de pessoas (empregadas direta ou indiretamente), é o destino final de boa parte da produção industrial e agrícola do planeta e é o setor que mais usa novas tecnologias. O fato de grandes redes de varejo lançarem programas amplos de sustentabilidade indica acima de tudo que as empresas estão mais

atentas às preocupações de seus consumidores. Bombardeados há anos por notícias sobre degradação ambiental, aquecimento global e práticas socialmente irresponsáveis, os clientes se mostram agora uma força determinante em novas políticas do varejo. Através da internet, os consumidores se organizam muito facilmente para boicotar empresas e produtos que não demonstrem preocupação com o meio ambiente ou com as comunidades onde atuam. E essa tendência só tende a se intensificar nos próximos anos. Somente as empresas mais responsáveis terão vantagens estratégicas em um ambiente cada vez mais competitivo, além dos tradicionais fatores de preço e comodidade. Essa grande tendência embute a valorização acentuada dos produtos orgânicos, cultivados com baixo impacto ambiental e por comunidades sustentáveis. Cada vez mais o varejo é alvo de críticas por oferecer produtos que só consideram preço e comodidade. Os consumidores querem informações sobre a origem e os métodos de produção, e quais são as práticas ambientais e trabalhistas de cada fornecedor. Em várias pesquisas recentes, a maioria dos consumidores se mostrou disposta a pagar um pouco mais por produtos ambiental e socialmente corretos.

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2- Máquinas de autoatendimento

Judy se pergunta se essa tendência é uma praticidade moderna ou uma tragédia causada pela tecnologia. A cordialidade e a hospitalidade do varejo correm risco de extinção em uma sociedade de eremitas reclusos? A pressa da vida urbana e jornadas de trabalhos incomuns contribuem para a desumanizarão do varejo?

Nas grandes cidades, o ritmo apressado das pessoas favorece os comerciantes que oferecem soluções tecnológicas para as compras. A indústria do autoatendimento tem crescido a passos rápidos, criando uma grande variedade de opções em máquinas e sistemas que Divulgação vendem mercadorias sem a pre3- Mídias digitais indoor sença de um funcionário humano. A crise financeira nos Estados UniPor uma série de fatores – desde a dos e Europa contribui para essa crise financeira até a Lei Cidade Limevolução acelerada. pa na cidade de São Paulo – as empreRecentemente, a rede Standard sas de varejo estão investindo cada Hotels fechou uma parceria com a vez mais no ponto de venda como camarca Quiksilver para vender uma nal de mídia. A instalação de TVs corlinha completa de roupas de banho porativas, em que o conteúdo é deseem máquinas automáticas convenhado sob medida para o público nientemente instaladas ao lado das consumidor, vem ganhando espaço. piscinas dos hotéis, em Nova York, Grupos como a Leo Madeiras e os resLos Angeles e Miami. taurantes Frango Assado lançaram O mercado de consumo de luxo suas redes internas de TV, chamando mostra que é capaz de se reinventar a atenção para ofertas, itens em promesmo em tempos de crise. Inaumoção, notícias gerais, meteorologia, gurada recentemente na loja Fred agenda cultural e outras informaSegal de Los Angeles, a U*Tique é a ções. Segundo a holding IMC, que primeira máquina automática e incomprou a rede Frango Assado no Divulgação terativa para "as pequenas indulano passado, a TV interna foi uma gências e emergências da vida". A grata surpresa. A empresa informa máquina traz uma seleção de apeque fatura R$ 25 mil por mês com nas 50 produtos de luxo, selecionaanunciantes – que por sua vez regisdos por especialistas em beleza, tram aumentos nas vendas. tendências e inovação. Esses espeO Walmart também opera uma cialistas agem como "curadores de rede própria de TV, com bons resulconsumo". Os consumidores potados na divulgação de ofertas e prodem aprender mais sobre qualquer moções. As telas são espalhadas em produto clicando na tela da máquipontos estratégicos das lojas, e atinna, que oferecem listas de ingregem o público justamente no modientes, vídeos e dicas de uso. A mento mais crítico para o comermáquina tem telas sensíveis ao tociante – durante as compras. que, iluminação com LEDs e um Farmácias, academias de ginástica, mecanismo que traz os produtos de livrarias, shopping centers, terminais uma área segura direto para a mão de transporte e até trens e ônibus estão do comprador. usando redes internas de TV para inOutro setor de vanguarda em formar seus consumidores – e anunautoatendimento são as lojas de ciar produtos. Segundo dados da AsMáquinas de autoatendimento estão conveniência e postos de combussociação Brasileira de Shopping Cenentre as tendências para este século tível. Uma pesquisa do IHL Conters (Abrasce), o merchandising nos (foto no alto), assim como mídias sulting Group indica que mais de empreendimentos teve um aumento dentro da loja, como TVs (acima). 94% dos consumidores nos EUA já de 46,8% em 2008, na comparação usaram algum tipo de sistema de com o ano anterior. self-checkout, especialmente em Essa tendência fez surgir um nicho mercadinhos e postos de gasolina – por sinal, vários postos de mercado altamente lucrativo, com novas empresas e agências de gasolina nos EUA só funcionam com pagamento direto especializadas. Somente na cidade de São Paulo há hoje pelo mena bomba de combustível. Uma outra pesquisa feita pela nos uma dúzia de empresas dedicadas exclusivamente à mídia Self-Service World indica que 37% dos consumidores de indoor. O barateamento dos equipamentos permite que mesmo mercadinhos preferem os sistemas de autoatendimento empresas de pequeno porte possam instalar grandes telas de "sempre" ou "quase sempre". plasma, ou participar de uma rede em regime de comodato.

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Segundo informa o Retail Information Systems, o mercaco anos depois, o programa não exibe o sucesso planejado pela do de sinalização digital do varejo nos Estados Unidos pode empresa – somente uma pequena parcela dos grandes fornecrescer 33% este ano, apesar da crise. O mercado de sinalicedores cumpre o mandado do Walmart. O caso é exemplar pazação envolve hardware, software, instalação e manutenra a adoção da tecnologia pelo varejo mundial. ção de equipamentos eletrônicos que cada vez mais substiOs problemas são diversos: a transmissão de dados entre tuem os velhos cartazes e banners estáticos. Está se tornanas etiquetas e os equipamentos de leitura mais difícil em cerdo norma no varejo o uso de painéis tos ambientes, através de metais ou Andrei Bonamin/Luz eletrônicos e telas de plasma e LCD de líquidos e a leitura em alta veloem estratégias de promoção e marcidade tem se mostrado abaixo da keting dentro das lojas e nos espaqualidade esperada. Além disso, ços ao redor. apesar das iniciativas globais de paA chamada "digital signage" (DS) dronização, as empresas que proé uma forma de comunicação baseaduzem esses equipamentos (etida em displays eletrônicos. Geralquetas, scanners e softwares) ainda mente é instalado em espaços públinão atingiram um consenso, o que cos que possuem boa frequência de dificulta os investimentos dos varepessoas e são utilizados para entrejistas. Acima de tudo, o preço inditer, informar ou anunciar. O DS é vidual de uma etiqueta RFID ainda uma forma de publicidade "out-ofé muito alto, em comparação com o home", na qual o conteúdo e as mencódigo de barras padrão. sagens são exibidos em sinais digiEssas dificuldades têm forçado o tais, com o objetivo de entregar setor a se adaptar. O varejo recomensagens orientadas para locais nhece o valor de uma etiqueta eleespecíficos em determinadas ocatrônica avançada, que pode conter siões, como elevadores, lojas de deum grande número de informações partamentos, ônibus etc. Dessa masobre o produto e seu histórico desneira, oferece retorno superior sode a fabricação até o ponto de venbre o investimento em comparação da. Como a adoção universal ainda com os meios tradicionais, princideve demorar, o comércio testa o palmente impressos, pois possui uso de RFIDs em operações espeO varejo deve adotar sistemas de um custo-benefício melhor. ciais, particularmente em itens de verificação biométrica, como A China apresenta números immaior valor. leitores de digitais e de íris. pressionantes sobre o uso deste tiA curto e médio prazos, as etipo de comunicação. Os chineses quetas inteligentes serão usadas exibem uma movimentação de por lojas de grife, nos setores de mais de US$ 10 bilhões somente nessa área, segundo dados vestuário, jóias, artigos eletrônicos e outros produtos onde o oficiais, em três empresas listadas na Nasdaq (Focus Media, valor das mercadorias compensa a implementação de uma AirMedia e VisionChina). nova tecnologia de controle. O conteúdo exibido nas telas de digital signage pode vaAnalistas acreditam que dentro de uma década a tecnologia riar de simples textos a imagens de vídeos "full-motion", com estará madura o bastante (e com preços razoavelmente baixos) ou sem áudio. Alguns operadores de redes de digital signage, para ser adotada pelo varejo como um todo. e empresas que já usam o serviço (principalmente na área de Uma das maiores promessas dos RFIDs é que essas etivarejo), comparam o uso deste tipo de comunicação aos caquetas com chips permitiriam a criação de uma "internet de nais de televisão, mostrando entretenimento e conteúdo inobjetos", onde cada mercadoria poderia ser acompanhada formativo intercalados com publicidade. em qualquer momento de seu ciclo de produção e distribuição, até o consumidor final. 4- Etiquetas inteligentes 5- Identificação biométrica Inventado ainda nos anos 1930, o código de barras se tornou uma tecnologia de sucesso somente quando foi adotado pelos Uma forte tendência desta década é a adoção de sistemas supermercados dos EUA na década de 70. Da mesma forma, as de verificação biométrica pelo varejo. O reconhecimento de etiquetas com microtransmissores de rádio (RFIDs) só terão impressões digitais, de palma e até de íris. O objetivo é agisucesso absoluto quando forem adotadas em larga escala pela lizar o processo de pagamento das compras, de forma segura cadeia de suprimento e distribuição do varejo. – o cliente preenche um cadastro, informando dados pessoais Em 2004, o Walmart lançou um programa ambicioso de e conta para débito e a autorização é feita mediante uma cheRFIDs, exigindo que seus maiores fornecedores incluíssem as cagem biométrica. Teoricamente, o risco de fraude em sisteetiquetas eletrônicas nos paletes e caixas de mercadorias. Cinmas assim é praticamente zero.

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Mesmo assim, é necessário vencer a resistência do consumidor em relação a esse tipo de tecnologia. Muitos consumidores, especialmente os mais velhos, se mostram temerosos em relação à verificação biométrica, que consideram invasiva. O argumento de um sistema praticamente à prova de fraude ainda tem um longo caminho a percorrer para convencer a maioria dos clientes. 6- "e-money': os consumidores prontos para o consumo via celular

Em países da Europa e nos Estados Unidos, há uma corrente que valoriza os produtos produzidos ou cultivados localmente (em um raio de 100 km do ponto de venda). Em muitos lugares, os mercados de itens produzidos localmente conseguem superar os mercados tradicionais em vendas. O consumidor aprendeu a ver como um valor as mercadorias produzidas de modo "simples", sem o uso intensivo de mecanização e suplementos químicos, e sem o custo ambiental do transporte de longa distância. As grandes redes de varejo perceberam essa tendência e buscam se adaptar (vide o caso do Walmart, Carrefour e Pão de Açúcar, que lançaram programas de sustentabilidade que valorizam os produtos locais). A tendência vai contra a massificação das ofertas, que é vista como vilã no ambiente do varejo. Variedades locais, ofertas locais, pratos da região e produtos da estação são muito valorizados. É interessante notar que essa visão é completamente oposta à ideia de economia de escala na produção e distribuição, que era vista como prova de eficiência até meados dos anos 90. Crises ambientais e financeiras mudaram a mentalidade do consumidor, e as empresas de maior sucesso foram as primeiras a abraçar essa nova mentalidade.

Segundo um estudo recente da Harris Interactive, os consumidores dos EUA estão cada vez mais confortáveis com a ideia de comprar produtos através de aparelhos móveis, como celulares e smartphones. A pesquisa aponta que os jovens e os homens são os consumidores mais inclinados a usar essa tecnologia para fazer compras. A pesquisa foi encomendada pela empresa de segurança de cartões de crédito Billing Revolution. A Harris entrevistou 2.029 adultos no final de abril, dos quais 1.883 possuíam um telefone móvel (93%). Cerca de 45% dos consultados disseram que acham as compras via celular "relativamente seguras", enquanto 26% acham o meio "totalmente seguro". Os jovens parecem mais dispostos a fazer 8- Consumidores Em países da Europa e nos EUA, compras pelo celular: 59% no poder (blogs e os consumidores valorizam dos entrevistados na faixa twitter) mais os produtos locais. entre 18 e 34 anos disseram achar seguras as comNos Estados Unidos, pras por celular, compaque os varejistas e grandes rado com apenas 34% da fabricantes estão cada vez faixa acima de 55 anos. E mais atentos aos blogs cria50% dos homens têm essa dos por consumidores desopinião, comparado com de o início da crise financei39% das mulheres. ra como um meio de adapOs representantes da tar suas estratégias de venBilling Revolution acreda a uma nova realidade no ditam que a pesquisa inconsumo. Melissa Garcia, dica que o m-commerce que mantém o blog Consudeve crescer consideramerQueen, tem 30 mil leivelmente no futuro prótores mensais – seu estilo ximo, especialmente com direto e irônico é um dos a nova geração de smartatrativos do site. Erin Chaphones (como o iPhone se é outra blogueira que esda Apple e outros). creve o site $5 Dinners, cujo Divulgação No Japão, o uso de cefoco são refeições que cuslulares como meio e tectam no máximo 5 dólares. nologia de pagamento já é uma realidade cotidiana. As opeErin começou a escrever inspirada na necessidade de alimentar radoras de celulares do país fecharam acordos com uma amsua família em tempos de cinto apertado – ela tem dois filhos, de pla gama de varejistas: hoje é possível usar o celular como for2 e 3 anos. Além de darem dicas sobre ofertas e descontos, "mães ma de pagamento em lojas, restaurantes, máquinas blogueiras" como Melissa e Erin usam seus blogs para reclamar automáticas e até meios de transporte como ônibus e trens. de produtos caros, de promoções mal direcionadas, de ofertas enganosas ou frustrantes. E as empresas estão lendo essas mensa7- Local, local, local gens com enorme atenção e até preocupação. No atual período de recessão, esses blogs escritos por doAs preocupações dos consumidores com o meio ambiente, nas de casa e consumidores comuns são o termômetro mais com o frescor dos produtos e com os gastos nas compras alisensível dos erros e acertos dos varejistas e marcas de consumentam a tendência de localização na produção e no varejo. mo. Empresas como Walmart, Procter & Gamble, Gap, Old

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Navy e várias outras estão dedicando tempo e pessoal para acompanhar essa explosão de blogs de consumidores, e tentar oferecer soluções e respostas para as reclamações mais frequentes. Os blogs e a explosão do Twitter deram um megafone para os consumidores, além de permitir a rápida união em torno de temas e práticas. As empresas mais conscientes monitoram constantemente a blogosfera e os sites pessoais, para registrar opiniões (favoráveis ou contrárias) a respeito de suas marcas e produtos.

cantes terão de se adaptar a esse novo consumidor – reduzindo preços, oferecendo linhas mais econômicas de produtos e criando estratégias para atrair esse cliente mais relutante em separar-se de seu dinheiro. 10 - "Crowdsourcing"

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Uma tendência importante para o consumo no novo século é a chamada "crowdsourcing", que pode ser traduzida livremente como "a opinião popular". Muitas empresas, fabricantes e varejistas estão usando o poder da internet para 9- Consumo pós-crise pedir a opinião dos consumidores na hora de lançar um novo produA recessão nos EUA causou a pert o , p ro m o ç ã o o u a t é m e s m o o da de emprego para 5,7 milhões de layout de uma loja. pessoas, enquanto 16% dos assalaGrandes marcas (como Gillette, riados sofreram redução nos salários Coca-Cola, Kraft e Unilever) estão Melissa Garcia mantém o blog (de acordo com dados do Bureau of usando as mídias sociais e blogs coConsumerQueen, que possui Labor Statistics). A situação finanmo ponto de partida para o desen30 mil leitores mensais. ceira mais difícil está causando granvolvimento de novos produtos. As des mudanças nos hábitos de consuempresas, antes temerosas diante de mo: as pessoas gastam menos diprojetos desse tipo, apostam cada nheiro com roupas novas, deixam de comer em restaurantes, vez mais na participação coletiva para criar um produto ou sercancelam assinaturas de TV a cabo e fazem por conta própria viço feito sob medida para o gosto dos consumidores. tarefas que antes eram serviços contratados. São atitudes esTrata-se de uma especialização da produção e atendimenperadas e normais, diante de um orçamento mais apertado. to, baseada na votação via web. As empresas que consultam Porém, as empresas de varejo e os fabricantes estão preocuseus consumidores a respeito de suas iniciativas ganham pados que a crise cause um efeito psicológico de grande duração ainda o respeito dos clientes. nos consumidores, que perdure mesmo depois do final da recessão. A frugalidade forçada pela falta de dinheiro pode se tornar uma atitude permanente. Varejistas como Home Depot e Whole Foods e grandes fabricantes/anunciantes como a Procter & Gamble estão preocupados com o declínio nas vendas, especialmente de itens mais caros. A.G. Lafley, chairman da P&G, disse no final de maio que acredita que boa parte das vendas não deve se recuperar no futuro, porque o consumidor mudou seu padrão de compras. O consumidor está usando mais a internet (blogs e sites sociais em particular) para se informar sobre ofertas e produtos mais baratos, e planeja melhor suas compras. A percepção da indústria é que a recessão fará surgir um consumidor mais prudente e econômico, com O crowdsourcing, menos inclinação para compras de ou a opinião popular, impulso e mais cauteloso com o carvai ganhar espaço. tão de crédito. Os varejistas e fabri-

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José Maria dos Santos

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uem já teve opor tunidade de cruzar o Atlântico em voo diurno, certamente viu com agrado lá de cima, a 35 mil ou 40 mil pés de altura, as ilhas do arquipélago do Cabo Verde ou da Madeira, com seu rendilhado de estradinhas castanhas cortando paisagens verdes, emoldurado pelo mar. Nessa aerovia, em que o avião, saindo na altura de Fortaleza aponta seu nariz em linha reta para a quina da península ibérica, há um terceiro grupamento de ilhas que quase escapa ao olho nu. Na verdade, até mesmo representadas nos mapas, elas são tão diminutas que mal sugerem haver alguma coisa por ali. Trata-se de uma formação a 627 km de Fernando de Noronha, que continuaria indefinidamente desconhecida por nós se não fosse o acidente com o Voo 447, da Air France, na noite de 31 de maio. Na falta de referência melhor para situar geograficamente aquela tragédia, o noticiário citou-a a exaustão. Nesse momento os brasileiros passaram a saber da existência do arquipélago de São Pedro e São Paulo, e, particularmente, que lhes pertencia. Em princípio, o patrimônio não é encorajador. Consta de 10 ilhas que não mereceriam tal nome se não se enquadrassem na clássica definição que aprendemos na escola:

"uma porção de terra cercada de água por todos os lados". Terra é o que menos se encontra ali, algo perfeitamente explicado pelo regime de ventos que varre sem parar os paredões rochosos, nada deixando assentar. Esta circunstância permitiu desenvolver em alguns pontos mais protegidos apenas o simulacro de uma vegetação rala e rasteira, que lembra a fadiga estéril dos desertos. Mas é um engano supor que o ciclo da vida se esqueceu de passar por ali. Ao contrário, a Natureza criou um caprichoso ecossistema, que tem como epicentro aqueles penedos escurecidos. Por isso, convém falar deles. Um geólogo diria que são frutos de soerguimentos tectônicos iniciados provavelmente há 12 milhões de anos. Brotaram, portanto, do fundo do mar. Exploradores que descessem em um batiscafo até sua base, fariam uma submersão de aproximadamente quatro quilômetros, atestando sua impressionante dimensão. Por sua vez, um biólogo saberia explicar que esse longo afloramento é rico em microorganismos conhecidos como plâncton – o primeiro degrau da vasta cadeia alimentar que move os oceanos – fenômeno típico das ilhas em geral. Não por acaso aqueles imensos blocos de pedra são ponto de passagem dos peixes, em especial de


O pequeno arquipélago de São Pedro e São Paulo, situado a meio caminho da Europa nas águas do Atlântico, é uma ponta extremada do território brasileiro pouco conhecida, mas que ganhou fama com a tragédia do Voo 447. duas espécies que são cobiçadas comercialmente – as cavalas e os atuns. Neste capítulo, a posse do arquipélago e seus arredores começa a ficar interessante para o Brasil. Acrescente-se suas possibilidades praticamente inesgotáveis de pesquisas científicas, conforme já havia percebido o naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882). Seduzido por potencial do lugar, ele fez fundear ali o HSM Beagle exatamente no dia 16 de fevereiro de 1832, durante sua célebre viagem de pesquisas pelo mundo para comprovar as teorias evolucionistas revolucionárias que havia arquitetado. Some-se também seu posicionamento estratégico que estendia Atlântico adentro o braço do Brasil , fazendonos fantasiar – trata-se de uma anedota, é claro - a doutrina do "Mare Nostrum", à semelhança do que o império romano fazia com o Mar Mediterrâneo. Na verdade, nós começamos a lhe deitar os olhos compridos em 1930. Naquele ano, uma expedição comandada pelo capitão-de-fragata Álvaro Nogueira da Gama foi levantar um farol na Ilha Belmonte, que é a maior delas, com 5.380 metros quadrados. A providência era oportuna, pois o arquipélago foi descoberto em 1511 devido àquele que seguramente se tornou seu primeiro naufrágio: uma das seis caravelas da frota comandada pelo capitão-mor Garcia de Noronha, a caminho das Índias, colidiu com uma das rochas e foi a pique. ConFotos: Eduardo Nicolau/AE

tudo, por trás do nosso bom propósito de auxiliar aos navegantes, havia a intenção de plantar a presença ali. O projeto foi provisoriamente interrompido com a eclosão da Revolução de 30 – que levou Getúlio Vargas ao poder – em outubro. Mas em 1931 a construção já estava de pé. No entanto veio abaixo dois anos depois, vítima de um dos frequentes abalos sísmicos que assolam o local, como que desafiando nosso velho orgulho de que o Brasil não tem terremotos. O incidente arquivou o plano de ocupação. A ideia voltaria com vigor em 1982, ocasião que a ONU adotou formalmente as decisões da Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos do Mar. O documento, assinado pelo Brasil e ratificado em 1988, entre outras determinações, estabelecia a grande novidade intitulada Zona Econômica Exclusiva (ZEE). Através dela os países costeiros poderiam estender a exploração das riquezas marinhas em uma faixa de 200 milhas, tomando como referência o eixo da sua costa. Mas ressalvava no seu artigo 121, parágrafo 3º que "os rochedos que por si próprios não se prestam à habitação humana ou à vida econômica não devem ter Zona Econômica Exclusiva". Urgia, portanto, promover a ocupação humana a toque de caixa e em caráter permanente para estender a ZEE em torno das ilhas. Lá voltou a Marinha em 1995 para esse fim, levando o pro-


O arquipélago de São Pedro e São Paulo foi descoberto em 1511 devido àquele que seguramente se tornou o primeiro naufrágio em território brasileiro: uma das seis caravelas do capitão-mor Garcia de Noronha, a caminho das Índias, colidiu com uma das rochas e foi a pique. Em 1930, uma expedição construiu um farol na Ilha Belmonte, que é a maior do arquipélago.

jeto de outro farol, na mesma Ilha Belmonte. Atualmente ele está em pleno funcionamento, construído em fibra de vidro. Mede seis metros de altura e possui uma seção circular com um metro de diâmetro para lançar seu facho de luz protetor. Simultaneamente corriam aceleradas as obras da Estação Científica, que foi inaugurada em 1998. Recebeu geradores e baterias para fornecer energia; um equipamento de dessalinização da água do mar; abrigo para cilindros de oxigênio e gás e um medidor do movimento das ondas. É uma construção modesta, com 45 metros quadrados, dotada de uma cozinha, sala de refeições, centro de comunicação, banheiro, varanda e um quarto para acomodar quatro pessoas. Não poderia ser de outra forma, considerando-se os 5.380

metros quadrados disponíveis na área. No fundo, Belmonte é apenas um lajedo à flor d’água na imensidão do Atlântico, que celebra os limites desses isolamentos remotos que parecem marcar o fim do mundo. Esta circunstância talvez explique a razão de os pesquisadores das várias ciências – quatro de cada vez – se revezarem a cada 15 dias nas suas estadias. Acima desse período, a tolerância humana ao isolamento extremo invadiria a esfera dos seres especiais como Robson Crusoé. Ou o navegador Amir Klink, para não ficarmos apenas na literatura. Em l989, Klink ancorou por sete meses, sozinho, na Antártida. Sua resistência à solidão é um mistério. É possível que às vésperas de voltar, os pinguins lhe tenham dado um inesquecível bota-fora.


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