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ALGARVE INFORMATIVO Revista semanal - 4 de abril, 2020

GRAFONOLA VOADORA & NAPOLEÃO MIRA MEMÓRIAS DO FESTIVAL DO CONTRABANDO ENSINO À DISTÂNCIA NO COLÉGIO INTERNACIONAL DE VILAMOURA 1 ALGARVE INFORMATIVO #242 «OUTROS» ENCONTROS DO DEVIR | UM DIA MUNDIAL DO TEATRO DIFERENTE


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34 - Festival do Contrabando, cancelado, mas não esquecido

8 - Grafonola Voadora & Napoleão Mira lançam «Lado Nenhum» ALGARVE INFORMATIVO #242

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20 - Ensino à distância no Colégio Internacional de Vilamoura

OPINIÃO 106 - Paulo Cunha 108 - Paulo Bernardo 110 - Mirian Tavares 112 - Ana Isabel Soares 114 - Adília César 116 - Fábio Jesuíno 118 - David Martins 120 - Antónia Correia 122 - Nuno Campos Inácio

48 - Um Dia Mundial do Teatro diferente

80 - «Outros» encontros de DeVIR

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GRAFONOLA VOADORA & NAPOLEÃO MIRA LANÇAM «LADO NENHUM» A SONHAR COM VOOS MAIS ALTOS Texto: Daniel Pina | Fotografia: Camille Leon

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estreia ao vivo do novo disco da «Grafonola Voadora & Napoleão Mira» estava agendada para o dia 29 de março, no Cineteatro Louletano, inserido em mais uma edição do Festival Som Riscado. A atual situação de pandemia obrigou ao adiamento do concerto, mas não ao lançamento, em formato digital, de «Lado Nenhum», pelo que já todos podemos escutar os novos temas do trio Luís Galrito, João Espada e Napoleão Mira, a que mais tarde se foram juntando Ricardo Martins, João Palma e Rafael «Sickonce» Correia. Mas gravar um álbum até nem estava nos planos iniciais deste coletivo criativo, admite João Espada. “Foi uma

ideia que surgiu mais tarde, à medida que íamos tendo cada vez mais conteúdos e que o projeto se ia tornando mais entusiasmante. Chegamos, finalmente, a um momento em que decidimos gravar um conjunto de temas”, conta o porta-voz do grupo. Um projeto diferente do habitual que une a música, a palavra dita e a imagem em tempo real, com uma forte componente cinematográfica, que nasceu de um desafio que João Espada colocou a Luís Galrito para se adicionar uma forte componente visual às suas músicas. Após algumas atuações, a dupla concluiu que seria interessante somar também a palavra, não cantada, mas dita, com o nome de Napoleão Mira a ser logo a primeira opção. “As coisas foram-se ALGARVE INFORMATIVO #242

encaixando naturalmente na «Grafonola Voadora & Napoleão Mira», que depois foi crescendo para um formato com seis artistas em palco, com o Ricardo Martins na guitarra portuguesa, o João Palma no acordeão e o Rafael Correia na parte eletrónica”, indica o entrevistado. 10


Habituados que estamos a ver artistas a solo ou bandas em palco, a novidade aqui era mesmo a imagem, o vídeo, mas a mecânica da coisa até foi fácil de dominar, explica João Espada. “Definimos que o

espetáculo ia contar a história de uma pessoa que vivia na cidade, mas que não era originária da cidade, e que, por isso, procurava 11

refúgio no campo e no mar. Daí surge também o nome «Lugar Nenhum», um espaço com que a pessoa não se identificava. Depois, nessa busca pelas raízes, o percurso segue de Lisboa até ao Alentejo e Algarve e, à medida que vamos percorrendo o caminho, mostramos o ALGARVE INFORMATIVO #242


património imaterial e musical que vamos encontrando”, esclarece o responsável pela parte da imagem. E é nessa passagem pelo Alentejo que surge um dos convidados especiais do disco, «Os Ganhões de Castro Verde», para incluir o cante alentejano em «Lado Nenhum». Já no Algarve, deparamo-nos com as raízes do corridinho e da música tradicional portuguesa, numa íntima relação com o mar. “Quem vê o nosso

espetáculo consegue perceber essa história, porque o Napoleão também vai explicando a ligação que existe entre os temas. Não estamos 90 minutos a tocar de seguida, são várias canções interligadas e que compõem uma narrativa coesa”. Acreditamos, então, que a parte mais complicada do projeto é mesmo a visual, noção confirmada por João Espada. “Eu

tinha a responsabilidade de dar uma imagem àquilo que as pessoas pudessem estar a idealizar por via da música e da palavra. Precisava apresentar o nosso ponto de vista, as imagens e fragmentos que podiam resultar de cada nota musical, de cada palavra ou frase melódica. Isso obrigou-me a ir para o terreno, de Lisboa em direção ao sul, para registar visualmente esse percurso, criando um conjunto vasto de fragmentos. E são esses fragmentos que depois, no concerto, são misturados em tempo real, indo ao encontro da música e ALGARVE INFORMATIVO #242

da própria reação do público”, revela o docente de profissão. Isto porque, embora o grupo saiba bem como a música e a palavra vão decorrer, nunca sabem como as pessoas vão abraçar este produto diferente, o que pode motivar algumas mudanças no momento. A forte componente visual é uma das marcas distintivas da «Grafonola Voadora & Napoleão Mira», mas esta mais-valia também se pode tornar numa condicionante no que toca à escolha dos locais dos espetáculos, pois é necessária, logo à partida, uma tela para a projeção das imagens. Um aspeto que já tinha sido equacionado pelo trio. “Sempre pensamos em

pequenos auditórios, em espaços fechados que tivessem a logística necessária ao projeto, nomeadamente uma tela e um projetor de vídeo, para além das características normais para se acolher um espetáculo musical. Este projeto não é direcionado para grandes massas, mas a verdade é que começamos a ser convidados para participar em eventos ao ar livre, casos das feiras do livro de Olhão, Tavira e Évora. Ficamos um pouco assustados, não sabíamos como é que as pessoas iam reagir, mas a experiência foi fantástica. Em Tavira, por exemplo, tivemos um mar de gente à nossa frente, tudo calado do princípio ao fim, com atenção total a uma coisa que lhes 12


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era nova, fora do normal”, recorda João Espada. “No final daquela noite em particular ficamos com a sensação de que já tinha valido a pena criar este projeto”, reforça.

PRIMEIRO O DISCO, DEPOIS AS HISTÓRIAS VISUAIS Com um núcleo duro constituído por um professor, um escritor e um músico, a «Grafonola Voadora & Napoleão Mira» teve o condão de mostrar facetas menos conhecidas de João Espada, Napoleão Mira e Luís Galrito. E o resultado foi, de facto, de grande nível. “Saímos da

nossa zona de conforto e mergulhamos em áreas nas quais éramos uns ilustres desconhecidos. O Galrito era mais conhecido pela voz e guitarra, o instrumento que o acompanhava, na altura, na maioria dos seus concertos, mas a sua formação de base é no piano, por isso, quisemos mostrar a sua vertente sinfónica e de compositor melódico. Ao Napoleão decidimos tirá-lo da atmosfera dos livros e metê-lo a contar uma história, acompanhado de música e imagem. No meu caso, realizava videoclipes para alguns músicos, mas agora era «jogado às feras» para misturar um conjunto de imagens ao sabor do espetáculo, do improviso e da reação do público”, descreve João Espada. “Basicamente, tínhamos vários projetos pessoais e quisemos ALGARVE INFORMATIVO #242

encontrar-nos, os três, em algo diferente”. Entretanto, Luís Galrito já lançou um disco a solo onde assume, precisamente, a sua faceta de compositor melódico e sinfónico, ao piano; Napoleão Mira passou a ter imensas participações em festivais e espetáculos de spoken word; e João Espada levou a sua magia visual a outros projetos musicais. “Acabou

por nos abrir os horizontes, demos o salto para outras áreas, face ao reconhecimento do trabalho realizado com a Grafonola”, admite João Espada, que nesta primeira fase de «Lado Nenhum» assume uma faceta diferente. “O

disco tem um conjunto de temas que possuem fragmentos de sonoplastia da minha responsabilidade e também dei as minhas opiniões em termos de arranjos, embora não seja músico, enquanto estávamos a construir os temas. Daqui para a frente surge toda a vertente dos videoclips e da promoção visual, que estará a meu cargo”, indica. A parte visual irá, numa segunda etapa, ter uma presença ainda mais forte na vida de «Lado Nenhum», mas a verdade é que a situação de pandemia que Portugal atravessa veio alterar um pouco os planos, reconhece João Espada. “Decidimos manter a data

de lançamento do disco em formato digital, que está 14


disponível desde o dia 27 de março, mas o álbum visual irá surgir aos poucos através do YouTube. Vamos lançar uma série de histórias visuais para continuar a promover o disco, até chegar o momento de o apresentarmos oficialmente, em novembro, quando acontecer o Festival Som Riscado em Loulé”, revela o entrevistado. Um primeiro concerto que acontecerá no Cineteatro Louletano, até porque a Câmara Municipal de Loulé assumiu todas as despesas de edição de «Lado Nenhum» e é uma forte apoiante deste projeto. Quanto ao futuro, a expetativa é de que a «Grafonola Voadora & Napoleão Mira» chegue a outros públicos e palcos, porque agora já deram provas da sua qualidade. “Temos consciência que 15

estamos a falar de um público muito específico, que gosta desta simbiose entre a música, a poesia e a imagem, mas, em 2019, tivemos a sorte de realizar uma tournée com 18 espetáculos, de Loures para baixo. Corremos várias localidades com a premissa de estarmos a apresentar algo completamente inédito, que não tínhamos nome no mercado. Agora, já não somos propriamente uns ilustres desconhecidos, portanto, estamos com vontade de ir a novos espaços”, confessa João Espada, em final de conversa .

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RETRATO DO DIA-A-DIA ESCOLAR DO COLÉGIO INTERNACIONAL DE VILAMOURA EM TEMPOS DE COVID-19 Texto: Dina Adão - CIV| Fotografia: CIV

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ão 9h30. Frente ao seu computador, Ema Costa, estudante da Junior Primary School, inicia uma aula virtual. O Google ClassRoom notificou-a dos trabalhos e respetiva data de entrega e agora, com o trabalho rececionado na plataforma, tem oportunidade de colocar as suas dúvidas e rever os seus colegas, através de uma curta aula com o Zoom. Esta é, desde o dia 16 de março, a realidade dos alunos do Colégio Internacional de Vilamoura (CIV) durante o período de isolamento social provocado pelo coronavírus Covid-19. “É um

inimigo invisível que colocou os países em estado de alerta, alterando profundamente os ALGARVE INFORMATIVO #242

percursos que conhecíamos e a que estávamos habituados”, refere Cidália Ferreira Bicho, Diretora Pedagógica do Colégio Internacional de Vilamoura. “Neste contexto ainda

tão pouco definido, somos todos convidados, enquanto profissionais de educação, a reinventar-nos! E assim, sem aviso prévio, vemos as nossas casas a transformarem-se em sala de aula”, acrescenta. Entre todos, as exigências multiplicam-se. Aos trabalhos de casa juntam-se agora as aulas virtuais por videoconferência, os chats, a partilha de aulas gravadas por vídeo e as conversas nos grupos de WhatsApp, para esclarecer, informar, recordar ou simplesmente para desabafar. 22


Pais/tutores, professores e alunos esforçam-se por manter a normalidade numa altura em que todos se tentam ajustar a uma nova realidade. “A gestão

realizar as tarefas propostas”,

do tempo foi difícil, mas a flexibilidade e perseverança permitiu-nos fazer reuniões entre docentes, preparar aulas, orientar alunos, dialogar com pais e conciliar tudo isto com as (infindáveis) lides domésticas e a gestão familiar”,

tempo aluno-professor acaba por ir mais além em alguns aspetos, na medida em que este entra na esfera da vida privada do aluno”. “Eles querem mostrar-me o seu espaço, os seus trabalhos, o seu cão…”, descreve Anabela Chaves.

explica Cidália Ferreira Bicho.

Este retorno chega muitas vezes aos docentes através dos pais, que se desdobram em mails e filmes através dos quais vão acompanhando o progresso escolar – e porque não dizer, afetivo? – dos seus filhos. A coordenadora do Jardim de Infância e educadora do Grupo dos 5 anos do PréEscolar, Luz Gago, elogia o aumento desta proximidade e a partilha destes momentos numa altura em que “os

E é assim semanalmente. Recorrendo às ferramentas tecnológicas e adotando métodos ajustados aos vários níveis de ensino, os professores tentam estreitar laços e estabelecer novas pontes. Se todos apontam como aspetos menos positivos a inexistência de um contacto mais humano, realçam que “esta é uma oportunidade para criar”. No meio de muito cansaço, “ganham-se grandes

ferramentas que seriam menos exploradas no dia-a-dia”, entende Anabela Chaves, docente de Português de 5.º, 6.º e 7.º anos. A professora refere que já introduziu novos conteúdos gramaticais e que os alunos têm conseguido surpreendê-la. “Quinze dias

passaram, e foi tanto. Os alunos continuam a querer contar as suas experiências, a partilhar o passo-apasso dos seus trabalhos… a partilha não se perdeu. E o maior desafio está em arranjar estratégias para que estes se sintam perto, estando longe fisicamente, e para que continuem a ter vontade de 23

afirma. A docente acredita mesmo que “o

pais estão de parabéns, porque estão a fazer um esforço duplo”. Também a Coordenadora da escola de 1.º Ciclo (e professora da turma de 3.º ano), Helena Neto, realça o retorno das famílias e como isso pode ser transformador na vida de um docente:

“O apoio que temos recebido da parte dos pais tem sido fenomenal”. “E este apoio é fundamental para conseguir chegar aos alunos”, acrescenta ainda a professora da Primary School (Year 2), Michelle Carrapato.

“Ficamos contentes por saber que as crianças têm saudades da escola. Por vezes, nas mensagens ALGARVE INFORMATIVO #242


alunos enviaram mensagens, manifestando o apreço pelos seus professores e saudade da escola, dos amigos e das aulas, e até vestiram o uniforme em casa para realizar as tarefas”, conta a diretora pedagógica do CIV.

MAS, COMO É A DINÂMICA ESCOLAR À DISTÂNCIA? No Jardim de Infância, à segunda-feira, os professores de várias áreas enviam desafios por email e, à quinta ou sexta-feira, recebem o feedback. “Com a

plataforma Zoom, lançamos um tema e ouvimos as crianças. É uma explosão de alegria verem-se todos, de repente”, explica Luz Gago. Na que me escrevem, preocupam-se e até têm palavras carinhosas como: ‘cuida-te professora, não saias de casa, protege-te’”. Para Cidália Ferreira Bicho, “é difícil

expressar por palavras a corrente de entreajuda que se gerou nestes dias, mas é visível em muitos gestos que espontaneamente surgiram entre nós”. “Paralelamente, muitos pais agradeceram e elogiaram o trabalho das várias equipas, os ALGARVE INFORMATIVO #242

Primary School, os alunos seguem o horário que seria o das aulas presenciais. “Os pais recebem,

juntamente com o plano do dia, o passo-a-passo e as correções dos trabalhos. Passaremos a ter videoconferência não uma, mas duas vezes por semana, para potenciar a proximidade entre professor e colegas e atenuar esta separação tão repentina, preencher um certo vazio…”, refere Michelle Carrapato. “As minhas turmas têm participado 24


de forma ordenada e, nas aulas assistidas, até põem o dedo no ar para falar, como se estivéssemos em sala de aula”, acrescenta a

forma muito orgânica, “porque esta

plataforma já era usada em disciplinas como a Matemática e a Economia no Ensino Secundário”,

professora Anabela Chaves que, junto ao Plano de Aula, anexa os recursos e as tarefas com prazos de entrega até meio da tarde e correção até ao final do dia escolar.

adianta a docente.

Já no Ensino Secundário, optou-se por uma metodologia de trabalho que dá ao aluno mais autonomia na gestão do seu tempo e dos momentos de estudo. “Os

Se, para alguns, este é um método de trabalho relativamente fácil, para outros, é gerador de desmotivação e isolamento. As saudades da escola – e sobretudo dos amigos – são transversais a todos. “Em casa,

prazos de entrega são desfasados, mas sempre semanais. As dúvidas são colocadas no chat da ClassRoom, mas sobretudo por email. As notificações por telemóvel permitem responder, no imediato, às dúvidas”, esclarece a professora de Português do Ensino Secundário, Celina Lourenço. O sistema foi absorvido de 25

E OS ALUNOS, COMO ESTÃO A ADAPTAR-SE?

podemos interagir com os colegas, mas é estranho, parece que estamos sozinhos, apesar de estarmos juntos”, diz Catarina Cavaco, estudante de 8.º ano. A solidão leva-a, contudo, a descobrir que “há

mais interajuda para fazer os ALGARVE INFORMATIVO #242


Lopes, estudante de Year 10, “mas

trabalhos, parece que se cria uma rede”. E, sim, “apesar da distância, falamos muito”. “Sentimos saudades, mas temos conseguido manter os contactos”, prossegue Teresa Ferré, aluna do 6.º ano, que se esforça por ver as coisas pelo lado positivo. “Tenho saudades da família,

dos amigos, mas passo mais tempo no jardim, com as minhas duas cadelas e os meus quatro gatos. Apesar da falta de liberdade – sentimo-nos presos em casa – sei que tenho muita sorte, pois vivo no campo”. “No início, foi difícil”, confessa Laura ALGARVE INFORMATIVO #242

agora já me consigo organizar melhor entre as videochamadas e os trabalhos”. “O facto de não termos um tutor leva a um maior grau de distração, mas acredito que este período nos vai permitir aprender a organizar melhor o nosso tempo”, refere a aluna. Mas, se há alunos que indicam ter conseguido adaptar-se com tranquilidade à nova metodologia de trabalho, outros assumem ainda não ter encontrado o ritmo de estudo certo nesta nova fase de aprendizagem virtual. Para além da dificuldade em assistir à primeira aula do dia, persistem alguns obstáculos em conseguir entregar os trabalhos dentro 26


dos prazos estipulados. Tanto Catarina Cavaco como Laura Lopes (Year 10) preferem as aulas filmadas, como têm adotado os professores de Informática e Matemática da última. Já Maria Papa (finalista de 12.º ano da área de Ciências) encontra mais conforto nos trabalhos, consciente de que as aulas online podem ser boicotadas pelo lento acesso à internet. Catarina também é dessa opinião. “Na escola, quando temos

uma dúvida, a resposta é imediata. Em casa, a internet é intermitente e, por vezes, a resposta à nossa dúvida demora a chegar”. E, depois, adianta

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Maria, “ao nível dos trabalhos, os

PDF’s estão sempre lá para nos apoiar, a esse nível não é possível fazer mais”. A aluna manifesta-se particularmente apreensiva nesta fase da sua vida escolar, fundamental no acesso à universidade. “Não consigo

imaginar esta situação a prolongar-se. Apesar de saber que já consegui criar uma rotina em relação à escola, parece que estou a boiar. Como não sei como vai

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ser o futuro, não tenho motivação para estudar para os exames”. A mãe, Carla Papa, preocupa-se com esta ansiedade da filha, mas compreende a situação. Celina Lourenço, professora de Português de Maria, assume que “o

trabalho de preparação é muito árduo – e isso não pode mudar –, os canais é que são outros”.

MOTIVAÇÃO É A PALAVRA DE ORDEM Motivação é a palavra de ordem para todos: alunos, docentes e pais/tutores. Para os profissionais que conseguiram manter o (tele)trabalho há uma série de ALGARVE INFORMATIVO #242

tarefas acrescidas. A flexibilização e a acumulação de papéis, respeitando, sobre o mesmo teto, os horários dos vários elementos que compõem o agregado familiar, constituem um desafio para todos. E tudo é importante: a família e os afetos, as rotinas alimentares e de higiene, o exercício físico, o trabalho e a escola. E os pais desabafam. Sobretudo para os alunos adolescentes, a propensão para o tempo diante dos ecrãs acentuou-se, levando os pais à questão: devemos limitar o único contacto possível com os seus amigos num período como este? “Não é fácil”, admite Paula Gonçalves, com uma filha no 8.º ano.

“O segredo está no bom senso, mas também na manutenção das 28


rotinas”. “Temos que perceber que o sistema escolar está montado para um contacto presencial e que só isso cria uma sensação de disrupção muito grande. Esse afastamento físico é o que causa maior desgaste emocional em todos nós”, salienta Sandra Botto, mãe de uma jovem a estudar no 6.º ano de escolaridade. É, por isso, fundamental, acompanhar. Susana Beja, com um menino no PréEscolar (Grupo 5 Anos) explica que “o

Guilherme está atento e mostra-se interessado em fazer os trabalhos, e em ver os trabalhos que os amigos e as mães partilham no grupo”. Num

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quadro em que “não há pressa e a

família pode disfrutar mais do tempo”, apraz-lhe ver “a forte importância afetiva que a escola tem” no seu filho. Cecília Cantore (mãe de um rapaz no Year 2 e de uma menina na Reception Class) admite que

“eles estão felizes e a gostar da escola em casa, da presença do pai e da mãe”. “Como adultos, temos uns dias mais cansativos, e outros mais animados”, desabafa. “Obviamente não podemos contar com o apoio do professor, da ama – e ninguém morre por ter de fazer tudo –mas há que organizar os tempos. E os dias

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passam a voar, a voar…”, diz, a sorrir.

Year 8, respetivamente, realçou a pertinência da “criação de uma

Os pais munem-se de todos os recursos possíveis, mas quando é necessária ajuda extra, é preciso requerê-la. “Lucas está

plataforma de trabalho por parte da escola para continuar a acompanhar o aluno”. “Foi muito importante o rápido acompanhamento dos docentes, e a sua ajuda na manutenção da rotina e no contacto com as crianças. Sem esse apoio, nem quero imaginar como seria”,

habituado, quando fala com o papá, a responder em francês e, quando fala com a mamã, em espanhol. Ser «forçado» a manter diálogos em inglês para praticar a disciplina temse revelado complicado”, diz. “O facto de ser professora ajuda-me bastante a encarar o meu papel neste momento junto dos meus filhos, isso não me assustou. E esse papel é necessário, para que não percam o apoio mais presencial, a ligação”. Cecília perspetiva ainda o seu receio: “Alguns pais encontram-se na circunstância de não trabalhar – e poderem dedicar-se mais aos seus filhos – outros não terão a mesma sorte. Temo, por isso, no futuro, o desnível educacional das crianças dentro de uma mesma turma”.

ESCOLA - UMA PONTE PARA A APRENDIZAGEM E OS AFETOS E num momento como este, qual o papel pedagógico e social da Escola? As famílias reiteram a mesma opinião. “O

papel interventivo do CIV, tentando manter os alunos a trabalhar, apresentando soluções alternativas, foi muito positivo”, assegura Carla Papa. Ana Abreu, mãe de uma rapariga e de um rapaz, a estudar no Year 10 e no ALGARVE INFORMATIVO #242

confessa Carla Pereira, cuja filha estuda no 3.º ano do ensino básico. Como profissional, a contabilista e assessora fiscal viu-se obrigada a reduzir o volume de teletrabalho, porque “a

partir do momento em que a Maria acabava os trabalhos, desmotivava, desorientava-se”. Também Ana Abreu sentiu necessidade de reforçar o apoio ao filho mais novo, sobretudo ao nível da gestão da informação que ia sendo recebida pela plataforma.

“Apesar de tudo, há dias muito agradáveis”, diz Carla Pereira, “sobretudo quando fazemos juntas os exercícios dos vídeos do professor de Educação Física…”. Este aspeto é também realçado por Cecília Cantore. “Poder fazer

atividades com vídeos, como ouvir as histórias da Biblioteca Escolar, é tão bom. As crianças não têm que perder a importância que a escola e os professores têm na sua vida”, defende. “Isto poderá levar os pais a pensar o que é dar 30


uma aula, acompanhar 24 crianças. É muito! Talvez ajude a melhorar a consciência do que é de facto educar. Não estamos com 24 crianças, estamos com os nossos filhos. Penso que o trabalho dos professores e da escola sairá valorizado neste processo”. “É um período de ajustamento que não substitui, de todo, as aulas presenciais”, adverte, porém, o professor de Physical Education (PE), Albano Ribau. “Por mais recursos

tecnológicos que eu possa usar, preciso de ver os alunos transpirar, preciso de corrigir posturas...”. Contudo, “por ora, é importante que, ao nível das bases, o aluno não perca o ritmo”, acrescenta. 31

Neste processo, Celina Lourenço introduz uma preocupação: a eventual infoexclusão da comunidade a nível nacional, advertindo para as possíveis desigualdades que o acesso ao apoio escolar e às novas tecnologias possam vir a criar no panorama dos exames nacionais. “Os alunos estão todos

«no mesmo barco», só que uns estarão num cruzeiro de alto luxo e outros numa traineira, o que poderá colocá-los numa situação de extrema desigualdade”, compara.

VER O LADO POSITIVO Cientes das consequências que o isolamento terá a longo prazo nos seus ALGARVE INFORMATIVO #242


filhos, os pais dizem que “é preciso tranquilidade” e “olhar para as

coisas boas”. “A avaliação agora não é um fator prioritário, e sim o respeito pelo trabalho dos outros”, refere Sandra Botto. “E temos vivido assim aqui em casa. Não saímos, não vemos a família, todos nos ressentimos – mas cozinhamos, vemos filmes, lemos novos livros. Tentamos colmatar esse desgaste emocional”, desabafa. “Não romantizo”, acrescenta, “porque é avassalador, mas somos obrigados a ser mais tolerantes uns com os outros. Conviver em casa como nunca convivemos pode ser uma ALGARVE INFORMATIVO #242

oportunidade para nos conhecermos melhor e desenvolver sentimentos como tolerância e espaço”. “Estamos perante um contexto desconhecido para todos nós, para o qual não há guião, mas haverá seguramente caminhos e respostas para as tantas questões que surgem. E as respostas estão em nós!”, acredita Cidália Ferreira Bicho. “Sem dúvida sairemos disto muito mais humanos, reforçados”, conclui a professora Anabela Chaves .

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FESTIVAL DO CONTRABANDO… CANCELADO, MAS NÃO ESQUECIDO Texto: Daniel Pina | Fotografia: Daniel Pina

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um Portugal que estivesse a viver a sua habitual normalidade, o fimde-semana de 27 a 29 de março teria sido bastante agitado para os lados de Alcoutim e Sanlúcar de Guadiana, com a realização da quarta edição do Festival do Contrabando, um dos eventos mais ícones do programa cultural «365 Algarve». A organização era da responsabilidade do Município de Alcoutim e do Ayuntamiento Sanlúcar de Guadiana, com o apoio do Governo de Portugal, Turismo de Portugal, Região de Turismo do Algarve, Consejeria de Presidencia de Junta de Andalucia, Diputación de Huelva, Patronato Provincial de Turismo de Huelva, Mancomunidad de Beturia e Fundación Cajasol, e estavam à espera dos visitantes ALGARVE INFORMATIVO #242

três dias repletos de animação, história, artes e cultura, tendo como pano de fundo o Rio Guadiana e a antiga atividade do contrabando. Quis, porém, a atual situação de pandemia que o Festival do Contrabando fosse cancelado… mas não esquecido, por se tratar, de facto, de um evento diferente e singular, com uma identidade própria de fronteira e de homenagem histórica às suas gentes, por via de um tema enraizado na memória coletiva local, regional, nacional e ibérica, o tal contrabando. A esta homenagem estava associada uma vasta oferta cultural, com mercado e teatralização de rua 36


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com personagens de época, animações musicais, folclóricas e etnográficas, espetáculos de teatro, circo e música, bem como a inesquecível passagem entre Portugal e Espanha pela ponte pedonal flutuante. Muitos ingredientes que fazem deste evento um produto âncora da estratégia de desenvolvimento da região, valorizando a economia local, o património histórico e os saberes tradicionais, para além de estimular iniciativas culturais e criar condições para que se formulem novas visões estratégicas para a dinamização do território transfronteiriço de baixa densidade. Quem participou nas três primeiras edições sabe que o Festival do ALGARVE INFORMATIVO #242

Contrabando é bem mais do que um simples festival, é a fusão da homenagem a uma atividade que ao longo da história foi importante para as gentes da fronteira, com as artes e a cultura. A paisagem fronteiriça que, outrora, desafiava os destemidos na passagem de mercadorias, tornou-se palco de diversos projetos culturais que transportam para o interior das populações e seus visitantes os sonhos e ambições. Porque a região de Alcoutim e Sanlúcar de Guadiana foi, de facto, um dos cenários propícios para a atividade do contrabando. Memórias que este ano não foram celebradas, pelo que aqui deixamos alguns retratos de outras edições . 38


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Um Dia Mundial do Teatro diferente Texto: Daniel Pina| Fotografia: Daniel Pina elebrou-se, a 27 de março, um pouco por todo o mundo, o Dia Mundial de Teatro, e também o Algarve estava preparado para festejar a efeméride com diversos espetáculos. O Covid-19 colocou, porém, o planeta de pernas para o ar e também a nobre arte da representação foi afetada, como reconhece Luís Vicente, ator, encenador e diretor da ACTA – A Companhia de Teatro do Algarve. “Nestes tempos difíceis

que estamos a viver, assinalar o Dia Mundial do Teatro com os teatros fechados, no país e no mundo, requer de nós um esforço enorme e é de coração partido que o fazemos. O Teatro, arte coeva da Filosofia, constitui o mais significativo e confiável reduto simbólico da ALGARVE INFORMATIVO #242

Humanidade; é ele que a encima para a representação de si própria através dos símbolos. O teatro é a mais humana das Artes”, descreve. Para Luís Vicente, “foi no Teatro

que foram engendradas as leis da Dialética, sem as quais não chegaríamos ao Conhecimento”. “Seríamos, talvez, chimpanzés, o nosso primo mais próximo da escala taxionómica. Com efeito, este nosso primo consegue manifestar interesse e exercitar certo tipo de habilidades pictóricas, conceber e manusear certos instrumentos rudimentares e até exibir rituais de gestualidade e movimento. Não consegue o chimpanzé é 48


reproduzir a Palavra, isto é, o instrumento fundamental da transmissão do Conhecimento. Esse é património exclusivo da espécie humana”, prossegue o responsável da ACTA, acrescentando: “Apraz-nos a afirmação de Hegel na sua Estética: ‘…o drama (o Teatro) é a forma mais elaborada de Arte e a palavra a expressão mais digna da afirmação 49

do espírito’. Ora, neste Dia Mundial do Teatro do ano de 2020, recorro à Palavra com uma danada força vitalista: ÂNIMO!”, afirma Luís Vicente. Para recordarmos os festejos do «normal» Dia Mundial do Teatro, fomos ao baú do Algarve Informativo recuperar três peças da ACTA . ALGARVE INFORMATIVO #242


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18 de novembro de 2016, a ACTA levou a cena a sua 71.ª produção, intitulada «Catarina», que nos transportou para o pico do Estado Novo, mais concretamente para a Primavera de 1954, para os escaldantes campos de trigo de Baleizão, distrito de Beja. Com a plateia do Teatro Lethes a ser totalmente removida para dar lugar a um palco de maior dimensão, à imagem das arenas da antiguidade, assistimos de perto à história de Catarina Eufémia, ceifeira de 26 anos, analfabeta, mãe de três filhos. Uma mulher igual a tantas outras, com a diferença que esta insurgiu-se contra o regime salazarista e reivindicou, para si e para as suas colegas, o mesmo salário que auferiam os homens. 51

Na sequência de uma greve de assalariadas rurais, acabou por ser assassinada a tiro por um tenente da GNR, tornando-se num ícone do Partido Comunista Português da resistência no Alentejo ao antigo regime. A ideia de pegar nesta história já andava a matutar a cabeça de Luís Vicente há algum tempo, o desejo de relacionar o desiderato trágico de Catarina Eufémia e Antígona de Sófocles, explicado em certa parte pelo poema de Sophia de Mello Breyner de nome, precisamente, «Catarina Eufémia», e que recordava que o primeiro tema da reflexão grega era a justiça. O passo seguinte foi falar com o escritor Jacinto Lucas Pires, perguntarlhe se estaria interessado em elaborar ALGARVE INFORMATIVO #242


um texto sobre o tema, e a resposta não tardou, aliás, disse-lhe logo que não era necessário contatar mais ninguém. “Uns

tempos depois, mandou-me 11 páginas de texto, era mesmo o que pretendia, e fomos trabalhando em conjunto. Alterou-se muito pouco, foram-se apenas acrescentando alguns pormenores ao longo da narrativa que ele escreveu, não mais do que isso, porque houve um entendimento perfeito acerca do assunto desde o primeiro instante”, salientou na época Luís Vicente, diretor da ACTA e encenador de «Catarina». O entusiasmo em torno de «Catarina» depressa alastrou ao elenco, o que fez com ALGARVE INFORMATIVO #242

que o espetáculo crescesse de forma bastante rápida e sem sobressaltos. Uma empatia com a personagem que levou mesmo vários atores a visitar Baleizão, a terra de Catarina, onde tudo aconteceu. “Vieram de lá com a

confirmação do que já tínhamos sentido durante os ensaios, que se vivia ali uma energia diferente. Não estamos propriamente interessados em traçar a história de uma camponesa, analfabeta, de 26 anos, que foi assassinada por um tenente da GNR durante o período da ditadura salazarista. Se a Catarina era militante ou não do PCP é um problema de outra ordem, para nós, a real questão é 52


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o que esta heroína trágica significa no quadro da justiça, ou na ausência dela, e isso é um problema de todos os tempos”, referiu o experiente ator. Um tema, de facto, bastante atual, talvez mais do que se poderia imaginar, e Luís Vicente apenas pretendeu fornecer mais um elemento para a reflexão sobre esta matéria. “Há uns anos, quando

encenei a «Antígona», com o texto do Sófocles e uns acrescentos da María Zambrano, já estava em causa a conflitualidade entre o direito natural e o direito legislado. Na «Catarina», emerge um outro tipo de problemática em relação à justiça, porque nós seguimos a padronização que está instituída e a ALGARVE INFORMATIVO #242

Catarina rebelou-se contra uma situação. A figura central da oposição dela era o latifundiário, curiosamente, veio a morrer nos braços do latifundiário, com este a dizer ao tenente da GNR: ‘o que é que você me fez? Desapareça já daqui que já matou uma mulher, o que quer fazer mais?’. É este tipo de conflitualidade que nos interessa explorar”, explicou o entrevistado. «Catarina» foi, pois, uma peça à imagem da ACTA, muito longe do entretenimento preferido por outros encenadores, comparação que causa logo uma subida de voz em Luís Vicente.

“O divertimento não faz parte do meu universo, detesto 54


espetáculos divertidos. O divertimento causa-me aborrecimento, tédio, eu quero peças com conteúdo”, esclareceu, embora não tenha nada contra quem opta por conceber produtos mais popularuchos e para as massas. “Este não é um

espetáculo que vise fazer uma apologia política no sentido estrito do termo, o que me interessa é perceber o tipo de relação que existe entre estas duas heroínas trágicas no contexto em que

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vivemos atualmente, em que medida é que isto nos pode esclarecer acerca de alguns problemas que assolam a nossa vida. E também é importante não radicalizarmos os pontos de vista e termos uma atitude aberta sobre as coisas porque, no fundo, o que todos nós procuramos, todos os dias, é justiça, justiça, justiça…”, disse na altura Luís Vicente.

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«UM ESPETÁCULO (BELA E ABEL)» Texto: Daniel Pina| Fotografia: Daniel Pina ALGARVE INFORMATIVO #242

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25 de março de 2017 estreou a 72.ª produção da ACTA, com base num texto original de Robert Pinget e encenação de Elisabete Martins. «Um Espetáculo (Bela e Abel)» é uma peça sobre o Teatro enquanto metáfora da vida, sobre duas visões distintas desta forma de arte e da maneira como elas, por vezes, convivem na mesma instância unificadora da Arte do Teatro nos tempos modernos. Em palco temos Abel, um encenador obcecado com a materialização do ALGARVE INFORMATIVO #242

espetáculo que idealizou, e Bela, uma produtora sobretudo preocupada em refrear os voos da imaginação alheia.

“Por um lado, a visão da ligeireza, dos «holofotes», do diletantismo, do que interessa ao público porque o diverte; do outro, a visão da profundidade, da busca pelo rigor artístico, da verdade dramática que perturba o público, porque o faz questionar”, explicou Elisabete Martins. “É numa constante tentativa/erro que eles se confrontam com a sua essência e assim é a nossa vida, de 60


querermos muito e, quando nos damos conta, esquecemo-nos do essencial. Do ser. Da nossa verdade”, acrescentou a encenadora. Nos planos temático e formal, o texto explora aspetos em que se identificam afinidades com o universo de Samuel Beckett, mas Robert Pinget explora e sugere outros aspetos que ultrapassam o absurdo da situação e o vazio de comunicação becktteanos e que se projetam noutro tipo de conflitualidades.

“O espetáculo é uma procura do que é importante, do que se quer mostrar. Começamos com o palco cheio de adereços e terminamos com a cena vazia. Nos primeiros anos das nossas vidas queremos experimentar tudo e depois, com o

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decorrer do tempo, vamos fazendo escolhas, vamos limando, vamo-nos restringindo ao que é essencial”, compara Elisabete Martins. “Há sempre uma grande dificuldade em falar do que nos vai na alma e costuma-se dizer que as pessoas querem ir ao teatro para se divertirem. Mas é preciso refletir também e este texto faz-nos ver que isto tudo, afinal, não são só luzes e gargalhadas. O Almada Negreiros já afirmava que ‘a alegria é a coisa mais séria da vida’ e esta encenação é, aparentemente muito leve e divertida, mas tem uma forte reflexão sobre a vida”.

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Escolhido o texto por Luís Vicente, o diretor artístico da ACTA, e entregue a encenação a Elisabete Martins, a opção por Bruno Martins e Glória Fernandes foi instintiva, garante a entrevistada. “Foi

uma decisão imediata, uma dupla ALGARVE INFORMATIVO #242

perfeita. Trata-se de um texto bastante difícil de decorar e de trabalhar porque, nesta linha do absurdo, os textos são normalmente «circulares» e com múltiplos sentidos”, refere . 62


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«UMA CARTOGRA PARA FREI LUÍS D Texto: Daniel Pina| Fotografia: Daniel Pina

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AFIA EMOCIONAL DE SOUSA»

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1 de dezembro de 2018, a ACTA estreou, no Teatro Lethes, em Faro, a sua 75.ª produção, com base na obra «Frei Luís de Sousa» de Almeida Garrett, desta feita com dramaturgia de Alexandre Honrado, encenação de Luís Vicente e conceção plástica de Tó Quintas. A interpretação esteve a cargo de Glória Fernandes, Luís Vicente, Bruno Martins, Sara Mendes Vicente, Paulo Moreira e Miguel Martins Pessoa.

Vilhena (Glória Fernandes), uma mulher muito supersticiosa e que acredita que qualquer coisa fora do normal era uma chamada de atenção para ações futuras, ou seja, um presságio. Manuel, homem corajoso e patriota, amava profundamente Madalena e não se importava com o seu passado, mas esta vive permanentemente com a sombra do seu primeiro marido, D. João de Portugal (Paulo Moreira), que se julga ter sido morto na batalha de Alcácer Quibir, mas está vivo e regressa a casa, tornando ilegítimo o casamento de Manuel e Madalena.

A história tal qual Almeida Garrett a escreveu decorre no século XVI e retrata a vida de Manuel de Sousa Coutinho (Bruno Martins) e sua esposa, D. Madalena de

Ao dramático casal Almeida Garrett juntou uma filha, D. Maria de Noronha (Sara Mendes Vicente), uma jovem que sofre de tuberculose. Pura, ingénua,

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curiosa, corajosa, completamente alheia aos atos dos pais, personifica a própria beleza e pureza que se consegue originar mesmo num casamento condenável. E, como é natural, não poderia faltar um aio, Telmo Pais (Miguel Martins Pessoa), leal ao antigo amo, D. João de Portugal, e pouco adepto do segundo casamento de D. Madalena. Apresentadas as personagens, na história, Manuel de Sousa, cavaleiro da Ordem de Malta, pega fogo à sua casa para não alojar os governadores. Ao perceber que o quadro de D. Manuel de

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Sousa Coutinho foi consumido lentamente pelas chamas, Madalena pressente que vai perder o esposo da mesma forma como ficou sem a sua casa… e o quadro. Mercê disso, Manuel vê-se obrigado a habitar na residência que dantes fora de D. João de Portugal. E este, que ninguém acreditava que regressaria à sua antiga residência, surge como Romeiro, para adensar ainda mais o drama. A história imaginada por Almeida Garrett não é, contudo, a que vai a cena nesta produção da ACTA porque,

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durante os ensaios de «Frei Luís de Sousa» por uma companhia de teatro de fracos recursos económicos, o ator que interpreta Manuel de Sousa Coutinho acaba por, acidentalmente, pegar mesmo fogo ao teatro, perdendo-se praticamente todos os adereços, cenários e até alguns atores, que se terão ido embora por imaginarem que a peça já não se concretizaria. O problema é que os bilhetes já tinham sido vendidos e, pior do que isso, os subsídios já tinham sido recebidos, portanto, sem estreia não havia pagamentos para ninguém e era preciso devolver muito dinheiro. Perante esta situação, o encenador (Luís Vicente), intempestivo, híper rigoroso e com pouca paciência para atitudes menos profissionais, vê-se forçado a seguir ALGARVE INFORMATIVO #242

caminhos diferentes da narrativa como única forma de assegurar a sobrevivência do projeto, assim surgindo «Uma Cartografia Emocional para Frei Luís de Sousa», que combina as cenas do texto original que podiam ser levadas a cabo com os cenários, adereços e atores que resistiram ao incêndio, com o caos que envolve encenador e atores na tentativa de estrear mesmo a peça. A tarefa acaba por ser possível e todo o drama de «Frei Luís de Sousa» é magistralmente interpretado pelo coletivo da ACTA. Mas também temos uma versão de «Frei Luís de Sousa» que acaba por ser surpreendentemente divertida, onde se misturam as histórias da peça com os episódios dos bastidores e ensaios. 72


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Collective loss of memory Texto: Daniel Pina| Fotografia: Daniel Pina

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sexta edição dos encontr os do DeVIR iria realiza-se entre 13 de março e 30 de maio, apresentando 28 criações e 12 reflexões, entre espetáculos, exposições, colóquios e performances, em vários espaços dos concelhos de Faro, Loulé e Lagos. Este ano, a programação do festival foi concebida em torno do tema «resgate», recuperando obras e criadores que são marcos da história da dança contemporânea nacional e internacional, prestando homenagem à coreógrafa alemã Pina Bausch e propondo igualmente uma reflexão sobre diferentes caminhos para resgate do Planeta. “Este festival temático tem o ALGARVE INFORMATIVO #242

propósito de pensar o nosso território, aliando o social ao cultural, o ecológico, o científico e político ao artístico, recorrendo ao trabalho de investigadores e cientistas e a encomendas de criação a escritores, a artistas das artes visuais e a criadores das artes do espetáculo”, descreveu José Laginha, diretor artístico dos Encontros do DeVIR. A situação de pandemia que o país atravessa originou, porém, o cancelado do festival, motivo pelo qual aqui recuperamos dois espetáculos da edição de 2019. E um dos momentos altos aconteceu, sem dúvida, no CAPa – Centro de Artes Performativas do Algarve, em Faro, no dia 20 de abril, com «Collective Loss of Memory», uma 82


obra tremendamente impactante e perturbadora, mas também divertida, proveniente da República Checa. Em palco encontramos Tom - o judeu; Eduard - altamente adaptável; Jacob - o ajudante; Knut - puro e original; e o chefe, Joona cinquenta por cento melhor que qualquer um dos outros. Pela arte destes cinco engraçados e exímios bailarinos o público, que esgotou por completo a sala do CAPa, mergulhou de cabeça no poderoso fenómeno social do grande prazer que os seres humanos têm em matar e participar na violência. De acordo com os criadores e coreógrafos Jozef Fruček e Linda Kapetanea, “o prazer de matar dá ao agressor uma estranha experiência de poder e liberdade absolutos”. “Mas para as vítimas é o inferno. O que fazem observadores aleatórios de cenas

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violentas? Nada. Sofrendo de perda coletiva de memória, eles observam apenas”, descrevem os elementos da DOT504. E assim foi observando de olhos atentos a assistência, sem saber muito bem o contexto real de «Collective Loss of Memory», a terceira criação desta companhia de dança proveniente da República Checa e que lhe valeu o prémio Czech Dance Platform Dance Piece of the Year Award e Audience Award em 2015. No final, e conforme todos tinham sido avisados previamente, porque o espetáculo era para maiores de 18, assistiu-se às imagens de vídeo que registaram um caso de extrema violência ocorrido em 2008, em que um grupo de cidadãos agride brutalmente um jovem indefeso, enquanto outras pessoas observavam e nada faziam .

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OUTROS ENCONTROS DO DEVIR Texto: Daniel Pina| Fotografia: Daniel Pina

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a quarta edição dos encontros do DeVIR fez também parte, no dia 4 de maio, um espetáculo estonteante constituído por dois solos e um dueto no qual se assistiu a um dos mais destacados bailarinos da cena europeia e a um intérprete com uma performance capaz de desconstruir a ideia de corpo, de eficácia e de diferença. No solo «monoLOG», Samuel Lefeuvre colocou o intérprete como médium entre o público e os fenómenos obscuros que este não consegue identificar sozinho. Inspirado na personagem «Log Lady» da série Twin Peaks de David Lynch, o belga apresenta-se como um oráculo moderno, lutando com as suas próprias obsessões e expectativas do público, que eventualmente o levam a um transe durante o qual forças ocultas parecem manipular o seu corpo até a um ponto de rutura. Seguiu-se Aristide Rontini com «It moves me #», um solo inspirado na água enquanto elemento de purificação, energia, fluxo, morte e renascimento, na sua aptidão de mudar de estado físico, e nos estudos de Masaru Emoto sobre a sua capacidade de registar vibrações. Finalmente, um dueto de Samuel Lefeuvre e Florencia Demestri, «Event», uma peça originalmente criada para espaços não convencionais que usa a figura de um sem-abrigo para questionar o lugar que cada um de nós ocupa na sociedade e a relação que temos com pessoas marginais, que não seguem as mesmas regras que nós . ALGARVE INFORMATIVO #242

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OPINIÃO Haja bom senso! Paulo Cunha (Professor) nas alturas de crise que conhecemos verdadeiramente as pessoas que nos rodeiam. Perante situações que nos confrontam com o desconhecido e o imprevisto, reagimos, muitas vezes, revelando comportamentos inesperados, inusitados e até estranhos para nós mesmos. Sendo comum proferirmos o velho bordão popular «vivendo e aprendendo» para realçar a importância de aprender com a vivência diária em comunidade, é de esperar que consigamos também aprender com as rasteiras que a vida nos prega. Daí todos esperarmos atitudes equilibradas e com bom senso de quem connosco interage. Sou daqueles que vê no nosso exemplo a melhor forma de transmitir e ensinar a importância de pensar e seguir o melhor caminho (senso).

É

Bom senso é, inquestionavelmente, uma das maiores qualidades humanas! Resultando da sabedoria e da razão, o bom senso é definido pelas ações que são tomadas de acordo com regras e costumes adequados para determinados contextos. Alguém que age com bom senso, utiliza argumentações e atitudes racionais que lhe permitem fazer julgamentos e escolhas assertivas, de ALGARVE INFORMATIVO #242

acordo com os padrões morais de uma sociedade. Para Aristóteles, o bom senso era o "elemento central da conduta ética, uma capacidade virtuosa de achar o meiotermo e distinguir a ação correta”. Bom senso pode também ser uma forma de estar na vida, ato este conhecido como «filosofia de vida», onde se supõe que quem a pratica seja autónomo e independente perante os outros. Não existindo verdades absolutas, é importante aprender e conhecer técnicas, ferramentas e métodos que nos ajudarão a tomar as nossas decisões. Segundo um texto que proveio do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, a grande lição dada por todos os filósofos é que o bom senso é sempre uma intenção refletida e dirigida perante problemas que a vida levanta e não podemos iludir. O bom senso resgatanos de uma conceção abstrata da verdade, que se pretende começo absoluto, ignorando a história em que se implanta. Richard Rorty, um dos grandes filósofos do século XX, considera que o mundo atual precisa de especialistas do 106


amor e da diversidade, para colmatar a deficiência dos especialistas do concreto e do local (historiadores, romancistas, etnógrafos, jornalistas, etc.). Defendendo o caminho da solidariedade, Rorty descreve-a como “a capacidade de ver cada vez mais as diferenças tradicionais (tribo, religião, raça, costumes, etc.) como não sendo importantes, em comparação com semelhanças no que respeita à dor e à humilhação – a capacidade de pensar em pessoas muito diferentes de nós como estando incluídas na esfera do nós” (Contingency, Irony, and Solidarity, p. 192). Num tempo em que o termo bom senso, por várias razões, anda nas bocas do mundo, deixo aqui alguns conselhos, para que os possamos usar amiúde e com a devida propriedade. Devemos: 107

comparar os riscos e benefícios das decisões antes de tomá-las; confiar na nossa intuição, evitando prendermo-nos demais aos problemas; analisar os problemas de vários pontos de vista; aceitar que nem sempre estamos certos; pedir a opinião de outrem se estivermos inseguros quanto às nossas decisões; fazer apenas o que sabemos que não irá prejudicar ninguém; estar mais atentos ao que nos rodeia; saber escolher as soluções mais práticas para cada situação; aceitar que há coisas que não podemos mudar. Concluindo: o bom senso é o pensamento que se conserva livre, a atenção à vida, a perspicácia, o respeito pelos outros e a adaptação sempre renovada às situações novas. Haja então mais bom senso do que senso comum, hoje e sempre! . ALGARVE INFORMATIVO #242


OPINIÃO Estou a dar em doido Paulo Bernardo (Empresário) stou em casa há cerca de duas semanas, cumprindo aquilo que, antes de tudo, o bom senso me diz. Para mim, que gosto bastante de estar em casa, tenho já muito o hábito de trabalhar remotamente, pois, devido às constantes viagens que faço, dão-me ferramentas de trabalho remoto e, em simultâneo, uma grande vontade de partilhar o tempo que tenho com a família. A quarentena do lado laboral tem sido uma experiência fantástica, contudo, só possível para quem tem uma atividade como a minha. O outro negócio da família está fechado para preservar a saúde de colaboradores e clientes, não temos possibilidade de fazer nada. Ainda hoje lá estive e o sentimento de ver o espaço sem pessoas me deixou bem triste. Voltando ao trabalho remoto, tem sido uma experiência fantástica pois, não saindo do meu espaço de conforto, tenho viajado pelo mundo virtualmente, já que todos estão em quarentena. Inclusive, já tive algumas conversas de amigos, sem ter nada a ver com ALGARVE INFORMATIVO #242

trabalho, apenas para vermos os rostos um dos outros e partilhar as nossas angústias e opiniões. O estar em casa tem coisas muito boas quando podemos sair, agora, a coisa fica mais difícil quando o confinamento é geral e «obrigatório». Não porque seja mais difícil, não porque se seja menos produtivo. O problema é que todos nós somos animais sociais e aí começa o problema. Hoje, eu vejo muitas pessoas por dia, falo para diferentes partes do mundo, até sou mais produtivo no final do dia, mas sou menos social e isso deixa-me triste. Eu adoro estar em casa, cozinhar, conversar com a minha família, poder receber amigos, mas hoje estou, sim, com a família, mas não posso receber a minha mãe, o resto da família, brincar com os sobrinhos, isto ainda em casa. Esta parte de socialização é-nos inata, faz falta para o nosso bem-estar mental, o ver estranhos, andar pela rua, sentir o barulho da cidade a acordar, e depois regressar a casa e relaxar, isso sim é bom. Estar aqui confinado, sempre ligado às máquinas é uma sensação pouco normal. É bom trabalhar em casa 108


quando eu decido, é mau quando me é imposto.

próximo da família, vou estar mais próximo de mim.

Depois de passar a tormenta, do vírus, uns dizem que o mundo nunca mais vai ser o mesmo. Não sei, uns vão mudar, outros talvez, eu possivelmente não vou ser o mesmo. Não vou ficar melhor pessoa, também espero não ficar pior, vou sim dar mais valor à liberdade, vou dar mais valor a quem está em casa porque não pode sair, vou abraçar mais e beijar mais, faz-me falta o contacto físico, vou falar mais com desconhecidos, vou dar mais atenção aos meus colaboradores, vou estar mais

Especialmente próximo de mim. A vida a correr tira-nos de nós próprios, faz-nos ser outros, a nossa mente está não sabemos bem onde. Esta fase de introspeção da quarentena fez-me ser mais eu.

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Espero que a rotina lá de fora não me mude. Pois às vezes é bom sentir-se doido, neste mundo de inteligentes .

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OPINIÃO Dos fios da memória e das tranças de alho Mirian Tavares (Professora) “Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível”. Michel Foucault tia trazia tranças de alho que ficavam penduradas num prego alto, na área coberta ao lado da cozinha. Achava bonita a trança, mas da cozinha só me aproximava para comer a mistura do bolo, que ficava na tigela. Uma vez decidi fazer rebuçados de coco. Acho que queimaram e mantive a distância das panelas antes de provocar novos desastres. Diziam que eu não tinha jeitinho nenhum para cozinhar. Meu mundo estava noutra dependência da casa, forrada de livros, que eu devorava laboriosamente a cada dia. Havia um gato chamado Dandy. Sempre houve gatos chamados Dandy desde que minha avó, que não gostava de gatos, mas os admirava pela sua independência e pelo seu ar snob, lhes deu esta alcunha que lhes assentava bem. Os gatos vinham não sei bem de onde, mas eram todos vadios e iam-se deixando ficar. A mãe, ALGARVE INFORMATIVO #242

que não gostava nem admirava os gatos, enchia-os de comida para que não viessem esfregar-se nas pernas quando ela estava na cozinha. Ela também não gostava de cozinhar e quando eu tinha 12 anos, começou a fazer tranças nos meus cabelos, que levava longos. Como as tranças de alho que a tia trazia do campo. Não sei se gostava de tranças, mas fazia-as por mim. Era a sua maneira de me abraçar ou de dizer gosto de ti, minha filha. Nunca foi de dizer coisas como esta, apesar de falar bastante e de ser uma mulher muito culta. Contava, às vezes, histórias da sua infância e da mãe, que também me criou e que me fez gostar de livros e de jogos de palavras. Punha-me a ler em voz alta enquanto descansava na sua rede. Lia de tudo, mesmo romances tontos que comprava no quiosque. Até livros de cowboy. O importante era ler, pronunciar bem as palavras. Com ela aprendi a ler de tudo, sem preconceitos, a tirar o melhor de cada texto. Ou a passar o tempo, apenas. Os clássicos, estes, lia-os 110


Foto: Victor Azevedo

sozinha, em silêncio. Quando voltava da escola e acabava as tarefas de casa. O avô me ensinava matemática e não tinha muita paciência, apesar de passar parte do dia a jogar com um velho baralho, sozinho, a paciência que não tinha para me ensinar matemática. Mas era um sujeito tranquilo. Não me lembro de ouvi-lo a levantar a voz. Um dia minha avó escondeu-lhe os pijamas para ver se 111

ele reclamava. Ele procurou, não encontrou, e dormiu com a camisola de baixo. Lembrei-me das tranças de alho da tia quando fazia hoje o feijão, ao almoço. Descascava e picava o alho e fuime deixando guiar para trás, para outro tempo e outra história. Onde eu ainda não cozinhava e andava com tranças nos cabelos . ALGARVE INFORMATIVO #242


OPINIÃO Do Reboliço #78 Ana Isabel Soares (Professora) ranciscooo! Chama-me lá para aí o cão, que só o que faz é patinharme o jardim e dar-me cabo das flores todas!”. O Reboliço encanta-se com a recém-Primavera: cada manhã, depois de o moleiro lhe assobiar para lhe dar a delícia da bolacha, à soleira da porta ainda do quarto de dormir, depois de a mulher abrir as portadas e franquear a passagem para a rua, lá vai ele, a esquila a tinir-lhe pendurada da coleira, as pedras da rua ainda húmidas da brandura da noite, tac-tac-tac, cada patinha a pisar almofadada e a dirigir o focinho ao cheiro das flores da laranjeira e do jasmim, do louro e das folhas da figueira. Dentro da casa, a lida matinal faz cumprir humanas higienes, humanos desjejuns. Assim que o sol empurra para longe as sombras do jardim e seca as folhas e a terra – assim como, dentro de casa, o moleiro e a moleira desdobraram o corpo e, a olhar o dia pela janela, usaram o linho menos rude para enxugar as gotas de água que lhes escorriam de volta à bacia de esmalte –, vai o canito inspecionar. O jardim não tem rede à volta, não tem portão (essas intransponíveis fronteiras delimitam o carunchoso, a horta onde o que cresce junto à terra não é de enfeitar, mas de

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sustento). Por isso, pode o Reboliço invadir à vontade o espaço mais ou menos mal quadrado, onde a mulher do moleiro dispôs, como se fosse em quatro canteiros ao redor da laranjeira, os ornamentos floríferos. Os extremos desta zona estão delimitados, isso sim, pela loureira, do lado do tanque, e por duas ameixeiras, do lado oposto. Na esquina mais próxima da casa, o jardim é bordejado por vasos de mais flores, as suculentas e os catos – despojos de passeios, ofertas da família, de alguma visita, restos incatalogáveis da coleção que se cultiva na terra livre. As sobras das flores rebentam por entre as pedras cinza escuras da calçada da rua indisciplinadamente, e é indisciplinadamente que a mulher deixa crescer ali os jarros, os lírios e os belíssimos arbustos de folha verde que lá de vez em quando dão o ar da graça de outra cor (esferinhas vermelhas, botõezinhos brancos). No meio dessa folhagem toda, microamostra amazónica, deleita-se o perro em rebuliço: atira-se para cima daquela frescura, rebola o corpo, esfrega as patas, esfrega na verdura focinho e orelhas e deixa aparecer nos olhos tudo o que percebe da alegria. É até ouvir a voz da mulher e se pôr em sentido: primeiro, paralisado na posição em que estiver quando a ouve; depois, muito 112


Foto: Vasco Célio

hirto, em pé – mas não abala dali enquanto não for a voz do dono a bradar por ele. Antes de se arredar daquela satisfação, sacode-se todo, do coto da cauda até ao preto emborrachado do focinho, senta-se sobre os quadris, o feliz cachaço duro bem levantado e o focinho apontado ao céu que acabou de ganhar, liga a ignição 113

de uma das patas dianteiras e vigorosamente coça cada lado de trás das duas orelhas, arreganhando bem os beiços no sentido de um canino sorriso. * Reboliço é o nome de um cão que o meu avô Xico teve, no Moinho Grande. É a partir do seu olhar que aqui escrevo. ALGARVE INFORMATIVO #242


OPINIÃO Os títulos provisórios Adília César (Escritora) “O que se pede à cena é apenas o delírio de uma coisa exacta”. Herberto Helder oje fiquei em casa, como de costume. E ontem. E amanhã. O que se levanta é a lentidão de um gesto, na janela agora aberta, pela necessidade de fazer alguma coisa. A matéria reveladora do desalento dá significado ao medo de dormir e de acordar. Ergo uma muralha em redor dos acontecimentos fatais que ouço a toda a hora nas notícias. Esse é o retrato do mundo real, tal como nunca o tinha conhecido, um quase-tempo, um quaselugar. E o tempo, com a duração esticada até aos limites do impossível, parece não ter movimento, é o cúmulo da inércia. As ruas, as nuvens, as pessoas, um vazio intolerável e desumano, de tão nublado sobre os telhados de vento e martírio. Quero sair para fora de qualquer coisa que me atraiçoa, mas fiquei em casa, como de costume. Iluminei-me com uma certa luz interior. Amanhã é um outro dia que não vai chegar, pelo menos para alguns. Na verdade, “não vamos ficar todos bem”. Pelo menos, não da forma como ALGARVE INFORMATIVO #242

conhecíamos os dias, concretos, palpáveis - esquemas organizadores do tempo de cada um. Por agora, permanecemos na fronteira do desconhecido, entre paredes e objectos tão familiares. O idioma das águas está a ser inventado naquele preciso instante do início da chuva, do princípio de tudo; parece ser sempre a primeira vez, de cada vez que acontece alguma coisa: o estrondo do trovão, o riso da criança, o ronco do automóvel pela manhã. Borboletas imaginárias nas experiências de espanto. Estamos fechados em casa, em permanente delírio: quantos mortos? Se tudo o que existe no mundo começou com um não, o arrepio é a sensação mais pura que Deus inventou, para dar a possibilidade aos humanos de contradizerem as tragédias. A Sua Mão a cair sobre as nossas cabeças, desde sempre. Depois, a cena desenrola-se na nossa consciência, como uma passadeira vermelha de vaidades, crimes, boçalidades e absolvições. O arrepio continua a ser a resposta visceral à propagação de todos os vírus, literais e metafóricos: a música que nos inebria, o 114


poema que nos fascina, a imagem que nos choca, a mazela que nos apavora, a atitude altruísta que nos comove. E se para muitos Deus não é para aqui chamado, manter o arrepio como sensação de vida parece-me razoável, prodigioso até. Afinal, ainda estamos vivos. Permaneço escondida em casa e espero um caudal de milagres. Não me atrevo a pedir ajuda, porque não compreendo o que está a acontecer. E enquanto a cidade exibe janelas fechadas e ruas vazias, espero não ser vista pelo dragão. Acredito que essa perturbação interior e submissa só pode ser captada com a lente especial do movimento das horas, que ainda não foi inventada, apesar de toda a tecnologia patente no meu smartphone. É um relógio que anda ao contrário, em direcção ao passado, aquele tempo familiar em que o mundo todo nos pertencia. Agora, o espírito soterrado comanda a vida numa absoluta concentração. Um ponto, uma linha de luz, contemplação introspectiva e difusa da estrela longínqua que guardo nas mãos e pretendo devolver ao firmamento: esmola que dá tempo e mais tempo, movendo-se por entre os dedos, caindo sobre a minha cabeça de aflição 115

luminescente. Tu abres os olhos ao brilho: foste visto quando apenas querias ser ouvido. A mão de Deus curvada sobre a humanidade, essa espiral de antagonismos: quantos mortos? O mundo, tal como o conhecíamos, chegou ao fim. Amanhã é um outro dia diferente. Resta-te, pois, esperar, tal como todos nós. Mas, andando sobre o andamento do tempo, pareces estar parado. Lá fora, os pássaros cantam porque sabem que a primavera já chegou . ALGARVE INFORMATIVO #242


OPINIÃO Dicas de marketing digital em tempos de coronavírus Fábio Jesuíno (Empresário) marketing digital já era muito importante nas estratégias de comunicação dos negócios e neste momento, devido a pandemia de covid-19, é indispensável. Vivemos uma nova experiência social, onde a maioria da população mundial está em confinamento em casa e com restrição de contactos sociais, o que faz com que o tráfego da Internet atinja níveis recordes, com as redes sociais em grande destaque devido à sua grande utilização. Nesse sentido, reuni algumas dicas de marketing digital que considero relevantes em tempos de coronavírus: Conteúdos Os conteúdos são essenciais para as marcas construírem progressivamente um relacionamento de confiança com o seu público-alvo e, dessa forma, conquistarem a preferência, principalmente no momento atual, com a procura de conteúdos online a aumentar. É sempre importante a implementação de uma estratégia focada no mercado-alvo, porque nem todos os conteúdos que se criam são ALGARVE INFORMATIVO #242

relevantes para a obtenção de bons resultados em termos de posicionamento nos motores de busca, redes sociais e na credibilidade do negócio. Vídeo Nos últimos anos, o vídeo tem apresentado um grande crescimento de popularidade, consumindo a maioria do tráfego da internet. Os vídeos permitem apresentar um serviço ou produto de uma forma que seja mais facilmente compreendida pelo público. No momento atual, com a população em casa e com mais tempo disponível, o consumo de vídeo vai aumentar em grande escala, sendo o momento ideal para criarem um canal no YouTube, apostarem no IGTV ou na nova rede social de grande sucesso, o TikTok. É também o tempo dos vídeos em direto, as famosas lives que se tornaram muito relevantes devido a esta pandemia, criando já vários sucessos, principalmente no Instagram. Anúncios É o momento de investirem em anúncios online, principalmente no Google, redes sociais e nas edições 116


online dos órgãos de comunicação social. Nos anúncios do Google e nas principais redes sociais, devido à diminuição da concorrência, muitas empresas estão a reduzir os investimentos e mesmo a cancelar. Na minha opinião, quem pensar diferente vai ter uma grande oportunidade e com valores muito mais baixos conseguir grandes resultados. A comunicação social tem sido fundamental neste momento, principalmente pela importância em mantermonos informados com credibilidade, combatendo as notícias falsas que circulam na Internet. Sendo muito procurada, o tráfego dos seus websites está em grande crescimento, fazendo com que anunciar nestes meios seja muito aliciante.

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Estas são apenas algumas dicas de marketing digital para poder ajudar a continuar a comunicar junto aos clientes e ao público-alvo. Porque, em momentos de crise, surgem novas oportunidades . ALGARVE INFORMATIVO #242


OPINIÃO Pensar Global, Agir Local David Martins (Diretor de Marketing e de Alojamento) egundo vários especialistas, e apesar de ainda não sabermos como e quando irá terminar, estaremos a viver uma das piores pandemias de sempre, possivelmente só comparada com a peste negra ou a gripe espanhola, onde se registaram milhões de mortes. Com alguma fé e esperança, faço votos para que em pleno século XXI os conhecimentos científicos e tecnológicos permitam encontrar soluções o mais rapidamente possível para cura e prevenção do COVID-19 e que, assim, esses cenários dantescos não sejam atingidos. Assim o espero, a bem da Humanidade! É neste contexto que a máxima «pensar global e agir local» faz, como nunca fez, tanto sentido. Em primeiro lugar, é preciso ter o Mundo a «falar» a uma só voz, definindo estratégias comuns para atacar o problema. De pouco valerá estarmos somente a combater o problema num determinado continente se não existir uma operação coordenada e apoiada entre as principais organizações e ALGARVE INFORMATIVO #242

poderes mundiais. Como bem referiu recentemente o Secretário-Geral da ONU, eng. António Guterres, “acabar com a pandemia em todos os locais é um imperativo moral, é do interesse de todos”. E se ao nível global é um imperativo, não menos necessário é termos no nosso território comum, a Europa, uma só voz, solidária, sem egoísmos nacionalistas e/ou «umbiguismos» exacerbados. Se assim não for, a interrogação clara que todos devemos fazer é: afinal para que serve a União Europeia se, mesmo numa crise gigantesca, quase como se de uma guerra se tratasse, não nos entreajudamos? Como bem referia há dias o nosso Primeiro-Ministro: “Se não nos respeitamos uns aos outros e se não compreendemos que, perante um desafio comum, temos de ter capacidade de responder em comum, então ninguém percebeu nada do que é a União Europeia”. Depois do Brexit, cuja discussão está compreensivelmente secundarizada, e passada esta pandemia, talvez tenhamos muitos mais problemas a resolver entre estados membros. Se o euroceticismo já estava a ganhar terreno 118


em ambiente normal, infelizmente, esse sentimento tenderá a aumentar se nada for feito e não forem definidas soluções globais e integradas, apoiadas por um todo, e aplicadas a cada um dos países da União Europeia. Por fim, duas notas. Uma nota para felicitar a intervenção de todos os políticos regularmente criticados e menorizados, nomeadamente o governo liderado por António Costa, pelo empenho permanente no encontro de soluções efetivas para ultrapassar este momento crítico, assim como o Senhor Presidente da República, pela sua coordenação e apoio, e também aos autarcas deste país que diariamente estão junto das suas populações para que sejam protegidas e se minimizem os efeitos do isolamento e da falta de recursos. Uma segunda nota para felicitar em especial os autarcas algarvios, que, através da AMAL, apresentaram um conjunto de medidas de apoio à população comuns para 119

todos os cidadãos do Algarve, colocando-os num patamar semelhante. Porque somos mais do que o nosso umbigo, espero que este momento difícil seja para todos nós uma lição e nos tornemos homens e mulheres melhores, com um espírito e ação mais solidária. Protejam-se e sejam cuidadosos! .

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OPINIÃO Lembrem-se de nós Antónia Correia (Professora e Investigadora) mote da campanha do turismo do Algarve é «Lembrem-se de nós». O Algarve é um destino de afetos. Com efeito, os turistas que visitam o Algarve, na sua grande maioria (87%), já conhecem o Algarve, local que visitam pelo menos uma vez por ano. Apesar do hábito e da visita recorrente, estes turistas estão satisfeitos (98%) e pretendem regressar (97%). Indicadores estes que revelam bem a afinidade e as emoções positivas que o destino despoleta. Estes turistas emocionalmente comprometidos com a região definem o local como agradável, amigável, bom, bonito, quente, luminoso e relaxante. Sinónimos que desvendam o seu nível de satisfação com a praia, o clima, a gastronomia e até

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as pessoas. Embaixadores por excelência recomendam o destino (96%) e partilham as suas férias nas redes sociais (48%). Recomendar (96%) com uma taxa de partilha elevada (53%). Pela forte afinidade que revelam, pelo estado de espírito e pelos adjetivos que usam para definir o Algarve, constituem-se como excelentes embaixadores do destino. A região e a população algarvia agradecem a deferência e a lealdade dos turistas. Contudo, no momento, apenas precisamos de embaixadores, continuem a partilhar boas memórias, lembrem-se de nós, em breve estaremos todos juntos. Por ora separados fisicamente, mas juntos no coração! .

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OPINIÃO Gripe Espanhola de 1918 x Covid-19 Nuno Campos Inácio (Escritor e Editor) udo é passado e idealização de futuro. Aquilo a que habitualmente chamamos presente, não é mais do que a fracção de tempo que intermedeia um novo passado de um sonho destruído ou adiado. E é porque só o passado é concreto, que o conhecimento histórico adquire uma primordial importância. Se não existisse o passado, não existiria nada, já que o presente é uma constante passagem e as idealizações de futuro poderão nunca chegar a ocorrer. Ainda assim, nesta contagem filosófica do tempo, não deixa de ser de primordial importância tomar decisões no imediato, baseadas no conhecimento do passado, mas com o objectivo de delinear o futuro. É à luz deste princípio que pretendemos analisar a pandemia de Gripe Espanhola de 1918, um passado longínquo, mas que tem pontos em comum com a actual pandemia iniciada em 2019. O vírus da Gripe Espanhola foi identificado pela primeira vem em Janeiro de 1918, espalhando-se pelo mundo ao sabor dos transportes da época. É provável que tenha chegado a ALGARVE INFORMATIVO #242

Portugal antes do Verão, mas foi entre finais de Agosto e finais de Novembro de 1918 que mostrou a real dimensão do morticínio. Com uma deficiente rede de cuidados médicos, a única forma de travar a propagação do vírus era com o isolamento social. Falamos no isolamento possível e voluntário, tendo em conta que as famílias eram numerosas e, muitas vezes, viviam em pequenas habitações mal arejadas, partilhando todos o mesmo leito. Ainda assim, as autoridades emitiram comunicados pedindo à população que evitasse aglomerações, não fizesse visitas, tomasse cuidados higiénicos e que, ao mais leve sintoma, o doente se metesse na cama sem “receber, absolutamente, nenhuma visita”. Quando o ano terminou, tinham sido sepultados 1.884 algarvios oficialmente vitimados pela Gripe Espanhola, numa população global a rondar os 265 mil indivíduos. As características da região nessa época, com pequenos aglomerados populacionais espalhados pelo interior e no barrocal, terão contribuído para que a mortalidade da pandemia no Algarve não atingisse os 10% da população, como aconteceu noutras regiões. Essa influência é bem visível no número de mortes por concelho, percebendo-se que, nas localidades 122


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mais urbanas e industrializadas, com uma vida social mais intensa, a mortalidade foi muito superior, uma vez que o sistema económico se manteve em pleno funcionamento. O concelho com maior número de vítimas foi o de Silves, com uma forte indústria corticeira, que contabilizou 344 vítimas mortais, a que se seguiram os de Portimão (263) e de Lagoa (181), com as suas fábricas de conservas; Faro (163), Loulé (137), Vila do Bispo (134), Tavira (122), Albufeira (106), Aljezur (91), Monchique (84), Castro Marim (83), Lagos (53), Vila Real de Santo António (41), Alcoutim (37), Olhão (32) e São Brás de Alportel (13). Apesar desta mortalidade elevada, os surtos repetiram-se ainda em 1919 e em 1920, ainda que com um menor número de vítimas. Passado um século, o mundo vê-se a braços com uma nova pandemia iniciada em Janeiro. No entanto, acompanhando os meios de transporte mais velozes da actualidade, a pandemia espalhou-se mais rapidamente e chegou ao Algarve em Março. Basicamente, a forma de travar a propagação do vírus mantém-se inalterada: confinamento social. Aos decisores políticos da actualidade, na sua missão de idealização do futuro colectivo, apenas restava optar sobre que caminho seguir: libertar o vírus de modo a alcançar uma imunidade de grupo; ou travar a propagação, confinando a população. Num momento em que o Algarve alterou ALGARVE INFORMATIVO #242

drasticamente a sua base económica e social, triplicou a população residente em relação a 1918 e passou a receber turistas de todo o mundo, caso tivessem seguido a primeira opção, o número de vítimas em três meses alcançaria facilmente os 10% da população, mesmo tendo em atenção a melhoria das condições de saúde. O efeito de uma mortandade a este nível, teria efeitos nefastos a curto e médio prazo, destruindo a imagem da sua principal base económica: o turismo. No entanto, toda a moeda possui um anverso e um reverso e a opção pelo confinamento obrigatório limitou o número de vítimas, mas destruiu toda a estrutura económica de uma região que vive quase exclusivamente de um turismo sazonal, com consequência a curto prazo mais nefastas do que aquelas que, a final, resultarão da propagação do vírus. As medidas gerais e abstractas tomadas para todo o país, não têm aplicabilidade concreta numa região com as características do Algarve, ainda mais numa altura de arranque do seu sector económico e, aos decisores políticos de amanhã, caberá a idealização futura da região, que terá de passar por um plano especial para a região algarvia. Entre contabilizar 6.000 mortos ou 6.000 falidos, foi bem tomada a decisão de salvar as vidas. Agora importa garantir, igualmente, que essas vidas, no futuro, tenham vida e não mera existência . 124


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DIRETOR: Daniel Alexandre Tavares Curto dos Reis e Pina (danielpina@sapo.pt) CPJ 3924 Telefone: 919 266 930 EDITOR: Daniel Alexandre Tavares Curto dos Reis e Pina Rua Estrada de Faro, Vivenda Tomizé, N.º 12P, 8135-157 Almancil SEDE DA REDAÇÃO: Rua Estrada de Faro, Vivenda Tomizé, N.º 12P, 8135-157 Almancil Email: algarveinformativo@sapo.pt Web: www.algarveinformativo.blogspot.pt PROPRIETÁRIO: Daniel Alexandre Tavares Curto dos Reis e Pina Contribuinte N.º 211192279 Registado na Entidade Reguladora para a Comunicação Social com o nº 126782 PERIODICIDADE: Semanal CONCEÇÃO GRÁFICA E PAGINAÇÃO: Daniel Pina FOTO DE CAPA: Camille Leon A ALGARVE INFORMATIVO é uma revista regional generalista, pluralista, independente e vocacionada para a divulgação das boas práticas e histórias positivas que têm lugar na região do Algarve. A ALGARVE INFORMATIVO é uma revista independente de quaisquer poderes políticos, económicos, sociais, religiosos ou culturais, defendendo esse espírito de independência também em relação aos seus próprios anunciantes e colaboradores. A ALGARVE INFORMATIVO promove o acesso livre dos seus leitores à informação e defende ativamente a liberdade de expressão. A ALGARVE INFORMATIVO defende igualmente as causas da cidadania, das liberdades fundamentais e da democracia, de um ambiente saudável e sustentável, da língua portuguesa, do incitamento à participação da sociedade civil na resolução dos problemas da comunidade, concedendo voz a todas as correntes, nunca perdendo nem renunciando à capacidade de crítica. A ALGARVE INFORMATIVO rege-se pelos princípios da deontologia dos jornalistas e da ética profissional, pelo que afirma que quaisquer leis limitadoras da liberdade de expressão terão sempre a firme oposição desta revista e dos seus profissionais. A ALGARVE INFORMATIVO é uma revista feita por jornalistas profissionais e não um simples recetáculo de notas de imprensa e informações oficiais, optando preferencialmente por entrevistas e reportagens da sua própria responsabilidade, mesmo que, para tal, incorra em custos acrescidos de produção dos seus conteúdos. A ALGARVE INFORMATIVO rege-se pelo princípio da objetividade e da independência no que diz respeito aos seus conteúdos noticiosos em todos os suportes. As suas notícias narram, relacionam e analisam os factos, para cujo apuramento serão ouvidas as diversas partes envolvidas. A ALGARVE INFORMATIVO é uma revista tolerante e aberta a todas as opiniões, embora se reserve o direito de não publicar opiniões que considere ofensivas. A opinião publicada será sempre assinada por quem a produz, sejam jornalistas da Algarve Informativo ou colunistas externos. ALGARVE INFORMATIVO #242

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