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História da Medicina: Vacinas

Rita Nunes, 3º ano

Há descobertas que têm a rara capacidade de mudar o Mundo. A vacinação foi uma delas. A par da água potável, do saneamento básico e da refrigeração e congelação, constituiu um dos desenvolvimentos responsáveis pela mudança radical no panorama da saúde pública que ocorreu nos últimos 2 séculos. A prática da imunização surgiu há centenas de anos. Monges budistas bebiam veneno de cobra para conferir imunidade às mordeduras destes répteis.

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Além disso, existe evidência de que os chineses já utilizavam a inoculação da varíola no século XVII, mesmo antes desta prática chegar a África e, finalmente, à Europa.

No entanto, é a Edward Jenner (1749-1823) que se atribui, justamente, o título de pai da vacinologia. Numa altura em que a varíola era um problema extremamente preocupante para a Humanidade, causador de uma desfiguração terrível e de um número de mortes muito significativo, este médico e cientista inglês fez uma observação que se mostrou ser determinante para a história da Medicina.

Jenner reparou que as mulheres que ordenhavam vacas não ficavam doentes com varíola humana. Inspirado pelo lema do seu mestre, John Hunter: “Para quê pensar? Porque não experimentar?”, em 1796, inoculou James Phipps, o filho do seu jardineiro, com material das pústulas cutâneas de uma ordenhadora de vacas. Surpreendentemente, o rapaz de 13 anos teve uma forma discreta de varíola e ficou imune. Em 1798, foi desenvolvida a primeira vacina contra a varíola e, uma vez que o material usado na inoculação provinha da vaca (do latim “vacca”), a prática ficou para sempre conhecida como vacinação.

Jenner foi contemporâneo de Napoleão, que considerava vantajoso vacinar os seus exércitos, o que foi determinante na massificação da vacinação. Ao longo dos séculos seguintes, a imunização em massa contra a varíola intensificou-se em todo o mundo, culminando em 1979 com a sua erradicação. Atualmente, a varíola apenas existe em laboratório, para não se perderem as estirpes.

O próximo grande impacto na história das doenças humanas ocorreu com a vacina antirrábica de Louis Pasteur. As suas experiências envolveram coelhos, nos quais eram realizadas inoculações intracerebrais do vírus da raiva. Pasteur recolhia, de seguida, fragmentos secos da medula espinhal dos animais, que continham o agente inativado. A 6 de julho de 1885, Pasteur administrou, com sucesso, a sua primeira vacina a Joseph Meister, um menino de nove anos que tinha sido mordido por um cão raivoso.

O século 20 revelou-se uma época importante para o progresso da vacinação: só durante a década de 1930, foram desenvolvidas antitoxinas e vacinas contra difteria, tétano, cólera, peste, febre tifóide e tuberculose, entre outras. Na segunda metade do século, os métodos inovadores de cultura de vírus em laboratório levaram a descobertas rápidas, incluindo a criação de vacinas contra a poliomielite. Graças ao contributo do microbiologista Maurice Hilleman, também o sarampo, a papeira e a rubéola, doenças

História da Medicina

comuns da infância, foram alvo da criação de uma vacina, que reduziu muito a incidência das mesmas. O sarampo é, atualmente, o próximo alvo da erradicação através da vacinação.

As últimas duas décadas viram a genética molecular ser aplicada à vacinologia, o que permitiu o desenvolvimento de vacinas recombinantes contra a hepatite B, de uma vacina acelular e menos reativa contra a papeira e de vacinas contra o vírus da gripe sazonal. De facto, tecnologias inovadoras como a do DNA recombinante e novas formas de inoculação das vacinas conduziram os investigadores dos dias de hoje por novos caminhos, dos quais são exemplos o desenvolvimento de vacinas contra alergias, doenças autoimunes e dependências.

Além disso, a genética molecular abre portas a desenvolvimentos futuros entusiasmantes, incluindo a criação de novos sistemas de entrega de vacinas, novos adjuvantes, o desenvolvimento de vacinas contra a tuberculose mais eficazes e de vacinas em falta contra vírus e bactérias causadores de doenças graves.

A resistência às vacinas não é de agora

Apesar da evidente transformação que a vacinação originou na saúde pública, sempre houve resistência ao seu uso. Já em 1803, muito pouco tempo depois da experiência de Jenner, existia um tratado sobre os perigos da vacinação! Claramente, a ignorância relativa às vacinas e o facto de as mesmas serem eficazes incutiram receio nas pessoas. Atualmente, os movimentos antivacinas são muito diversos e a maioria não tem qualquer base científica.

A vacinação é uma prática invasiva, que tem como objetivo introduzir algo no nosso organismo de forma a desencadear uma resposta. A administração das vacinas continua a ser feita praticamente da mesma forma que nos seus primórdios e muitas pessoas rejeitamna por medo da picada. Na verdade, deveriam existir formas mais evoluídas de as administrar.

Desde os seus primórdios, mais mortes do que poderíamos alguma vez contar foram evitadas por vacinas, e ainda mais vidas serão poupadas a um final terrível com as inovações que se adivinham durante o nosso tempo de vida. Basta pensarmos na rapidez e eficácia com que as vacinas contra a Covid-19 foram desenvolvidas para ficarmos com a confiança redobrada.

Cultural: Médicos da Minha Terra

Inês Cabral Lopes, 5º ano

A rubrica “médicos da minha terra” é o espaço perfeito para vos contar a história de dois médicos muito importantes para mim: Dr. Evaristo de Sousa Gago e Dr. António Pires Cabral, os meus dois bisavôs maternos. Apesar de não os ter conhecido, as suas vidas ecoam pelas memórias da minha família e é com muito prazer que venho aqui passar o testemunho dos seus grandes feitos e do seu espírito de missão.

Evaristo de Sousa Gago nasceu a 26 de junho de 1908, em São Braz de Alportel. Estudou no liceu de Faro e ingressou, de seguida, na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. À procura de mais prática clínica, pediu transferência para Lisboa, onde concluiu o curso.

Como naqueles tempos era muito difícil arranjar trabalho, deixou a capital à procura de um lugar para exercer. Assim, na década de trinta, monta o seu primeiro consultório em Grândola e casa-se com Maria Cândida Pereira de Matos. Exerce sempre a sua atividade sem ligação ao Estado e, embora trabalhasse também no Hospital de Grândola, não recebia vencimento. Trabalhava excessivamente e acabava o seu dia a horas tardias, muitas vezes de madrugada.

Vai ganhando fama pelas terras vizinhas, não só pelo seu olho clínico apurado, como pela sua faceta humana e magnânima: não cobrava consultas aos pacientes com dificuldades financeiras, oferecia dinheiro para a compra de medicamentos, realizava tratamentos de forma gratuita. À cabeceira de doentes em perigo de vida, doava até do próprio sangue, a ponto de debilitar a sua saúde – a minha bisavó contava das suas tentativas de encobrir as transfusões para não a preocupar. Porém, ao chegar a casa, o seu pedido denunciava-o: um cálice de porto e um punhado de nozes.

Transportava frequentemente doentes até Lisboa, no seu carro, para realizarem exames e receberem tratamentos, devido à falta de recursos de um consultório de província. As memórias destas longas viagens são contadas pela minha avó, que assistia a tudo em criança, apertada lá atrás no banco do carro, a caminho de Lisboa.

A fama espalhou-se e vinham bater-lhe à porta pessoas de todo o país. Passaram a chamar-lhe “Nossa Senhora de Fátima do Alentejo”, pelos “milagres”, pelas ajudas e pela “peregrinação” que tantos faziam até Grândola.

Como todos os heróis, a morte veio mais cedo: faleceu aos 67 anos. O seu funeral foi o maior da história da terra. Passados alguns anos, para o homenagear, o povo erigiu-lhe uma estátua, que se encontra no centro da vila.

Contemporâneo e amigo de Evaristo era,

Cultural: Médicos da Minha Terra

pois, o meu outro bisavô, António Pires Cabral, pai do meu avô materno. Nasceu a 19 de setembro de 1903 na Beira Alta, em Celorico da Beira Gare. Fez o liceu na Guarda e, à semelhança do colega, iniciou o curso de medicina em Coimbra e terminou-o em Lisboa, com 18 valores!

À procura de trabalho, voltou a terras beirãs e montou o primeiro consultório em Loriga, na Serra da Estrela. Após um ano, decide correr o mundo a bordo, como médico da marinha mercante: visitou o Japão, China, Índia, Brasil, Argentina... Mas, três anos depois, a companhia foi extinta e António atraca em Lisboa, desempregado.

Um dia, pelas ruas da capital, encontra um colega que acaba de deixar o cargo de médico numa pequena aldeia alentejana. Sabendo da situação de António, sugere que este concorra à posição. Tempos depois, Dr. Pires Cabral é o novo médico da Azinheira dos Barros. Passado um ano, em 1933, casa-se com Emília Gomes Cabral e têm quatro filhos.

Para além da aldeia, muito mais populosa na altura, existiam diversos montes alentejanos, isolados e dispersos naquela região, aos quais António socorria, a qualquer hora. Sem luz elétrica, sem enfermeiros e sem carro, era médico para toda a obra: fazia partos, tirava dentes, realizava pequenas operações cirúrgicas. Quando as doenças exigiam tratamento no hospital, redigia uma carta a colegas cirurgiões e encaminhava os seus doentes para Lisboa.

Também trabalhava na mina do Lousal e zelava pelos interesses dos mineiros, prejudicados pela baixíssima qualidade de vida e pelos inúmeros acidentes que ocorriam nas minas. A população era muito pobre, por isso, raramente cobrava consultas e urgências.

Conhece eventualmente Evaristo, médico na terra vizinha, e ajudam-se mutuamente. Conta o meu avô, que um dos primeiros encontros entre ambos terá sido quando contraiu febre tifoide, aos oito anos. O seu pai António, aflito por não ver melhoras rápidas, procura Evaristo, que o tranquiliza.

A partir da década de cinquenta, António deixa a mina do Lousal, para ajudar Evaristo no consultório de Grândola. Ambos procuravam estar sempre atualizados na sua área, comprando livros e assinando revistas médicas.

Reformou-se aos 74 anos e faleceu aos 81.

O povo construiu-lhe um busto, homenagem a uma vida inteira de dedicação aos mais pobres e necessitados. Vale lembrar que os dois médicos estreitaram ainda mais a sua relação quando o filho de António casou com a filha de Evaristo, em 1964. Trinta e cinco anos depois nasço eu, que vos conto esta história de dois bisavôs, médicos no sentido mais íntegro e humano da palavra. Com muita admiração, procuro seguir os seus passos e tornar-me, também eu, nesta ajuda preciosa e bonita que é ser médico.

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