
NietzschePessoaRosaFreud
Belo 2017Horizonte ISBN: 978-85 -8239-069-6 II Colóquio Internacional
Planejamento e DesenvolvimentoInstitucional: Carlos Barreto Ribas Diretora do Instituto de Ciências Humanas: Carla Santiago Ferretti
Chefe do DepartamentoLetras:de Juliana Alves Assis Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras: Juliana Alves Assis Coodenadora do Centro de Estudos brasileiros:Luso-afro- Raquel Beatriz Junqueira Guimarães
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Chefe de Gabinete do Reitor: Paulo Roberto de Souza Pró-Reitores: Extensão– Wanderley Chieppe Felippe; Gestão Financeira – Paulo Sérgio Gontijo do Carmo; Graduação – Maria Inês Martins; Logística e Infraestrutura – Rômulo Albertini Rigueira; Pesquisa e Pós-graduação – Sérgio de Morais Hanriot; Recursos Humanos – Sérgio Silveira Martins; Arcos – Jorge Sundermann; Barreiro – Profa. Lucila Ishitani; Betim – Eugênio Batista Leite; Contagem – Robson dos Santos Marques; Poços de Caldas – Iran Calixto Abrão; Praça da Liberdade – Prof. Miguel Alonso de Gouvêa Valle; São Gabriel – Prof. Alexandre Resende Guimarães; Guanhães e Serro – Ronaldo Rajão Santiago; Secretário de Comunicação: Mozahir Salomão Bruck
Vice-Reitora: Patrícia Bernardes Assessor EspecialReitoria:da José Tarcísio Amorim
Secretário-Geral: Ronaldo Rajão Santiago Cultura e Comunitários:Assuntos Maria Beatriz Rocha Cardoso
Grão-Chanceler Dom Walmor Oliveira de Azevedo Reitor: Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães
FreudRosaPessoaNietzsche Organizado por Audemaro Taranto Goulart Ilka Franco Ferrarri II Colóquio Internacional PUC MINA S Ps le tr asP ó s -Pós - letr as FUMAR C Desd e 197 8Fundação Mariana Resende Costa ProgramaPsicologiadePós-graduação

FICHA CATALOGRÁFICA
1. Literatura - Filosofia. 2. Psicanálise e filosofia. 3. MúsicaFilosofia e estética. 4. Religião e literatura. I. Goulart, Audemaro Taranto. II. Ferrarri, Ilka Franco. III. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. IV. Universidade de Lisboa. V.CDU:Título.82.09
http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/about/editorialTeam Equipe editorial
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Colóquio Internacional (2. : 2017 : Belo Horizonte) Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio Internacional / organização de Audemaro Taranto Goulart e Ilka Franco Ferrarri. Belo Horizonte: PUC Minas, 2017. 1 recurso eletrônico ISBN: 978-85 -8239-069-6

Conselho editorial
Editora-Gerente: Raquel Beatriz Junqueira Guimarães Coordenação Editorial: Ev’Angela Batista Rodrigues de Barros Editora da área de Literatura: Terezinha Taborda Moreira
Revisão/preparação dos originais: Maria Auxiliadora Blom Estagiárias: Júlia Magalhães e Tatiane Batista Silva Machado Capa, projeto gráfico e diagramação: Jefferson Ubiratan de A. Medeiros
Sumário Apresentação Ei-los, os quatro grandes Audemaro Taranto Goulart e Ilka Franco Ferrari ............................................................................................. 9 Artigos Além-Deus e Morte de Deus: Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa Paulo Borges ...................................................................................................... 41 O modelo político dos impulsos em Nietzsche Rogério Lopes ..................................................................................................... 69 Nietzsche e Wittgenstein: estética e perspectivismo Nuno Ribeiro ...................................................................................................... 87 Os paradoxos da liberdade em Freud e Schopenhauer: o amor e o outro Jacqueline de Oliveira Moreira ....................................................................... 105 Espelho da noite: a valorização dionisíaco-noturno da música no jovem Nietzsche Clovis Salgado Gontijo Oliveira ...................................................................... 119 Notas sobre perspectivismo e heteronímia Olímpio Pimenta ............................................................................................... 133 Experiência estética e liberdade em Freud e Nietzsche Guilherme Massara Rocha ............................................................................... 141 Letras em análise José Martinho ................................................................................................... 157 As figuras do feminino na obra poética de Fernando Pessoa Magda Guadalupe dos Santos .......................................................................... 169
O psicanalista, o linguista e o poeta –“... tudo termina em silêncio e poesia”!? Márcia Rosa ..................................................................................................... 185 A verdade extra-moral de Nietzsche a Freud Antonio Teixeira ............................................................................................... 201 A vertente utópica-milenarista do pensamento de Fernando Pessoa José Eduardo Reis ............................................................................................ 211 Sinto-me múltiplo: a pré-heteronímia pessoana e o romantismo alemão Cláudia Franco Souza ..................................................................................... 229 Fernando Pessoa: heteronímia e organização Marcus Vinícius de Freitas ............................................................................... 243 Religiosidade, crenças e mitos em Guimarães Rosa Marli Fantini .................................................................................................... 253 O Aldaz Navegante de Guimarães Rosa: ressonâncias odisseicas Adélia Bezerra de Meneses .............................................................................. 277 O erudito e o mal-dito em “Famigerado”, de Guimarães Rosa Cleusa Rios P. Passos ....................................................................................... 295 Sobre os autores ................................................................................................ 310
A primeira menção, por óbvia, é a da fala de abertura do evento que se deu com a magistral conferência “Além-Deus e Morte de Deus: Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa”, do Professor Paulo Borges, da Universidade de Lisboa. As expectativas que se abriram a partir do anúncio da fala do professor português, desenhadas em função do título de seu texto, tiveram significativa receptividade, levando o público à projeção do que poderia vir a ser o cenário que se delinearia no resto do evento.
Comecemos, pois, o trajeto que vai projetar o desfile dos principais participantes do II Colóquio, operando aquele “acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia...,” tal como disse alhures o velho Machado de Assis.
Ilka Franco Ferrari 1 São quatro luminares de nacionalidades diferentes. São duas línguaspátria em que se expressaram: dois deles em alemão e os outros dois em português. Três campos do saber se misturam nas suas falas: filosofia, literatura e psicanálise. Estamos falando de um alemão, Nietzsche, de um português, Fernando Pessoa, de um brasileiro, Guimarães Rosa e de um austríaco, Freud. Eles constituem o núcleo de reflexões e discussões que se fizeram no “II Colóquio Internacional: Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud”, evento realizado em Belo Horizonte, resultado de uma articulação entre a PUC Minas e a Universidade de Lisboa. Professores de universidades brasileiras e portuguesas debruçaram-se sobre a obra dos quatro pensadores da ciência e da cultura. E o resultado encantou a quantos participaram do evento. Aqui, nesta publicação, fica o registro do que se falou, refletiu e debateu durante três dias, na conferência de abertura e nas mesasredondas.
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Ei-los, os quatro grandes Audemaro Taranto Goulart
A fala de Paulo Borges instigou reflexões aprofundadas que transitaram nos mais diversos níveis, restando delas a convicção de que o ser pensante há de sempre se sobrelevar aos que estacionam na superfície dos fenômenos, sem deles extrair o que pode representar um mais-saber do mundo e da própria existência. Desse modo, o conferencista reuniu três grandes nomes para mostrar a afinidade temática que promana de suas obras, “à luz de um essencial pensar do impensado”. Nesse ponto capital, discute-se a figura da divindade, considerando as colocações de Mestre Eckhart, frade dominicano, filósofo e teólogo da era medieval, associadas às agudas reflexões de Nietzsche e de Fernando Pessoa. Do filósofo alemão já são por demais conhecidas suas posições sobre a morte de Deus e quanto a Mestre Eckhart, basta citar uma parte das colocações de Paulo Borges para se ter a dimensão das reflexões do teólogo dominicano no tema em questão. Na conferência do professor da Universidade de Lisboa, lê-se: “Foi quando, ‘por livre determinação da vontade’ (aus freiem Willensentschluß), [o ser humano] saiu dessa primordial e pura imanência recebendo o ser criado, que passou a ter “um Deus”, pois antes de haver “criaturas” Deus não era “Deus”, mas apenas “o que (...) era”, sendo somente pela constituição das “criaturas” que Deus deixa de o ser em si mesmo para passar a sê-lo nelas”.
Também preciosas são as colocações feitas sobre um outro texto de Pessoa, bastante afim ao Tratado da Negação. Trata-se de O Desconhecido, onde se fazem afirmações que, inclusive, ultrapassam a reflexão filosófica para situarem-se no plano da criação literária, o núcleo da produção artística de Pessoa. É o que se pode constatar Ei-los, os quatro grandes 10 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Quanto ao poeta português, cita-se o Tratado da Negação, texto apresentado por Rafael Baldaia, uma das personalidades literárias de Fernando Pessoa, em que se sustenta que “o Mundo é formado de duas ordens de forças”, as “que afirmam” e as “que negam”, sendo as primeiras “as criadoras do mundo, emanadas sucessivamente do Único, centro da Afirmação”, e as segundas as que “emanam de além do Único”. Assim, o “Único”, ainda que sendo a fonte da emanação criadora confronta-se com as forças que negam e que estão além dele.
Audemaro Taranto Goulart e Ilka Franco Ferrari 11
Rogério Lopes, professor da UFMG, focalizou “O modelo político dos impulsos em Nietzsche”, destacando, já no início de seu texto, que “Nietzsche desenvolve seu modelo pulsional em contraposição direta ao modelo proposto por Schopenhauer em sua metafísica da vontade”. Neste aspecto, verifica-se nas reflexões de Rogério Lopes que há uma certa estranheza que os dois filósofos, reconhecidos e respeitados por sua trajetória e partindo de “premissas metafísicas essencialmente iguais”, pudessem alcançar posições relativas a um conhecimento do mundo tão contrastantes.Para ilustrar como o autor do texto dá a ver a oposição que Nietzsche coloca em relação a aspectos marcantes do pensamento schopenhauriano, cite-se o reparo que Rogério Lopes coloca ao afirmar que “ausência de finalidade da vontade”, que é efetivamente uma das marcas essenciais do conceito schopenhaueriano de “vontade de vida”, não é de modo algum concebida por Nietzsche como tal, mas antes como um resultado contingente e patológico de certas formas de vida e que remete a estruturas do autoengano e a estratégias de autodefesa em situações de vulnerabilidade”. Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
2 Na área da filosofia, como não poderia deixar de ser, a obra de Nietzsche foi contemplada pela maioria dos filósofos que participaram do Colóquio.
com o conceito mesmo de criação, onde pontifica o princípio de que “Tudo é ilusão”, pois tudo é criação , e toda a criação é ilusão. Criar é mentir e Ser é não-ser”. Nesse conjunto de afirmações, tem-se o cerne mesmo da criação artística tal como postula Wolfgang Iser em seu “Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional” . No caso específico do texto literário, verifica-se que a repetição da realidade é um ato de fingir, um ato que produz uma ação que faz aparecer o imaginário, este sim, uma instância que, ao tornar a realidade um signo, transgride os limites dessa realidade, ao transfigurá-la.
Nietzsche vincou profundamente suas posições sobre o conceito de impulso, marcado sobretudo com a convicção de que todo impulso revela sua propensão à instância do poder. Pode-se, inclusive, reconhecer claramente a contraposição entre Nietzsche e Schopenhauer a partir da passagem seguinte, extraída do texto de Lopes: “Aos olhos de Nietzsche, é mais fundamental restituir algum tipo de intencionalidade ao modo de atuação dos impulsos do que a pluralidade, característica que tem sido destacada pela maior parte dos estudos comparativos dedicados aos dois filósofos”. É significativo, como indica o texto, que Nietzsche tenha privilegiado o poder como elemento definidor dos impulsos na cultura grega. É importante lembrar como o mundo grego seduziu as trajetórias cursadas na filosofia e na estética, oportunidade em que se pode lembrar de Friedrich Schiller que, a exemplo de Nietzsche, amparou muito de suas reflexões sobre a estética a partir da originalidade dos gregos. No que se refere a essa propensão também presente em Nietzsche, é esclarecedora a passagem abaixo, que Rogério Lopes extrai de Humano, demasiado Humano: “Eles eram tiranos, ou seja, aquilo que todo grego queria ser e que todo grego era, se podia sê-lo. Talvez Sólon tenha sido a única exceção; em seus poemas ele diz como desprezava a tirania pessoal. Mas o fazia por amor à sua obra, à sua legislação; e ser legislador é uma forma sublimada de tirania”. 3 Outra contribuição destacada no plano da filosofia é “Nietzsche e Wittgenstein: estética e perspectivismo”, do professor português Nuno Ribeiro. As reflexões transitam no espaço que envolve as “conexões entre estética e perspectivismo nos pensamentos de Nietzsche e Wittgenstein, tendo em consideração as múltiplas pistas fornecidas nas obras destes dois pensadores a respeito dessa temática”, conforme anuncia o conferencista. Ei-los, os quatro grandes 12 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Outro reparo que Nietzsche apresenta às reflexões de Schopenhauer diz respeito à substituição que o filósofo do “Mundo como vontade e representação” fez para substituir o dualismo entre corpo e alma pelo dualismo entre vontade e representação.
É comum ouvir-se que a filosofia terá sido o domínio em que mais se aprofundaram as reflexões a respeito da estética, até porque esta é uma instância que envolve concepções e moduladores teóricos que se recobrem numa extensa rede nem sempre acessível a cogitações desprovidas do rigor conceptual que o tirocínio filosófico exige. No texto de Nuno Ribeiro, pode-se perceber como se desenvolve o raciocínio que aproxima as reflexões de Nietzsche e de Wittgenstein no enfoque do perspectivismo e da estética. No caso de Wittgenstein, o autor do texto chama a atenção para a especial dimensão que coloca a filosofia como “poetar”, no horizonte de concepções do filósofo austríaco. Wittgenstein é, sem dúvida, importante representação de uma inteligência que de modo mais agudo foca a questão da filosofia da linguagem. São muito conhecidas suas posições no advertir que a linguagem não é capaz de dar conta do real, sobretudo nos momentos em que ela se vê incapaz de dizer o que ultrapassa a realidade fenomênica para alcançar uma transcendência. Estabelece-se aí, então, a distinção entre o dizer e o mostrar o que abre a efetiva possibilidade de se pensar na contribuição da estética para tornar mais plausível o dizer e também para mostrar, através do universo sugestivo da construção poética, o que se pode vislumbrar numa realidadeIssotranscendente.éoquese pode apreender das palavras de Nuno Ribeiro quando diz que “a concepção da filosofia como “poetar”, presente no pensamento de Wittgenstein, deve ser, então, compreendida no quadro da construção wittgensteiniana de jogos de linguagem fictícios e na capacidade da linguagem de inventar outros modos de olhar para um mesmo objeto.
No que se refere ao perspectivismo em Nietzsche, que abre a compreensão para se pensar a dimensão estética na obra do filósofo, o conferencista chama a atenção para a “criação de uma pluralidade de personagens conceptuais correspondentes a uma pluralidade de perspectivas e alternativas, representando várias possibilidades de se relacionar com o mundo”. Isto equivale uma multiplicidade de pontos de vista acerca de um mesmo objeto. Nuno Ribeiro ainda refere-se à criação de uma pluralidade de
Audemaro Taranto Goulart e Ilka Franco Ferrari 13Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Mas Jacqueline pergunta se os seres humanos e os animais seriam uma espécie de máquina, mostrando como no século XIX desenvolveu-se o postulado de considerar o ser humano como máquina. Isto, evidentemente, abria a perspectiva de se poder investigar a natureza humana sob ângulos supostamente precisos.
personagens conceptuais em Assim Falava Zaratustra: os “homens superiores”, o “sobrehumano”, o “último papa” e os “pregadores da morte”. Completando a relação entre a estética e o perspectivismo nietzschiano, o texto indica também uma pluralidade de estilos, tal como se pode notar em passagens de Ecce Homo em que pontificam sinais tipicamente estéticos como a afecção interior, marcada no ritmo em que eles se fazem presentes.
O texto avança, então, para mostrar como Freud, fundando-se em Schopenhauer, valoriza o determinismo psíquico, já que nada na vida mental é arbitrário. Como se sabe, Freud, no seu Mal-estar na cultura, coloca liberdade e determinismo em campos antagônicos. O texto destaca, então, o aspecto da liberdade individual que o Ei-los, os quatro grandes 14 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Ainda nesse campo, destaque-se o texto “Os paradoxos da liberdade em Freud e Schopenhauer : o amor e o outro”, da professora da PUC Minas, Jacqueline de Oliveira Moreira. Tomando o tema da liberdade, a autora do texto ressalta que a liberdade se caracteriza “no espaço de reconhecimento do outro, sendo o amor uma possibilidade de abertura ao campo da alteridade”. Desenvolvendo seu raciocínio, Jacqueline Oliveira elege a metáfora do relógio para mostrar que o funcionamento das máquinas podia ser compreendido através de uma análise que levasse em conta o conhecimento de seus componentes básicos. Essa é uma premissa da ciência que se assenta nos princípios da física de Newton, em que prevalece um grande determinismo que pode ser assim sumariado: se se souber num determinado momento onde e como os corpos se encontram, como se dá seu movimento e sob que influência, será possível determinar como se dará seu futuro.
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Citando Lacan, Jacqueline Oliveira mostra que o inconsciente é ético e não ôntico porque é constituído na relação com o outro
Audemaro Taranto Goulart e Ilka Franco Ferrari 15Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio
sujeito procura, advertindo que não se pode ingenuamente pensar que Freud estivesse postulando a liberdade total já que isso poderia produzir efeitos danosos aos indivíduos.
Destacando os lugares que determinismo e liberdade ocupam em todo o processo, o texto coloca reflexões que são esclarecedoras para a compreensão dessas instâncias e do papel que lhes cabe no sistema: “O inconsciente, portanto, determina, mas determinismo e liberdade não são opostos. O ics determina a liberdade moral que anuncia a pertinência ao mundo humano, sendo este, então, um determinismo que anuncia seu encontro com a alteridade através da experiência edípica, momento em que o ics é forjado”. 5
A proposta do conferencista foi abordar o primeiro momento em que se fazem presentes a metafísica de Schopenhauer e o projeto artístico-musical de Wagner, chamando a atenção para o fato de que se insinua nesse segmento uma simbologia marcada nos indicadores da luz e da obscuridade. É notória a perspectiva que o texto abre para deixar clara a importância do fenômeno musical na obra de Nietzsche, de vez que a presença da música se espalha por grande parte da produção do filósofo, podendo ser rastreada nas três fases a que se aludiu. Assim, Clóvis Oliveira mostra que ao “pessimismo romântico corresponde
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A obra de Nietzsche tem abordagem bastante original e produtiva no texto “Nietzsche e a experiência musical: três momentos, três luminosidades”, de Clóvis Salgado Gontijo Oliveira, professor na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Clóvis Oliveira indica, inicialmente, a divisão que Charles Andler fez da obra do filósofo, marcada em três fases: a do “pessimismo romântico” (1869-1876), seguida pelo chamado “positivismo cético” (1876-1881), alcançando-se a terceira fase a que se denominou “período de reconstrução” (1882-1888).
Estaria nessas perspectivas a valorização que o jovem Nietzsche faz da esfera sonora devido a suas raízes noturnas e obscuras. Também notória é a associação do noturno com a figura de Dioniso, o deus dos movimentos descentradores. Seus cultos orgíacos desenvolviam-se preferentemente à noite, em contraposição ao divino Apolo, o deus-sol e da inspiração profética, marcado pela luminosidade do dia resplandecente.
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exacerbado elogio às potencialidades musicais e ao drama wagneriano; ao positivismo cético, um momento de “niilismo musical”, regado de críticas ao repertório romântico e pontuado por passagens de desvalorização da própria arte sonora e do sentido auditivo; e ao período de reconstrução uma retomada da apreciação positiva do fenômeno musical, a essa altura apoiada sobre novos fundamentos, assim como sobre novas composições e estilos”.
Nessa condição, a música, por sua associação com a noite e o mundo obscuro, como que indica a diminuição do valor do visual que se associa à claridade e à percepção exteriorizada do mundo.
É também significativa a colocação que põe em relevo a arte sonora enquanto afirmação da metafísica da música em Schopenhauer, uma posição que Nietzsche acolheu inicialmente. Clóvis Oliveira explicita isso de modo consistente quando evoca o capítulo 52 do livro III da obra schopenhaueriana O mundo como vontade e representação, destacando a independência que a música tem em relação aos fenômenos uma vez que as demais artes sempre têm na sua perspectiva a representação de um modelo, o que não se dá com a música já que nela não se foca um objeto externo para se pôr em evidência e nem mesmo em ideias que pudessem representar algo mais objetivo. Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud:
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É bastante significativa a valorização da noite enquanto momento criador e de inegável propulsão, tal como se pode depreender da citação que se faz de Albert Béguin, para quem a noite é “a mãe do Dia, a fonte dos seus esplendores: sem ela, o mundo da luz acabaria por se desfazer no espaço infinito. E foi a Noite quem enviou as criaturas ao mundo, para que o santifiquem pelo amor e nele semeiem flores imperecíveis”.
A heteronímia, pelo que traz de possibilidades de confronto com a realidade objetiva, dá a ver sua condição de movimento verticalizado, até porque se assenta sobre o aspecto de trabalhar com dados que não variam. Desse modo, Olímpio ilustra a variedade, ou a multiplicidade, com os heterônimos de Pessoa, lembrando que existe uma significativa diferença ente Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, tanto nos aspectos do temperamento quanto nos da formulação de ideias. É assim que o texto destaca o fato de que os dois heterônimos “não são tipos distintos, derivados de uma humanidade essencialmente comum, mas entes realmente diferentes, pouco importando se de carne ou papel, que só existem a partir da tensão recíproca vigente entre eles”. Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud:
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6 O texto do Professor Olímpio Pereira, da UFOP, também investe na questão do perspectivismo, como o demonstra o seu “Notas sobre perspectivismo e heteronímia”, que procura estabelecer uma articulação entre a filosofia perspectivista de Nietzsche e a poética. Reconhecendo que a dimensão da heteronímia está associada à pluralidade (e aí cita-se uma frase de Fernando Pessoa: “Sê plural como o universo!”), o conferencista chama a atenção para a necessidade de que os sujeitos reconheçam tal aspecto em si mesmos.
Citando Schopenhauer, o texto mostra que a música, ‘pela sua natureza nunca pode constituir o objeto de uma representação’. “Em outros termos, a música se definiria ‘como cópia de um modelo que nunca pode, ele mesmo, ser representado diretamente’, ou seja, para além de um mero jogo de palavras, como representação do irrepresentável”.Afalade
Clóvis Salgado de Oliveira levanta aspectos importantes para se pensar a música de uma outra perspectiva, não aquela a que, normalmente, estão afeitos aqueles que com ela se deleitam.
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Há, assim, na fala de Olímpio Pereira, o reconhecimento de que nossa cognição estabelece uma mediação com os objetos que procuramos conhecer mas nosso acesso a qualquer realidade última é impossível, embora isso não decorra de falha de nossa cognição mas sim da contestação do ideal de episteme, uma vez que se caracteriza a impossibilidade da verdade definitiva. Olímpio Pimenta refere-se, já nos encaminhamentos finais de seu texto, à natureza antropomórfica e ficcional do conhecimento. Isso parece bem configurado na famosa conceituação que Nietzsche faz a respeito do tema, tal como está num texto de 1873, publicado postumamente, indicando que o conhecimento não tem origem mas sim o fato de que o conhecimento foi inventado. Ao falar do assunto no seu A verdade e as formas jurídicas, Foucault fala da beleza e das dificuldades desse texto, chegando, inclusive, a colocar no mesmo plano da invenção a religião e a poesia. 18 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
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Mas a questão do perspectivismo levanta uma dificuldade que é apontada no texto. Como de um ponto de vista seria possível determinar todos os outros? Isso pode indicar também uma outra formulação como, por exemplo, indagar se a enunciação da verdade sobre o todo não dependeria de um olhar totalizante, não perspectivo.
Inserindo a figura de Nietzsche nas reflexões, o autor do texto chama a atenção para o comprometimento que o filósofo tinha, em seu primeiro livro, com o par conceitual essência/aparência, o que vai ser redesenhado posteriormente para a recusa do dualismo que acaba substituído pela pluralidade efetiva do mundo vivido. Não é, pois, absolutamente explicável que tal disposição nietzschiana tenha marcado de maneira tão singular muitos filósofos que o sucederam no tempo, como é o caso de Jacques Derrida que investe decididamente contra toda e qualquer espécie de dualismo.
Mas a coerência que se pode determinar na dimensão do perspectivismo resulta, no caso da dificuldade apontada acima, na colocação de que a verdade não pode ser vista entre as palavras e as coisas mas entre os participantes de uma vida comunitária. Assim, como diz o texto, “verdade e erro dizem respeito a nossa apropriação do entorno, e não ao que quer que sejam os objetos que povoam este entorno”.
É esclarecedor, nesse sentido, o que o professor da UFOP coloca como fecho de seu texto: “Reconhecido o caráter antropomórfico e ficcional do conhecimento, o mais honesto a fazer é reduzir os danos disso em nossos empreendimentos que envolvem a cognição. Nessa direção, Nietzsche obtém bons resultados ao promover um desencantamento da linguagem, denunciando o fetichismo vigente em seus usos corriqueiros, conforme sugerido anteriormente. Se o que chamamos de mundo é resultado de nossa apropriação, algo que se torna mundo ao ser moldado segundo nossa imagem, importa multiplicar ao máximo as formas dessa imagem, estimulando a produção de sensibilidades variadas, o que trará consigo novas perspectivas, e daí novos mundos. Onde o poeta português encontra ocasião para a proliferação de estilos e personalidades, o filósofo alemão cria tipos e personagens conceituais. Em última análise, um heterônimo equivale a uma perspectiva complexa”. Note-se, então, a confluência entre as reflexões de Nietzsche e a produção poética de Fernando Pessoa. Há ali toda uma concepção de pluralidade, como a apropriação que fazemos do mundo, segundo nossa imagem. O poeta se multiplica de tal modo que sua heteronímia é muito mais ampla que os quatro autores que normalmente são citados. Especialistas chegam a falar em setenta e quatro, havendo mesmo alguns exagerados que elevam esse número a mais de duzentos. De todo modo, isso é o resultado da produção desse poeta tão múltiplo que o mundo parece ser pequeno para tantas projeções em perspectiva. 7 A área da psicanálise produziu inúmeras reflexões situadas no seu núcleo específico assim como variadas intertextualizações com outros segmentos. É o caso do texto “Experiência estética e liberdade em Freud e Nietzsche”, de Guilherme Massara Rocha, professor da UFMG, que propõe um diálogo entre a psicanálise e a filosofia, com aproximações que focalizam as obras de Kant, Schopenhauer e Nietzsche
Audemaro Taranto Goulart e Ilka Franco Ferrari 19Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Lembre-se, a respeito, o clássico O poeta e o fantasiar, texto iluminador da proximidade entre a criação literária e a fantasia infantil na criação de brincadeiras.
Diga-se ainda que as reflexões que Massara faz a respeito do sublime são absolutamente essenciais para compreender a caracterização da fruição a que se entrega o sujeito diante do belo. Falando da redescoberta do sublime por Edmund Burke em meados do século XVIII, Guilherme Massara faz instigantes reflexões que mostram a relação que se estabelece entre a sublimação freudiana e a noção de sublime.
Destaquem-se, então, as esclarecedoras afirmações que Guilherme Massara faz a respeito do tema quando coloca: “De modo geral, a atividade artística é compreendida por Freud como uma via privilegiada de expressão e transformação do conflito psíquico. O artista lhe aparece, pois, como alguém que cria com seus objetos vias de escoamento para aspectos de sua constituição pulsional que, de outro modo, assumiriam características afins ao sofrimento psíquico”.
Cite-se, a propósito, as seguintes colocações sobre o tema, feitas pelo conferencista: “A doutrina freudiana da sublimação, brotada do solo de investigações sobre as vicissitudes da sexualidade, culmina com um certo apelo de espiritualização que se traduz, no texto de Freud, pela ideia de que os objetos por ela visados seriam mais “elevados”. Essa proposição, conjugada à ideia de que a sublimação visaria uma certa “desexualização” da pulsão, dá ensejo às inferências de que o movimento sublimatório tem por horizonte uma certa tomada de distância em relação ao sensível, ou aos apelos do pathos erógeno da constituição e dos apetites corpóreos”.
Acrescentando as reflexões de Kant sobre o sublime, o conferencista faz afirmações que projetam um conceito bastante esclarecedor do sublime, na medida em que chama a atenção para o fato de que a experiência diante dele coloca-se como comoção, “como pura expressão de assombro diante da incomensurabilidade do Ei-los, os quatro grandes 20 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Lugar de destaque é conferido à presença da ciência e da arte na obra de Freud, daí a proposição de Guilherme Massara de indagar “em que medida episteme e ars poética coexistem na doutrina metapsicológica”. A importância que Freud atribuiu às manifestações artísticas dizem muito desta pertinência com a prática da psicanálise.
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real (ou da natureza, como prefere Kant) ou como “calma sombreada de horror” na expressão de Edmund Burke (BURKE, 1757/1998), p.79), derivada da timbragem aniquilante que se impõe ao sujeito frente ao peso do universo infinito”. Na esteira de Kant, coloca-se que o sublime produz uma passagem ao suprasensível o que retira “os objetos humanos do domínio da razão teórica e os reabsorve no plano da razão prática”, destacando que o “momento trágico” de sua filosofia situase na aludida passagem da razão teórica à razão prática como passagem do sensível ao supra-sensível”.Comose pode deduzir de quanto aqui se sumariou, o exame e a tipicidade da obra de arte passam por circuitos que não se limitam, exclusivamente, à manifestação de uma beleza que subsumiria o reconhecimento de uma subjetividade privilegiada. 8 A intercessão da psicanálise com a literatura tem presença significativa no texto “Letras em análise”, do psicanalista português José Martinho, Presidente da Antena do Campo Freudiano, de Portugal. Referindo-se a uma afirmação de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, de que “toda arte é literatura”, Martinho assegura que a psicanálise “pode extrair, do mais manifesto ao latente das obras, poemas, dramas, romances, em suma, frases silenciosas ou não que podem ler o sintoma ao pé da letra”. Daí o interesse do conferencista em ler o sintoma de Fernando Pessoa e, para fazê-lo, detalha, dentre várias perspectivas, uma das mais instigantes que é o relacionamento do poeta com Ophélia Queiroz. Neste particular aspecto, José Martinho mostra como Pessoa age no sentido de desviar-se “do alvo genital da libido”, tal como se observa numa das asserções mais curiosas do poeta, ao romper o namoro com a suposta mulher amada, afirmando surpreendentemente (para Ophélia e para os leitores) que “o seu destino não pertencia a nenhuma mulher, mas a Mestres obscuros, que não permitiam, nem perdoavam”. Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: Colóquio
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É também relevante a afirmação que o autor do texto faz ao dizer que tal desfecho como que já estava consignado desde o princípio do relacionamento, a partir da constatação de que Ophélia tem o mesmo nome da personagem trágica do Hamlet, de Shakespeare, e isso não seria uma mera coincidência. Martinho arremata a aproximação, dizendo que “Ophelia provém etimologicamente de Omphallus, o O-falo cobiçado, a conquistar, mas que acabou por murchar, morrer, como acontece na tragédia do Bardo com aquela com quem o filho do Ghost se devia casar”. 9 Há uma proximidade entre a abordagem anterior, do Prof. José Martinho, e a conferência da professora Magda Guadalupe dos Santos, da PUC Minas, que focaliza a questão das figuras do feminino na obra poética de Fernando Pessoa. Magda elege como núcleo de suas reflexões a correlação entre textos pessoanos, como as “Quadras ao gosto popular”, algumas cartas de Pessoa para Ophélia Queiroz e o texto autodiegético “Carta da corcunda ao serralheiro”. É nesses textos que se manifesta e se disfarça a figura do poeta Fernando Pessoa que prodigaliza diversas máscaras para pôr em circulação um olhar multifacetado na direção dos seres e de sua situação no mundo. Esta perspectiva que busca compreender o sujeito, muitas vezes, na sua mais recôndita intimidade, oferece notável extração, sobretudo quando se colocam lado a lado as cartas dirigidas a Ophélia, na sua suposta postura realista, e o texto ficcional “Carta da corcunda ao serralheiro”. Magda destaca com pertinência que nas cartas a Ophélia pode-se perceber uma articulação entre verdade e ficção o que, inclusive, permite que o heterônimo pessoano Álvaro de Campos insira-se nessa teia de relações, delineando ainda mais significativamente esse jogo de vida e arte. É nesse cenário, como Magda Guadalupe observa, que se encontra a famosa afirmação da carta 22, quando Pessoa adverte a jovem Ophélia, dizendo: “Tens hoje do teu lado o meu velho amigo Álvaro de Campos, que em geral tem sido só contra ti! Alegra-te!”
Ei-los, os quatro grandes 22 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Um outro ponto de destaque que as reflexões expressas no texto colocam é o fato de Pessoa antecipar, com grande antecedência, traços marcantes do século XX, como “a desconstrução da identidade”, em Jacques Derrida. De um ponto de vista hermenêutico, a heteronímia equivale a uma profunda crítica à tradição filosófica, indicando a ficção e não a verdade como condição essencial do sujeito moderno.
Outro destaque que se encontra no texto da professora da PUC são as observações que dão conta de que em Pessoa se pode perceber uma certa negação da mulher ou negação da possibilidade amorosa. Os exemplos mais ilustrativos disso estão na “Carta da corcunda ao serralheiro”. É aí que se depara com um significativo travo que é colocado pela diferença, ocasião em que a jovem corcunda explicita na carta sua lamentosa condição: “Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio”.
A partir da despersonalização que se pode ver na figura da jovem corcunda, há que se concordar com o texto de Magda, no momento em que ele põe a descoberto um princípio notório nos nossos tempos que é a desconstrução da “crença na unicidade do sujeito enquanto a grande ficção da contemporaneidade, revelando-se, ao mesmo tempo, como o principal aspecto das figuras do feminino na produção de Fernando Pessoa”.
10 A professora Márcia Rosa, da UFMG, produz, em seu texto “O psicanalista, o linguista e o poeta – ‘... no fim tudo termina em silêncio e poesia!?’”, uma Audemaro 23Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Uma observação que também tangencia o texto de José Martinho é a seguinte observação de Magda Guadalupe: ”Vale tocar de leve nesse feminino que surge nas cartas. Há de se realçar como faz notar José Augusto Seabra, que Ophélia tem o mesmo nome da personagem de Shakespeare em Hamlet, o qual é também evocado por Pessoa! E sua amada surge em situação de “eterna infância” dentro de um espaço intangível; “menos como mulher que como ser infantil”.
Taranto Goulart e Ilka Franco Ferrari
Márcia Rosa também produz considerações baseadas em reflexões de Jacques Lacan, como a interlocução que o psicanalisa faz com o poeta chinês François Cheng e com o linguista russo Roman Jakobson, em que pontuam as considerações sobre a poética e sobre a articulação entre o som e o sentido. É interessante acompanhar no texto as colocações sobre a poesia de Cheng, considerando o mandarim, principal dialeto da língua chinesa. O impressionante nesse aspecto é o que o texto nos diz, ao mostrar que, no mandarim, “as palavras são monossilábicas e isso faz com que o discurso chinês tenha um ritmo de toque de tambor. Como existem apenas 420 sílabas em mandarim (à diferença do inglês, por exemplo, no qual existem 1.200), e como um vocabulário chinês completo contém aproximadamente 50.000 palavras, existem Ei-los, os quatro grandes 24 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Essa posição vai sendo trabalhada ao longo do texto, levantando aspectos instigantes como a afirmação de que não há saber no real, do que resulta a possibilidade de ocorrerem efeitos de poesia. E tais efeitos seriam transmitidos “não apenas por cintilações e opacidade, mas também por efeitos de ressonância (assonâncias, dissonâncias etc.) e de esburacamento.
Compreendem-se bem as colocações de Márcia Rosa, na medida em que se aceita a língua como o elemento que, na verdade, cria o real, posto que é a presença do signo linguístico, nomeando as coisas, que faz com que essas coisas existam. Sabe-se que o ser tornado realidade pela linguagem ainda carece de notórias falhas, ou, como diz a conferencista, de “esburacamentos”, o que se liga à afirmação de Octavio Paz quando destaca que “o valor das palavras reside no sentido que ocultam. Ora, este sentido não é senão um esforço para alcançar algo que não pode ser alcançado pelas palavras. Com efeito, o sentido aponta para as coisas, assinala-as, mas não as alcança jamais. Os objetos estão mais além das palavras”.
aproximação muito pertinente da dimensão psicanalítica com a literatura. Para tanto, começa mostrando uma perspectiva lacaniana quando afirma que o alcance do dizer psicanalítico não pode ser percebido nos patamares da lógica, razão por que o mestre francês “se volta para o poético na expectativa de instituir uma prática na qual o som e o sentido se uniriam estreitamente”.
Aliás, possibilidades como as que Milner apresenta acabaram minando aquele supostamente sólido terreno em que se ergueram os alicerces das reflexões do formalismo e, posteriormente, do estruturalismo. E é no momento em que se vislumbra essa fratura da língua que o poeta se cala.
Audemaro Taranto Goulart e Ilka Franco Ferrari 25Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Mantendo a ênfase na articulação som/sentido, o texto destaca, em seguida, as reflexões de Jakobson voltadas para o poeta Fernando Pessoa que merece dele sutis e preciosas colocações sobre o poema “Ulysses”, em que se aponta a degeneração do mito em lenda, do que a ensaísta extrai uma interessante indagação, no sentido de se investigar a possibilidade de se considerar os heterônimos pessoanos como lendas de Fernando Pessoa. Na evolução das reflexões, Márcia Rosa traz para o centro das discussões a figura de Jean-Claude Milner que destaca como Jakobson, de certo modo, se identifica nos binarismos e simetrias tais como código-mensagem, metáfora-metonímia, seleçãocontiguidade, correlação-disjunção. Os pares de combinação poderiam assim expor uma perfeita ordenação da linguística à poética. Mas tal ordenação pode sofrer um choque quando surge algo que não seria explicado por suas ordenações como uma imparidade ou uma dissimetria, tal como argumenta Milner, advertindo que é nesse aspecto que “o linguista encontra o limite de seu saber: a língua apresenta-se a ele em um ponto sobre o qual não tem influxo, pois é um ponto de falta irremediável”.
Destacando a riqueza homofônica da língua chinesa, Márcia Rosa chama a atenção para o fato de que no chinês é possível, na exploração das metonímias, a significação alcançar um significativo aprofundamento.
muitas palavras pronunciadas com o mesmo som ou sílaba. Para diferenciar algumas delas, usa-se o recurso dos tons. Cada um dos caracteres tem um tom fixo, de modo que cada sílaba acentuada numa sentença mandarim é pronunciada em um de quatro tons: “elevado-uniforme”, “elevado-subindo”, “baixo-subindo” e “baixo-caindo”.
É notável a evocação que Foucault faz dessa questão, sobretudo quando afirma que o saber, como lembra Antônio Teixeira, “em sua relação com a verdade, deve ser pensado nos termos de uma Erfindung, de uma invenção derivada de um jogo de relações de poder, e não de uma Ursprung, de uma origem naturalmente disposta no intelecto humano”. Diga-se que, sobretudo, em termos do conhecimento, algo tão sensível ao interesse e à sensibilidade humana, Foucault é implacável no apontar essa inexistência de origem. Desse modo, o filósofo avança para dizer que a Erfindung caracteriza o conhecimento, assim como também caracteriza a religião e a poesia, que “no final do primeiro discurso de A Genealogia da Moral [tem-se] essa espécie de grande fábrica de grande usina, em que se produz o ideal”. Foucault mostra então que a Erfindug é uma ruptura, sendo algo mesquinho e inconfessável que se produz por obscuras relações de poder.
O texto “A verdade extra-moral de Nietzsche a Freud”, do professor Antônio Teixeira, da UFMG, põe em questão a ideia de que a produção do saber nada tem de uma atitude contemplativa neutra mas, muito ao contrário, origina-se necessariamente de uma relação de força, de sofrimento e de dominação.
Neste ponto, Teixeira coloca em circulação o conceito de parrésia, associando-o à pretensão de “dizer-a-verdade”, esclarecendo que, na filosofia antiga, entende-se a parrésia como “a fala franca que se distingue da lisonja, da fala de quem visa agradar”. Essa aproximação, fundada em Foucault, tem grande rendimento, na medida em que, para o filósofo francês, a relação entre verdade e saber situa-se nos escaninhos de uma “Teoria geral do poder”.
Ei-los, os quatro grandes 26 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Nesse sentido, o conferencista propõe um trânsito entre Nietzsche e Freud, destacando, em um de seus momentos mais agudos, que “tanto Freud quanto Nietzsche transtornam por dizer a verdade, o dizer-a-verdade do qual se trata perturba justamente por ser algo radicalmente distinto de um procedimento de conhecimento ou de demonstração objetiva de uma realidade neutra”.
arrematando
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II
profético-utópico ecoa profundamente na obra de Fernando Pessoa pelo fato mesmo de vislumbrar singulares atributos do povo português, Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: Colóquio
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Audemaro Taranto Goulart e Ilka Franco Ferrari 27
Neste cenário, Antônio Teixeira deixa expressa a posição de que a parrésia não se propõe a demonstrar a verdade, a fazer-se uma retórica ou tentar persuadir, já que seu fito é dramaticamente único, como se pode depreender da citação seguinte: “O parresiasta não ensina: ele lança uma verdade cortante na cara daquele a quem se dirige, sem seguir o curso próprio da pedagogia, que vai do conhecido ao desconhecido”. Finalizando, pode-se extrair, como uma conclusão irremediavelmente sintética, devido às finalidades deste texto, o que sobressai nas agudas considerações propiciadas pelo texto de Teixeira na iluminação oferecida pela parrésia, no sentido de que o dizer-a-verdade revela as relações de poder, pondo à mostra “efeitos imprevisíveis, não codificados institucionalmente”. 12 Como era de se esperar, o poeta Fernando Pessoa foi focalizado por inúmeros dos participantes do Colóquio. Já na conferência de abertura o poeta português alinhou-se ao lado dos filósofos Mestre Eckhart e Friedrich Nietzsche, assim como nos enfoques de outros conferencistas que estabeleceram uma interlocução de Pessoa com filósofos e psicanalistas. Outras abordagens fizeram do autor de Mensagem o protagonista de suas reflexões, como é o caso do texto “A vertente utópica-milenarista do pensamento de Fernando Pessoa”, apresentado em conferência do professor José Eduardo Reis, da Universidade Trás-os-Montes e Alto Douro. Mostrando como o pensamento profético-utópico de feição milenarista prossegue, desde as mais remotas origens da civilização e da cultura ocidentais, Reis destaca que tal tradição tem percurso importante na perspectiva utópica que se pode encontrar na obra pessoana, através de singular recriação literária e filosófica que revela uma “aspiração teleológica da redenção da história e da sublimação ontológica da humanidade”.Opensamento
É importante salientar uma significativa observação que o professor de Trásos-Montes e Alto Douro faz. Como se sabe, a utopia do Quinto Império, tal como concebida pelo Padre Antônio Vieira, representava um sonho mítico segundo o qual Portugal consumaria a realização do reino universal de Cristo através da ação do rei D. João IV. Entretanto, Reis observa que, em Fernando Pessoa, Portugal não seria o “lugar de nascimento de um imperador, representante do poder secular, com a função messiânica de partilhar com o Papa, representante do poder espiritual, a governação diferida de Cristo por um período de mil anos, mas porque a nação portuguesa estava destinada a inaugurar uma forma última de síntese cultural-espiritual. Na lógica profética de Pessoa, claramente tributária de uma concepção evolutiva-progressista da história, cada novo império teria sucedido ao anterior por um efeito de superação e de realização de uma síntese civilizacional superior, faltando agora consumar-se a síntese civilizacional derradeira”. Ei-los, os quatro grandes 28 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
É nessa dimensão que se pode destacar, tal como explicitado no texto, uma temática prospectiva que recupera uma expressão milenarista judaico-cristã, nomeada como Quinto Império, que seria “a hipótese desejada de uma nova ordem universal, um império cultural e civilizacional que teria por alvanca a nação portuguesa, por voz profética a sua própria e por agente messiânico a figura simbólica do Encoberto, um D. Sebastião, com o qual o próprio Pessoa se parece identificar”.
sobretudo quando se percebe que a utopia do enfrentamento dos mares e as grandes conquistas portuguesas já não se fazem tão notáveis à época mesma de Pessoa. Como observa o professor José Eduardo, o próprio poeta dá vazão a tal sentimento quando diz em um dos poemas de Mensagem: “Screvo meu livro à beira-mágoa”, bastante revelador de um certo desencanto com a decadência portuguesa. Não admira, pois, que Fernando Pessoa como que intenta o exercício da esperança quando destaca as três realidades sociais que fazem tanto sentido para ele, expressas na tríplice expressão do indivíduo, da nação e da humanidade. Dentre tais instâncias, o poeta privilegia o indivíduo porque, como diz o texto da conferência, “o indivíduo é a realidade suprema porque tem um contorno material e mental – é um corpo vivo e uma alma viva”.
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13 Com seu texto “Sinto-me múltiplo: a pré-heteronímia pessoana e o romantismo alemão”, a professora Cláudia Souza levanta aspectos muito interessantes sobre a questão da pré-heteronímia ou, talvez fosse melhor dizer, sobre as personalidades que aparecem na obra de Fernando Pessoa. E ela o faz, aproximando a produção do poeta do romantismo alemão, quando põe em destaque os conceitos de sinfilosofia e simpoesia que significam, respectivamente, filosofar com e poetar com. As quatro personalidades que Cláudia Souza focaliza têm estreita ligação com a sinfilosofia e a simpoesia, como se pode ver no denominado projeto The Transformation Book em que Pessoa põe em destaque as quatro personalidades identificadas com Alexander Search, Pantaleão, Jean Seul de Méluret e Charles James Search. É interessante notar a observação feita por Cláudia Souza, dando conta de que The Transformation Book seria uma espécie de “ante-câmara do momento da criação dos três importantes heterônimos pessoanos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, cada um com uma biografia própria, com um estilo próprio, mas compartilhando aspectos comuns, como é o caso de Reis e Campos que consideram Caeiro seu Mestre”.
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Nessa perspectiva de Fernando Pessoa, o texto da conferência destaca que a questão bíblica do Quinto Império ultrapassa o aspecto teológico-doutrinal para colocar-se no plano de uma esperança universal, apontando a possibilidade de voltar-se para o homem, procurando possibilitar-lhe a descoberta das potencialidades humanas.
É imperioso chamar a atenção para o caso da multiplicidade de personalidades que aparecem na obra de Fernando Pessoa. Na verdade, elas estabelecem um diálogo que é, muitas vezes, inesperado, não apenas pelo fato, como observa a conferencista, de que a produção com tais pré-heterônimos envolve uma dupla participação, caracterizada pelo próprio Pessoa e pela personalidade que ele cria, mas também porque essa ambivalência também pode evoluir para um dialogismo ainda mais surpreendente, como é o caso de Alexander Search que parece ser o “herdeiro de um Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio
Os registros e as reflexões que Cláudia Souza faz sobre a importante questão da pré-heteronímia em Fernando Pessoa são de capital importância para o leitor que admira a obra do poeta dar-se conta de detalhes que, muitas vezes, nem são mencionados quando se fala dos heterônimos estelares como Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. É nesse cenário que se poderá ver como Alexandre Search ocupa o centro no projeto The Transformation Book. A riqueza que a leitura dessa criação pessoana oferece dá a ver, muito singularmente, que nas biografias esboçadas de Jean Seul e de Charles James Search existem referências explícitas a Alexandre Search, assim como é significativo o fato de que a obra de Pantaleão faz interlocução com a de Search, manifestando interesse e preocupação com os aspectos políticos portugueses e com a leitura de obras psiquiátricas. Esse autor prolífico, que frequentou inúmeros cenários literários, políticos e culturais da vida portuguesa, consegue, com sua estratégia de representar-se em personalidades outras, traçar um amplo painel de um mundo que ecoa até os dias contemporâneos.
14 Às vezes, encontram-se contabilistas que revelam, com admissível orgulho, o fato de Fernando Pessoa ter atuado profissionalmente nesta área. Esse detalhe pode não ser insólito mas chega a surpreender muitos dos admiradores do poeta, posto que a dimensão da obra literária pessoana como que afoga quaisquer outras perspectivas que não estejam ligadas ao seu universo estético. Mas é possível movimentar-se no terreno que inclui os dois planos da trajetória de Fernando Pessoa. É o que se poderá ver com o texto “Fernando Pessoa: heteronímia e organização”, do professor Marcus Vinícius de Freitas, da UFMG. Ei-los, os quatro grandes 30 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
outro eu pessoano, Charles Robert Anon, personalidade literária que acompanhou Pessoa na viagem do regresso definitivo à Lisboa em 1905”.
O texto do professor da UFMG coloca de modo bastante pertinente a efetiva possibilidade de se estabelecer, em Pessoa, um vínculo entre os escritos de economia política e os que se situam no plano estético. Isso está bem explicitado na referência que se faz entre “uma entrevista ficcional e não-assinada de Pessoa com um imaginário intelectual antifascista italiano, Giovanni B. Angioletti, na qual Pessoa, conforme nos mostra José Barreto, coloca na boca da personagem as suas críticas ao fascismo”.
Transitando nesse cenário, Freitas propõe estabelecer aproximações entre os textos de feição econômica com o conjunto da obra do poeta, lembrando que essa prática pode oferecer significativa contribuição para o entendimento da obra poética e do fenômeno da heteronímia em Fernando Pessoa. Assim, na análise que se propõe fazer do texto “Organizar”, publicado no número 4 da Revista de Comércio e Contabilidade, o conferencista “pede ao ouvinte/ leitor que ouça e leia as considerações pessoanas sobre organização de instituições com a atenção voltada para a heteronímia”. São destacáveis os comentários que falam de certa ambiguidade nas posições do poeta de Mensagem, ora falando da necessidade dos atos de organização, ora condenando movimentos políticos autoritários que visavam a uma organização demasiada da sociedade.
Chamando atenção para publicações que Pessoa fez na Revista de Comércio e Contabilidade, em 1926, sobre análise econômica e de organizações, Freitas destaca um texto publicado no número 4 da referida Revista cujo título é “Organizar”. Esses e outros textos publicados pelo poeta dão, segundo Marcus Vinícius, uma clara noção de que Fernando Pessoa ao falar de economia política faz uma clara defesa da iniciativa econômica individual enquanto também critica o papel centralizador do estado, uma posição nitidamente liberal.
Essa posição de Pessoa pode ser entendida naturalmente, pois, como diz o texto de Freitas, “Fernando Pessoa havia sido educado, não apenas por ter crescido na colônia inglesa da África do Sul, mas por ter aí, em Durban, frequentado a Commercial School. Poderíamos então concluir que sua crítica às organizações excessivas se assentava em sua educação no seio de uma sociedade de economia liberal, a inglesa, ainda que vista de suas franjas coloniais”. Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
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É interessante observar que as posições ambíguas demonstradas por Fernando Pessoa com relação aos princípios da organização decorrem mesmo do caráter autoritário e centralista que se faz presente automaticamente no cerne da condição de organizar.
Em toda organização há, pois, que contar com o inesperado e o indefinido da vida”.
Desse modo, como observa Freitas, Pessoa critica e busca salvaguardar a organização o que se revela na sua distinção entre organizações artificiais e organizações práticas, entre os “organizadores de gabinete” e aqueles que reconhecem o peso da realidade.
Retomando, então, a identidade que pode ser entrevista entre o princípio de organização e a configuração da obra de Pessoa, observa-se notória proximidade entre a organização e o celebrado tema da heteronímia. Assim, quando se pensa que na organização existe um responsável para delegar funções a outros elementos, pode-se também verificar como isso se dá no plano da criação literária, quando Fernando Pessoa delega tais condições para esses outros que são, na verdade, os seus heterônimos. Isso fica bem caracterizado nas colocações de Marcus Vinícius: “Da mesma maneira que, segundo Pessoa, o ato de delegar funções organizacionais a outrem torna quem as delega voluntariamente incompetente para o seu exercício, podemos entender que cada um dos heterônimos cumpre funções dentro da heteronímia, funções que a eles foram delegadas pelo autor-organizador, o qual voluntariamente se abstém de seu exercício”.
De fato, diz o poeta: A experiência ensina que a vida é uma coisa flutuante e incerta, cheia, por mais que busquemos prever, de surpresas e contingências imprevisíveis –imprevisíveis, sem dúvida, porque procedem de leis que ignoramos, e, provavelmente, em grande parte, ignoraremos sempre. Todo o pensador de sistemas fixos, todo o organizador de conjuntos definidos sofre fatalmente desilusões, quando não desastres.
É nessa perspectiva que Freitas destaca a figura do heterônimo Alberto Caeiro, considerado, na obra pessoana, como o mestre do ortônimo. Isso decorre do fato de que Caeiro se configura como o mestre e não como o organizador, posto que, ao delegar o discurso ao heterônimo, o ortônimo-organizador explicita a sua incompetência para um tipo de criação estruturada segundo determinados padrões que só seriam plenamente alcançados na voz do heterônimo que, ao cabo, se torna efetivamente o mestre. os quatro grandes 32 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Audemaro Taranto Goulart e Ilka Franco Ferrari 33Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
É, no entanto, digno de acento que, nessa opção de Riobaldo, aflore uma espécie de religiosidade universal, sem castas, sem discriminação, preconceitos ou agenciamentos de controle, muito de acordo com o respeito às diferenças que rege a vida e a arte de
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A Professora Marli Fantini Scarpelli, da UFMG, apresentou a conferência “Religiosidade, crenças e mitos em Guimarães Rosa” em que traça um percurso de leitura e análise bastante significativo da obra rosiana. Seu texto centra-se, essencialmente, na obra magna de Rosa, o inexcedível Grande sertão: veredas, e para introduzir o fundamento de sua abordagem, já delineado no título, começa por colocar em cena a personagem do conto “A menina de lá”, em que se destaca Nhininha, uma criança que, no dizer de Scarpelli, “habita o espaço sagrado dos mitos, que balbucia uma espécie de língua dos anjos, em estado nascente, primordial, icônico, aquela língua a que aspiram poesia e poetas”.
A emblemática figura de Guimarães Rosa dá a ver o quarto autor cuja obra foi abordada no Colóquio por especialistas que se inscrevem dentre aqueles que têm contribuído para a já oceânica fortuna crítica do escritor mineiro.
Passando por outras narrativas e personagens rosianas, Marli Fantini privilegia o Grande sertão: veredas, onde se destaca a personagem Riobaldo que é também o narrador de variados e inesperados acontecimentos que acometem um punhado de jagunços e sertanejos que agudizam a atenção do leitor do princípio ao fim da narrativa.Como diz Marli Fantini, Riobaldo, um homem “cheio de culpas e medo, é temente a Deus e pactário com o Diabo. Nunca deixa de recorrer à religião, ou melhor, a todas as religiões, como ele próprio explica a seu entrevistador no romance.
É dessa forma que se pode entrever a articulação entre o Pessoa que escreve sobre economia e organizações e o poeta. Como diz Marcus Vinícius de Freitas, ao falar da teoria das organizações, Pessoa parece falar da organização interna de sua própria obra.
Linha de força no grande romance de Rosa é a que põe em cena o famoso e misterioso espaço geográfico do sertão. Como diz Fantini Scarpelli, “o sertão rosiano pressupõe uma geopolítica com seus currais, suas porteiras e suas múltiplas fronteiras, seu gado, seus cavalos, seus valores, ademais da truculenta concepção jagunça, retroalimentada pelos coronéis e seus latifúndios. Tudo isso minuciosamente descrito e associado à força das superstições, do misticismo e dos mitos sertanejos, à profunda religiosidade e ao manejo dos feitiços, rezas bravas, magias dos curandeiros (em seu arcaico pharmakón)”. Outro componente narrativo de grande apelo é o realizado/imaginado pacto que Riobaldo celebra com o diabo, na expectativa de superar-se emocional e fisicamente para a batalha a ser travada com o impenitente Hermógenes. Nesse aspecto é bastante elucidativa a citação que a conferencista faz de passagem da narrativa onde Riobaldo treme/teme o que teria sido o pacto com o demo: “– Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!” Voz minha que se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado (...). Ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas tranquilidades – de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa do meu pai. Vi as asas, arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí eu podia mais? A peta, eu queria saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!”.
O final da narrativa é antológico, seja porque nele está a batalha que Diadorim – o grande companheiro de Riobaldo, filho do insigne chefe Joca Ramiro – trava contra Hermógenes, o matador de seu pai, e na qual acaba morrendo, seja porque é ali que se revela que Diadorim, na verdade, era Maria Deodorina, aquela que, bem antes, Riobaldo já havia dito que “era a sua neblina...”. Essa revelação é impactante para o leitor, embora Ei-los, os grandes 34 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Guimarães Rosa”. É isso que se pode ver em outros textos rosianos, como no singular conto “O espelho”, quando o autor, falando do transcendente, assegura que tudo é a ponta de um mistério, como nos fatos ou na ausência deles, finalizando com a singular afirmação: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”.
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Cite-se, a título de uma primeira ilustração das colocações esboçadas, o que Meneses diz: “Vamos, então, ver o que rende esse contraponto, para além do procedimento primário de dizer: “Olha, aí há um Navegante, que sofre perigos no mar” – que aludiria ao Navegante prototípico, que é Odisseu; e “Aí há uma moça, que ele ama, e de quem sente saudades, e que ele teme que o esqueça” -- que nos remeteria a Penélope”. Também digno de registro é o fato de que Adélia Meneses adianta no resumo de seu trabalho a intenção de estudar a reapropriação em clave minimalista
nos dias de hoje, dado que o romance já é bem conhecido e já foi apresentado, inclusive, em minissérie na televisão, esse final já seja conhecido da maioria dos leitores. Ainda assim, a morte traumática do ser amado revela-se o mais agudo dos sofrimentos que alcança Riobaldo. É o que se vê na significativa citação que Fantini Scarpelli faz da compunção de Riobaldo: “Diadorim tinha morrido — mil-vezes-mente — para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejavam (...) Não escrevo, não falo! — para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim... (...) Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real me vi”. 16 O encontro com o texto “O Aldaz Navegante de Guimarães Rosa: ressonâncias odisseicas”, da Professora Adélia Bezerra de Meneses, docente da USP e da UNICAMP, revela singulares surpresas. A começar pelo fato de que a conferencista propõe fazer um contraponto do pequeno conto de Rosa com o “romance grande” que é a épica, a Odisseia de Homero, num processo de reapropriação “dessa herança clássica, deste capital cultural” que o poema homérico representa.
Segundo a professora paulista, além da dimensão parodística que se pode entrever no conto de Guimarães Rosa, percebe-se o acionamento de um processo de estilização, estranhamento, carnavalização e transgressão que se observa na relação do conto com o texto clássico.
Audemaro Taranto Goulart e Ilka Franco Ferrari 35Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
A narrativa inventada por Brejeirinha revela aspectos claros da apropriação da epopeia homérica, na medida em que, pondo em evidência o relacionamento amoroso de Ciganhinha e Zito, o parzinho apaixonado, evoca aquele tão celebrado amor entre Odisseu e Penélope. Esse paralelismo é intensificado quando Adélia Meneses chama a atenção para o fato de que o amor entre Odisseu e Penélope é revelador de uma paixão ardente. Isso pode ser melhor entendido quando se vê no texto da conferencista a observação de que a dimensão do “romance de amor” na Odisseia não é muito explorada pela crítica que, de um modo geral, prefere apontar a fidelidade de Penélope na sua singular estratégia de tecer e destecer o manto, em cuja conclusão sinalizara o momento em que escolheria um de seus vários pretendentes a um novo casamento.
A essa fidelidade Adélia Meneses contrapõe as inúmeras aventuras amorosas de Odisseu com mulheres e semi-deusas, numa perspectiva de traçar a diferença entre um e outro amante. Mas a exuberância do amor dos dois cônjuges sobreleva tudo tal como se pode ver na significativa cena que aqui se reproduz: “quando Odisseu volta e o casal mítico se reúne, cada um contando ao outro o que se passou nessa longa ausência, eles à noite vão para a cama, ou melhor, para o famoso leito conjugal, inamovível (construído pelo próprio Odisseu, num tronco de oliveira solidamente enraizado no centro do Palácio de Ítaca): pois bem, por iniciativa de Atena, a Aurora atrasa, a fim de que a noite se prolongasse, para que eles pudessem saciar a grande saudade dos seus abraços. O amor de Odisseu e Penélope tem uma dimensão cósmica, belíssima – interfere na chegada do sol, atrasa o romper do dia!”
Ei-los, os quatro grandes 36 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Tem-se, então, a história que envolve quatro crianças: três irmãs e um primo, sendo que uma delas, Ciganinha, fazia par com o primo Zito, enquanto outra, a Brejeirinha, inventa uma história paralela, sobre um “Audaz Navegante” que permeia a narrativa que envolve as irmãs e o primo.
que o enredo do conto rosiano faz de alguns elementos essenciais da narrativa clássica.
Além dessa congruência em termos de fabulação, também coloca em cena personagens que são crianças, o que equivale dizer que aí também se tem um processo minimalista de reduzir os “heróis” a uma dimensão miniaturizada.
Para além da citada apropriação que o conto de Rosa faz do texto épico, é necessário chamar a atenção para os aspectos de estranhamento e transgressão efetuados no texto clássico, o que Adélia Meneses atribui com muita propriedade às sempre surpreendentes e singulares criações de Guimarães Rosa. Isso pode ser conferido num dos trechos do conto, quando as crianças, passeando perto do riachinho que se enchera com as chuvas, descobrem algo inusitado: uma rodela de esterco de gado com um cogumelo em seu centro. É o quanto basta para que as crianças vejam na rodela de esterco um navio e no cogumelo, com seu chapeuzinho, o aldaz navegante. Esse estranhamento, como diz a autora do texto, é “algo que é muito comum a G. Rosa no seu vocabulário, na sua sintaxe, nos seus enredos, com o objetivo da propalada desautomatização do poético, da ruptura de expectativas, o despertar da percepção adormecida dos leitores”. Registre-se ainda que, além das considerações feitas no texto, a Professora da USP/UNICAMP ainda instiga os leitores com outras abordagens de grande significação. É o caso em que aproveita a tópica da criação da história de Brejeirinha para alinhavar comentários pertinentes a respeito da construção do texto literário. Também aproximações outras, muito interessantes, são feitas como a que aborda os riscos da grande travessia nos mares – seja a de Odisseu na epopeia homérica, seja a do aldaz navegante – com “a tragédia dos barcos naufragados no Mediterrâneo, carregando migrantes fugindo da África e tentando alcançar a Europa – mais precisamente, Lampedusa. As embarcações são outras, não têm aura mítica, mas as águas são do mesmo Mar Mediterrâneo por onde navegou Odisseu”.
Enfim, tudo isso pode ser fruído no texto de Adélia Bezerra de Meneses. Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: Colóquio
II
Audemaro Taranto Goulart e Ilka Franco Ferrari 37
internacional
Finalmente, outra correlação é feita com Fernando Pessoa e Caetano Veloso, quando se focaliza a célebre frase “Navegar é preciso, viver não é preciso”, que o poeta português aproveita em sua obra, assim como o compositor brasileiro que cria a extraordinária canção “Os Argonautas”.
No que se refere às histórias de amor, é também estabelecida correlação com o episódio de Paolo e Francesca da Rimini, na Divina Comédia. Trata-se do casal de cunhados que se tornaram amantes e, surpreendidos pelo marido traído, foram mortos como adúlteros, no tempo de Dante, em Rimini. O Poeta os encontrará no Inferno, no Círculo dos luxuriosos. Permanecem, no entanto, juntos”.
1 7 Outra grande expressão dos estudos rosianos, a Professora Cleusa Rios P. Passos, da USP, oferece notável contribuição com seu texto “O erudito e o maldito em “Famigerado” de Guimarães Rosa”. Tomando o sempre surpreendente texto rosiano, que se mostra ao leitor como coisa oferta, chamando-o a uma participação de grande monta, qualquer leitura mostra que a obra de Rosa não faz concessões ao imediatamente fácil, pois o texto revira e inova constantemente o seu modo de dizer, num permanente exercício de capturar a atenção e despertar a reflexão de quem a lê. É o que se pode observar nas considerações que a professora Cleusa Rios faz do celebrado conto “Famigerado” que se encontra no livro Primeiras estórias. Já nas primeiras linhas das reflexões feitas no ensaio, depara-se com apontamentos instigantes a respeito de Guimarães Rosa, quando se anuncia a sua “linguagem insubordinada e renovadora”, em que se percebe como se dá a fratura de “signos convencionais, que parecem dar conta da comunicação, ao retomar repetições, clichês, acontecimentos triviais etc. para os desarticular na busca de reescrever a existência”.
O conto mostra uma narrativa que diz muita coisa e que insinua muitas outras mais. Trata-se da história de Damázio, um jagunço já no limiar da aposentadoria, que fica intrigado com o sentido da palavra famigerado que lhe atribuíram lá na Serra, onde não havia quem pudesse explicar o sentido do termo desconhecido. Essa a razão de procurar o doutor – o narrador do conto – para saber se a palavra era algo mal-dito contra ele. O desconhecimento de Damázio era tal que nem mesmo a reprodução da palavra lhe era possível, daí a sua pergunta: – “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é fasmisgerado faz-me-gerado falmisgeraldo familhas-gerado...?” A resposta do médico é vazada em erudição: “Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”...”, ao que Damázio, sem entender, insiste na busca do significado: –“Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me Ei-los, os quatro grandes 38 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Essa é uma introdução que prepara o leitor para o encontro com a surpreendente narrativa de Rosa, num viés que vai articular de modo muito pertinente as noções de mal-dito e bem-dito, a grande linha de força que ilumina o conto “Famigerado”.
A evolução da análise que Cleusa Rios vai fazendo aponta a colocação de aspectos psicanalíticos que são desenvolvidos nas considerações que se fazem do conto. Assim, é interessante observar como a posição de superioridade instalada na sabedoria do narrador é que vai propiciar a divisão do jagunço, uma vez que este, marcado por um passado mal-dito, não admite se identificar com a má fama. Para
Por fim, o médico dá o significado em “linguagem de dia-de-semana, revelando tratar-se de palavra que significa “importante”, que merece louvor, respeito...”. Conforme observa Cleusa Rios, dá-se nesta passagem da narrativa uma curiosa dialética entre o saber e o não-saber. Isto porque o jagunço teme saber de si, o nome que lhe apuseram e que poderia destacar um dizer maldito. O médico, por seu lado, “teme seu saber a respeito dessa mesma acepção do vocábulo, pois verbalizá-la lhe poderia ser fatal” como, aliás, ele anuncia: “O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava”. É importante observar, nas reflexões apresentadas no texto, a guinada que se dá no processo narrativo quando o jagunço retira, em parte, o poder do narrador para fazer aflorar o seu poder. É o que se verifica quando Damázio tenta reproduzir a palavra-problema, criando lacunas que são extremamente sugestivas. Como se lê no texto, “É ele [Damázio] quem, por não entender “famigerado” da perspectiva do letrado, pode aflorar como sujeito que tenta desvendar o mistério da palavra determinante do que ele é para seu meio. Nela, visualizam-se a má fama que o torna, ainda, marginal ou maldito e a boa reputação que o salva, condensando as duas faces do valentão”.Outro aspecto importante que é também levantado pela conferencista é o fato de o jagunço submeter-se ao Simbólico, “isto é, ao significante que gera sua inscrição na comunidade, no presente, e ao significante elidido que “salta na cadeia”, como algo que ele não quer lembrar. Tal significante não é verbalizado pelos habitantes do lugarejo que devem temê-lo; já o moço de fora, ao contrário, atreve-se a expressar o que os demais dissimulam. E é, de novo, um outro, de fora e de longe da Serra, que vai esclarecer sua dúvida sobre o vocábulo obscuro, tão vinculado a ele, mas sonegado e encoberto pela elisão e o esquecimento”.
Audemaro Taranto Goulart e Ilka Franco Ferrari 39Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?”
ele, o bem-dito seria “ter acesso à ambiguidade da palavra – as suas duas acepções semânticas –, podendo reconhecer a má fama como constituinte de seu passado, ao lado do desejo de se aquietar”.
É interessante verificar com a articulista como se processa uma espécie de troca entre o erudito, o doutor, e o jagunço que não detém um saber aprofundado. Assim, no final, o bem-dizer da resposta do doutor é substituído pela face do mal-dito, pois ele como que aprecia o momento em que vai à desforra com o jagunço, vingandose do medo que sentira diante do afamado matador. Aí, ele joga com as palavras até o desfecho em que afirma que gostaria de ser “famigerado-bem famigerado”. Desse modo, como diz Cleusa Rios, “doutor e jagunço se espelham na palavra que os configura: no primeiro, aflora algo da agressividade do maldito e, neste, ecoa algo da manipulação do discurso, sem que ele o note, no ato de desmembrar o vocábulo intrigante”.Como termo da síntese que se apresenta do texto de Cleusa Rios, seria oportuno fechar as considerações com as significativas palavras finais do ensaio que focalizou o festejado conto de Rosa: “ ‘Famigerado’ pode ser lido graças a um novo modo de luta do ex-jagunço, o da palavra que, “bem-dita” e enganosa, logra apagar/ esquecer seu passado maldito. Ambiguidades, negativas e subversões constroem essa palavra ilusória, permitindo à personagem se inscrever, por instantes, como sujeito de seu desejo em sua vigilante ‘aldeia’ ”. 40 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Chamando a atenção para o aspecto de que o inconsciente se manifesta através de sonhos, atos falhos, lapsos, enganos, esquecimentos, a conferencista mostra como tais manifestações escapam ao sujeito, evidenciando um dizer que lhe é estranho mas, de outro lado, trazendo à tona o sujeito do inconsciente e é aí, como destaca Cleusa Rios, baseando-se em Lacan, que o dito se torna um discurso “bem sucedido”, “pois desvela parte da verdade do sujeito e, no caso do temido cavaleiro, aponta uma possível interpretação de seu desejo”.
Ei-los, os quatro grandes
Pretendemos mostrar que há uma profunda afinidade temática entre estes três autores em torno de uma das questões maiores do pensamento ocidental, na qual se abrem também horizontes de diálogo com o pensamento oriental e sobretudo vias para reinterpretar Eckhart, Nietzsche e Pessoa à luz de um essencial pensar do impensado. Com efeito, a compreensão de como a metafísica e teologia ocidental, na sua vertente neoplatónica, pensa Deus como um além-Deus indeterminado e inefável permite compreender a outra e imprevista luz, a morte de Deus anunciada por Nietzsche, bem como iluminar a posição central de Fernando Pessoa nesta questão que abre para a experiência do vazio nalgumas vertentes do pensamento oriental. Defendemos a tese de que a morte de Deus, proclamada pelo “louco” na Gaia Ciência, explicita, mas sem que Nietzsche disso se haja dado conta, um pressuposto fundamental da metafísica de matriz neoplatónica, mais plena e ousadamente assumido por Mestre Eckhart, o de que a natureza primordial de tudo é alheia a todas as determinações, inclusive a de “Deus”, abrindo para a emergência de uma espiritualidade livre da religião e da teologia centrada na experiência directa de um nada ou não-ser não negativos nem niilistas 1 e por aí em diálogo ou convergência com a experiência oriental do vazio meta-ontoteológico, infundado fundo e fonte de todas as possibilidades. Defendemos ainda que nesta articulação entre Ocidente e Oriente, que porventura mais sugere uma copertença do que uma disjunção, avulta a mediação de textos pessoanos fundamentais, como o Tratado da Negação, atribuído a Raphael Baldaya, e de O Caminho da Serpente, entre muitas outras passagens da obra poética e em prosa. Para que se compreenda toda a importância destes textos, cabe fazer um percurso que mostre o horizonte onde a Ocidente se inscrevem.
1 Para um perspicaz acompanhamento do “nada” na tradição ocidental, cf. GIVONE, 2009. 41
Além-Deus e morte de Deus:
Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa Paulo Borges
No âmbito do neoplatonismo pagão, Plotino reconhece que o alvo supremo do desejo unitivo da alma, embora designado como Uno e Bem (BORGES, 2005), “não é nada para si mesmo” e que “em realidade nenhum nome lhe convém”, sendo apenas “para os outros” e em função da necessidade de nomear que como tal surge e se designa (PLOTINO, VI 2, 7, 41, 1989, p. 117; 9, 5, p. 178; 9, 6, p. 180). Isto culmina na radicalidade dialéctico-mística de Damáscio, ao afirmar que mesmo a expressão-limite de um “nada” (ούδέν) “melhor do que o uno” (DAMÁSCIO, 1986, p. 7-8) deve, por fidelidade a isso mesmo que se busca expressar, ser ultrapassada numa recusa a designá-lo seja de que forma for, exigindo-se “nem o proclamar, nem o conceber, nem o conjecturar” (DAMÁSCIO, 1986, p. 4). O mesmo se verifica no neoplatonismo cristão, pese o maior esforço de conciliar com o infinito ou absoluto a estrutura da sua trinitária diferenciação interna, desde a interpretação pelo pseudoDionísio da experiência de Moisés como uma união perfeita com o que transcende o “tudo” e o “nada”, a mesmidade e a alteridade, “conhecendo além do espírito graças ao acto de nada conhecer” (CARVALHO, 1996, I, p. 15; II, p. 17), sendo o próprio eros divino o que inspira e move a suplicante busca de união com isso que, “liberto de tudo”, é inacessível a toda a afirmação e negação, transcendendo toda a ordem de categorias, pois nem é nem não é, não “é um nem unidade, não é divindade ou bondade” (CARVALHO, 1996, V, p. 25). Isto se confirma, para ficarmos apenas na vertente ocidental do dionisismo, em João Escoto Erígena, ao emancipar Deus ou o Bem do ser que dele procede, considerando-o como um supra-ser (superesse), um não-ser por excesso ou um nada por eminência ou “por infinidade”, que ignora, por excesso, toda a quididade, pois “não é um quid objetivado”, permanecendo assim “incognoscível em simultâneo para Ele-mesmo e para toda a inteligência” (ERIÚGENA, 1995, I, 482 a b, p.126-127). A “glória”, todavia, consiste no seu “conhecimento por experiência directa” (ERIÚGENA, 1995, I, 451 c, p. 80), além de toda a palavra e de todo o entendimento, além de toda a dicotomia, dualidade e categorização (ERIÚGENA, 1995, 283 b c, p. 203-207).
Além-Deus e morte de Deus: Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa 42 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
É a isso que exorta Mestre Eckhart, de modo mais radical no sermão sobre a pobreza em espírito, que na sua dimensão interior consiste no despojamento ou liberdade total: nada querer, nada saber, nada ter. No que respeita ao primeiro destes três aspectos de uma mesma liberdade plena, ao libertar-se de toda a “vontade criada” - incluindo a de “realizar a vontade de Deus” -, bem como do “desejo” ou “saudade” (Verlangen) “da eternidade” e “de Deus”, o ser humano devém “como era, quando <ainda> não era”, quando não tinha “nenhum Deus” e era “causa primeira” de si mesmo, fruindo da “verdade” numa pura coincidência entre ser e querer, “livre de Deus e de todas as coisas”. Foi apenas quando, “por livre determinação da vontade” (aus freiem Willensentschluβ), saiu dessa primordial e pura imanência recebendo o ser criado, que passou a ter “um Deus”, pois antes de haver “criaturas” Deus não era “Deus”, mas apenas “o que (...) era”, sendo somente pela constituição das “criaturas” que Deus deixa de o ser em si mesmo para passar a sê-lo nelas. A determinação de Deus como Deus é assim relativa à determinação das criaturas como criaturas, num mesmo movimento de transformação de uma comum natureza ou fundo primordial, pois “a mais ínfima criatura”, na medida em que é “em Deus”, tem a mesma “categoria de ser” que ele, o que faz com que Deus, enquanto apenas o é para a criatura, não possa ser o seu “fim supremo”. Na verdade, se uma “mosca” possuísse “intelecto” e fosse capaz de “buscar intelectualmente o abismo eterno do ser divino de onde saiu”, o mero “Deus” que o é para a criatura não a poderia satisfazer. É por esse motivo, diz o pregador, que “nós rogamos a Deus ser livres de Deus” (Darum bitten wir Gott, daβ wir Gottes ledig werden), fruindo eternamente a verdade “aí onde os anjos mais elevados, a mosca e a alma são iguais”, essa mesma imanência abissal e primordial onde se residia antes da livre decisão criadora, quando se queria o que se era e se era o que se queria, nada querendo, portanto, na original “pobreza” do estado incriado e pré-criatural (ECKHART, 2008, p. 553 e 555).
A mesma liberdade radical expressa-se no nada saber, num esvaziamento de todo o conhecimento de modo a que o ser humano não saiba nem sinta que Deus “vive nele”, pois quando ainda residia “no ser eterno de Deus” nada aí vivia senão Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud:
II Colóquio internacional
Paulo Borges 43
Libertando-se de todo o conhecimento, o ser humano recupera o estado primordial, anterior a ser algo ou alguém, anterior à determinação da existência e da criatura, o que o pregador vê como um deixar Deus operar o que quiser e permanecer livre de saber algo acerca disso (ECKHART, 2008a, p. 555 e 557). Na verdade, na nova visão eckhartiana, equidistante dos termos da disputa tradicional, a beatitude não reside nem no conhecimento nem no amor, mas em “algo (Etwas) na alma, de onde emanam conhecimento e amor” e que “não conhece e não ama”, “não tem antes nem depois”, nada espera e “não pode nem ganhar nem perder”. Isso não sabe ser Deus que em si opera, sendo pura autofruição divina, e é também neste sentido que o ser humano deve permanecer “quite e livre”, sem nada saber acerca do operar divino em si, pois Deus, ao contrário da doutrina tradicional dos “mestres”, “não é Ser nem intelectual”, consistindo antes num estar livre “de todas as coisas” que é a razão pela qual “é (...) todas as coisas”. O nada saber, “nem de Deus, nem da criatura, nem de si mesmo” (ECKHART, 2008a, p. 557 e 559), é a “pobreza” de nada retirar nem acrescentar a esta divina liberdade, riqueza e plenitude.
ele mesmo, livre de toda a alteridade (e da distinção sujeito-objecto inerente a todo o conhecimento).
É neste contexto que Eckhart volta a rogar a Deus que o livre de Deus, pois o seu “ser essencial” (wesentliches Sein) está acima de Deus enquanto o concebemos como origem das criaturas”. Na verdade, como reitera, é nisso que em Deus está “acima de todo o ser e acima de toda a diferença” que ele próprio residia (e reside), na imanência primordial onde é eterna causa de si mesmo. Aí é “não-nascido” (ungeboren) e como tal não pode morrer, sendo eternamente, agora e para sempre. Noutra perspectiva, é nesse Além-Deus e morte de Deus: Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa 44 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
O terceiro e para Eckhart mais claro aspecto desta pobreza ou liberdade radical é o nada ter, no sentido mais profundo de nem sequer haver no ser humano um lugar distinto onde Deus possa operar, de modo a que Deus não opere senão em si mesmo ao operar “na alma”. “O homem padece assim Deus em si”, tão “livre de todas as criaturas e de Deus e de si mesmo” que não mantenha qualquer “lugar” ou “distinção” própria, reencontrando “o ser eterno que foi, que é agora e que permanecerá para sempre” ECKHART, 2008a, p. 559 e 561).
3 Veja-se de Silesius o poema com o título “Deve-se ir ainda além de Deus”: “Onde é a minha morada? Onde eu e tu não estamos. / Onde é o meu fim último, para o qual devo ir? / Aí onde nenhum se encontra. Para onde irei então? / Devo ir ainda além de Deus, para um deserto” (“Man muβ noch über Gott – Wo ist mein Aufenthalt? Wo ich und du nicht stehen. / Wo ist mein letztes End, in welches ich soll gehen? / Da, wo man keines findt. Wo soll ich denn nun hin? / Ich muβ noch über Gott in eine Wüste ziehn”) – Angelus Paulo Borges 45Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
seu “nascimento (eterno)” que tudo nasce, é nesse advir atemporal que é causa de si e de todas as coisas, incluindo do Deus que é Deus (nas e para as criaturas), o que lhe permite afirmar que, caso o quisesse, nada seria, nem ele, nem Deus, nem todas as coisas. (ECKHART, 2008, 561 e 563).
O Durchbrechen é uma “elevação” ou “des-envolvimento” (Aufschwung) pelo qual se recupera uma “riqueza” superior a Deus e todas as suas obras e que não é outra senão a unicidade com Deus: “ich und Gott eins sind”. Isso é o que sempre se é, sem aumento nem diminuição, “uma causa imóvel, que faz mover todas as coisas”. E essa é a “suma pobreza” (ECKHART, 2008, p. 563), a de não haver/ser menos que o Infinito. Eckhart conclui exortando a que não se aflija quem não compreender “este discurso”, pois expressa uma “verdade desencoberta (unverhüllte Wahrheit) vinda diretamente / sem mediação (unmittelbar) do coração de Deus”, que só pode ser compreendida quando o ser humano se igualar ela. (ECKHART, 2008a, p. 563).
Encontramos nesta transcensão de Deus - por reassunção do “abismo eterno” alheio ao conceito de haver Deus, ser humano e mundo, “a grande Vacância, essa Liberdade “além” mesmo de Deus” (LELOUP, 2014, p. 91) 2 (além e aquém, notamos) cuja experiência é o programa da mística da (supra-)essência que se estende do movimento das beguinas, com Marguerite Porete (BORGES, 2010, p. 349-371), entre outras, a Eckhart e a Angelus Silesius3 - uma mais radical “morte de Deus” que 2 Comentando a súplica eckhartiana de ser livre de Deus, Leloup escreve que “o homem livre é sem ideias, sem ideal, sem ídolo, sem Deus” (LELOUP, 2014, p. 98). Cf. também LELOUP, 2013, p. 106-111.
Segundo um “grande mestre” que não identifica, a “abertura” ou “trespasse” (Durchbrechen) é “mais nobre” do que o “sair” ou “emanar” (Ausflieβen), pois este é o devir criatura, que, ao instituir o humano, co-institui Deus e o mundo como seus correlatos, ao passo que o primeiro – esse “romper através”, Durch-brechen – é uma libertação radical de todas as determinações, pela qual não se é “nem Deus nem criatura” e se reassume a plena, primordial e atemporal indeterminação ou infinidade.
Na verdade, o “louco” que proclama a morte de Deus espanta-se perante ter sido possível “esvaziar o mar”, “apagar o horizonte inteiro” e desprender a “terra” do “Sol”: são imagens de dissolução das anteriores referências, negativas mas libertadoras, que, como vimos, dão lugar ao imaginário positivo e esperançoso de um novo e promissor horizonte marítimo aberto e livre. Não deixa, todavia, de ser ambígua a caracterização que o profeta da morte divina faz do presente momento da consciência humana, imediatamente emergente do seu descrédito no fundamento divino de tudo: Que fizemos quando desprendemos a corrente que ligava esta terra ao Sol? Para onde vai ela agora? Para onde vamos nós próprios? Longe de Silesius. Cherubinischer Wandersmann, I, 289, in Sämtliche Poetische Werke, III, p. 7-8 e 219. Numa nota ao último verso esclarece que se trata de ir “além de tudo o que se conhece de Deus ou dele se pode pensar / segundo a via negativa”, acrescentando: “acerca de tal, procurar nos Místicos”. Cf. BORGES, 2009. p. 439-457.
Além-Deus e morte de Deus: Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa 46 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
permite repensar a sua proclamação por Nietzsche surpreendendo o impensado que encobre o seu sentido e implicações mais profundos. Tal como o cínico Diógenes no passado procurou um homem, o “louco” nietzschiano corre pela praça pública com uma lanterna acesa em pleno dia procurando Deus e anunciando a sua morte às mãos da humanidade (NIETZSCHE, 1977, p. 143). Nietzsche dramatiza neste episódio o soçobro da fé na representação cristã de Deus, que teria sido “despojada da sua plausibilidade”, como “o maior dos acontecimentos recentes” (NIETZSCHE, 1977, p. 230). Isto suscita um sentimento ambíguo: por um lado, traz aos “filósofos” e “livres espíritos” um sentimento de iluminação “como por uma nova aurora”, que reabre um horizonte marítimo vasto e livre onde se pode viajar sem limites pré-estabelecidos ao conhecimento e à experiência (NIETZSCHE, 1977, p. 231-232); por outro, mal se adivinha ainda tudo o que se vai afundar como consequência desse fim da fé no Deus cristão, a “longa sequência” e “abundância de demolições, de destruições, de ruínas e de subversões”, entre as quais a de “toda a moral europeia” (NIETZSCHE, 1977, p. 230-231); por outro ainda, apesar de Deus haver morrido, Nietzsche adverte que os humanos são tais que a “sua sombra” perdurará ainda “durante milénios”, sendo necessário que a vençam aqueles mesmos que já vêem e anunciam a sua morte (NIETZSCHE, 1977, p. 129).
todos os sóis? Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para os lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio? (NIETZSCHE, 1977, p. 143-144).
Não há nesta “morte de Deus” um “ser Deus” como “nada-tudo ser”, nessa imanência e liberdade radical e primordial alheia a toda a determinação e autorreferência intelectual, nessa superabundante pobreza do vazio pleno de todos os possíveis? Não há nesta morte de Deus a experiência mística da coincidência com o fundo sem fundo de tudo, com a desnuda infinidade, sem predicados, atributos ou características, com
4 O “fundo simples” (“einfaltigen Grund”) é simultaneamente o “deserto silencioso onde jamais a distinção lançou um olhar, nem Pai, nem Filho, nem Espírito Santo” (“die stille Wüste, in die nie Unterschiedenheit hineinlugte, weder Vater noch Sohn noch Heiliger Geist”) (ECKHART, 1979, p. 316).
Interrogamo-nos se não assistimos aqui à experiência involuntária e súbita do mesmo que Eckhart assume, voluntária e programaticamente, como o libertar-se de Deus, ou seja, de todas as ideias a seu respeito, incluindo a de ser “Deus”, libertandose simultaneamente da condição de criatura e regressando nisso à abissalidade da infinidade e indeterminação primordial e eterna. Não há neste sentimento de ausência de fins, orientação, coordenadas e referências, nesta sensação de “cair” em todas as direcções e para “todos os lados” ao mesmo tempo, nesta errância “através de um vazio infinito”, a experiência daquela “pobreza em espírito” inerente ao nada querer, nada saber e nada ter que é simultaneamente a transcensão do ser criado e a reintegração no abismo eterno de um fundo sem fundo – Abgrund – que na linguagem eckhartiana não deixa de convocar as imagens do “deserto”4, do “nada”5 e do “vazio” (ECKHART, 2008c, p. 35)? Não há nesta “morte de Deus” – que é primeiro que tudo uma “morte do sujeito que o pensa como criador de si e do mundo” - uma abertura à experiência plena de “Deus” tal como é, o puro infinito, livre de ser Deus para o ser humano e o mundo, ou seja, livre de todas as representações antropocêntricas, das metafísicas às morais?
5 Veja-se entre outros o sermão onde Eckhart comenta o passo dos “Actos dos Apóstolos”, 9, 3-9, que narra a aparição de Jesus ao futuro São Paulo, subitamente envolvido por “uma luz vinda do céu” que o faz cair por terra. Quando se ergue, diz o texto que, “embora tivesse os olhos abertos, não via nada”. Eckhart encontra aqui quatro sentidos: “Um desses sentidos é: quando se levantou da terra, de olhos abertos nada viu e esse nada era Deus; pois, ao ver Deus, chama-o um nada. O segundo sentido: quando se levantou, nada viu senão Deus. O terceiro: em todas as coisas, nada viu senão Deus. O quarto: ao ver Deus, viu todas as coisas como um nada” (ECKHART, 2008b, p. 65). Cf. BORGES, 2008a, p. 567-579. Paulo Borges 47Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Além-Deus e morte de Deus: Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa 48 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
a liberdade radical isenta das categorias e modalidades do divino, do humano e do cósmico, além-aquém de todas as orientações, caminhos, sentidos e finalidades, numa perdição que é encontro e salvação? Não será isto conforme ao ensinamento evangélico de só se salvarem os que se perderem6, ao ensinamento eckhartiano de abandonar todo o “modo” (Weise) de buscar Deus, pois assim se tomam os “modos” e se perde Deus, que neles fica “oculto”, apenas sendo experimentado por quem o busca “sem modos” e se converte na “própria vida”, “sem porquê” (ECKHART, 2008d, p. 71 e 73) ou ainda ao ensinamento de São João da Cruz de chegar à mesma experiência de Deus perdendo-se de todos os “caminhos” e “formas” criaturais de o procurar 7?
O “louco” nietzschiano expressa o vislumbre de que a “morte de Deus” é a acção mais grandiosa da humanidade e da história, dividindo esta num antes e num depois que faz deste “uma história mais elevada do que, até aqui, nunca o foi qualquer história!”. Mas constata que tal grandeza é excessiva para a humanidade, de onde resulta a interrogação a nosso ver crucial: “Não será preciso que nós próprios nos tornemos deuses para, simplesmente, parecermos dignos dela?” (NIETZSCHE, 1977, p. 147). O que significa isto? Há, a nosso ver, duas possibilidades de interpretação.
Já a segunda leitura - bem mais exigente, em termos teóricos e práticos, espirituais, intelectuais e éticos, e por isso mesmo minoritária - é a que entende a necessidade
6 “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” – Mateus, 16, 24-25.
A primeira, mais fácil e por isso predominante, é a que se converteu no programa do humanismo ateu e antropocêntrico, mesmo sem consciência disso ou negando-o: substituir o lugar vazio do “Deus” cristão pela humanidade autodivinizada, que se autoinstitui como o novo centro do mundo, que doravante não ofereceria mais limites ao domínio do humano, tal como este se representa e celebra na civilização tecnocientífica de matriz europeia-ocidental hoje globalizada (BRAGUE, 2015, p. 14). Reconhecendo a representação teológica do divino como projecção psicológica humana (Feuerbach), a consciência humana preencheria consigo mesma o vazio aberto pela morte de Deus.
7 “[…] cuando una alma en el camino espiritual a llegado a tanto que se ha perdido a todos los caminos y vías naturales de proceder en el trato com Dios, que ya no le busca por consideraciones ni formas ni sentimientos ni otros modos algunos de criaturas ni sentido, […]” (CRUZ, 2002, p. 858).
A “grandeza” do deicídio (NIETZSCHE, 1977, p. 144) seria assim inseparável dessa suma “grandeza” humana que Nietzsche, no Assim Falava Zaratustra, proclama consistir em o humano “ser uma ponte e não uma meta”, residindo precisamente o que nele há de amável em ser “transição e perdição” e “uma corda estendida entre o animal e o Super-Homem – uma corda sobre um abismo”: “Amo os que só sabem viver com a condição de perecer, porque perecendo se superam” (NIETZSCHE, 1964, p. 15). Esta grandeza seria a da superação do humanismo, quer na sua anterior versão teocêntrica, quer na sua moderna versão antropocêntrica, para esse coalescer com o vazio abissal na assunção da plenitude em acto de todo o possível que nos parece ser o programa intemporal da mística mais radical, porventura obscuramente vislumbrado por Nietzsche na figura equívoca do Supra-homem. É esta superação do humanismo e do próprio humano que Eudoro de Sousa lucidamente viu como o impensado imperativo do “Homem” que quiser ocupar o esvaziado lugar da divindade: “O Homem sofrerá pior destino se quiser ocupar o lugar que Deus deixou vazio: terá de morrer vezes sem conta, excedendo-se de cada vez que morre, porque Deus é Excessividade caótica, o Excesso que vem subindo do abismo sem fundo”. (SOUSA, 2002, p. 52).
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de se tornar deus para ser digno da morte de Deus como a exigência de uma plena e infinita transcensão do próprio humano, que se deve esvaziar radicalmente de todas as determinações, referências e apoios, a começar pelo autocentramento, para ser capaz de habitar o vazio, ou antes, ser o vazio aberto pelo Deus que nele deixou de colocar.
É neste contexto que nos parece fecundo compreender o Tratado da Negação, texto pessoano assinado por Rafael Baldaia. É um curto ensaio em onze pontos, que nos três iniciais sustenta que “o Mundo é formado de duas ordens de forças”, as “que afirmam” e as “que negam”, sendo as primeiras as “criadoras do mundo, emanadas sucessivamente do Único, centro da Afirmação”, e as segundas as que “emanam de Paulo Borges Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Seja como for, é porventura para ambas as interpretações e consequências da morte de Deus que o “louco” reconhece haver chegado “cedo demais”, pois o que ele vê já consumado ainda vem a caminho para a consciência da maioria dos humanos, embora tenham sido eles os seus agentes. (NIETZSCHE, 1977, p. 144-145).
Além-Deus e morte de Deus: Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa 50 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
O ponto seguinte vai mais longe, declarando que “o Único, de quem Deus, o Deus Criador das Coisas, é apenas uma manifestação, é uma Ilusão”. Sabemos assim que o “Único” transcende o que se representa como o Deus criador, mas que, além de não ser a realidade primordial, aparenta uma realidade que não tem. A razão parece residir no facto de “toda a criação” ser “ficção e ilusão”, abrangendo tudo o que se afigura ser princípio e causa da existência de algo, tudo o que é factor ou processo de determinação positiva do existente. Na verdade, todas as instâncias da aparente constituição ontognosiológica do real são ilusórias: “assim como a Matéria é uma Ilusão (...) para o Pensamento”, este o é “para a Intuição”, esta o é “para a Ideia Pura” e esta o é “para o Ser”, o qual “é essencialmente Ilusão e Falsidade”. Em última instância, “Deus é a Mentira Suprema”, o que neste contexto parece referir-se não ao “Deus Criador das Coisas”, mas ao próprio “Ser” supremo ou “Único” (BALDAIA, 1993, p. 42), que não é assim o absoluto das metafísicas tradicionais de cariz henológico, como a plotiniana ou as suas possíveis influências indianas upanishádico-vedânticas (McEVILLEY, 2002, p. 549-567), pois tem algo que o transcende e, porventura por isso mesmo, é ilusório. Na verdade, a lógica do texto é a de que tudo o que é algo, tudo o que tem uma determinação, é uma negação e uma ilusão perante o que não possui determinações e limites, o indeterminado e ilimitado. Encontramos aqui radicalizada a visão de Espinosa de que toda a determinação é uma negação, referida por Hegel8, que a esse respeito afirma que todo o “ser-aí” é a limitação e a negação do que, pensado “sem limite”, é o “nada vazio”. (HEGEL, 1812-1972, p. 111-112).
O ponto 5 do Tratado da Negação reitera que “as forças que negam” – que não são criadoras do mundo, mas que o integram em conjunto com as que o criam – “partem de além do Único”. Isso que transcende o “Único” é inapreensível pela 8 Espinosa escreve na carta 50 a Jarig Jelles que “determinatio negatio est” (“a determinação é negação”), o que Hegel cita como “Determinatio est negatio” – (HEGEL, 1812-1972. p. 111).
além do Único” (BALDAIA, 1993, p. 42). Há assim uma fundamentação positiva da totalidade do existente, o “mundo”, num princípio unicitário, o “Único”, que todavia, apesar de ser a fonte da emanação criadora, não corresponde à realidade primeira e última, pois há forças no mundo, as “que negam”, que emanam de além dele.
Sendo a negação do que aparenta ser supremo, o que a negação do “Único” revela é a “negação suprema” e isso é o “Não-Ser”. Não pensável em si mesmo, porque pensá-lo seria “não pensar”, ele é, todavia, de algum modo pensável na medida em que é designado como tal. Ao ser pensado, adquire determinação e Baldaia diz que se converte no “Ser”, afirmando ser assim que “o Ser sai, por oposição do Não-Ser”.
Nos limites da “linguagem humana”, é como se o “Não-Ser” precedesse o “Ser” (BALDAIA, 1993, p. 43), o que, todavia, não pode corresponder à realidade, pois já havíamos antes visto que “o Ser é essencialmente Ilusão e Falsidade”. (BALDAIA, 1993, p. 42).
Se o “Ser”, porventura idêntico ao “Único” ou a “Deus”, enquanto mais original e universal determinação, é já uma negação e uma limitação do indeterminado que o transcende, a sua progressiva manifestação, nas várias instâncias ontognosiológicas referidas, é uma crescente autonegação que na verdade é uma crescente negação da negação. Daí que a sua final manifestação na “Matéria”, em vez de ser a sua maior determinação e limitação, como nas metafísicas e ontologias de matriz neoplatónica e espiritualista, seja na verdade a maior negação de todas as ilusórias determinações e limitações ontognosiológicas procedentes do “Único” por via das forças afirmativas e criadoras do mundo que são nesta perspectiva as forças da própria “ilusão” e dissimulada negação do indeterminado primordial. Como diz Baldaia, sendo a “Matéria (...) a maior das negações do Ser”, é o “estado” que mais se aproxima do “Não-Ser” e por Paulo Borges 51Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
inteligência humana, que por sua natureza só pode conceber os objetos que determina e constitui. Por este motivo, para ela “não há nada” fora do “Único”. Num argumento algo obscuro, Baldaia considera, todavia, que a possibilidade de pensar a não existência do “Único”, a possibilidade de o negar – que no fundo parece ser a operação negativa das forças que emanam de além dele – mostra que afinal ele “não é o Único, o Supremo, o realmente Supremo”: “poder negá-lo é negá-lo; negá-lo é ele não ser”. É como se a negação do “Único” revelasse o que o transcende, que todavia não pode ter entidade ou determinação, pois se assim fosse não escaparia à esfera da “criação”, da “ficção” e da “ilusão”, que, como vimos, são sinónimos. (BALDAIA, 1993, p. 42-43).
isso “a menor das Ilusões, a mais fraca das mentiras”, de onde resulta a sua evidência (BALDAIA, 1993, p. 42). Nesta evidência da “Matéria” é, todavia, sobretudo o “Não-Ser” que se evidencia, pela crescente autonegação da negação que é o “Ser” na sua progressiva manifestação criadora. O “Ser” manifesta-se nas várias instâncias ontognosiológicas – da “Ideia Pura” à “Intuição”, ao “Pensamento” e à “Matéria” –deconstituindo-se e revelando o indeterminado que é o fundo sem fundo de tudo. É por isso que Baldaia, numa linguagem que nos parece equívoca, diz que o “Ser”, “à medida que se vai negando, vai criando o Não-Ser”. Consciente das dificuldades deste modo de expressão, escreve: “Como o Não-Ser é anterior ao Ser, essa negação que o Ser faz de si-próprio é uma “criação”, se assim é possível falar”. (BALDAIA, 1993, p. 43).
Neste sentido se compreende que Baldaia, no ponto 9, afirme que “a negação consiste em auxiliar o Manifestado a manifestar-se mais, até ele se dissolver em Não-Ser”, estabelecendo programaticamente no ponto 8 que “devemos ser criadores de Negação, negadores da espiritualidade, construtores de Matéria”. Acrescenta que “a Matéria é a Aparência” e que esta “é ao mesmo tempo o Ser e o Não-Ser”
Parece claro que Baldaia usa aqui a palavra “criação” num sentido diametralmente oposto ao anterior, quando afirmou que “toda a criação é ficção e ilusão”. “Criação” tem agora o sentido de uma revelação do “Não-Ser” por dissipação dos véus ilusórios da determinação do “Ser”: o “Não-Ser” não pode ser criado, mas apenas desvelado como o fundo sem fundo incriado e indeterminado de tudo. Esta revelação ou desvelamento, que aparenta no início ser negativa, é no fundo positiva, pois como vimos é a negação de todos os modos de negação que constituem o mundo por via das forças que o criam e que, apesar de serem no início definidas como afirmativas, sabemos agora serem negativas e ilusórias na medida em que negam e encobrem o ilimitado e impensável que nos limites do pensamento e da linguagem se designa como “Não-Ser”.
(BALDAIA, 1993, p. 43), o que entendemos no sentido de que a matéria ainda é uma determinação, ainda é alguma coisa e, portanto, ilusão, mas a mínima e a mais frágil das determinações e ilusões, na transição para a negação e dissolução de todas Além-Deus e morte de Deus: Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa 52 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
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as determinações, ilusões e criadoras negações do indeterminado, pensado ao limite como “Não-Ser”. Sendo a máxima negação da negação do indeterminado que instaura toda a determinação positiva do real e da consciência, a matéria é nesta visão – nos antípodas do platonismo - o que há de menos ilusório na esfera da ilusão que é todo o universo ontognosiológico. Sendo a realidade que menos nega o “Não-Ser” primordial e englobante, o indeterminado onde todas as determinações negativamente se processam, a matéria é a realidade menos determinada e ilusória e por isso menos irreal na exata medida em que mais transparece, na sua fluida indeterminação de mera aparência, o “ir-real” ou “Não-Ser” que nesta outra lógica, radicalmente apofática (apophasis pode significar “negação”, sugerindo etimologicamente um “desdizer” ou “falar distanciando-se”, que implica negar uma afirmação anterior) (SELLS, 1994, p. 2-3), coincide com o que na linguagem ontológica se representa como o ser pleno e absoluto. Num mundo constituído por forças afirmativas e criadoras que o Tratado da Negação denuncia afinal como niilistas e ilusórias, na medida em que instauram todas as dimensões do real negando e ocultando o ilimitado, compreende-se o programa de um aparente “niilismo activo”, para usar a expressão nietzschiana (NIETZSCHE, 1995, p. 15), que consiste em acelerar e levar o processo de manifestação até às suas últimas consequências, que são a autodissolução “em Não-Ser”. É neste contexto que, no ponto 10, Baldaia considera haver no mundo “dois princípios em luta: o princípio de Afirmação, de Espiritualidade, de Misticismo”, que diz ser “o Cristão” – acrescentando “para nós, actualmente”, o que pode sugerir que noutra época ele assumiu outra forma – e “o de Negação, de Materialidade, de Clareza, que é o Pagão”. “Lúcifer – o portador da Luz” seria “o símbolo nominal do Espírito que Nega”. Baldaia identifica, de forma obviamente controversa, as forças criadoras, e portanto ilusórias, com a espiritualidade, a mística e o cristianismo e as forças negadoras, agentes da des-ilusão, com a materialidade, a clareza e o paganismo. No contexto do Tratado da Negação, e tendo em conta o ponto seguinte, isto parece significar que a afirmação de um princípio espiritual e divino, criador transcendente do mundo e ao qual o ser Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud:
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Além-Deus e morte de Deus: Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa 54 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
humano deveria religar-se e unir-se, é a fonte de toda a ilusão, ao passo que a negação racional disso, preferindo a matéria ao espírito como a menor das ilusões em busca da sua superação total, seria o caminho de emancipação da consciência, simbolizado em “Lúcifer” como figura iluminativa (“Lúcifer” significa “o que traz a luz”) e libertadora, ao invés do seu tradicional entendimento cristão. Daí a referência adicional à “revolta dos anjos” como criadora da “Matéria” enquanto “regresso ao Não-Ser” e “libertação da Afirmação” (BALDAIA, 1993, p. 43). Baldaia ecoa aqui os interesses esotéricos de Pessoa, propondo uma leitura de “Lúcifer” de inspiração gnóstica, que parece valorizar a revolta angélica como instância positiva de insubordinação contra a ordem do mundo criado pela “Mentira Suprema” que seria “Deus” e da qual teria resultado a matéria, pela qual se negaria a ilusória negação do ilimitado que é a criação do mundo e se regressaria ao “Não-Ser”, numa libertação de todo o poder afirmativo da ilusão. Isto parece supor que a matéria não faria parte da original criação divina, o que recorda a doutrina das duas criações, a espiritual e a material, nalguns Padres da Igreja como Orígenes, Gregório de Nissa e Evágrio Pôntico, resultando neste caso a segunda criação de uma benigna adequação divina à queda da humanidade induzida por Lúcifer (BORGES, 2011, p. 59-60). Não é obviamente esta a leitura que Baldaia faz da criação material, que vai no sentido de um neognosticismo tanto heterodoxo em relação à visão gnóstica da matéria como corrupção do espírito, como anticristão, em curioso contraste com a assunção pessoana, no final da vida, de ser um “cristão gnóstico”. (PESSOA, 1986, v. III, p. 1 428; MOTA, 2008, p. 310-313).
O derradeiro ponto do texto é o mais explicitamente fecundo para o nosso tema. Nele Baldaia dialoga agora com a teosofia, afirmando haver “realmente todos os mundos que os teósofos afirmam”, mas estarem “dentro da Ilusão, que, enquanto existe, é a Realidade”. O autor confirma aqui o ilusionismo universal antes teorizado, no qual a ilusão preside à ontogonia e à ontologia, fazendo com que os múltiplos planos de existência não sejam mais do que os múltiplos níveis de uma ilusão da consciência ainda não reconhecida como tal, que confere estatuto real àquilo que na verdade é apenas uma sua objetivação e entificação limitadora do ilimitado. Mas o essencial é
O texto é de uma subtil complexidade, pois não se reduz à posição ateia comum de afirmar como ilusão da consciência humana a crença na existência de Deus, radicando antes na consciência divina esta crença ilusória na sua própria existência.
Deus existe assim de um certo modo, mas apenas como ilusão de uma consciência que se julga dotada de uma existência absoluta, quando na verdade apenas existe, tal como todo o existente, como determinação de alguma coisa que é uma não-coisa e que não existe, pois transcende a esfera da determinação inerente a toda a existência.
que a ilusão procede precisamente disso que se pensa como o princípio e fundamento de todos esses “mundos”, o “Deus”-“Mentira Suprema”, que é ele mesmo o supremo estado iludido de consciência. Citemos um trecho decisivo: Deus existe com efeito para si-próprio; mas Deus está enganado. Como qualquer de nós julga existir, e para Deus não existe, senão como parte dele, e isto é não-existir, em absoluto; assim, Deus julga existir e não existe. O próprio ser é o Não-Ser do Não-Ser apenas, a afirmação mortal, da Vida. (BALDAIA, 1993, p. 44).
Há assim no cogito divino uma auto-ilusão que é o modelo daquela que condiciona a consciência de todo o ente humano, na medida em que se julga possuidor de uma existência autónoma quando na verdade apenas participa da existência mais plena, no domínio da ilusão, que é a de Deus. Tal como o ser humano ilusoriamente existe para si mesmo como dotado de uma existência em si e por si, não contingente nem relativa, assim o próprio Deus em Baldaia se vê e crê plenamente existente, como o Ser absoluto, quando na verdade apenas se inscreve no abismo incriado do indeterminado e ilimitado, concebido nos limites do pensamento e da linguagem como “Não-Ser”. A ilusão de Deus, matriz de toda a ilusão possível, é não ver o próprio ser como afirmação intrinsecamente negadora, e por isso limitadora, veladora e “mortal”, do infinito que no final do Tratado da Negação uma única vez se expressa positivamente, como “Vida”. Revisita-se e radicaliza-se assim um antigo tema gnóstico - o da ignorância do Deus criador ou demiurgo, Iahweh, denunciado como não mais do que um arconte ou demiurgo criado que se toma por Deus único e princípio absoluto na medida em Paulo Borges 55Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Considerando as forças afirmativas e “criadoras do mundo” como ilusórias e procedentes da suprema ilusão que é a de Deus se julgar existir plenamente quando é apenas a determinação negativa do impensável pensado como “Não-Ser”, o Tratado da Negação é um tratado de des-ilusão e desmundificação radical que visa extirpar a raiz de toda a ignorância que nesta perspectiva poderia residir na divina resposta dada por Iahweh a Moisés, quando este questiona o seu nome: “Eu sou aquele que é” ou “EU SOU”, problemática tradução de ´ehyeh ´aser ´ehyeh (Êxodo, 3, 14). A ilusão divina residiria nessa determinação do “Não-Ser” ou da “Vida”, seu sinónimo positivo, como um sujeito ou pessoa divina que se vê a si mesmo como puro ser, o que é ainda uma determinação e uma limitação, ocultando o abismo primordial e inefável de uma “Vida” supra-pessoal na consciência intelectual de si e assim configurando o Deus que é pensamento eterno de si mesmo, como diversamente acontece de Aristóteles (ARISTÓTELES, Metafísica Λ 7, 1072 b 19, 2002) a Hegel ([1807] / 1994, p. 37-39), objeto já da crítica de Plotino (VI 2, 7, 37, p. 111-112.) e de Mestre Eckhart (2008a, p. 557). Esta visão conhecerá várias versões no pensamento português, destacando-se, além de Pascoaes e Pessoa, José Marinho e Agostinho da Silva, numa vertente que remonta a Antero de Quental e ao seu vislumbre de que a personalização e divinização da “Vida”, convertendo-a num “Deus” objeto de culto, é a sua morte na consciência que assim idolatricamente a representa:
que ignora a Fonte primordial e transcendente de tudo9 -, já no pensamento português renovado de modo original por Teixeira de Pascoaes10 -, ao mesmo tempo que se transita da hipótese mais que tudo exorcizada pelo racionalismo ocidental, de Platão a Descartes, a do Deus enganador (PLATÃO, 379b-380b, 380d-381c, 382a-383a; DESCARTES, 1968, p. 44 e 47-49; 1976, p. 110-114 e 137-138), para a integrar nesta mais radical tese do Deus (auto-)enganado e a partir daí enganador, que a par de Pessoa também se formula em Teixeira de Pascoaes. (BORGES, 1997, p. 465-485; 2008d; 2008c).
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9 Cf. São IRENEU, Contre les hérésies. Dénonciation et réfutation de la gnose au nom menteur, I, 26, 1 e 30, 4-6, p. 116 e 125-127; HIPÓLITO, Refutação de todas as heresias, VII, 25, 3 e 26, 1-3; Apócrifo de João, 42, 13 e ss; 44, 9 e ss. – citados em JONAS, 1978, p. 179-183; p. 249-254.
10 Cf. entre muitos outros lugares, a ideia da criação como a fuga do criador a algo anterior que não se suporta: “E que é o mêdo? É o Deus anterior aos deuses... a última Fôrça misteriosa... Para fugir à sua sombra, Jéovah criou a luz” ( PASCOAES, s.d., p. 74)
de Fernando Pessoa pode ser aqui útil, por ser muito afim à temática do Tratado da Negação. Tendo como título “O desconhecido”, nele se reafirma a tese de que “Tudo é ilusão”, pois “tudo é criação, e toda a criação é ilusão”. “Criar é mentir” e “Ser é não-ser”, pois tudo o que se pensa e concebe passa a existir como ilusão que se desconhece, como, por exemplo, “Deus, céu, anjos, almas imortais e eternas”. Todavia, “A própria ilusão é uma ilusão”, pois apenas existe como não reconhecimento de uma instância não ilusória e enquanto não for reconhecida como tal, jamais se constituindo como algo efectiva e irredutivelmente existente. E a possibilidade do seu reconhecimento, a possibilidade da “des-ilusão”, mostra haver algo que escapa à ilusão e à criação que lhe é inerente: “Só há uma coisa que não pode ser ilusão, porque ela não é criada: é a consciência”. Nesta visão, a consciência é a única coisa que “escapa a toda a crítica”, na medida em que não é criada nem cria. Estamos, porém, a falar de uma consciência que diríamos nua, meramente contemplativa, sem modalidades operativas, pois “Pensar, sentir, querer, são ilusões; mas ter consciência não é uma ilusão”, o que entendemos como ter consciência ou experiência das determinações dessa consciência ou experiência que são o pensar, o sentir e o querer, sem se identificar com elas. Esta consciência não é um conceito ou ideia humana, pois na medida em que o seja “é falsa”, e escapa assim às categorias mentais que são “ser” e “não-ser”, bem como a toda a determinação, ôntica ou mé-ôntica (PESSOA, 1993, v. I, p. 44-45). A consciência em causa é alheia à noção comum e falsa “de que há qualquer coisa”. Pessoa diz: Paulo Borges 57Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Este soneto de Antero é muito convergente com o tema de Rafael Baldaia, com a diferença de que este parece falar de uma ilusão inerente ao cogito divino que o limita no seio da “Vida” que o transcende, enquanto Antero remete a ilusão para a consciência humana que representa em termos pessoais e teomórficos uma Vida suprapessoal e sem qualificações.Umoutrotexto
Que vivi sei-o eu bem... mas foi um dia, / Um dia só – no outro, a Idolatria / Deu-me um altar e um culto... ai! Adoraram-me, // Como se eu fosse alguém! Como se a Vida / Pudesse ser alguém! – logo em seguida / Disseram que era um Deus... e amortalharam-me! (QUENTAL, 1994. p. 107).
“Não há; não há nem não há”, o que interpretamos como uma recusa a conceber e dizer algo segundo qualquer modo proposicional, afirmativo ou negativo, numa mais radical transcensão da via catafática e apofática, que visa precisamente preservar a consciência de toda e qualquer determinação na forma de uma tese ou enunciado discursivo (o que recorda as dialéticas radicalmente deconstrutivas de Nāgārjuna e Damáscio como via para libertar a mente de todos os conceitos e pontos de vista que obscurecem a experiência silenciosa do inefável11). Isto aplica-se primeiro que tudo à própria consciência - “não existe, mas é a única verdade” (PESSOA, 1993, v. I, p. 46) – e convida naturalmente ao silêncio, pois a “verdade” em questão não consiste numa fórmula doutrinal, conceptual e verbal, mas antes numa experiência de abertura da consciência para além desse encobrimento da nudez do que é, como o sugere a alétheia grega (des-velamento, des-ocultamento, não-esquecimento). Esta consciência/ experiência, alheia a qualquer estatuto ôntico e sem qualquer determinação, que por isso mesmo é a única instância livre de ilusão e que dela pode libertar, parece-nos afim ao que o Tratado da Negação designa negativamente como “Não-Ser” e positivamente como “Vida”.Apesar da aparente recusa da “espiritualidade”, o Tratado da Negação parece assim oferecer uma via de negação da negação de todas as ilusórias determinações da consciência, a começar por essa em que “Deus” consiste, que no fundo é uma via espiritual alternativa de registo a-teu e a-teológico, mas irredutível ao ateísmo comum, na medida em que assume o infinito que há aquém e além de Deus, encoberto pela ilusão da consciência divina. O além-Deus é, como veremos, um tema recorrente da poesia pessoana, que emerge também num texto muito afim do Tratado da Negação, O Caminho da Serpente, “Livro que o não é”. Nele a serpente figura o movimento do “Spirito que nega, mas nega mais, e mais profundamente, do que em geral se entende ou póde entender”, negando em níveis de crescente profundidade o “bem” (como a “Serpente” que “tenta Eva”), a “verdade”, “o bem e o mal” (como “Satan”) e “a 11 “Abençoada a pacificação de todo o gesto de apropriação, a pacificação da proliferação das palavras e das coisas” (NĀGĀRJUNA, 25, 24, , 2002, p. 334); “Mas o indizível, é por um perfeito silêncio que é necessário honrá-lo, e antes de mais por uma perfeita ignorância, aquela que considera todo o conhecimento como indigno”. (DAMÁSCIO, 1986, p. 11).
Além-Deus e morte de Deus: Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa 58 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
verdade o erro” (como “Lucifer” “(ou Venus)”), para negar “a si mesma e a tudo no seu quinto nível, e fuga, em que é SS, a Revelação Suprema”, onde “a si mesma se tenta e se mata”12. Conforme simboliza o “seu feitio de S”, “A Serpente inclue”, “rodeia e transcende” “dois espaços”, sendo o primeiro o “mundo inferior” e o segundo o “mundo superior, num movimento pelo qual se evade “das duas Realidades e desaparece dos Mundos e Universos” (PESSOA, 1985, p. 30). Na verdade ela transcende assim as duas esferas da “ilusão” que, tal como nos textos anteriores, se afirma aqui ser “a substância do mundo”, “tanto no mundo superior como no mundo inferior, no oculto como no patente”. Conforme indica a figura sinuosa do S, a “Serpente” é a única instância que, “contornando os infinitos abertos – ou os círculos “incompletos” – dos dois mundos”, “foge á illusão e conhece o principio da verdade” (PESSOA, 1985, p. 30). Como se figura ainda no S, “o seu movimento, para a direita, na ordem inferior das coisas e dos seres, é-o apenas para que possa ser para a esquerda na ordem superior d’elles”. Assim segue “atravez do mundo, e do espirito, até que sahe do mundo e do espírito” (PESSOA, 1985, p. 33). Transcendendo a tudo e a si mesma, atravessando “todos os mysterios (...) pois lhes conhece a illusão e a lei”, assumindo “formas com que, e em que, se nega”, como “pelles que larga” (como “a Cobra do Eden”, “Saturno e Satan”), a Serpente transcende ainda o que se designa como “Deus”: “E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ella, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou alli de fora” (PESSOA, 1985, p. 29)13. Entendemos isto no sentido de que a “Serpente” é figura do “Spirito” sem determinações que apenas as assume para as / se autonegar, não podendo assim jamais deter-se no que ainda seja alguma coisa, mesmo que seja a Coisa suprema, a Coisa das coisas: “Deus”.
12 Cf. O Caminho da Serpente, in CENTENO, 1985, p. 35. Veja-se uma transcrição mais rigorosa do texto pessoano, que assinala todas as alterações manuscritas, mas que se torna difícil usar para citar: Fernando PESSOA, O Caminho da Serpente. O livro que o não é. Edição fac-símile e transcrição de Luiz Pires dos Reys. [s.l.] Edições Sem Nome, 2014. A obra é dupla, tendo no reverso Gilberto de LASCARIZ, O Verbo do Arcanjo Luciferino em Fernando Pessoa. De notar o Anexo 1, que reproduz um texto pessoano onde se lê: “A figura da ascensão, e pensar o que fazer do caminho da Serpente, agora repudiado” (PESSOA, 2014, p. 26. 13 Cf. também PESSOA, 1985, p. 34: “e quando chega a Deus não para”. Paulo Borges 59Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Neste “caminho da Serpente”, que na verdade “é a evasão dos caminhos”, reconhece-se a “verdade essencial (...) de que Deus é o cadaver de si-mesmo”, o que equivale à “descoberta do Triangulo Mystico em que os trez vertices são o mesmo ponto, o segredo da Trindade e do Deus Vivo, que, em certo modo, é o Homem Morto em e atravez de Deus Morto” (PESSOA, 1985, p. 35). Cremos poder interpretar esta formulação obscura como o reconhecimento de que o que se representa como “Deus” é Além-Deus e morte de Deus: Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa 60 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
A “Serpente” parece na verdade equivaler à “consciência” atrás referida, no texto “O desconhecido”, ou ao “Não-Ser” do Tratado da Negação, na medida em que O Caminho da Serpente afirma que “a consciência transcende a unidade”, sendo o “ponto absoluto” que “só “existe”” como condição de possibilidade de tudo o mais (PESSOA, 1985, p. 29), o que sugere que transcende toda e qualquer forma ou modo de existência. Esta “Serpente”/”consciência”, que se manifesta de modo negativo e libertador, pois negar é negar todos os ilusórios limites e determinações, representa na verdade a “sabedoria” de simultaneamente conhecer e participar intimamente de “todas as coisas” e abandoná-las “como acidentes de uma ilusão irracional”. Tratase de reconhecer, vivenciar e emancipar-se de todos os contrários, integrando e transcendendo o projeto sensacionista de Álvaro Campos: “Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo” (PESSOA, 1985, p. 33). É nisto que “a Serpente está acima das ordens e dos systemas”, bem como das “linhas” e “caminhos” (PESSOA, 1985, p. 29), sendo uma figura de libertação radical que a tudo integra e transcende:
A Serpente é o entendimento de todas as coisas e a comprehensão intellectual da vacuidade d’ellas. Seguindo um caminho que não é o de nenhuma ordem nem destino, ella ergue-se á Altura que é a sua origem e evita os logares por onde os homens passam. O entendimento de tudo, a fusão dos opostos, a sciencia da indifferença do bem e do mal, a sciencia da valia da emoção como emoção e da vontade como vontade, a egual ironia para com os sabios como para com os nescios. (PESSOA, 1985, p. 28).
16 “I had a self and life / Before this life and self” “The Foreself” (PESSOA, 2000. v. XXIV, p. 274).
Paulo Borges
61Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
na verdade, como em Mestre Eckhart e numa continuidade do diálogo com Nietzsche, a “morte” ou a determinação do infinito impensável e inefável, isso mesmo que se desvela como o “ponto absoluto” e místico da consciência em que os três vértices da Trindade cristã – Pai, Filho e Espírito Santo – ou da trindade metafísica – Deus, homem, mundo – se unem e anulam na experiência do “Deus Vivo”, ou do abismo/ vazio sem nome, desvelado pela transcensão do “Homem” e de “Deus”, como na leitura que fizemos das palavras do “louco” na Gaia Ciência. Este “ponto absoluto” da consciência / experiência nua, livre de palavras, conceitos e imagens, “sendo a negação do espaço” (o espaço do “mundo”, criado pelas forças aparentemente afirmativas mas ilusórias, como diz o Tratado da Negação), é todavia “a vida d’elle”, o que parece mais uma vez desvelar nesta negação do negativo uma impensável e inefável positividade transcendente, afim ao que Raphael Baldaia no mesmo Tratado chama “Vida”. (BALDAIA, 1993 p. 44). Esta “Vida” é o que Fernando Pessoa em muitos passos da sua obra designa como o “além-Deus”, por vezes referindo o estado primordial de si mesmo. É o que acontece de modo implícito num soneto inglês em que o poeta assume haver nascido antes do surgimento do cosmos e do próprio nascimento de Deus, que se diz não haver surgido senão após o advento do mundo14 (porventura como a ideia de Deus com que a razão humana busca explicar o haver alguma coisa em vez de nada). Ainda na poesia inglesa, um poema significativamente intitulado “Anamnesis” recorda a “vida perdida” do sujeito, “antes de Deus”, também designada como uma “infância antes da Noite e do Dia”15. A referência ao além de Deus cruza-se assim com o tema de um si e de uma vida anterior aos presentes16 e com o vislumbre de um “Rei dos Vazios” que é “senhor do que está entre uma coisa e outra” e dos “entre-seres” (“interbeings”), residindo “entre o nosso despertar e o nosso sono, / Entre o nosso silêncio e o nosso discurso, entre / Nós e a consciência de nós”. É o “mistério” sem princípio nem fim
14 “Something in me was born before the stars / And saw the sun begin from far away. (...) It dates remoter than God’s birth can reach, / That had no birth but the world’s coming after” (PESSOA, 2000. v. XXIV, p. 1556).Cf. , “Anamnesis”, inPESSOA, 2000. v. XXIV, p. 258 (tradução nossa).
19 Cf, Álvaro de CAMPOS, in PESSOA, 1986, v. XVII, p. 1019.
Friedrich
18 Cf. “Primeiro Fausto”, in PESSOA, 1986, v. XVII, p. 614.
Além-Deus e morte de Deus: Eckhart, Nietzsche Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio
Mestre
de uma “presença vazia” que nada é senão “um abismo no seu próprio ser e do qual se conclui que “todos pensam que ele é Deus, excepto ele próprio”17. Também num poema intitulado precisamente “Além-Deus”, o “universo” parece ser o “rasto” e “Deus” a “sombra” de um “vácuo sem si-próprio”, designado como “Além-Deus”, que no fundo é a dolorosamente desejada “Pátria anterior / À forma consciente do meu ser” (PESSOA, 1986, v. 1, p. 1091-1094). Veja-se também a referência a uma trans-divina e misteriosa alteridade figurada como “a lua além de Deus, álgida e ignota” (PESSOA, 1986, v. 1, p. 1108), e sobretudo a visão de uma “escondida / Verdade” transcendente do Deus criador, que é apenas “o Homem de outro Deus maior”, tendo também tido uma “Queda” ao criar e sendo por isso criado (como criador), ato pelo qual “a Verdade lhe morreu”. Morto Deus na “geração do mundo”, há que “ir buscar além de Deus / O Segredo do Mestre e o Bem profundo” (PESSOA, 1986, v. 1, p. 1131-1132. O mesmo tema surge no Primeiro Fausto, onde Pessoa escreve que “Deus a si próprio não se compreende. / Sua origem é mais divina que ele”18, tal como no poema de Álvaro de Campos que refere o “ultra-ser” como essa “coisa que está para além dos deuses, de Deus, do destino”19.
e Fernando Pessoa 62
internacional
Na confluência da visão-experiência eckhartiana, nietzschiana e pessoana, perguntamo-nos se não se entreabre aqui a via de uma experiência espiritual nova –ou o regresso de uma antiquíssima – que consiste precisamente na assunção do vazio desvelado pela morte de Deus, na sua proclamação nietzschiana, sem o pretender ocupar por uma substitutiva determinação da consciência, a do humano ou outra, mas antes desvelando que a natureza primordial da consciência coincide com essa ausência de limites e silêncio sem nome do incriado abissal. Mas perguntamo-nos também se esta via espiritual não esteve desde sempre presente no que se designou como mística da (supra-) essência, no seio das próprias tradições teístas, sempre que nestas se aprofundou a iconoclasta intuição de que a ideia de “Deus” é o supremo ídolo a abater, pois - além de ser aquele que é mais difícil de reconhecer e que mais apego gera na
17 Cf. “The King of Gaps”, in PESSOA, 2000. v. XXIV, p. 280. Sobre esta questão, cf. BORGES, 2008b, p. 73-89.
luz a primeira morte de Deus é aquela pela qual se constitui como uma entificação e objetivação da consciência, o que não deixa de ser sugerido pela etimologia da palavra, da raiz indo-europeia – dei, com o sentido do que brilha. (LELOUP, 2014, p. 9-10; VALLET, 2007, p. 63-64), colhido da experiência da irrupção da luz nas trevas. Essa luz, fundo comum do mundo e da consciência, que o imaginário indoeuropeu identificará e figurará como um divino celeste e masculino – por contraste com o anterior imaginário da Deusa-mãe ctónica e obscura -, não pode emergir senão no indiferenciado e indeterminado que apenas por e para ela se configura como treva.
Borges 63
II Colóquio internacional
Por isso o Pseudo-Dionísio, o Areopagita, na génese da teologia cristã, designou Deus como “treva de silêncio, mais que luminosa”, deixando-nos um caminho da serpente não menos radical do que o pessoano para abandonar tudo, afirmação e negação, sensível e inteligível, na união com isso que nada é senão o “liberto de tudo” (pánton áplõs), incluindo de ser “divindade” (CARVALHO, 1996, v. V, p. 25). Na verdade, nesta perspectiva, “Deus é a morte de Deus”, no duplo sentido de “Deus” ser a conceptualização do inconceptualizável e de a experiência não-conceptual da liberdade infinita que se designa e encobre como “Deus” ser o fim desse conceito e a abertura da consciência / experiência à sua nudez primeira e última. A morte de todas as representações de Deus, metafísicas e morais, mas sempre antropocêntricas, pois movidas pelo desejo de posse inerente à insegurança do intelecto conceptual (conforme as sugestões etimológicas do conceptum latino ou do Begriff alemão, que Paulo Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud:
consciência que nele se fixa -, o abismo infinito que se designa como “Deus” é sem ideia e, em última instância, não é Deus para si mesmo, não havendo Deus em “Deus”, mas antes uma liberdade sem contornos. Foi isso que entre nós viu Pascoaes, ao afirmar Deus como “o único ateu perfeito” (PASCOAES, 1945, p. 246), o que José Marinho integrou no seu pensamento, ao constatar que, “se Deus é o ser da verdade, então a verdade não é para si” (MARINHO, 1961, p. 23), reconhecendo o “incriado” como transcendendo a “relação entre criador e criatura” e apreendendo assim “o profundo sentido e transcendente alcance de todo o autêntico ateísmo iniciático”. (MARINHO, 1961, p. 92).Aesta
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20 Como sabiamente escreve Jean-Yves Leloup: “Uma vaga não se pode percepcionar fora do oceano que ela é. Se se percepciona como diferente, fora dele, faz do oceano um outro, um ídolo. E é aí que a religião pode tornar-se também uma ‘doença dos olhos’” (como o ateísmo comum, não “iniciático”, no sentido de José Marinho) (LELOUP, 2014, p. 11).
Além-Deus e morte de Deus: Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa 64 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
remetem para o agarrar), pode ser assim vivida como o apocalipse (desvelamento) ou ressurreição da essência “a-teia” e “a-teológica” de Deus como puro vazio abissal, livre da idolatria da consciência que, presumindo-se distinta dele, o objetiva como distinto de si (a ânsia de um deus-objeto, ob-jectum, ou seja, lançado contra o sujeito, “que vá à nossa frente”, resulta, como sabemos, na construção do “bezerro de ouro” (Êxodo, 32, 1-4))20. Já o “des-encobrimento”, alétheia, de Deus como puro vazio abissal e indeterminado o mostra por isso mesmo igualmente superabundante, sem hierarquia, em todos os seres e formas disso a que Eckhart e Pessoa/Baldaia chamaram a “Vida”, sem porquê nem para quê. E aqui se pode reconhecer a dupla vertente de uma nova e antiquíssima espiritualidade contemplativa e meditativa, que prefira o silêncio à palavra (que nele se renova) e funde uma ética não antropocêntrica, que reconheça, respeite e proteja a maravilha Sem Nome em toda a comunidade cósmica, sua portentosa epifania.
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O modelo político dos impulsos em Nietzsche1 Rogério Lopes
Se avaliarmos os pensamentos segundo sua influência, então a estupidez da vontade é o pensamento mais importante de Schopenhauer. (NIETZSCHE, 1988, p. 46, anotação póstuma de 1875) I Em seu estudo exaustivo consagrado ao conceito de inconsciente na tradição alemã, Günter Gödde procura ordenar as tradições filosófica e psicológica que se ocuparam do conceito anteriormente ao surgimento da psicanálise em três grupos distintos: (i) as concepções de um inconsciente cognitivo, cujas raízes remontam à filosofia racionalista de Leibniz; (ii) os esboços de um inconsciente vital, que teve o seu período áureo na época do romantismo; (iii) e finalmente, a linha de pensamento que associa o inconsciente a uma vontade irracional e impulsiva, que iria de Schelling a Freud, tendo como estações intermediárias as obras de Schopenhauer, Eduard von Hartmann e Nietzsche. No caso particular de Nietzsche, Gödde acrescenta a tese de que sua doutrina da vontade de poder teria sido estruturalmente concebida segundo o modelo da doutrina de Schopenhauer. Gödde considera que pelo menos quatro elementos estruturantes do modelo schopenhaueriano teriam uma função constitutiva na formulação da posição nietzschiana: (a) a relação agonística das diversas manifestações da vontade; (b) o caráter processual da atividade da vontade; (c) a cisão da vontade consigo mesma; (d) a ausência de finalidade da vontade. (GÖDDE, 2009, p. 477e seguintes.).
1 Esta é uma versão ligeiramente modificada de um artigo publicado originalmente em alemão com o seguinte título “Das politische Triebmodell Nietzsches als Gegenmodell zu Schopenhauers Metaphysik des blinden Willens” em uma coletânea organizada por Jutta Georg e Claus Zittel. Cf. GEORG, Jutta. ZITTEL, Claus (Org.). 2012. p. 147-156, 69
Segundo Gödde, a única diferença significativa entre os dois filósofos consistiria no modo como ambos avaliam esses diversos elementos estruturantes da vontade: Nietzsche não apenas consideraria infundada a conclusão pessimista de Schopenhauer, como teria extraído uma filosofia afirmativa destes mesmos pressupostos teóricos. A questão que podemos nos colocar imediatamente é a seguinte: como foi possível que dois filósofos, igualmente preocupados com e capazes de consistência lógica, tenham chegado a recomendar atitudes diametralmente opostas em relação a um mesmo mundo, ou pelo menos a um mundo concebido em termos muito similares? Intuitivamente nos parece pouco plausível que se atribuam a dois filósofos suposições psicológicas e metafísicas idênticas ou muito semelhantes e atitudes avaliativas não apenas distintas, mas diametralmente opostas. Caso esta atribuição esteja correta, somos confrontados com dois cenários, nenhum deles muito promissor: admitir a possibilidade de uma completa independência lógica entre os compromissos descritivos e normativos das teorias filosóficas, o que pelo menos prima facie soa pouco plausível; ou acusar uma das partes de incorrer em uma fragrante inconsistência lógica, o que contraria o princípio de caridade, cuja aplicação à interpretação de autores que passaram pelo crivo da crítica e se estabeleceram como parte do nosso cânone filosófico é um movimento hermenêutico inegavelmente legítimo.
Na sequência procuro mostrar que esse dilema interpretativo não se impõe no presente caso. O caminho mais econômico para evitar o dilema consiste em recusar a tese de Gödde de que Schopenhauer e Nietzsche teriam compartilhado os mesmos compromissos descritivos em relação ao conceito fundamental que estrutura seus respectivos projetos filosóficos. Creio que seria possível mostrar que há diferenças importantes, ainda que sutis, em relação ao modo como Schopenhauer e Nietzsche compreendem o sentido de cada um dos quatro aspectos estruturais enumerados por Gödde a favor de sua tese de uma forte continuidade no que diz respeito às suas respectivas teorias acerca de como o mundo é e de como nossa psicologia funciona. Mas por constrangimento de espaço, devo me concentrar apenas no quarto elemento estrutural apontado por Gödde. Em oposição a ele, defendo que a “ausência de O modelo político dos impulsos em Nietzsche 70 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
O jovem Nietzsche considera extremamente problemáticos os seguintes aspectos da metafísica de Schopenhauer: (a) a concepção monista da vontade; (b) a tentativa de compatibilizar os principais resultados da filosofia transcendental de Kant com uma teoria evolucionária do intelecto, na qual o intelecto era visto como um instrumento da vontade a serviço do organismo; (c) a retomada do discurso da coisa em si e a pretensão de querer contornar sua suposta incognoscibilidade com a ajuda de metáforas poéticas sem colocar explicitamente todo o empreendimento no domínio das ficções conceituais para fins edificantes; (d) finalmente, o que Nietzsche avalia nesse momento como particularmente censurável no projeto schopenhaueriano de uma metafísica póskantiana é o fato de que, para torná-lo exequível, Schopenhauer não teria hesitado em substituir o antigo dualismo entre corpo e alma pelo novo dualismo entre vontade e representação (ou vontade e entendimento). Este novo dualismo é introduzido pela decisão schopenhaueriana de promover uma reforma em nosso conceito préRogério
Lopes71
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
II
finalidade da vontade”, que é efetivamente uma das marcas essenciais do conceito schopenhaueriano de “vontade de vida”, não é de modo algum concebida por Nietzsche como tal, mas antes como um resultado contingente e patológico de certas formas de vida e que remete a estruturas do autoengano e a estratégias de autodefesa em situações de vulnerabilidade.
O pano de fundo de minha intervenção diz respeito à tese mais geral do estudo de Gödde: em que medida o modelo dos impulsos em Nietzsche e sua noção de inconsciente se filiam à tradição do inconsciente irracional-pulsional, nos termos cunhados pelo autor. O modelo dos impulsos elaborado por Nietzsche pode ser parcialmente compreendido como o resultado de sua tentativa de contornar as dificuldades conceituais já identificadas por ele em suas anotações de juventude datadas de 1868 (NIETZSCHE NL 1867-1868, KGW I/4, 57 [51-55], p. 418-427).
2 Para uma exposição detalhada dessas notas de juventude intituladas Zu Schopenhauer, tomo a liberdade de remeter ao meu estudo sobre o tema. (Cf. LOPES, 2008, p. 126-144).
3 Sobre essa sobreposição de temas e planos cf. LOPES, 2004, p. 99-142.
O modelo político dos impulsos em Nietzsche 72 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Esta mesma crítica pode ser encontrada com diferentes nuances ao longo da obra. Em contraste com isso, Nietzsche procura desenvolver paulatinamente um modelo pulsional alternativo, que por sua vez será utilizado por ele como fio condutor em seu projeto de uma interpretação da totalidade dos eventos na segunda metade da década de 1880. Neste sentido, pode-se dizer que a psicologia dos impulsos que Nietzsche elabora pacientemente ao longo dos anos 70 e 80 como resposta a Schopenhauer funciona como um trabalho preparatório para o projeto especulativo da obra tardia e, nessa medida, é igualmente o resultado de uma confrontação com a metafísica da vontade de Schopenhauer, cujos detalhes encontram-se nos fragmentos póstumos dos últimos quatro ou cinco anos de sua produção literária. O recurso à famosa expressão “o corpo como fio condutor”, que comparece nos póstumos de 1884-1885, coincide com a intenção nietzschiana de identificar as condições sob as quais a retomada de uma orientação especulativa na filosofia poderia ser legitimada3. Nietzsche se familiarizou, através de Schopenhauer e Lange, com dois modelos distintos de usos filosóficos da figura do corpo próprio. Sob a influência da fisiologia da percepção, e em alguma medida antecipando seus resultados, Schopenhauer elabora um primeiro modelo de uso do corpo próprio em seu projeto de renovação da filosofia transcendental, que será posteriormente retomado por Friedrich Albert Lange, segundo o qual o corpo próprio alcança o estatuto de um quase transcendental. Esse primeiro uso filosófico do corpo próprio despertou pouco interesse em Nietzsche, na medida em que ele acabou por adotar um programa naturalista menos liberal em relação a compromissos transcendentais do que seus precursores. Mas, ao esboçar uma ontologia processual e pluralista das vontades de poder, Nietzsche retoma explicitamente o
reflexivo de vontade2. Ao conduzir essa reforma conceitual, Schopenhauer teria, afirma Nietzsche em um póstumo redigido vinte anos depois, “subtraído” a qualidade intencional do querer, de tal modo que aquilo que “ele chama de ‘vontade’” teria se tornado “uma mera palavra vazia” (NIETZSCHE NL 1888, KSA 13, 14[121], p. 301).
preceito metodológico proposto por Schopenhauer, segundo o qual uma metafísica pós-kantiana, ou seja, uma metafísica da experiência, só seria possível se adotássemos o corpo próprio como o lugar adequado de junção entre a experiência interna e externa (SCHOPENHAUER 2004b, p. 579). Nietzsche recorre a esse procedimento metodológico no famoso aforismo 36 de Para Além de Bem e Mal, um livro de 1886:
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Nesse contexto, permanecer fiel a esta decisão implicaria “se servir até o fim da analogia com o ser humano” (NIETZSCHE NL 1885, KSA 11, 36[31], p. 563), ou seja, implicaria perseguir até às últimas consequências a estratégia antropomórfica e reconhecê-la enquanto tal. Ao invés disso, Schopenhauer optou por rever de forma tão drástica nosso conceito de vontade que dele não sobrou nenhum traço reconhecível, mas uma “mera palavra vazia”: Quando Schopenhauer atribui primado à vontade e faz com que o intelecto a acompanhe de roldão, o conjunto da vida psíquica, tal como ela nos é conhecida hoje, se torna impróprio para qualquer demonstração. Pois ele se tornou inteiramente intelectualizado (do mesmo modo que nossa percepção dos sons na música se tornou intelectualizada). Quero dizer: não podemos continuar a pensar prazer e dor e desejo desvinculados do intelecto [...]. Em alguns estados psíquicos acreditamos ter separado Rogério
Lopes73
Supondo que nada seja “dado” como real, exceto nosso mundo de desejos e paixões, e que não possamos descer ou subir a nenhuma outra “realidade”, exceto à realidade de nossos impulsos – pois pensar é apenas a relação desses impulsos entre si –: não seria lícito fazer a tentativa e colocar a questão de se isso que é dado não bastaria para compreender, a partir do que lhe é igual, também o chamado mundo mecânico (ou “material”)? (NIETZSCHE, 1886). A inspiração metodológica decisiva para a formulação nietzschiana do projeto especulativo de uma ontologia processual e relacionista veio efetivamente de uma metafísica monista da vontade originalmente bastante distinta do ponto de vista do conteúdo. Isso não significa, contudo, que todas as divergências entre os dois projetos especulativos se reduzam a divergências de conteúdo. Nietzsche contesta que Schopenhauer tenha se mantido fiel à sua decisão metodológica de se orientar na especulação pelo fio condutor do corpo (sempre compreendido como corpo próprio).
Outra ligeira divergência em relação ao uso da analogia com o corpo próprio decorre do compromisso epistêmico de Nietzsche com a tese do fenomenalismo da experiência interior. Dado esse compromisso, Nietzsche não pode postular qualquer tipo de acesso privilegiado ao mundo interior dos afetos e impulsos. Em sintonia com isso, Nietzsche renuncia desde o início a qualquer tentativa de defender o recurso a este procedimento especulativo apelando para razões estritamente epistêmicas. Ao invés disso, para justificar o primado metodológico do corpo próprio como ponto de partida para o seu projeto especulativo, Nietzsche recorre, por um lado, ao princípio pragmático da economia e, por outro lado, ao critério psicológico da força da crença. Segundo esse critério, de todas as nossas crenças básicas, a crença na eficácia causal da vontade e, por derivação, em nossa natureza de agentes, seria a mais antiga e mais fortemente incorporada, o que a tornaria, nessa medida, o item de nossa autocompreensão menos sujeito a revisão: A questão é, afinal, se reconhecemos a vontade realmente como atuante, se acreditamos na causalidade da vontade: assim ocorrendo –e no fundo a crença nisso é justamente a nossa crença na causalidade mesma –, temos então que fazer a tentativa de hipoteticamente ver a causalidade da vontade como a única. “Vontade”, é claro, só pode atuar sobre “vontade” – e não sobre “matéria” (sobre “nervos”, por exemplo –): em suma, é preciso arriscar a hipótese de que em toda parte onde se reconhecem “efeitos”, vontade atua sobre vontade – e de que todo acontecer mecânico, na medida em que nele age uma força, é justamente força de vontade, efeito da vontade [...]. (NIETZSCHE, 1988, p. 55). Embora Schopenhauer tenha procurado, mais tarde, atenuar as pretensões epistêmicas de seu método analógico, na formulação original de 1818 do Mundo como Vontade e Representação, o filósofo, ao fazer a defesa do primado daquilo a que teríamos acesso a partir do conjunto de nossa vida volitiva frente à experiência puramente cognitiva do entendimento, parece esquecer-se das implicações fenomenalistas de sua epistemologia
transcendental: O modelo político dos impulsos em Nietzsche 74 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
inteiramente a vontade do intelecto, mas se trata antes de uma ilusão; tais estados são um resultado. Toda emoção se intelectualizou [...]. (Nietzsche NL 1876, KSA 8, 23[80], p. 431).
Alguns desses elementos já podem ser detectados nas notas preparatórias que Nietzsche redigiu em 1868 para a tese de doutoramento que ele planejou escrever sobre o tema da teleologia a partir de Kant:
O que vem a ser eternamente é a vida; através da natureza de nosso intelecto capturamos formas: nosso intelecto é demasiado obtuso para perceber a metamorfose contínua; aquilo que lhe é cognoscível ele chama de forma. De fato não existe nenhuma forma, pois em cada ponto tem lugar uma infinidade. Cada unidade concebida (ponto) descreve uma linha. Similar ao conceito de forma é o conceito de indivíduo.
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Se, portanto, remetemos o conceito de Força ao de Vontade, em realidade remetemos algo desconhecido a algo infinitamente mais bem conhecido, àquilo que unicamente nos é conhecido de maneira imediata e completa e que amplia de maneira enorme o nosso conhecimento. Se, ao contrário, como ocorreu até hoje, subsumimos o conceito de Vontade sob o de Força, renunciamos ao único conhecimento imediato que temos da essência íntima do mundo, na medida em que fazemos tal conhecimento se dissipar num conceito abstraído do fenômeno, com o qual nunca poderemos ir além do fenômeno. (SCHOPENHAUER, 2004a, p. 173) III As divergências quanto ao conteúdo da representação do corpo próprio que cada um dos filósofos associa ao modelo que intencionam projetar analogicamente sobre o conjunto dos eventos em seus respectivos projetos de retomada da especulação são mais notoriamente reconhecidas pela literatura secundária. A pesquisa Nietzsche, a partir das contribuições de intérpretes como Müller-Lauter e Günter Abel, tem insistido na tese de que o modelo do corpo próprio utilizado por Nietzsche remete a um modelo pulsional que parte da noção de organização e que pode ser caracterizado pelos seguintes traços estruturais: pluralidade, caráter relacional e processual, afetividade, espontaneidade, modelo continuísta em oposição ao modelo discreto, continuidade e homogeneidade entre os eventos humanos e naturais, orientação para a intensificação em oposição à conservação, caráter agonístico e equilíbrios provisórios das organizações de poder que se formam no interior do devir.
Rogério Lopes75
Organismos são chamados de unidades, centros de finalidade. Mas unidades só existem para nosso intelecto. Cada indivíduo tem em si uma infinidade de indivíduos viventes. É apenas uma percepção grosseira, talvez tomada inicialmente do corpo humano. (NIETZSCHE NL 1868, KGW I/4, S. 570).
Através de sua leitura da História do Materialismo de Lange, Nietzsche certamente tomou contato e provavelmente assimilou a tese de que a oposição entre pluralidade e unidade não precisava necessariamente ser pensada como uma oposição absoluta; antes como uma forma de organizar e estabilizar a nossa experiência imposta pela idiossincrasia de nossa organização psicofísica. Ao invés de ser estilizada metafisicamente, como ocorria em Schopenhauer, esta oposição conceitual poderia ser assumida criticamente como um mero constructo ficcional com suas utilidades e prejuízos ocasionais LANGE, 1866, p. 405s.). Esta infinidade de indivíduos viventes, inerente a todos os viventes segundo esse modelo agonístico do organismo já presente na hipótese que Lange expõe a partir de Goethe e outros autores, será descrita por Nietzsche com ajuda de seu modelo pulsional. Desde o seu ponto de partida, o discurso filosófico de Nietzsche é impregnado pelo idioma dos impulsos. As fronteiras do conceito não são, contudo, fáceis de serem traçadas. Na medida em que enfatiza a pluralidade e o conflito como marcas principais do conceito de impulso, o que ocorre pari passu com a hipótese de que todo impulso tende à intensificação do poder (tese que será formulada com maior clareza apenas no início da década de 1880), Nietzsche resiste cada vez mais à tentação de propor critérios que nos permitissem individualizar teoricamente os impulsos. Ao invés disso, ele coloca uma ênfase cada vez maior na plasticidade e no redirecionamento de todo e qualquer impulso, qualidades estas que seriam resultantes da submissão dos impulsos ao que poderíamos chamar de camisa de força social. No decorrer dos anos, Nietzsche acaba por renunciar quase que definitivamente ao uso de expressões como “impulso estético”, “cognitivo”, “religioso”, “político”, “metafísico”, que eram tão recorrentes nas obras e nos póstumos do período inicial; mesmo expressões como “impulso de autoconservação” e “impulso sexual” são rebaixadas ao estatuto de meras fabulações O modelo político dos impulsos em Nietzsche 76 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
ou consideradas como “princípios teleológicos supérfluos” (NIETZSCHE, Para Além de Bem e Mal 13, KSA 5, p. 27s.), sendo com alguma frequência denunciados como tendo uma influência antes inibidora sobre nossa performance cognitiva. Plasticidade e redirecionamento são marcas que Nietzsche, pelo menos tendencialmente, aplica à totalidade do conceito de impulso, diferentemente do que parece ocorrer em Freud, que procura vincular à meta dos impulsos um elemento relativamente invariável de nossa vida pulsional, restringindo a plasticidade e o redirecionamento ao seu objeto. (FREUD, 2000, p. 86s.). Mais desconcertante do que a quase infinita plasticidade associada ao conceito nietzschiano de impulso é a sua predileção por descrever o modo de atuação dos impulsos em uma linguagem mentalista e agencial, em que predomina o vocabulário intencional. Nietzsche atribui aos impulsos propriedades e atividades que usualmente são atribuíveis apenas aos sujeitos como um todo (que haja um agente que esteja consciente desse modo de atuação não é uma condição necessária, obviamente). Ele recomenda que o querer, o sentir e o pensar sejam concebidos holisticamente como atividades mentais básicas conceitualmente indissociáveis, de modo que as condições de atribuição de um determinado estado mental envolvam simultaneamente a atribuição dos demais, mas sem que isso implique o compromisso com o que ele chama de atomística da alma, ou seja, um agente metafisicamente unitário com uma vida mental constituída de episódios ontologicamente discretos e conceitualmente discerníveis.
Como há foi dito, esta tendência se estabeleceu a partir de uma confrontação permanente com o conceito de vontade de Schopenhauer. Aos olhos de Nietzsche, é mais importante restituir algum tipo de intencionalidade ao modo de atuação dos impulsos do que a pluralidade, característica que tem sido destacada pela maior parte dos estudos comparativos dedicados aos dois filósofos. Querer e representar não podem “ser pensados separadamente”; querer falar de um querer “sem assumir de início um intelecto capaz de representar o que se quer” não faz nenhum sentido, pois “uma tal vontade em branco (ou vontade de existência!) não existe” (NIETZSCHE NL 1880, KSA 9, 4[310], p. 178). Para compensar as insuficiências do conceito schopenhaueriano de vontade de vida, não basta, como supuseram alguns de seus discípulos, em especial Mainländer, acrescentar ao conceito a marca da pluralidade: Rogério Lopes77Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Quando Nietzsche afirma, ao revisitar o tema no aforismo 19 de Para Além de Bem e Mal, que o querer lhe parece ser “sobretudo algo complicado, algo que apenas enquanto palavra” seria “uma unidade” (NIETZSCHE ABM 19, KSA 5, p. 32), o que ele tem em mente com sua crítica não é a metafísica monista de Schopenhauer, ou seja, o resultado final de sua filosofia, mas antes o seu ponto de partida; dito de outra maneira, o alvo de sua crítica não é a pluralidade fática do mundo, mas a complexidade conceitual, o caráter intrincado e a natureza holística dos chamados estados e atividades mentais. O alvo de Nietzsche não é a metafísica de Schopenhauer, mas o modelo de mente e o modelo pulsional do qual ele partiu e que ele utilizou como fio condutor de sua especulação.
O modelo político dos impulsos em Nietzsche 78 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Tampouco o gesto de Mainländer de reduzir este conceito a múltiplas “vontades de vida” individuais nos leva adiante – obtém-se com isso, ao invés de uma força vital universal (a qual pode ser pensada ao mesmo tempo como externa, acima ou nas coisas!), forças vitais individuais, contra as quais se pode fazer o mesmo tipo de objeção dirigida àquela força universal. (NIETZSCHE NL 1876–1877, KSA 8, 23[12], p. 407).
IV A referida predileção nietzschiana pela descrição do modo de atuação dos impulsos em uma linguagem fundamentalmente agencial tem sido distintamente avaliada pela literatura secundária. Günter Abel a avalia positivamente, na medida em que expressa uma saudável recusa do dualismo, fundada no princípio do contínuo que tornaria possível “uma naturalização [da mente] para além da dicotomia entre uma metafísica transcendente e o fisicalismo reducionista” (ABEL, 2000, p. 7). Mas, quando nos deparamos com passagens que têm o seguinte teor: A suposição de um sujeito talvez seja desnecessária; talvez seja igualmente permitido supor uma pluralidade de sujeitos, cuja interação e luta subjazem ao nosso pensamento e, sobretudo, à nossa consciência? Uma forma de aristocracia de células, na qual repousa o domínio? (NIETZSCHE NL 1885, KSA 11, 40[42], p. 650).
Somos imediatamente confrontados com a questão de em que medida nós estamos diante de um caso de falácia homuncular. Esse tipo de falácia consiste em recorrer de forma implícita ou explícita a entidades semelhantes a seres humanos para explicar o modo de operação da mente humana. O fato de que um ser dotado de mente possui uma determinada capacidade é explicado mediante o argumento de que uma das partes ou subsistemas que o constituem possui essa capacidade (KEIL, 2000, p. 77).
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Em um famoso ensaio de 1979, consagrado à influência de Roux sobre Nietzsche, Müller-Lauter destaca o fato de que imediatamente após a sua leitura, Nietzsche reage com alguma ressalva em relação ao modo de proceder do embriologista alemão, na medida em que ele o comprometeria com um “discurso figurativo”:
Agora voltamos a descobrir por toda parte a luta e se fala de luta das células, dos tecidos, dos organismos [...]. Nossa ciência natural está em vias de se esclarecer sobre os mais ínfimos fenômenos com o auxílio desses sentimentos ou afetos aprendidos; em resumo, estão em vias de Rogério Lopes79
Katsafanas formulou recentemente uma série de objeções à leitura homuncular da teoria dos impulsos em Nietzsche. Se concebermos os impulsos como pequenos agentes dentro do organismo, teremos que nos haver com as seguintes dificuldades: (a) ela nos forçaria a transpor para o plano dos impulsos capacidades e realizações que são próprias de sujeitos conscientes; (b) essa forma de transposição não teria qualquer força explanatória, pois ela comprometeria a teoria com um círculo vicioso, na medida em que o explanandum figuraria como parte do explanans; (c) por fim, o programa filosófico de Nietzsche envolvia a superação do conceito de sujeito, e não somente seu deslocamento para outra instância qualquer (KATSAFANAS 2011, p. 4-7). Minha estratégia para contornar essas objeções consiste na mobilização e defesa de duas teses: primeiramente, a tese de que Nietzsche se reconcilia tardiamente com a inevitabilidade da projeção antropomórfica e, em segundo lugar, a tese de que parte da questão (que estaria no cerne das objeções (b) e (c) de Katsafanas) depende da escolha do modelo metafórico. Não há um único modelo agencial, e Nietzsche, ao incorrer em um tipo de falácia homuncular, entende que ela é incontornável, mas que pode ser cognitivamente proveitosa.
A postulação de homunculi, segundo o autor, pode ser considerada um procedimento legítimo desde que se observem duas condições (a) que eles sejam o mais numerosos possíveis e (b) o mais estúpidos possíveis (DENNET, 1978, p. 123).
Daniel Dennett é provavelmente o mais importante defensor da inevitabilidade desse procedimento.
criar uma forma de linguagem para aqueles processos: muito bem! Mas permanece sendo uma linguagem figurativa. (NIETZSCHE NL 1881, KSA 9, 11[128], p. 487). “Esta ressalva”, afirma Müller-Lauter, “não é de modo algum uma objeção. [...] Que o conhecimento humano, incluindo o das ciências naturais, esteja necessariamente encerrado em uma linguagem figurativa é uma das mais antigas convicções de Nietzsche. A questão que permanece é qual forma de figuratividade merece a primazia” (MÜLLER-LAUTER, 1979, p. 196). É nesse espírito que gostaríamos de argumentar que o modelo pulsional proposto por Nietzsche envolve uma modalidade de homunculismo, mas não precisa necessariamente ser caracterizado como uma falácia, ou pelo menos não como uma falácia à qual pudéssemos renunciar sem nenhum tipo de perda cognitiva (contra a objeção de circularidade viciosa). Essa versão do homunculismo pode ter uma força explicativa na medida em que recorre a uma linguagem figurativa das ações políticas e das organizações de poder para lançar luz sobre nossas operações e capacidades mentais. Nietzsche recomenda a construção de um modelo do funcionamento do psiquismo em que o modelo do agente moral (que teria dominado nossa compreensão da vida psíquica e de nosso vocabulário agencial) seja substituído pelo modelo de uma pluralidade de agentes políticos (os diversos impulsos) orientados realisticamente em suas deliberações e capazes de encontrar soluções de compromisso para os seus conflitos.
No domínio da filosofia da mente prossegue a discussão acalorada de em que medida o homunculismo é um procedimento que pode ser legitimado teoricamente.
O
A posição de Dennett foi sumarizada nos seguintes termos por Keil: Se fôssemos bem-sucedidos em substituir gradualmente um homúnculo que foi postulado para explicar um determinado desempenho cognitivo por um grupo de homúnculos mais estúpidos, por uma linha declinante de modelo político dos impulsos em Nietzsche 80 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
É possível traçar muitos paralelos entre o modelo da vida mental proposto por Dennett e aquele que podemos reconstruir a partir de certas sugestões de Nietzsche (o modelo dos múltiplos esboços da consciência e a tese daí decorrente de um Eu não centralizado e não unitário talvez seja a principal delas, conforme destacado por ABEL, em seu artigo de 2001, p. 10). Mas no que diz respeito à legitimação da estratégia homuncular, eu gostaria de defender que eles caminham em direções quase opostas. Eu diria mesmo que alguns aspectos às críticas que Nietzsche dirige contra Schopenhauer se aplicariam à solução proposta por Dennett. No que concerne à técnica de decomposição recursiva de Dennett, com seus homúnculos maximamente estúpidos, Nietzsche teria reagido mais ou menos do mesmo modo como ele reagiu à tese schopenhaueriana da vontade cega: que ela significaria o mesmo que adotar o pobre diabo como substituto para o bom deus. Algumas anotações parecem, contudo, contrariar essa observação e antecipar a posição de Dennett. Um exemplo é a nota de 1883:
Esta convergência é, contudo, mais aparente do que substancial. O alvo da crítica de Nietzsche na passagem que acabamos de citar é mais uma vez a concepção de racionalidade prática fundada no princípio de autoconservação, que teria permanecido aprisionada a um preconceito finalístico. O modelo político agonístico adotado por Rogério Lopes81Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Como cada impulso é não inteligente, a ‘utilidade’ não é para ele nenhum ponto de vista. Cada impulso, na medida em que é ativo, sacrifica força e outros impulsos: até que ele seja finalmente bloqueado; caso contrário ele aniquilaria tudo através do desperdício. Ou seja: o ‘não egoístico’, o sacrifício não movido pela prudência não é nada de mais – é algo comum a todos os impulsos – eles não pensam na utilidade do ego como um todo (porque eles simplesmente não pensam!), eles agem ‘contra nossa utilidade’, contra o ego e frequentemente a favor do ego – em ambos os casos de forma igualmente inocente! (NIETZSCHE NL 1883, KSA 10, 8[23], p. 342).
equipes que realizariam tarefas cada vez menos exigentes (sub-rotinas), então poderíamos no final substituir os mais estúpidos homúnculos imagináveis por um mecanismo. (KEIL, 2003, p. 99).
Nietzsche foi buscar nos gregos e em sua cultura agonística essa concepção do ser orientado à intensificação do poder como elemento definidor dos impulsos. Os impulsos filosóficos não representam nesse aspecto nenhuma exceção. Eles devem, pelo contrário, ser considerados os principais representantes desta tendência interna dos impulsos: Eles eram tiranos, ou seja, aquilo que todo grego queria ser e que todo grego era, se podia sê-lo. Talvez Sólon tenha sido a única exceção; em seus poemas ele diz como desprezava a tirania pessoal. Mas o fazia por amor à sua obra, à sua legislação; e ser legislador é uma forma sublimada de tirania. (NIETZSCHE. Humano, demasiado Humano I 261, KSA 2, p. 215). Caso se queira defender, como o fez recentemente Claus Zittel, que Nietzsche tem uma concepção psicológica cujos efeitos arruínam qualquer ética normativa (ZITTEL, 2003, p. 105), talvez seja prudente considerar que Nietzsche chegou a seu modelo do funcionamento da mente a partir de uma confrontação com o conceito de vontade de Schopenhauer, com a clara intenção de evitar as conclusões schopenhauerianas. Estas conclusões, segundo Nietzsche, afirmam que nós “somos conduzidos por nossos desejos: não por nossos interesses úteis ou razoáveis, muito menos ainda por nossa virtude e sabedoria” (NIETZSCHE NL 1880, KSA 9, 5[27], p. 187). Enquanto Schopenhauer concebe sua metafísica da vontade a partir fundamentalmente da experiência do desejo, Nietzsche busca inspiração para seu modelo pulsional, que por sua vez está na base de sua ontologia processual e pluralista, nos processos de ação e deliberação políticos concebidos realisticamente.
Nietzsche permite a ele esboçar uma concepção alternativa de racionalidade prática que o conduz ao mesmo tempo a uma concepção não teleológica de intencionalidade. Esta última poderia ser caracterizada como uma concepção minimalista, na medida em que pressupõe tão somente o ser orientado para a intensificação do poder, característico de cada impulso ou formação pulsional: “cada impulso é uma forma de ânsia por domínio, cada impulso tem sua perspectiva, que ele gostaria de impor como norma a todos os impulsos restantes”. (NIETZSCHE NL 1886, KSA 12, 7[60], p. 315).
O modelo político dos impulsos em Nietzsche 82 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Quando afirmamos que Nietzsche se decidiu por “se servir até o fim da analogia com os seres humanos” (NIETZSCHE NL 1885, KSA 11, 36[31], p. 563), ou seja, que ele teria adotado em sua filosofia teórica uma estratégia de antropomorfização, então é preciso acrescentar que ele considerava tal estratégia legítima somente caso observasse uma condição restritiva: que a imagem do homem de que nos servimos fosse previamente limpada de todas as representações e afetos morais que a ela foram acrescentados ao longo da formação do ocidente: “retraduzir o homem de volta à natureza; triunfar sobre as muitas interpretações e conotações vaidosas e exaltadas, que até o momento foram rabiscadas e pintadas sobre o eterno texto homo natura [...] (NIETZSCHE Para Além de Bem e Mal 230, KSA 5, p. 169). Um modelo político concebido de forma realística, no qual o conceito de poder comparece como conceito principal, permite a Nietzsche descrever a nossa vida pulsional sem deixar de fora a nossa sensibilidade a considerações de utilidade e razoabilidade, nossas disposições para a virtude e a sabedoria, mas também nossa inegável propensão para a violência, a regressão, a crueldade e estupidez pura e simples. Mas o ponto essencial é que se trata de uma natureza capaz de estabelecer contratos e fazer compromissos.
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V A interpretação sugerida até aqui nos permite compreender o aparentemente enigmático aforismo 37 de Para Além de Bem e Mal como um comentário irônico à metafísica da vontade de Schopenhauer: “‘Como? Isso não significa, falando de forma popular: deus está refutado, mas o diabo não –?’ Ao contrário! Ao contrário, meus amigos! E, com os diabos, quem os obriga a falar de modo popular?”. (NIETZSCHE Para Além de Bem e Mal, 37, KSA 5, p. 56).
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
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2 As traduções do original, no caso de livros citados em outras línguas diferentes do português, são da nossa responsabilidade.
Com efeito, ao longo das obras de Nietzsche encontramos a criação de uma pluralidade de personagens conceptuais correspondentes a uma pluralidade de perspectivas diversas e alternativas, representando várias possibilidades de se relacionar com o mundo. Nietzsche atribui a cada personagem uma visão do mundo de acordo com a qual cada uma das personagens conceptuais estabelece o seu modo de estar no mundo, assim como a sua concepção da vida.
A obra de Wittgenstein fornece-nos, de igual forma, elementos para compreender a relação entre estética e perspectivismo. Numa observação, redigida por Wittgenstein em 1930 e publicada em Cultura e Valor, lemos a seguinte afirmação a respeito da conexão entre o desenvolvimento do estilo filosófico deste
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A escrita de Nietzsche e o pensamento de Wittgenstein, após o seu retorno a Cambridge e à filosofia em 1929, apresentam inúmeros elementos que nos permitem estabelecer uma aproximação entre as noções de estética e de perspectivismo. No parágrafo 12 do terceiro ensaio de Para a Genealogia da Moral, encontramos a seguinte afirmação de Nietzsche a respeito do perspectivismo: Existe apenas um olhar perspectivista, apenas um conhecimento perspectivista; e quantos mais afectos nós expressarmos em palavras a respeito de uma mesma coisa, quantos mais olhares, diferentes olhares nós soubermos lançar sobre essa mesma coisa, mais completo o nosso conceito dessa coisa, a nossa objectividade será. (NIETZSCHE, 1999c, p.365)2.
Nietzsche e Wittgenstein: estética e perspectivismo1
Nuno Ribeiro
Este texto tem por base uma pesquisa de pós-doutorado desenvolvida na Universidade Federal de São Carlos (2012-2015), com financiamento da FAPESP.
autor e a criação de diversos olhares sobre um mesmo objeto de estudo: “Cada frase que eu escrevo pretende dizer sempre já o todo, portanto, sempre uma determinada coisa repetidamente e é quase como se contemplasse apenas vistas de um mesmo objeto sob diferentes ângulos.” (WITTGENSTEIN, 1998, p.9).
Esta observação ressalta a importância da consideração de um determinado objeto sob diversos ângulos, traduzidos na produção de diversos olhares e, por conseguinte, de diferentes perspectivas para o desenvolvimento do método de escrita filosófica de Wittgenstein. O desenvolvimento de diferentes olhares sobre um mesmo objeto na obra de Wittgenstein encontra-se ligado à produção de diferentes significados para as palavras no interior da multiplicidade de jogos de linguagem. No entanto, para se compreender a conexão entre os pensamentos nietzschiano e wittgensteiniano relativamente à estética e perspectivismo, é necessário ter em consideração o que Nietzsche nos diz a respeito dessa temática.
Esta passagem de Ecce Homo permite-nos perceber a maneira como Nietzsche chegou a formar a sua concepção de perspectivismo e como desenvolveu, distinguiu e criou as suas diversas personagens conceptuais. A criação de uma pluralidade de personagens conceptuais correspondentes a uma multiplicidade de perspectivas implica a produção de diferentes hierarquias entre as faculdades e a distinção entre pontos de vista diferentes acerca de um mesmo objeto. Em Assim Falava Zaratustra encontramos um exemplo da criação de uma pluralidade de personagens conceptuais.
Os “homens superiores”, o “sobrehumano”, o “último papa” e os “pregadores da morte” são alguns exemplos da pluralidade de personagens criadas e caracterizadas nessa obra Nietzsche e Wittgenstein: estética e perspectivismo 88 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Em Ecce Homo, no parágrafo 9 da secção intitulada “Porque sou tão inteligente”, Nietzsche diz acerca de si próprio na qualidade de pensador e de escritor: Uma hierarquia das faculdades; distância; a arte de separar sem criar inimizades; não misturar nada, não reconciliar nada; uma monstruosa multiplicidade que apesar disso é o contrário do caos – esta foi a condição prévia, o longo trabalho secreto e a mestria do meu instinto. (NIETZSCHE, 1999b, p.294).
de Nietzsche. Em Para a Genealogia da Moral é também apresentada a oposição entre a perspectiva do “escravo” e a perspectiva do “senhor”. Encontramos também nesta obra, sob o conceito de ideal ascético, as personagens conceptuais do “sacerdote ascético” e do “filósofo”. A produção filosófica de Nietzsche é constantemente povoada por personagens conceptuais e muitos outros exemplos de personagens conceptuais poderiam ser dados.
Nuno Ribeiro
Na sequência do capítulo “A Mais Variada Arte de Estilo”, Alexander Nehamas afirma também a respeito da relação entre perspectivismo e o desenvolvimento de uma pluralidade de estilos na obra de Nietzsche: 89Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Mas Nietzsche não se limita ao mero desenvolvimento dessas personagens conceptuais. Este autor também estabelece relações entre essas personagens, explicitando a maneira como as diversas perspectivas se relacionam umas com as outras, a forma como se influenciam e transformam umas às outras, por outras palavras, o modo como as múltiplas perspectivas, através das suas interações, adquirem novos elementos, alterando os seus traços de caráter. No entanto, as relações entre estética e perspectivismo na obra de Nietzsche não se esgotam na produção de uma pluralidade de personagens conceptuais encarregadas de assumir diferentes perspectivas. A relação entre estética e perspectivismo no pensamento nietzschiano tem ainda outro nível. Esse nível diz respeito à produção de uma pluralidade de estilos na obra de Nietzsche. No livro Nietzsche – Vida como literatura, num capítulo intitulado “A Mais Variada Arte de Estilo”, Alexander Nehamas diz-nos a esse[…]respeito:nodecurso da sua muito pouco produtiva vida Nietzsche serviuse, para além do aforismo, da metáfora e do fragmento, de uma verdadeiramente surpreendente variedade de estilos e de géneros. É espantoso que, numa bibliografia secundária essencialmente preocupada com as questões do pluralismo interpretativo, o pluralismo estilístico de Nietzsche tenha sido completamente posto de parte. (NEHAMAS, 2002, p.18).
A minha resposta, como tentarei mostrar em detalhe, é que o pluralismo estilístico de Nietzsche é outra faceta do seu perspectivismo: é uma das suas armas fundamentais no seu esforço de se diferenciar da tradição filosófica como a concebe, enquanto, ao mesmo tempo, tenta criticá-la e oferecer alternativas para ela. (NEHAMAS, 2002, p.20).
Nesta passagem, Nietzsche estabelece a explícita relação entre o desenvolvimento de uma pluralidade de estilos e a multiplicidade de estados interiores do sujeito. Assim, a compreensão do desenvolvimento de uma pluralidade de estilos em Nietzsche deve ser entendida no quadro da concepção nietzschiana do sujeito como multiplicidade. Num fragmento póstumo de Nietzsche, de agosto-setembro de 1885, lemos a afirmação explícita do “sujeito como multiplicidade” (NIETZSCHE, 1999d, p.650), como uma das hipóteses que esse pensador apresenta para a sua nova concepção de sujeito. Nesse texto lemos igualmente a respeito na noção de sujeito: “Talvez não seja necessária a admissão de um sujeito único; não é porventura permitido aceitar de igual modo uma multiplicidade de sujeitos cuja cooperação e luta é a base do nosso pensamento e de toda a nossa consciência?”. (NIETZSCHE, 1999d, p. 650).
Este texto apresenta-nos explicitamente a contestação da admissão de um sujeito unitário e a afirmação da hipótese do sujeito-multiplicidade como base do pensamento e da consciência. A hipótese nietzschiana do sujeito como multiplicidade deve ser compreendida no contexto daquilo que Nietzsche denomina como “atomística
Esta posição de Alexander Nehamas, que defende a relação entre o desenvolvimento de uma pluralidade de estilos e a noção de perspectivismo, é-nos sugerida por uma passagem, presente no parágrafo 4 da seção intitulada “Por que escrevo tão bons livros” de Ecce Homo de Nietzsche. Com efeito, lemos aí: Deixo igualmente algumas palavras sobre a minha arte de estilo. Comunicar um estado, uma tensão de afecção interior através de sinais, incluindo o ritmo destes sinais – este é o sentido do estilo; e considerando que, em mim, a multiplicidade de estados interiores é extraordinária, tenho ao meu dispor muitas possibilidades de estilo – a mais variada arte de estilo que alguma vez alguém deteve. (NIETZSCHE, 1999b, p.304).
Nietzsche e Wittgenstein: estética e perspectivismo 90 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Porém, a crítica nietzschiana à “atomística da alma”, isto é, à noção de sujeito como realidade unitária, eterna e indivisível não significa a simples eliminação da noção de alma. Pelo contrário, a crítica de Nietzsche à “atomística da alma” conduz à hipótese de uma nova concepção de alma e, por conseguinte, a um novo conceito de subjectividade concebida como multiplicidade de impulsos, afetos e instintos. Lemos justamente isso na sequência do parágrafo 12 de Para além do bem e do mal:
Seja dito entre nós que não é necessário suprimir “a alma” ela própria e renunciar a uma das mais antigas e veneráveis hipóteses da alma: como acontece com os naturalistas, que, mal tocam na alma, a perdem. Mas encontra-se aberto o caminho para novas versões e aperfeiçoamentos da hipótese da alma: e conceitos como “alma mortal”, “alma como multiplicidade-subjectiva” e “alma edifício coletivo de impulsos e afectos” reclamam direito de cidadania na ciência. (NIETZSCHE, 1999c, p.27).
Nuno Ribeiro
Esta nova concepção de subjetividade como estrutura múltipla de impulsos, afetos e instintos deve, contudo, ser concebida no quadro da definição de sujeito como corpo e do corpo como “grande razão”. No capítulo “Dos desprezadores do corpo” de Assim Falava Zaratustra, lemos a esse respeito: 91Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
da alma”. A crítica de Nietzsche à “atomística da alma” traduz-se na contestação da concepção da alma como algo indestrutível, eterno e indivisível. No parágrafo 12 de Para além do bem e do mal lemos a esse respeito, na sequência da elucidação da refutação do atomismo materialista: Deve-se, contudo, ir ainda mais longe e também declarar uma guerra, uma cruel guerra de unhas e dentes, à “necessidade atomística”, que conduz sempre a uma perigosa pós-vida, a terrenos que ninguém pode prever, de modo semelhante àquela mais famosa “necessidade metafísica”. Deve-se, primeiramente, também sacrificar essa outra mais funesta atomística que o cristianismo ensinou de modo melhor e por mais tempo: a atomística da alma.Seja-me permitido, com estas palavras, designar aquela crença que considera a alma como algo indestrutível, eterno, indivisível, como uma mónada, como um atomon: deve-se banir esta crença da ciência. (NIETZSCHE, 1999c, p.26-27).
nietzschiana
O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um sentido, uma guerra e uma paz, um pastor e um rebanho. (NIETZSCHE, 1999a, p.39).
Sou corpo e alma” – assim fala a criança. (…) Mas aquele que se encontra desperto, aquele que sabe diz: Sou inteiramente corpo e nada além disso; e alma é uma palavra para algo no corpo.
Todavia, para se compreender a relação entre a hipótese do sujeito como multiplicidade e as relações entre estética e perspectivismo no pensamento nietzschiano,é necessário ter em consideração aquilo que Nietzsche diz num fragmento póstumo do outono de 1887, onde este pensador retoma a questão do “atomismo” do sujeito, afirmando: “Não existe um sujeito-“átomo”. A esfera do sujeito está constantemente a crescer e a diminuir – o centro do sistema está em constante movimento -; quando a massa adquirida não consegue organizar-se, divide-se em dois.”. (NIETZSCHE, 1999e, p.391-392).Omovimento do centro do sistema, de que nos fala este fragmento, é aquilo que cria uma nova organização do corpo. Cada vez que um impulso, afeto ou instinto adquire o lugar central, existe a reorganização do sujeito e o estabelecimento de uma diferente hierarquia no interior do corpo. Quando um impulso, um afeto ou um instinto adquire o lugar central, ele torna-se o “senhor” e as outras forças do corpo tornam-se “escravas”. O corpo é, então, uma multiplicidade de forças que estão em constante movimento e que, nesse progressivo movimento, vão construindo diferentes formas de organizar os impulsos, afetos e instintos, isto é, diferentes hierarquias no interior do corpo. É justamente isso que nos diz Nietzsche num fragmento de abril-junho de 1885: Que o humano seja uma multiplicidade de forças que estão em uma hierarquia, de modo que há mandantes, mas também que o mandante deve fazer tudo que sirva para a sobrevivência dos subordinados, sendo com isso ele próprio condicionado pela existência deles. Todos estes entes vivos precisam ser de espécie aparentada, senão eles não poderiam servir e obedecer assim uns aos outros: os servidores precisam, em algum sentido, também ser obedientes e, em alguns casos mais refinados, o papel precisa ser provisoriamente modificado entre eles, e aquele que costumava comandar deve alguma vez obedecer. O conceito Nietzsche e Wittgenstein: estética e perspectivismo 92 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Assim, cada forma de organizar o corpo, cada hierarquia no interior do sujeito constitui uma perspectiva. Cada impulso, afeto ou instinto é, por sua vez, ele próprio também uma perspectiva que tenta impor-se e dominar os demais impulsos, afetos ou instintos. A este respeito lemos o seguinte fragmento póstumo de Nietzsche, escrito por volta do final de 1886-início de 1887: “Os nossos desejos são o que interpreta o mundo: os nossos impulsos e os seus prós e contras. Cada impulso é uma espécie de domínio, cada um tem a sua perspectiva, que deseja impor como norma a todos os restantes impulsos”.(NIETZSCHE, 1999e, p.315)3. Deste modo, quando um impulso, afeto ou instinto central é destronado, um novo mestre ou grupo de mestres ergue-se e estabelece-se, por conseguinte, uma diferente perspectiva. Em última instância, não há um lugar central no interior do corpo. Todas as forças do corpo podem tornar-se o centro, porque no interior do corpo não existe um centro fixo. O centro pode estar em todo o lugar e, ao mesmo tempo, não se encontra em lugar nenhum. É este constante movimento do centro que faz nascer novas perspectivas e dá constantemente origem a diferentes modos de ser e de se relacionar com o mundo e com a vida. É também este constante movimento do centro sistema que permite compreender a construção das diversas personagens conceptuais criadas por Nietzsche, assim como a emergência de uma pluralidade de estilos a que esse autor faz referência quando nos fala acerca da sua mais variada arte de estilo. De fato, conforme vimos, Nietzsche parte da concepção do sujeito como multiplicidade, de forma a explicar a criação de uma multiplicidade de estilos. O solo sobre o qual a multiplicidade de estilos se ergue é, de acordo com esse pensador, a multiplicidade de 3 Para uma contextualização deste fragmento no âmbito das relações entre o perspectivismo moral e o perspectivismo gnosiológico de Nietzsche remetemos para a seguinte referência bibliográfica: GORI; STELLINO, 2014. Para o estudo das consequências do perspectivismo para a elucidação da noção de conflito de interpretações remetemos para o artigo de Gonçalo Marcelo intitulado “Perspectivismo e Hermenêutica” (cf.: MARCELO, 2014). Ribeiro 93Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
de “indivíduo” é falso. Estas entidades não existem sequer de modo isolado: o centro de gravidade é algo em movimento; a geração contínua de células etc. redunda em uma variação continua do número desses entes. (NIETZSCHE, 1999d, p.461-462).
Nuno
estados interiores do sujeito. Deste modo, a multiplicidade de estados interiores assim como o progressivo movimento do sistema no interior do sujeito permitem clarificar a emergência de uma pluralidade de estilos, bem como a fabricação da pluralidade de personagens conceptuais criadas por Nietzsche ao longo das suas obras. Mas, se é um fato que o pensamento de Nietzsche nos proporciona diversos indícios que possibilitam compreender as relações entre estética e perspectivismo, no caso do pensamento de Wittgenstein, após o seu retorno à filosofia em 1929, encontramos inúmeros elementos que nos permitem, de igual forma, perceber em que sentido o pensamento desse autor austríaco nos fornece elementos relativos a essa temática.
Para uma possível contextualização deste trecho com incidência no confronto entre Sobre a verdade e a mentira em um sentido extra-moral de Nietzsche e as Investigações Filosóficas e Sobre a Certeza de Wittgenstein, remetemos para a seguinte referência bibliográfica: CARVALHO, 2013.
Nietzsche e Wittgenstein: estética e perspectivismo 94 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Neste trecho Wittgenstein estabelece a conexão entre a sua atitude perante a filosofia e o conceito de “poetar”. Que Wittgenstein tinha em mente a filosofia de Nietzsche ao estabelecer a aproximação entre “filosofia” e “poetar” é-nos sugerido por uma observação redigida a 23 de abril de 1938, do espólio de Wittgenstein, onde lemos: Se eu quero ensinar não um pensamento mais correto, mas um outro movimento de pensamento, então o meu propósito é uma “transmutação dos valores” e eu aproximo-me de Nietzsche, assim como também desta maneira da minha opinião, de que o filósofo deveria ser um poeta. (WITTGENSTEIN, 2000, MS120, 145r)4
Esta observação constitui-se como um indício da importância de Nietzsche para a concepção wittgensteiniana de filosofia após 1929, em especial, para se compreender o sentido da noção de filosofia como poetar, apresentada pelo autor 4
As questões relativas à estética e ao perspectivismo no pensamento de Wittgenstein, após 1929, devem ser entendidas no quadro da concepção wittgensteiniana da filosofia como poetar. Com efeito, numa observação, escrita por volta de 19331934 e publicada em Cultura e Valor, Wittgenstein afirma: “Penso ter resumido a minha atitude perante a filosofia ao afirmar: a filosofia deveria verdadeiramente apenas poetar-se. A partir disso deve, parece-me, mostrar-se até que ponto o meu pensamento pertence ao presente, futuro, ou ao passado.”. (WITTGENSTEIN, 1998, p.28).
Assim, a vossa câimbra mental é aliviada e tem-se liberdade para examinar o campo de uso de uma expressão e para descrever os seus diferentes usos. (MALCOLM, 2001, p.43).
O que eu faço é a morfologia do uso de uma expressão. Eu mostro que ela tem usos com os quais vocês nunca sonharam. Em filosofia sentimonos forçados a olhar para um conceito de um certo modo. O que eu faço é sugerir, ou mesmo inventar, outros modos de olhar para ele. Eu sugiro possibilidades nas quais vocês não haviam previamente pensado.
austríaco, na medida em que Wittgenstein estabelece a respeito dessa temática um paralelo entre o projeto nietzschiano de “transmutação dos valores” e o propósito da sua própriaNofilosofia.entanto, para se compreenderem as relações entre estética e perspectivismo, no contexto da definição wittgensteiniana da filosofia como “poetar”, é necessário ter em consideração a noção de morfologia apresentada por esse pensador. Uma importante pista para se compreender essa conexão é-nos facultada pelo conceito de morfologia apresentado por Wittgenstein no decurso das suas lições sobre filosofia da psicologia, ministradas entre 1946-1947. Com efeito, segundo o testemunho de Norman Malcolm, presente em Ludwig Wittgenstein: A Memoir, Wittgenstein, no decurso das suas lições sobre filosofia da psicologia de 1946 e 1947, deixa-nos a seguinte indicação relativa ao seu procedimento filosófico:
De acordo com este testemunho, correspondente a uma nota tirada por Norman Malcolm no decurso das lições wittgensteinianas sobre filosofia da psicologia de 1946-1947, Wittgenstein afirma que aquilo que a sua filosofia procura fazer é fornecer a morfologia do uso de uma expressão, indicando que para tal é necessário sugerir ou mesmo inventar outros modos de olhar para um conceito. A importância da criação de modos ficcionais de olhar para um conceito é-nos também sugerida por uma observação, escrita em 1948 e publicada em Cultura e Valor, onde lemos: “Nada é, porém, mais importante do que a construção de conceitos ficcionais que, antes de tudo, nos ensinem a compreender os nossos.” (WITTGENSTEIN, 1998, Nuno Ribeiro 95Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Pensavam que havia apenas uma possibilidade ou duas no máximo. Mas eu faço-vos pensar noutras. Além disso, faço-vos ver que era absurdo esperar que o conceito se conformasse a essas possibilidades restritas.
p.85). De acordo com esta observação, a construção de conceitos ficcionais, veiculados através da criação de modos diferentes de olhar para um objeto, constitui-se como um procedimento de especial destaque para compreender o desenvolvimento dos nossos próprios conceitos. A criação de conceitos ficcionais na filosofia de Wittgenstein é realizada através da criação de jogos de linguagem fictícios. Com efeito, na Parte III, observação 115, das Anotações sobre as cores, lemos o seguinte: “Eu digo: quem não consegue jogar este jogo, não possui este conceito.” (WITTGENSTEIN, 1977, p.31). Se estar na posse de um certo conceito pressupõe jogar um determinado jogo, a criação de conceitos ficcionais significa a construção de jogos de linguagem fictícios.
6 Para o estudo dos princípios que estão na base do método morfológico de Wittgenstein, remetemos para Nietzsche e Wittgenstein: estética e perspectivismo 96 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
A concepção da filosofia como “poetar”, presente no pensamento de Wittgenstein, deve ser, então, compreendida no quadro da construção wittgensteiniana de jogos de linguagem fictícios e na capacidade que a linguagem tem de inventar outros modos de olhar para um mesmo objeto. No entanto, para se compreenderem as relações entre a noção de morfologia e a construção de conceitos ficcionais que nos permitam criar novos modos de olhar para um objeto e, por conseguinte, compreender a filosofia como atividade poética, é necessário ter em consideração de que forma Wittgenstein chega a constituir o seu método morfológico.
O método morfológico wittgensteiniano é o resultado de uma reapropriação do conceito de morfologia presente no pensamento de Goethe5 e da leitura, no início de 1930, do livro A Decadência do Ocidente – Esboço de uma Morfologia da História Universal, de Oswald Spengler, obra que se autoproclama como influenciada tanto pelo pensamento nietzschiano quanto pelo pensamento morfológico de Goethe. Deste modo, o método morfológico realizado por Wittgenstein constitui-se como uma transposição para o domínio da filosofia da linguagem do método que é aplicado por Goethe ao domínio da ciência da natureza e por Spengler ao campo da história universal. Assim, do conceito de morfologia Wittgenstein retira dois princípios que viriam a estar na base do desenvolvimento da sua filosofia após 1929.6
5 Sobre a relação da filosofia wittgensteiniana com o pensamento goethiano, assim como as questões relativas às leituras que Wittgenstein terá realizado das obras de Goethe remetemos para a seguinte referência bibliográfica: SCHULTE, 1990.
O primeiro princípio morfológico do qual Wittgenstein se reapropria encontrase expresso na máxima de Goethe citada pelo próprio Wittgenstein na observação 889 do primeiro volume das Observações sobre a Filosofia da Psicologia, onde lemos: “Não procuremos nada por detrás dos fenômenos; eles próprios são a doutrina. (Goethe)” (WITTGENSTEIN, 1980, p.157). O princípio de acordo com o qual nada se deve procurar por detrás dos fenômenos viria a encontrar expressão na observação 126 das Investigações Filosóficas, onde lemos: “A filosofia, com efeito, apenas põe todas as coisas diante de nós e nada explica ou deduz. – Como tudo está à vista, nada existe para explicar. Porque o que, porventura, estiver escondido, não nos interessa.” (WITTGENSTEIN, 2009, p. 55).
O segundo princípio morfológico do qual Wittgenstein se reapropria consiste na afirmação de que nenhum fenômeno se esclarece por si próprio isoladamente, isto é, de que o estudo de um determinado fenômeno depende da elucidação das diversas interconexões que este estabelece com outros fenômenos e do modo como essas sucessivas interconexões permitem encontrar analogias entre as várias realidades tidas sob consideração. É justamente esse princípio que encontramos expresso num texto das Máximas e Reflexões de Goethe, onde lemos: “Nenhum fenômeno se esclarece em si e a partir de si mesmo; somente muitos observados conjuntamente, ordenados metodicamente, nos podem por fim dar algo que possa valer como teoria.”. (GOETHE, 1993, p.227) Noutro texto das Máximas e Reflexões de Goethe lemos também nesse sentido: “Um fenômeno, um experimento nada consegue provar, ele é um elo de uma grande cadeia, que só tem valor em conexão.”.(GOETHE, 1993, p.17).
A afirmação presente no princípio morfológico de acordo com o qual nenhum fenômeno se esclarece por si só e, por conseguinte, que um determinado fenômeno depende da elucidação das diversas interconexões que esse fenômeno estabelece com outros fenômenos viria a encontrar reflexo na noção de “representação perspícua” (übersichtliche Darstellung) desenvolvida por Wittgenstein, o que se torna explícito se tivermos em consideração o que este autor nos diz a respeito dessa noção nas o livro de Kristijan Krkac, intitulado A Custodian of Grammar – Essays on Wittgenstein’s Philosophical Morphology, onde existem importantes pistas a respeito dessa temática. (cf.: KRKAČ, 2012) 97Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Nuno Ribeiro
Nesta observação, Wittgenstein estabelece a importância de encontrar e inventar elos intermediários para alcançar a “representação perspícua”. A importância da invenção de elos intermediários, referida na observação 122 das Investigações Filosóficas, conjugada com os elementos acima referidos relativos à importância da criação de conceitos ficcionais – por via da construção de jogos de linguagem fictícios – constituemse como elementos importantes para a clarificação do conceito wittgensteiniano de “poetar”, concebido como a criação de diferentes olhares sobre um mesmo objeto de que nos fala Wittgenstein e, por conseguinte, para a clarificação das relações entre estética e perspectivismo no pensamento desse autor. No entanto, a compreensão das relações entre estética e perspectivismo em Wittgenstein deve ser entendida no quadro da reavaliação das problemáticas ligadas à estética, no pensamento deste autor, após 1929.
Nietzsche e Wittgenstein: estética e perspectivismo 98 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Esta representação perspícua proporciona a compreensão que consiste precisamente em “vermos conexões”. Daí a importância de encontrar os termos intermediários. (WITTGENSTEIN, 1993, p.132).
Observações sobre o Ramo Dourado de Frazer, onde nos apresenta uma descrição do conceito de “representação perspícua”, acompanhada de uma referência explícita ao nome de Spengler e implícita ao livro A Decadência do Ocidente – Esboço de uma Morfologia da História Universal. Com efeito, lemos no texto das Observações sobre o Ramo Dourado de Frazer: O conceito de representação perspícua é para nós de fundamental importância. Ele indica a nossa forma de representação, o modo como nós vemos as coisas. (Uma forma de ‘mundividência’, como parece aparentemente típico do nosso tempo. Spengler.)
Uma fonte principal da nossa incompreensão consiste em não vermosperspicuamente o uso das nossas palavras. – Falta perspicuidade à nossa gramática. – A representação perspícua proporciona a compreensão que consiste precisamente em “vermos conexões”. Daí a importância de encontrar e inventar os termos intermediários. (WITTGENSTEIN, 2009, p.54).
Na observação 122 das Investigações Filosóficas, lemos também a seguinte passagem a respeito da noção de representação perspícua:
Nuno
De acordo com o testemunho de Moore nas “Lições de Wittgenstein em 1930-1933”, Wittgenstein introduz a sua discussão sobre a estética ao lidar com o problema do significado das palavras e ilustrando esse problema através do exemplo da palavra “jogo”. O fato de Wittgenstein escolher a palavra “jogo” para ilustrar a discussão sobre a estética mostra a importância da estética para o desenvolvimento da 7 A propósito do caráter inefável da estética no Tractatus Logico-Philosophicus veja-se a proposição 6.421, em que, a respeito da comparação entre estética e ética, Wittgenstein alude à impossibilidade de pôr a estética – assim como a ética – em palavras, querendo com isto significar a incapacidade de se produzir proposições estéticas com sentido. (Cf.: WITTGENSTEIN, 1961, p.146). Ribeiro 99Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Com efeito, apesar de o Tractatus Logico-Philosophicus reduzir a estética ao silêncio,7 isto é, ao domínio daquilo que não pode ser dito com sentido, mas apenas mostrado, encontramos, após o retorno de Wittgenstein a Cambridge e à filosofia, uma reconsideração das temáticas relativas à estética que abrem não só a possibilidade de um discurso da arte e sobre a arte, mas também nos permitem compreender a importância da estética para o aprofundamento e a elucidação das questões ligadas ao desenvolvimento do método filosófico de Wittgenstein após o seu retorno a Cambridge. Um importante dado para se compreender a relevância da estética para o desenvolvimento da filosofia de Wittgenstein após 1929 é referido nas “Lições de Wittgenstein em 1930-1933”, publicadas por George Edward Moore nos anos de 1954 e 1955, na revista Mind, onde lemos: Ele [Wittgenstein] introduziu toda a sua discussão sobre a Estética ao lidar com um problema sobre o significado das palavras, com o qual ele disse que ainda não havia lidado. Ele ilustrou esse problema através do exemplo da palavra “jogo”, a respeito da qual ele disse duas coisas (1) que, mesmo que exista algo comum a todos os jogos, não se segue daí que isso é o que nós queremos significar ao chamar “jogo” a um determinado jogo, e (2) que a razão pela qual nós denominamos tantas actividades diferentes de “jogos” não se deve ao facto de existir algo em comum entre todos eles, mas apenas ao facto de existir “uma transição gradual” de um uso para outro, ainda que nada exista em comum entre os dois polos das séries. E ele parece ter defendido definitivamente que não existe nada em comum nos nossos diferentes usos da palavra “belo””, dizendo que nós a usamos “em centenas de jogos diferentes” – que, e.g. a beleza de uma face é algo diferente da beleza de uma cadeira ou de uma flor ou da encadernação de um livro. (MOORE, 1955, p.17).
Com efeito, de acordo com Moore, Wittgenstein, ao introduzir a noção de “jogo” para ilustrar os problemas relativos à estética, estabelece dois princípios: primeiro, que aquilo que faz com que chamemos “jogo” a algo não depende de existir um elemento comum a todos os jogos; segundo, que aquilo que determina que caracterizemos tantas actividades diferentes como “jogos” se deve apenas ao fato de existir uma “transição gradual” de um uso para outro, mesmo que nada exista em comum entre os dois polos das séries. A ideia de “transição gradual”, referida por Wittgenstein no decurso das suas lições de 1930-1933, corresponde a um dos pressupostos subjacentes ao desenvolvimento do método morfológico e é a chave para compreender o modo como se vão estabelecendo interconexões entre os diversos jogos e produzindo diferentes olhares sobre um mesmo objeto. É através da progressiva transição gradual de um uso para o outro que se vão estabelecendo conexões entre os usos das palavras e os diferentes jogos de linguagem, ainda que, como nos diz Wittgenstein, nada exista de comum entre os dois polos das séries de jogos. É também essa progressiva transição gradual que vai produzindo visões de um mesmo objeto sob diferentes ângulos, no interior dos diferentes jogos de linguagem pelos quais uma e a mesma palavra transita. Mas a conexão entre a estética e a criação de novos olhares sobre um mesmo objeto tem ainda outro nível. Esse nível diz respeito ao problema do estilo filosófico de Wittgenstein e ao modo como o progressivo desenvolvimento do estilo desse autor após 1929, ligado à construção de jogos de linguagem fictícios, nos permite compreender o conceito de filosofia como poetar, no contexto da criação de diferentes olhares sobre um mesmo objeto. Conforme vimos, um dos meios mais comuns empregados por Wittgenstein para
filosofia de Wittgenstein após 1929, tendo em consideração que o esclarecimento e a especificação de diferentes jogos de linguagem viriam a tornar-se o centro da filosofia de Wittgenstein na sequência do seu retorno a Cambridge. No entanto, o testemunho de Moore introduz outro aspecto de fundamental relevo para a compreensão do sentido do método morfológico wittgensteiniano. Esse aspecto consiste na ideia de “transição gradual” à qual – segundo o texto de Moore – Wittgenstein faz apelo.
Nietzsche e Wittgenstein: estética e perspectivismo 100 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
o desenvolvimento dos seus conceitos, após o seu retorno a Cambridge e à filosofia, consiste na criação de jogos de linguagem fictícios e na progressiva elucidação da forma como a transição gradual de um uso de uma expressão para outro uso da mesma expressão possibilita o estabelecimento de conexões entre os diferentes usos das palavras e os diferentes jogos de linguagem. Ao longo dos vários manuscritos e datiloscritos, escritos após 1929 e deixados no Nachlass de Wittgenstein (2000), encontramos uma pluralidade de exemplos da construção estética de jogos fictícios, criados com o intuito de ilustrar e provar o pensamento filosófico wittgensteiniano acerca da linguagem. Wittgenstein recorre constantemente, nos seus escritos posteriores a 1929, à construção de jogos de linguagem fictícios e à transição de um jogo para o outro jogo de modo a ilustrar a forma como as diversas conexões entre jogos vão produzindo alterações de significado e, por conseguinte, visões de um mesmo objeto sob diferentes ângulos.8 Assim, tal como a criação de personagens conceptuais e o desenvolvimento de uma pluralidade de estilos em Nietzsche apresentam inúmeros elementos que nos permitem compreender as relações entre estética e perspectivismo, em Wittgenstein a construção ficcional de jogos de linguagem e a consequente produção de visões de um mesmo objeto sob diferentes ângulos apresentam, de igual forma, indícios que nos possibilitam falar da conexão entre estética e uma dimensão perspectivista do pensamento wittgensteiniano. É, neste sentido, que Nietzsche e Wittgenstein se constituem como autores cujas obras lançam as bases para se compreenderem as múltiplas ligações entre estética e perspectivismo.
8 Encontramos um claro exemplo disso, embora não único, nas diversas versões das Investigações Filosóficas, uma obra que ao longo das suas múltiplas versões – desde a “versão originária” (Urfassung) (MS142) até àquela que ficou conhecida como “versão tardia” (Spätfassung) (TS227a e TS227b) – se encontra estruturada na construção de jogos de linguagem fictícios. Para uma elucidação dos diversos aspectos ligados ao desenvolvimento das múltiplas versões das Investigações Filosóficas, remetemos para a edição crítico-genética editada por Joachim Schulte, com a seguinte referência: WITTGENSTEIN, 2001.
Nuno Ribeiro 101Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Ludwig Wittgenstein: a memoir. With a Biographical Sketch by G. H. von Wright, second edition with Wittgenstein’s letters to Malcolm. Oxford: Clarendon Press, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich. Der Fall Wagner/ Götzen-Dämmerung/ Der Antichrist/ Ecce Homo/ Dionysus-Dithyramben/ Nietzsche contra Wagner. Kritische Studienausgabe 6, Hrsg. G. Colli und M. Montinari. Berlin/ Munique: Walter de Gruyter/ DTV, 1999b.
NIETZSCHE, Friedrich. Also sprach Zarathustra. Kritische Studienausgabe 4, Hrsg. G. Colli und M. Montinari. Berlin/ Munique: Walter de Gruyter/ DTV, 1999a.
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Jacqueline de Oliveira Moreira
O conceito de liberdade se situa entre as categorias filosóficas de maior complexidade. Pode-se entender a liberdade como autodeterminação, como indeterminação, como ato de vontade, como ausência de interferência, entre outras numerosas possibilidades. Podemos falar, dentre muitos possíveis tipos de liberdade, em liberdade física, política, psicológica.
Os paradoxos da liberdade em Freud e Schopenhauer:
Vários autores trataram do tema da liberdade. Contudo, encontramos soluções deterministas e indeterministas, a exemplo de Sartre e Descartes, que, numa perspectiva indeterminista, veem a liberdade como a essência do homem (MONDIN, 1980). As discussões sobre a liberdade que trabalham essa categoria a partir da noção de determinismo podem ser agrupadas em determinismo intrínseco e extrínseco (MONDIN, 1980): as interpretações mitológicas e teológicas sobre o fenômeno humano são consideradas modalidades do determinismo extrínseco; e, no campo do determinismo intrínseco, encontramos teses que abarcam as esferas política (Hobbes), metafísica (Schopenhauer), fisiológica (Lombroso), sociológica (Estruturalistas) e psicológica (Freud).
Parece pertinente ressaltar que a Ciência Moderna defende o determinismo, visto que o espírito do mecanismo dominou a Europa do século XVII ao XIX. Os relojoeiros, por exemplo, aplicaram teorias da física e da matemática na construção do relógio/máquina. A ideia ou o conceito básico do século XVII, que sugeria que a filosofia iria alimentar a nova psicologia, era o espírito do mecanismo, ou seja, a imagem do universo era a de uma grande máquina. Os processos naturais são mecanicamente determinados e podem ser explicados pelas leis da física: “Devido à sua visibilidade, regularidade e precisão, os pesquisadores começaram a considerar os relógios como modelos 105
o amor e o outro
para o universo físico, perguntando-se se o próprio mundo não poderia ser ‘um vasto relógio construído e movido pelo Criador’.” (SHULTZ, 1992, p. 23).
A psicologia em época de seu surgimento busca reconhecimento por parte da comunidade científica e, nesse sentido, pretende expandir as fronteiras da concepção determinista até a mente. A psicanálise freudiana também se inscreve dentro dessa concepção científica do século XIX. Para Freud, o determinismo é uma realidade inquestionável, e a crença na liberdade carrega uma postura anticientífica. Freud revela: [...] arrisquei-me a dizer-lhes que os senhores acalentam uma fé, profundamente arraigada, em acontecimentos psíquicos nãodeterminados e no livre-arbítrio; que isso, porém, é bastante anticientífico e deve ceder lugar à necessidade de um determinismo cujo princípio se estende à vida mental. (FREUD, [1916-1915]/1976a, p. 132). da liberdade em Freud 106 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Os paradoxos
As pessoas passam a considerar o próprio corpo uma máquina feita pelas mãos de Deus, incomparavelmente mais bem-organizada e adequada a movimentos mais admiráveis do que qualquer máquina inventada pelo homem. E assim surgiram, entre os séculos XVII e XIX, a concepção dos seres humanos como máquinas e o método – o método científico – mediante o qual era possível investigar a natureza humana. Assim, dever-se-ia ampliar o ideal mecanicista e aplicá-lo à mente.
e Schopenhauer: o amor e o outro
O uso da metáfora do relógio envolve a ideia do determinismo, segundo a qual podemos prever as mudanças que vão ocorrer no relógio, bem como no universo, por causa da regularidade e da sequência operacional de suas partes. O reducionismo como método de análise foi propagado como um artigo de fé para a nova ciência. O funcionamento de máquinas como os relógios podiam ser compreendidos por meio da sua análise e redução aos seus componentes básicos. Da mesma maneira, poder-se-ia compreender o universo físico – que era, afinal, apenas outra máquina – analisando-o ou reduzindo-o às suas partes mais simples: moléculas e átomos. Mas seriam os seres humanos e os animais também uma espécie de máquina?
A escola de Wundt introduziu também o que conhecemos como experiências de associação, nas quais se diz à pessoa uma palavra-estímulo a que a pessoa deve responder tão rapidamente quanto lhe for possível, com qualquer reação que lhe ocorra (FREUD, 1976a, p. 135).
O nome de Wundt é evocado para oferecer legitimidade para a tese do determinismo psíquico, mas Jung e Bleuler demonstraram que a reação à palavra-estímulo refere-se diretamente a uma questão do sujeito.
Freud anuncia antecedentes nobres para suas teses do determinismo mental. Para ele, foi a psicologia experimental de Wundt que introduziu a ideia do determinismo psíquico junto à comunidade científica.
Na realidade, há não muito tempo constatei – posso dizer que sem atribuir muita importância ao fato – que a psicologia experimental também havia obtido provas nesse sentido. (FREUD, 1976a, p. 132).
Determinismo em Freud e Schopenhauer Na concepção freudiana, o determinismo psíquico não é exclusividade dos fenômenos patológicos, aparecendo também nos sonhos e nos atos falhos cotidianos. Assim, existe apenas uma aparente liberdade das funções psíquicas. Negar a determinação dos fenômenos psicológicos seria jogar fora a Weltanschauung da ciência, ou seja, toda a concepção de mundo da ciência (FREUD, [1916-1915]/1976b, p. 42). Para Freud, nada na vida mental é arbitrário, havendo: muito menos liberdade e arbitrariedade na vida mental do que tendemos a admitir, e pode ser até que não exista nenhuma. Aquilo que no mundo externo denominamos de casualidade pode, como sabemos, ser colocado dentro de leis. Assim também o que chamamos de arbitrariedade da mente repousa sobre leis das quais só agora começamos vagamente a suspeitar. (FREUD, [1907]/1976i, p. 19).
II Colóquio internacional
Pode-se demonstrar que a ideia referida pelo homem não era arbitrária, nem indeterminável, nem isenta de relação com aquilo que procurávamos.
Jacqueline de Oliveira Moreira107
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud:
em Freud e Schopenhauer: o amor e o outro
A escola de Zurique, liderada por Bleuler e Jung, encontrou explicação para as reações que se sucediam na experiência de associação, fazendo as pessoas em experiência elucidarem suas reações por meio de associações subsequentes, no caso de essas reações terem mostrado aspectos marcantes. Constatou-se, então, que essas reações marcantes eram determinadas de forma muito definida pelos complexos da pessoa. Assim, Bleuler e Jung estabeleceram a primeira ponte entre a psicologia experimental e a psicanálise (FREUD, 1976b, p. 135). No entanto, podemos arriscar a dizer que a concepção de Freud sobre o determinismo psíquico se inspira na metafísica de Schopenhauer. No ensaio premiado, “Sobre a Liberdade da Vontade”, resposta à questão colocada pela Sociedade Real de Ciências da Noruega, Schopenhauer ([1841]/s.d.) define e desenvolve sua concepção de liberdade. Schopenhauer (s.d.) inicia sua reflexão distinguindo três tipos de liberdade: a física, a intelectual e a moral. Na acepção física, encontramos o conceito mais original, imediato e comum de liberdade, a qual consiste na ausência de obstáculos materiais que constranjam ou impeçam o livre movimento da vontade. Assim, para o autor, liberdade seria algo negativo que se define pela ausência de qualquer obstáculo. A reflexão sobre a liberdade exige um estudo sobre o conceito de necessidade. Necessário é tudo aquilo que resulta da razão suficiente. Já a liberdade seria a independência absoluta da lei da causalidade, expressão primeira da razão suficiente. Liberdade seria, então, um poder de iniciar uma série por si mesmo, sem causas. Mas todos os objetos da experiência são fenômenos, manifestações da vontade, portanto estão submetidos ao tempo, ao espaço e à lei da causalidade, que constituem as condições de possibilidade da existência desses objetos. O princípio de razão suficiente, condição de possibilidade de todos os fenômenos, é um princípio de determinação universal e necessária. A ausência de causalidade no mundo fenomênico equivale ao acaso absoluto, noção que paralisa o espírito. Assim, positiva é a necessidade; a liberdade é apenas um desvio. da liberdade 108 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio
Os paradoxos
internacional
Quanto à liberdade moral, podemos entendê-la em dois sentidos: como potência de agir, que é um conceito empírico de liberdade, em que a consciência ingênua acredita ser possível fazer tudo aquilo que quer; e como potência do querer, em que a liberdade da vontade é considerada em si e por si mesma. Nessa perspectiva, a pergunta em questão é: Será a vontade livre? Ou: Pode-se querer aquilo que se quer?
O testemunho da consciência em relação às volições é simples: Eu posso fazer aquilo que quero. A consciência sabe de sua vontade e da capacidade de seu corpo em movimentar-se na direção da realização. Mas a liberdade do agir não está sendo questionada, questiona-se a liberdade do querer. A consciência ingênua proclamase livre, baseada na liberdade dos atos, mas o problema da liberdade versa sobre as causas e razões da vontade. A dependência ou independência da vontade em relação aos objetos exteriores é um tema estranho à consciência. Segundo Schopenhauer (s.d.), a consciência não poderá nos responder sobre o problema da liberdade, pois “o testemunho da consciência não se refere à vontade senão a parte post, a questão do livre arbítrio, pelo contrário, a parte ante” (SCHOPENHAUER, s.d., p. 67).
Constitui um erro procurar a liberdade no operari; a ação é conforme a essência, e a liberdade reside no esse. O sujeito poderia, dentro de idênticas circunstâncias, agir de modo inteiramente diferente, se fosse um outro ser. Assim, a responsabilidade não se refere ao ato; recai sobre o caráter. O homem se sente responsável pelo seu ser, e ser responsável significa admitir que a ação tem uma condição subjetiva, o caráter.
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
A consciência ingênua considera-se livre, pois pode fazer aquilo que quer; mas seu querer é de fato livre?
Todavia, é importante ressaltar que a psicanálise não trabalha com uma ideia de causalidade simples, linear, calcada no a priori, mas com uma noção de determinismo
Jacqueline de Oliveira
Podemos corroborar, então, a afirmação schopenhaueriana de que a ação é conforme a essência e o sujeito é responsável pelo seu ser e seus atos, pensando que a ação é determinada psiquicamente e o sujeito é responsável pelo seu psiquismo e atos. Nessa perspectiva, Freud revela que o psicanalista se distingue pela rigorosa fé no determinismo da vida mental (FREUD, [1910]/1976c, p. 36).
Moreira109
Os paradoxos da liberdade em Freud e Schopenhauer: o amor e o outro 110 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Freud revela que existe um tipo especial de lembrança: trata-se de experiências que ocorreram em infância muito remota e não foram compreendidas na ocasião (FREUD, 1912). A afirmação de que as lembranças mais importantes são aquelas da infância confirma a leitura vulgar da psicanálise como uma terapia que se centra no passado. Todavia, devemos ficar atentos para a sequência da frase, pois Freud aponta o fenômeno do après-coup, ou seja, as experiências apenas serão compreendidas a posteriori. Assim, a concepção de tempo enquanto uma estrutura linear não condiz perfeitamente com a proposta da recordação. Sobre o passado, operase uma significação, e não uma simples rememoração. O passado é aprendido não a partir do que foi, mas antes a partir do que é e será.
múltiplo, às vezes circular e que obedece à lógica do a posteriori, propondo a tese freudiana uma subversão na noção de causalidade. Para Freud, as causas do sofrimento psíquico e dos sintomas psicológicos encontram-se na história do sujeito – na sua trama existencial em um momento anterior ao adoecer. Os sintomas psicológicos são sobredeterminados, e as experiências traumáticas só adquirem essa conotação no depois. Assim, para a psicanálise é fundamental a reconstrução dos “fatos/imagens” psíquicas. No processo de recordar, o paciente colocava-se de volta numa situação anterior, que parece nunca se confundir com a atual. (FREUD, [1912]/1976d).
Percebemos, assim, que mesmo o conceito de recordação não adere perfeitamente à dimensão da temporalidade como progressão linear. Dessa forma, a ideia de “posterioridade” (Nachtäglichkeit) tem um valor operativo no âmbito da teoria determinista freudiana, podendo-se dizer que, na produção de sintoma e no processo analítico, o retorno do recalcado remete ao passado, mas pressupõe o futuro como condição necessária. Ademais, tudo acontece na brevidade do instante presente, no qual o inconsciente se abre, e o sujeito emerge. Assim, a construção sintomática realizase ao longo de um processo tortuoso que sempre mantém a lógica determinista, sem se enquadrar numa lógica linear, mas sim na figura do après-coup, da posterioridade (Nachträglichkeit).
Os preconceitos em relação às teses psicanalíticas podem ser acirrados quando pensamos na hipótese freudiana de uma neurose de destino. Com o conceito de compulsão à repetição, Freud interpreta o fenômeno que aparece nos atendimentos clínicos, a saber, a repetição de situações dolorosas. No processo transferencial, o cliente repete seus laços infantis e reedita suas fantasias, sendo “obrigado a repetir o material reprimido como se fosse uma experiência contemporânea.” (FREUD, [1920]/1976e, p. 31).
Mas Freud estende a hipótese da compulsão à repetição para além do espaço clínico, alcançando a vida cotidiana. O que a psicanálise revela nos fenômenos de transferência dos neuróticos também pode ser observado nas vidas de certas pessoas normais. A impressão que dão é de serem perseguidas por um destino maligno ou possuídas por algum poder ‘demoníaco’; a psicanálise, porém, sempre foi de opinião de que seu destino é, na maior parte, arranjada por elas próprias e determinada por influências infantis primitivas. A compulsão Jacqueline de Oliveira Moreira111Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Todavia, a ampliação do determinismo científico até o universo mental constitui, para Freud, um dos obstáculos para aceitação da psicanálise. Do ponto de vista intelectual, devemos considerar, julgo eu, que existem especialmente dois obstáculos, dignos de nota, contra a aceitação das ideias psicanalíticas: primeiramente, a falta de hábito de contar com o rigoroso determinismo da vida mental, o qual não conhece exceção, e, em segundo lugar, o desconhecimento das singularidades pelas quais os processos mentais inconscientes se diferenciam dos conscientes que nos são familiares. (FREUD, 1976c, p. 48).
De acordo com Figueiredo (1997), conceber uma experiência passada como irrecuperável pela memória é mostrar que, de fato, ela não aconteceu e só agora, numa nova condição, poderá ser vivida pela primeira vez. Na sua história, o sujeito tenta significar os fatos do mundo empírico que se sucedem no tempo, pois a história não é um amontoado de fatos sequenciais ao acaso; existe uma razão na história. A consciência articula os eventos e cria um sentido para a sucessão dos fatos. É claro que esta significação só pode acontecer a posteriori, ou seja, não é uma ideia que se pode apreender a priori e daí prever o próximo acontecimento.
que aqui se acha em evidência não difere em nada da compulsão à repetição que encontramos nos neuróticos, ainda que as pessoas que agora estamos considerando nunca tenham mostrado quaisquer sinais de lidarem com um conflito neurótico pela produção de sintomas. Assim, encontramos pessoas em que todas as relações humanas têm o mesmo resultado, tal como o benfeitor que é abandonado erradamente, após certo tempo, por todos os seus proteges. (FREUD, 1976e, p. 351).
Assim, se levarmos em consideração observações como essas, baseadas no comportamento, na transferência e nas histórias da vida de homens e mulheres, não só encontraremos coragem para supor que existe realmente na mente uma compulsão à repetição (FREUD, 1976e, p. 36), como também ampliaremos o determinismo psíquico até o espaço das escolhas existenciais. Dessa forma, podemos inscrever Freud no grupo dos pensadores deterministas, mas não devemos deixar de mencionar que o tema da liberdade aparece de forma implícita nas discussões sobre a direção da cura. No entanto, essa reflexão parece mais propícia para outro momento. Podemos, por hora, apresentar algumas citações diretas da palavra liberdade. Liberdade possível: Freud e Schopenhauer São raras as aparições do termo “liberdade” no texto freudiano em comparação com o vocábulo “determinação”. Contudo, duas passagens parecem ser ilustrativas da forma como Freud trata o tema da liberdade. No Mal-estar na cultura, Freud anuncia um antagonismo entre liberdade e civilização: A liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização. Ela foi maior antes da existência de qualquer civilização, muito embora, é verdade, naquele então não possuísse, na maior parte, valor, já que dificilmente o indivíduo se achava em posição de defendê-la. O desenvolvimento da civilização impõe restrições a ela, e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições (FREUD, [1930]/1976f, p. 116).
Os paradoxos da liberdade em Freud e Schopenhauer: o amor e o outro 112 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
A palavra “liberdade” aparece, ainda, relacionada com a problemática estética.
de
Jacqueline Oliveira Pessoa, Rosa, Freud:
II Colóquio internacional
Segundo Freud, o impulso de liberdade do indivíduo é dirigido contra formas e exigências específicas da civilização ou contra a civilização em geral. Nessa perspectiva, o indivíduo irá defender sua reivindicação à liberdade individual contra a vontade do grupo, interpretação que sugere que a civilização cerceia a liberdade do indivíduo, criando um obstáculo para a felicidade. Vale, entretanto, alertar o leitor ingênuo, que poderia pensar que Freud estaria sugerindo uma liberdade total, que, na verdade, seria catastrófica a falta de limitação. O próprio Freud ([1921]/1976g) cita um romance que anuncia ser mentira a história da ressurreição de Cristo e aponta para o desastre dessa liberdade sem fronteiras. Deve-se, ainda, lembrar que, no caso do conflito entre liberdade e civilização, está em questão a ideia de liberdade individual ou livre-arbítrio e não de liberdade moral, pois a liberdade moral pressupõe a escolha por pertencer à humanidade e, por vezes, abrir mão de sua liberdade individual.
Para Freud, “seria possível que da liberdade estética brotasse uma espécie de juízo liberado de suas usuais regras e regulações, ao qual, devido a sua origem, eu chamarei juízo lúdico” (FREUD, [1905]/1976h, p. 19). A produção estética preservaria, então, uma cota de liberdade, numa perspectiva que ecoa as teses schopenhauerianas sobre a liberdade presente no salto estético. Entretanto, a própria teoria freudiana apresenta argumentos contrários a essa ideia de liberdade estética quando vincula a produção artística ao ato de sublimação. Afirmar o determinismo da teoria freudiana é uma tarefa muito fácil, mas acredita-se que é necessário compreender também o lugar da liberdade nessa proposta teórica e clínica, pois, se a psicanálise propõe intervir na vida do sujeito, podemos acreditar nas condições de possibilidades da mudança de posição do sujeito frente ao seu sintoma, e parece pouco provável que uma mudança de posição ocorra sem liberdade. Além disso, quando Freud propõe que, no processo analítico, o sujeito deve encontrar-se com o rochedo da castração, entendemos que a psicanálise está propondo uma ética, ou seja, o sujeito deve ingressar no mundo humano, abrir mão do desejo de liberdade ilimitada e aceitar a liberdade moral que rege a vida em sociedade.
Moreira113Nietzsche,
O inconsciente, portanto, determina, mas determinismo e liberdade não são opostos. O ics determina a liberdade moral que anuncia a pertinência ao mundo humano, sendo este, então, um determinismo que anuncia seu encontro com a alteridade através da experiência edípica, momento em que o ics é forjado. No que tange à liberdade possível, temos, também, Schopenhauer, que anuncia a possibilidade da liberdade no ato de negação da vontade individual concomitante à compreensão da verdade metafísica de que a vontade é única e infinita. A possibilidade de superação do individual em direção ao universal situa-se no conhecimento metafísico, não sendo a concretização da liberdade determinada pela razão ou pela submissão à esfera pública, mas a consequência da percepção da verdade metafísica.
Assim, a reflexão schopenhaueriana sobre a possibilidade de liberdade aparece em três níveis, a saber: estético, ético e místico. O artista no ato de criação experimenta a liberdade, pois o seu modo de conhecimento não se encontra submetido ao princípio de razão, e sua relação com o objeto não responde diretamente aos caprichos de sua vontade. A ação ética, pautada pelo princípio da compaixão, revela que o sujeito compreendeu que ele e outro são constituídos dos mesmos princípios, e ferir o outro significaria ferir a si mesmo. O fato da consciência do outro é, propriamente falando, a questão da reflexão moral. A liberdade possível se encontra no enlace ético com o outro, pois com ele construímos nossa história e presenteamos nossa vida com o tempo. A beleza do encontro com o outro é poeticamente apresentada por Lima Barreto em “O filho de Gabriela”, conto no qual patroa e empregada, no momento de uma forte discussão, vivem a possibilidade do encontro.
Lacan ([1964]/1988) afirma que o inconsciente é ético, e não ôntico, porque é constituído na relação com o outro, e é através dessa relação que se dá o ingresso no mundo humano. Assim, a análise é o encontro com a liberdade moral; ou seja, com a eticidade do inconsciente.
E ambas, pelo fim dessa transfiguração inopinada, entreolharam-se surpreendidas, pensando que se acabavam de conhecer naquele instante, tendo até ali vagas notícias uma da outra, como se vivessem longe, Os paradoxos da liberdade em Freud e Schopenhauer: o amor e o outro 114 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
tão longe, que só agora haviam distinguido bem nitidamente o tom de voz próprio a cada uma delas. No entendimento peculiar de uma e de outra, sentiram-se irmãs na desoladora mesquinhez da nossa natureza e iguais, como frágeis consequências de um misterioso encadear de acontecimento, cuja ligação e fim lhes escapavam completamente, inteiramente... (LIMA BARRETO, [1906]/2005, p. 106).
Considerações finais
Segundo Lévinas (1961/1988), o amor visa ao outro na sua fraqueza: “Amar é temer por outrem, levar ajuda à sua fraqueza” (LÉVINAS, 1988, p. 235). A carícia constitui uma experiência paradigmática para descrever esse encontro com o outro, não podendo o eu devorar outro e regressar a si. “Na carícia o que lá está é procurado como se lá não estivesse” (NUNES, 1993, p. 182). O sujeito toca o outro sem dele se apoderar e, no momento em que toca o outro, toca a fragilidade de ambos.
Em conclusão a este estudo, podemos pensar que, em última instância, a liberdade se situa no espaço de compreensão da alteridade. Assim, parece fundamental, como sugere Lévinas, rever a afirmação freudiana que aproxima a ideia de Eros da psicanálise com o mito dos andróginos em Platão. O amor do Mito de Aristófanes procura a si mesmo; é um amor incestuoso que regressa a si, que não encontra a alteridade. O amor que apresenta o encontro com o radicalmente outro é proferido por Diotima, através do personagem de Sócrates. Essa tese sugere que o Amor deseja aquilo que não tem e, por esse fato, é carente, caindo por terra a ideia de que ele seria um deus. Nesse sentido, o amor é filho da penúria e da abundância, pois o que o move é a carência, mas o que pode alcançar é a elevação.
Parece-nos pertinente ressaltar que o encontro erótico que abre para o sujeito uma perspectiva para além de sua virilidade não é necessariamente um encontro intersubjetivo. Isso significa que o mais fundamental não é o encontro entre dois sujeitos, mas o encontro com a fragilidade. Lévinas ([1947]/1979) vai além da ideia de intersubjetividade, porque o encontro não é simétrico. Não é exatamente o Jacqueline de Oliveira Moreira115Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
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Os paradoxos da liberdade em Freud e Schopenhauer: o amor e o outro 116 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
encontro entre dois sujeitos que realiza nossa humanidade; o homem é homem no e pelo encontro com a falta, com o limite para a subjetividade viril.
FREUD, Sigmund. Cinco Lições de psicanálise. In: FREUD, Sigmund. Cinco Lições de psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1910-1976c. p. 3-53. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XIV).
O encontro intersubjetivo é o encontro entre duas solidões que podem permanecer em combate eterno. O sujeito, para se realizar, precisa abandonar sua posição viril sem ser esmagado; o eu deve desaparecer para sair da solidão, mas desaparecer não é o mesmo que não existir. Assim, o eu só realiza sua dimensão de sujeito quando se abre e hospeda o outro. Em termos psicanalíticos, o fim de análise “corresponde ao reconhecimento do desejo, a uma certa posição ética” (POMMIER, 1992, p. 203), ou seja, corresponde ao reconhecimento e à sustentação da contradição que funda o humano.
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Espelho da noite: a valorização dionisíaconoturna da música no jovem Nietzsche Clovis Salgado Gontijo Oliveira
A Senhora Amor quer que se faça noite para poder resplandecer lá onde a tua luz a afugentou. WAGNER, Richard. Tristão e Isolda, ato II, cena I, 2011. Introdução A obra de Friedrich Nietzsche (1844-1900) é esquematicamente dividida pelo germanista francês Charles Andler (1866-1933) em três principais fases. A primeira delas, denominada “pessimismo romântico” (1869-1876), caracteriza-se pelo seguimento da metafísica de Arthur Schopenhauer (1788-1860) e pela aposta no projeto artístico-musical de Richard Wagner (1813-1888). A segunda, marcada por um “positivismo cético” (1876-1881), assinala, em tom de autocrítica, a ruptura com as aspirações e construções românticas e metafísicas, ao lado da aproximação às ideias dos moralistas franceses e dos utilitaristas ingleses. A terceira e última fase, cunhada de “período de reconstrução” (1882-1888), expressa, por sua vez, a libertação do ideal iluminista e apresenta, como o seu principal fio condutor, nítida proposta de afirmação à vida. Coincidentemente, a relação de Nietzsche com o fenômeno musical, objeto de estudo constante ao longo da sua obra, também pode ser fraccionada em três momentos, que equivalem, em termos de cronologia e perspectivas, às três grandes fases citadas. Ao “pessimismo romântico” corresponde exacerbado elogio às potencialidades musicais e ao drama wagneriano; ao “positivismo cético”, um momento de “niilismo musical”1, regado de críticas ao repertório romântico e 1 Expressão utilizada por Pierre Lasserre em Les Idées de Nietzsche sur la musique, apud DIAS, 1994, p. 116. 119
Vladimir Jankélévitch (1903-1985), dentro da qual encontramos coletânea póstuma de ensaios que, unidos sob o título de La Musique et les heures, se voltam à relação entre composições, autores e poéticas dos séculos XIX e XX, por um lado, e certos períodos do dia e luminosidades, por outro. Além disso, a escolha deste primeiro “momento musical” da reflexão musical nietzschiana, como foco do presente trabalho, foi motivada não só por exigência cronológica, mas também por nos permitir lidar, uma vez mais, com o motivo noturno, tema que nos acompanha desde a nossa pesquisa de doutorado, dedicada à especial fecundidade auditivo-musical da experiência noturna.2 A origem noturna da música Em meio aos Fragmentos póstumos, escritos por Nietzsche entre o inverno de 1869 e a primavera de 1870, encontramos a intrigante afirmação: “O som procede 2 A nossa tese doutoral, O motivo da noite: da esterilidade indizível à musicalidade inefável, foi recentemente publicada, em versão abreviada, sob o título: Ressonâncias noturnas: do indizível ao inefável (edições Loyola, 2017). Espelho da noite: a valorização dionisíaco-noturna da música no jovem Nietzsche 120 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
pontuado por passagens de desvalorização da própria arte sonora e do sentido auditivo; e ao “período de reconstrução” uma retomada da apreciação positiva do fenômeno musical, a essa altura apoiada sobre novos fundamentos, assim como sobre novas composições e estilos. Estes três “momentos musicais”, por vezes, se identificam à sugestiva simbologia relacionada à luz e à obscuridade, imagens que se aplicam não só às correntes filosóficas que influenciam o autor de Zaratustra, como também às poéticas por ele valorizadas em cada momento em questão. Abordaremos aqui o primeiro deles, examinando de que modo o louvor à música, que lhe é característico, se associa a uma valorização da noite, imagem que se entrelaça diretamente com a arte sonora em, pelo menos, duas passagens e momentos do corpusCabenietzschiano.acrescentar que, provavelmente, a atenção a essa simbologia tenha sido motivada pelo nosso contato com a obra do filósofo francês contemporâneo
Clovis Salgado Gontijo Oliveira 121Nietzsche,
À semelhança de Platão, que, junto com Kant, figura entre as suas duas principais referências, o filósofo pessimista efetua inequívoca apologia à luz em O mundo como vontade e representação. Enquanto aponta os efeitos negativos da obscuridade, considera o seu oposto, a luz, como “a mais aprazível das coisas” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 227) e “a coisa mais alegre que existe: fizemos dela o símbolo de tudo o que é bom e salutar” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 209). Nesses contextos, o elemento luminoso é enaltecido por se apresentar como condição de possibilidade da visão, sentido que, pelo seu maior desprendimento ao prazer, à dor e, portanto, ao jugo da vontade, se revela como análogo ao conhecimento intuitivo, no qual se processa a fruição estética. A partir dessas considerações, soa contraditório afirmar que, inspirado numa metafísica composta por tais interpretações simbólicas, Nietzsche possa elevar o estatuto da esfera sonora devido às suas raízes noturnas e, por extensão, obscuras. Todavia, algumas ideias estruturais de Schopenhauer, passíveis de aproximação por imagens vinculadas à obscuridade, são capazes de garantir significativa elevação do registro noturno. A identificação entre a noite e a vontade A noite possui características que a acercam de um dos principais conceitos desenvolvidos por Schopenhauer. Ao propiciar fusão entre as formas e, assim, gerar ambiente indissociado, ao menos para a percepção visual, a escuridão noturna poderia remeter à vontade. Esta, como nível basilar da metafísica schopenhaueriana, antecede as particularidades tanto das ideias universais, quanto dos múltiplos fenômenos que nos circundam (isto é, dos dois graus fundamentais de objetivação da vontade). Ao contrário Pessoa, Rosa, Freud:
da noite” (NIETZCHE, 2010, p. 106). Parece-nos que a suposta origem noturna do fenômeno sonoro aponta, justamente, para a supervalorização do âmbito acústicomusical na primeira fase da obra nietzschiana, prioritariamente fundamentada, como já mencionamos, no pensamento de Schopenhauer.
II Colóquio internacional
Assim nos mostra Jankélévitch que, no ensaio “Le Nocturne”, destaca, na Filosofia da Natureza romântica, a presença da noite como imagem da ansiada origem, para além das separações e disjunções típicas ao nosso restrito cotidiano (Cf. JANKÉLÉVITCH, 1988, p. 226-229). Tal presença também se confirma na cosmogonia poética do período: explica Albert Béguin que, de acordo com Novalis (1772-1801), autor dos célebres Hymnen an die Nacht (1800), a noite é “a mãe do Dia, a fonte dos seus esplendores: sem ela, o mundo da luz acabaria por se desfazer no espaço infinito. E foi a Noite quem enviou as criaturas ao mundo, para que o santifiquem pelo amor e ‘nele semeiem flores imperecíveis’.”. (BÉGUIN, 1937, p. 125).
da indistinção, de certo modo noturna, própria à natureza primordial da vontade, os fenômenos singulares e delimitados, regidos pelo “princípio de individuação”, evocam os objetos “claros e distintos” que costumam povoar o mundo diurno e luminoso. Embora não se encontre de maneira explícita no pensamento de Schopenhauer, a identificação entre o substrato original e a noite pode ser verificada no imaginário do século XIX, no qual florescem as intuições de Wagner e do primeiro Nietzsche.
Segundo o jovem Nietzsche, também é o obscuro noturno a instância primeira, que, identificando-se com o dionisíaco ou em maior proximidade com ele, ainda carrega a têmpera voraz e incompreensível da vontade. Em contraposição, o apolíneo associase à luminosidade e ao dia pela sua relação com as formas, mais apaziguadoras que o invisível e o amorfo noturno. Não custa recordar que tais associações já estão contidas na própria mitologia da qual essas duas categorias estéticas foram extraídas. Enquanto Apolo é a divindade olímpica que conduz a carruagem solar, o culto dionisíaco, que tantas vezes dá margem a expressões de irracionalidade, é preferentemente realizado nas horas noturnas.3 Revestindo esta simbologia de roupagem schopenhaueriana, sugere Nietzsche, em O nascimento da tragédia (1872), que, quando, numa tentativa enérgica de fitar de frente o Sol, nos desviamos ofuscados, surgem diante dos olhos, como uma espécie de remédio, manchas escuras: inversamente, as luminosas aparições dos heróis de 3 Na tragédia As bacantes, de Eurípedes, Penteu pergunta a Dionísio: “Celebras os ritos à noite ou de dia?”. O deus lhe responde: “A maioria à noite: as trevas são sagradas.” (EURÍPEDES, 1960, p. 53).
Espelho da noite: a valorização dionisíaco-noturna da música no jovem Nietzsche 122 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Sófocles, em suma, o apolíneo da máscara, são produtos necessários de um olhar no que há de mais íntimo e horroroso na natureza, como que manchas luminosas para curar a vista ferida pela noite medonha. (NIETZSCHE, 2001, p. 63).
Freud: II Colóquio internacional
Tomando a liberdade para criar as nossas próprias imagens, é como se o dionisíaco, raiz da experiência verdadeiramente estética, se fundasse nas profundezas obscuras da terra, a partir da qual surgirão posteriormente o tronco, os ramos e as folhas de um mundo plástico e apolíneo. Contudo, o interior da terra escura, longe de ser mudo, seria, nesta imagem, extremamente sonoro.
O dionisíaco, pré-visual e pré-representacional, é o “lugar” em que se manifesta, por excelência, o espírito da música. Em termos históricos, segundo a interpretação do jovem Nietzsche, é dionisíaco o coro ditirâmbico do qual brota e se desenvolve a arte trágica. Por este ponto, torna-se possível compreender, em certa medida, o porquê da mencionada associação, presente nos Fragmentos póstumos, entre a noite e a manifestação sonora. Logo após afirmar a origem noturna do som, Nietzsche apresenta, de maneira isolada, outra justificativa para tal afirmação. Segundo o filósofo, “o mundo da aparência mantém firme a individuação”, enquanto “o mundo do som entrelaça umas coisas nas outras”, o que o faz, portanto, “mais afim à vontade” (NIETZSCHE, 2010, p. 106). Vejamos o que isto significa. Por um lado, o mundo visual em que cada objeto ocupa um espaço circunscrito (e combate por esse espaço, de acordo com o pensamento de Schopenhauer) alude, como já adiantamos, ao nível dos fenômenos particulares. Por outro, a “lógica” musical, permitindo a simultaneidade de notas, vozes e linhas melódicas (na construção de acordes e na escrita contrapontística), evoca a coisa em si schopenhaueriana, na coesão e na unidade do que preexiste às divisões. Além disso, o entrelaçamento musical de “umas coisas nas outras” poderia remeter à própria dinâmica da audição, que implica certa fusão (elemento dionisíaco) entre o receptor e o evento sonoro, ao contrário de um modelo visual predominante, idealmente concebido a partir da separação entre o contemplador e o objeto. Nietzsche, Pessoa, Rosa,
Clovis Salgado Gontijo Oliveira 123
No entanto, uma justificativa mais relevante sustenta a afirmação em questão. Se a imagem noturna é capaz de sugerir o conceito de vontade, afirmar que “o som procede da noite” implica que o som também procede (de modo direto) da vontade. Este aspecto sintetiza a hipótese central de toda a metafísica da música schopenhaueriana, que Nietzsche de início acolhe. À diferença das demais artes, a arte sonora manifesta, segundo o capítulo 52 do livro III de O mundo como vontade e representação, particular independência em relação ao plano dos fenômenos. Assim, se a autêntica produção artística se constrói como representação de ideias arquetípicas, quando se trata da produção musical, a representação não se basearia em quaisquer modelos determinados, mas sim em algo que “pela sua natureza nunca pode constituir o objeto de uma representação” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 270). Em outros termos, a música se definiria “como cópia de um modelo que nunca pode, ele mesmo, ser representado diretamente” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 270), ou seja, como uma espécie de “representação” do irrepresentável.
Neste espelho em que se reflete, “através dos sons, com verdade e precisão, o ser, a essência do mundo, em uma palavra, o que concebemos pelo conceito de vontade” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 278), reproduz-se a irrepresentabilidade e o caráter noturno do modelo. A música – voltada não à exterioridade, mas sim à interioridade dos fenômenos – não corresponde a cenas, paisagens ou imagens únicas e precisas. Quando isto ocorre, como no caso das composições descritivas, a arte sonora parece se fazer diurna em artificiosas “pinturas” do mundo fenomênico. É importante acrescentar que, não só para Schopenhauer (Cf. SCHOPENHAUER, 2001, p. 277), quanto para o jovem Nietzsche (Cf. O nascimento da tragédia, § 17), esta seria uma das formas de corrupção da legítima vocação musical. E, devido à anterioridade ontológica Espelho da noite: a valorização dionisíaco-noturna da música no jovem Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Nietzsche 124
E não é também a noite, período do dia que obscurece os contornos e as cores, motivo irrepresentável ou ao menos paradoxal para um modelo artístico baseado na mimese, no ideal de clareza e na visibilidade? Neste sentido, ao nos dar “aquilo que precede toda forma” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 277), a música se revela, teórica e auditivamente, como “espelho da noite”.
da música sobre os conceitos abstratos, nada mais que representações linguísticas de pretensão universal construídas a posteriori a partir da intuição dos fenômenos, ambos os autores também veem a arte sonora se corromper quando um compositor ou determinada poética tenta “acomodá-la” ou, até mesmo, submetê-la a um texto verbal.4
A poesia do lírico não pode exprimir nada que já não se encontre, com a mais prodigiosa generalidade e onivalidade, na música que o obrigou ao discurso imagístico. Justamente por isso é impossível, com a linguagem, alcançar por completo o simbolismo universal da música, porque ela se refere simbolicamente à contradição e à dor primordiais no coração do Uno-primigênio, simbolizando em consequência uma esfera que está acima e antes de toda aparência. Diante dela, toda aparência é antes meramente símile: daí porque a linguagem, como órgão e símbolo das 4 Afirma Schopenhauer, ainda no capítulo 52 de O mundo como vontade e representação, que “as palavras do canto e do libretto da ópera não devem nunca esquecer sua subordinação, apoderando-se do primeiro plano, o que transformaria a música em simples meio de expressão: isso seria uma enorme tolice e um absurdo”. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 275).
Clovis Salgado Gontijo Oliveira 125Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Vale lembrar que a condenação a este segundo modo de corrupção a que a música se encontra sujeita se preservará ao longo da obra de Nietzsche, ainda após a sua ruptura com o pensamento schopenhaueriano (Cf. DIAS, 1994, p. 115).
Contudo, nesse primeiro momento influenciado pelo “pessimismo romântico”, o jovem doutor em Filologia conta com outros motivos para defender a primazia da música sobre a palavra. A primeira teria no seu íntimo algo de inefável (unaussprechlich Innige) (SCHOPENHAUER, 1968, p. 368), consideração que, feita por Schopenhauer, é absorvida pelo primeiro Nietzsche. Remetendo à estética de Jankélévitch, particularmente ao seu texto La Musique et l’ineffable, compreendemos que a inefabilidade de uma obra musical não se deve à simples impossibilidade de exprimi-la. Uma composição é inefável na medida em que evoca multiplicidade de sugestões, em que “expressa infinitamente” (Cf. JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 93). Tal aspecto não é esquecido pelo autor de O nascimento da tragédia, que, no capítulo 6 desta obra, explica a constituição da canção estrófica, na qual uma mesma melodia é capaz de engendrar e abarcar diversos textos, justamente pelo potencial inesgotável (e pré-linguístico) da música. E este se liga à natureza imperscrutável e inexprimível do que se situa mais próximo do substrato do mundo:
A noite e a potencialização da audição No entanto, ao lado dessas inferências de teor metafísico, um motivo infinitamente mais simples, fundado no funcionamento da percepção sensível no período noturno, possibilita a ligação entre a música e a noite. Como explica Nietzsche, já na sua segunda fase, mais especificamente no parágrafo 250 de Aurora (1881), o ouvido, o órgão do medo, pôde desenvolver-se tanto como se desenvolveu apenas na noite e na penumbra de cavernas e bosques sombrios, consoante o modo de viver da época do medo, isto é, a mais longa época da humanidade: no claro, o ouvido não é tão necessário. Daí o caráter da música, uma arte da noite e da penumbra. (NIETZSCHE, 2004, p. 171). Se, no período de “niilismo musical”, a noite é desvalorizada por aguçar um sentido menos “civilizado” e uma arte que, incapaz de gerar postura lúcida e ativa no receptor, se caracteriza pelo baixo grau de clareza e inteligibilidade, na fase guiada pelo “pessimismo romântico”, ela poderia ser glorificada justamente pela sua íntima relação com a escuta e com a arte dos sons.
aparências, nunca e em parte nenhuma é capaz de volver para fora o imo da música, mas permanece sempre, tão logo se põe a imitá-la, apenas em contato externo com ela, enquanto o sentido mais profundo da música não pode, mesmo com a maior eloquência lírica, ser aproximado de nós um passo sequer. (NIETZSCHE, 2001, p. 51).
5 “Abwärts wend ich mich zu der heiligen, unaussprechlichen, geheimnisvollen Nacht.” (“Afasto-me em direção à santa, à inefável, à toda misteriosa Noite”). (NOVALIS, 1988, p. 10).
Espelho da noite: a valorização dionisíaco-noturna da música no jovem Nietzsche 126 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
É curioso notar que, nesta citação, a música partilha algo da concepção romântica da noite, seja pela sua ligação com a realidade primordial, seja pela sua fecundidade (própria ao que, na sua indistinção, é capaz de gestar ou já conter uma miríade de possibilidades), seja pela sua essência insondável para o logos. Afinal, como descreve Novalis, a noite também é inefável (unaussprechlich)5
Seria legítimo aventar que, quanto a este ponto em específico, a metafísica do belo schopenhaueriana forneceria, ainda que indiretamente, uma segunda justificativa para o louvor à noite: a hegemonia da música na escala das expressões artísticas poderia conduzir à hegemonia do sentido pelo qual a apreendemos.
Esta inferência – embora não corresponda à perspectiva de O mundo como vontade e representação, na qual, como mencionamos de passagem, é a visão, na sua com o conhecimento intuitivo, o sentido hegemônico e luminoso – parece permear a primeira fase de Nietzsche. Para ele, já o dissemos, o elemento primordial e essencial da tragédia se encontra no polo dionisíaco, que, vinculado a expressões sonoro-musicais, chega a reduzir a força da visão em quem dele se aproxima. E tal redução, longe de ser condenada, revela-se como algo até mesmo desejável no âmbito da contemplação (e da produção) da arte trágica. É o que nos mostra o filósofo, ao abordar a complementariedade das categorias do apolíneo e do dionisíaco, na seguinte passagem de O nascimento da tragédia:
correspondência
Quem não tenha vivenciado isso, ou seja, ter de olhar e ao mesmo tempo ir além do olhar, dificilmente imaginará quão nítidos e claros subsistem, lado a lado, esses dois processos e são, lado a lado, sentidos na consideração do mito trágico: ao passo que os espectadores verdadeiramente estéticos hão de me confirmar que, entre os efeitos peculiares da tragédia, o que há de mais notável é essa co-presença. Basta transferir esse fenômeno, do espectador estético a um processo análogo no artista trágico, e ter-se-á entendido a gênese do mito trágico. Ele compartilha com a esfera da arte apolínea o inteiro prazer na aparência e na visão e simultaneamente nega tal prazer e sente um prazer ainda mais alto no aniquilamento do mundo da aparência visível. (NIETZSCHE, 2001, p. 139-140). Um exemplo da noite musical romântica Talvez com o propósito de refazer a gênese da tragédia e gerar no receptor essa máxima comoção, Richard Wagner – o artista com quem o jovem Nietzsche compartilha e discute as suas principais ideias – busca efetuar, no seu drama musical, uma espécie de “despotencialização da visão” (WAGNER, 2010, p. 28) e de toda Clovis Salgado Gontijo Oliveira 127Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
A noite que nos insere numa dimensão mais íntima da realidade e no “por detrás” da imagem6 também foi transmutada em obra de arte por Wagner, numa das principais evocações do ambiente noturno pela história da música. Trata-se da segunda cena do segundo ato de Tristão e Isolda, ópera classificada em Wagner em Bayreuth (1876) como “o verdadeiro opus metaphysicum de toda arte” (NIETZSCHE, 1999, p. 6 Defende Wagner que, ao contrário do artista mediano que nos apresenta apenas imagens diurnas e superficiais, iluminadas frontalmente, Beethoven seria capaz de iluminar, com a sua obra, o que há por detrás de uma imagem por ele mesmo “colocada no silêncio da noite”, aproximando-nos, assim, de um mundo inédito, essencial e maravilhoso. (Cf. WAGNER, 2010, p. 45). da noite: a valorização Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio
uma percepção exteriorizada do mundo. Sugestivamente, o compositor observa este processo na natureza, em particular no período noturno, que, ao nos deslocar da costumeira predominância visual, propicia mais intenso contato com as manifestações sonoras e com a essencialidade dos fenômenos. É o que constatamos neste relato de indelével experiência noturna registrado no ensaio Beethoven, do qual Wagner extrai significativas conclusões de ressonâncias estéticas e metafísicas:
Espelho
Uma vez, em uma noite de insônia, fui à varanda de minha janela que dava para o grande canal de Veneza. (...) De repente, do silêncio mais completo elevou-se potente e rude o lamento de um gondoleiro que acabara de despertar em sua embarcação. Em breves intervalos, ao longo da noite, ele repetiu o seu lamento, até que, do mais distante, um grito semelhante respondeu através do canal, no escuro (...). Depois de pausas solenes, o diálogo sonoro foi enfim se intensificando e pareceu fundir-se em um som único, até que, tanto de perto quanto de longe, o som foi se extinguindo suavemente como no sono. O que poderia me dizer uma Veneza diurna, iluminada pelo sol, atravessada por coloridos diversos, que aquele sonho musical noturno não pudesse trazer à minha consciência de modo imediato e infinitamente mais profundo? (...) Assim a criança acorda no meio da noite, e com um grito de angústia, no colo da mãe, a carícia materna é como uma resposta que lhe traz calma; assim o jovem nostálgico compreende o canto sedutor do pássaro da floresta, assim fala o lamento dos animais, o lamento do ar, o furioso bramido do furacão ao homem meditativo. E este, tomado então pelo estado onírico, percebe por meio do ouvido que, diferentemente da visão que o manteve na ilusão das coisas dispersas, sua essência íntima e a essência íntima de tudo o que é percebido se tornam uma e que somente nessa percepção também a essência das coisas fora dele pode realmente ser conhecida. (WAGNER, 2010, p. 26-28).
dionisíaco-noturna da música no jovem Nietzsche 128
internacional
102) e que Nietzsche seguirá estimando, ainda após toda a decepção com o seu autor, como “a obra capital, sem equivalente na música ou em qualquer outra arte”.7
7 NIETZSCHE, Friedrich. Carta a Carl Fuchs de 27/12/1888, apud LIÉBERT, 2010, p. 261.
Clovis Salgado Gontijo Oliveira 129Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Na sua mescla entre o sensualismo importado das albas medievais e o êxtase místico, na “sua aspiração muito doce e insaciável aos mistérios da noite e da morte” (NIETZSCHE, 2009, p. 102) que conduzem à unidade cósmica para além dos nomes individuais e das separações visuais, na sua atmosfera lírica e brumosa, na diluição das imagens que favorece a entrada no “maravilhoso reino da noite” (WAGNER, 2011, p. 48) e da música, a cena noturna composta por Wagner poderia servir como uma espécie de emblema do romantismo alemão e do “expressionismo noturno” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 65). Expressão utilizada por Jankélévitch, que aparentemente se choca com a compreensão, encontrada em O nascimento da tragédia, do drama wagneriano como ápice de um “poderoso curso solar” (NIETZSCHE, 2001, p. 118) que parte de J. S. Bach e passa por Beethoven. É provável que a evocação ao Sol se refira, mais que ao estilo do compositor de Bayreuth, tão distante do estilo e dos estilos bachianos, à crença do filósofo, logo abalada, na inigualável supremacia da música germânica. Voltando à poética exemplificada pelo segundo ato de Tristão, nela a ligação ontológica entre a noite e o universo sonoro se reforça. Sob o ponto de vista da expressividade, tal poética serve como via para a comunicação de ânsias existenciais, estados conflituosos, voluptuosos ou arrebatados (o appassionato romântico), muitas vezes suscitados na alma humana pelas horas noturnas. Já sob o ponto de vista melódico e harmônico, a poética em questão amplia a obscuridade inerente à música no momento em que, multiplicando os cromatismos, modulando para tons cada vez mais distantes e retardando as resoluções, intensifica, para o ouvinte, a diluição de focos tonais precisos, tendendo, assim, a um ambiente sonoro de indeterminação.8
8 Alguns destes procedimentos já se verificavam em composições noturnas do romantismo inicial, como nos noturnos para piano de John Field e de Frédéric Chopin ou em algumas das Nachtstücke de Schumann. Basta recordar o Noturno Op. 27, nº 1, de Chopin, que, embora explore uma faceta mais intimista e meditativa da experiência noturna, antecipa e talvez até mesmo ultrapasse, assim observa Thomas Mann, a indefinição tonal wagneriana, por meio do ousado emprego, já nos seus primeiros compassos, de transições enarmônicas (Cf. MANN, p. 201-202).
Conclusão No primeiro momento da sua produção filosófica, Nietzsche incensará justamente essa música que, por duas principais vias, se torna “espelho da noite”: por um lado, pela particular interpretação da metafísica schopenhaueriana, capaz de aproximar a arte sonora (e também a noite) à vontade e de elevar o sentido dionisíaco da audição; por outro, pelo romantismo tardio wagneriano, sensível ao noturno como fonte de inspiração, ambiente, motivo e ideal musical. Contudo, apesar do pedido dos amantes Tristão e Isolda para “que a noite dure eternamente” (WAGNER, 2011, p. 53), em meados da década de 1870 desponta, na obra nietzschiana, a aurora de um novo momento de tonalidade iluminista, no qual, segundo as palavras de uma ária de Händel, “a verdade dissolve o encanto da Fantasia e a Razão ascendente põe a correr as fumaças que a mente envolviam, restaurando o dia do intelecto.”9 Referências BÉGUIN, Albert. L’Âme romantique et le rêve: essai sur le romantisme allemand et la poésie française. Marselha: Cahiers du Sud, 1937. v. 2. DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e a música. Rio de Janeiro: Imago, 1994. 155p. EURÍPEDES. Tragedias: Las Bacantes, Hécuba. Edição revista e traduzida por Antonio Tovar. Barcelona: Alma Mater, 1960. 166p. (Hispánica de autores griegos y latinos; 2).
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NIETZSCHE, Friedrich. O caso Wagner: um problema para músicos; Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 117p.
Clovis
Gontijo
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. NIETZSCHE,177p. Friedrich. Wagner em Bayreuth: quarta consideração extemporânea. Introdução, tradução e notas de Anna Hartmann Cavalcanti. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. (Coleção Estéticas) NOVALIS. Hymns to the night. Ed. bilíngue inglês/alemão. Tradução de Dick Higgins. 3. ed. Kingston: McPherson, 1988. 55p.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação Tradução de M. F. Sá Correia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. 431p.
Olímpio Pimenta
Ora, a concepção perspectivista do pensamento bem como a concepção de uma poética e de uma poesia heteronímicas parecem-nos aptas para o dessas questões, dando ensejo a uma recuperação daquilo que foi deixado de lado no momento da nomeação das coisas. As palavras e seus referentes habituais retomam sua dimensão dinâmica quando inscritos na ordem do perspectivismo e da heteronímia, o que permite desdobramentos teóricos e estéticos bastante interessantes. A par do fascínio produzido pelas escritas cheias de vida que consubstanciam os dois programas, gostaríamos de explorar a seguir algo dos desdobramentos sugeridos, no sentido de explicitar suas conexões com a intuição do devir soberano presente em Heráclito.
Notas sobre perspectivismo e heteronímia
Captar as singularidades presentes na enunciação de qualquer discurso é um dos desafios mais difíceis para quem pretende lidar com a verdade. Elusivos, fortuitos, os ditos se entrelaçam aos feitos e à constelação de afetos sempre cambiantes que nos habitam, instando quem quer que aspire à fixação de referências a impor, ao fluxo dos discursos e dos afetos, recortes inevitavelmente arbitrários. Decerto tais recortes tranquilizam o ânimo, permitindo, por exemplo, a comunicação entre as pessoas, embora seu custo seja, justamente, o sacrifício do que há de irredutível às cifras da identidade, sempre deixado de fora do balanço final da exposição.
enfrentamento
Retomemos o problema em seus termos originais. Em que pese a simplificação, é cabível afirmar que o antagonismo entre o mobilismo heracliteano e a ontologia eleata decorre da incomensurabilidade entre os pontos nucleares de suas respectivas visões da realidade. Enquanto para Parmênides e seus seguidores a homologia perfeita entre ser e pensar define a identidade como princípio necessário, tanto das coisas quanto de sua correta apreensão por nós, os fragmentos de Heráclito (COSTA, 2202) parecem apresentar a diferença e a 133
pluralidade como condição ainda mais primitiva daquilo que existe. A pergunta pelo que é a realidade recebe, assim, duas chances de encaminhamento envolvidas em um conflito insuperável. A alternativa absoluta entre ser e não-ser exigida pela primeira é definitivamente incompatível com a concepção do fluxo eterno no coração do mundo preconizado pela segunda. Não vem ao caso, agora, rever qualquer dos mil capítulos da história da filosofia escritos na esteira desta primeira determinação da questão. Mais interessa, em vista do objetivo firmado, restituir em esquema o cerne das objeções filosóficas à posição mobilista, o que permitirá os primeiros vislumbres de como Nietzsche e Pessoa podem ser convocados como aliados na tarefa de tornar tal posição consequente e produtiva. Como se sabe, ninguém menos que Platão (2001) responde pela formulação do problema. A contestação é direta: se se acredita que tudo muda, como enunciá-lo sem cair em contradição? Afinal, se a tese é válida, ela própria deveria estar sujeita à mudança que sustenta, refutando a si mesma. Assim, enquanto tese filosófica, a defesa do devir resultaria indefensável. Mas, e se a filosofia, bem como outros discursos, incluindo-se aí, em lugar de honra, a poesia -, não estiver sujeita, de antemão, à regência da identidade? Vale dizer: e se a identidade de algo consigo mesmo, ou as identidades em geral, forem ficções impostas ao fluxo por meio de um gesto que nada tem de fundador? Enquanto parte integrante do fluxo, não é plausível que nos definamos como espectadores privilegiados, cuja consciência funcionaria como um espelho imóvel daquilo que, para além das aparências, fosse idêntico a si mesmo. Logo, ao dizermos que algo é idêntico a si mesmo, não estaríamos revelando qualquer essência oculta, mas apenas gravando no fluxo uma marca, que nos servirá de orientação, mas que nada tem de permanente em termos metafísicos.
Notas sobre perspectivismo e heteronímia 134 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Com isso, a própria enunciação do mobilismo é convertida, de tese filosófica, em simples constatação experimental. Considerando o mundo com a mente aberta, até aqui não aconteceu de podermos reconhecer, na experiência da espécie ao longo do tempo, a formulação defensável de qualquer cifra universal de inteligibilidade.
Ao propormos esta prova teórica, no entanto, avançamos pouco em termos práticos. Sempre que nos manifestamos, seguimos empregando a sintaxe do idioma, que pressupõe que toda ação tem como causa um agente, que todo predicado é dito de um sujeito, que pronomes remetem a substâncias, e assim por diante. Seguimos, em suma, reféns de nossa criação, iludidos pensando haver a chance de uma relação direta com as coisas mesmas, cuja organização intrínseca seria a matriz de onde derivam as regras que presidem o reto uso da linguagem.
sob o lema “ Sê plural como o universo!” (PESSOA, 1986, p. 81) que o primeiro reflete sobre o processo de ativação da heteronímia. Uma vez que a feição sensível do todo é a pluralidade, o procedimento mais idôneo ao alcance do vivente é partir do reconhecimento disso em si mesmo, ao invés de insistir na crença Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: Colóquio
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Entretanto, por uma questão de retidão intelectual, tipos excepcionais como os dois autores em foco terminam por explorar diferentemente a circunstância de vivermos em um mundo plural. Não lhes satisfaz admitir as ficções consagradas, lutando pela configuração de uma personalidade fixa, em nome da qual emitiriam proferimentos definitivos sobre isso e aquilo. À ideia de um sujeito uno e imutável, que responderia pelos compromissos assumidos na criação artística e filosófica, se contrapõe a noção do jogo entre impulsos, em cujo seio ocorrem as metamorfoses geradoras da variedade de estilos e caracteres, que ambos dominam como poucos.
Bem entendido: seguimos produzindo, como é do nosso feitio, interpretações que dão sentido aos eventos vividos, mas nada autoriza a reivindicar para elas o caráter de verdade eterna ou coisa que o valha. A situação toda se inverte. Problemática não é a constatação do fluxo, mas a defesa da tese contrária, de que o ser é aquilo que é.
Se o valor do que se escreve tem a ver com o arranjo que se dá aos signos, não basta a alguém declarar que o mundo está em devir para se alinhar coerentemente ao mobilismo, mas cumpre que suas práticas discursivas se transformem para que fique à altura do que pretende. O jogo jogado não define as próprias regras, mas só ele muda os jogadores e o espaço em que estão. E que jogadores esplêndidos são Pessoa e Nietzsche!É
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“Sinto-me múltiplo”, assim Pessoa introduz a descrição de seu dispositivo, equiparando o que vai em seu interior ao que percebe e pensa a respeito da chamada realidade objetiva:
Portanto, embora Pessoa advirta o leitor de que “A confecção de [suas obras] não manifesta um qualquer estado de opinião metafísica” (PESSOA, 1986, p. 84), a vitalidade de sua criação implica a recusa do tudo ou nada parmenídico. Não resultaria coerente que o dispositivo heteronímico fosse considerado apenas um movimento de superfície, executado a partir de dados fundamentais que não variam. O choque entre o temperamento e as ideias do mestre Alberto Caeiro e de seu discípulo Álvaro de Campos exemplifica o ponto à perfeição. Não são tipos distintos, derivados de uma
apaziguadora de que, no fundo, as aparências não são mais do que os véus que cobrem uma ordem permanente e estável.
Decerto as intensidades variam, e não se discute que Pessoa é daqueles “um em dez mil”1 (COSTA, 2002, p. 207) de que fala Heráclito. Mas o vivente sabe por experiência que só o que se imobiliza à força permanece idêntico em meio à eterna mudança.
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Trata-se do fragmento LXI, que se lê assim: "Um, dez mil, se for o melhor"
Assim, é o morto, o que foi despachado ao nada, que oferece o modelo para o homem de caráter inflexível, que sempre age e reage da mesma maneira, não importando que ele e o rio nunca sejam os mesmos. Somente a ele convém a verdade forjada pela tradição da metafísica dualista, que promete a segurança da repetição do modelo em suas cópias em detrimento da aventura da invenção. Morbidez contra vitalidade, eis a tradução, em termos afetivos, dessa polaridade decisiva.
Notas sobre perspectivismo e heteronímia 136 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
A cada personalidade mais demorada, que o autor destes livros conseguiu viver dentro de si, ele deu uma índole expressiva, e fez dessa personalidade um autor, com um livro, ou livros, com as ideias, as emoções e a arte dos quais, ele o autor real (ou, porventura, aparente, porque não sabemos o que seja a realidade), nada tem, salvo o ter sido, no escrevê-las, o médium de figuras que ele próprio criou. (PESSOA, 1986, p. 82). Não sabemos o que seja a realidade, mas temos em nós sua multiplicidade.
“Aparência é, para mim, aquilo mesmo que atua e vive”4 (NIETZSCHE, 2001, p. 92), pois é próprio da existência um caráter perspectivo, uma vez que “não
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humanidade essencialmente comum, mas entes realmente diferentes, pouco importando se de carne ou papel, que só existem a partir da tensão recíproca vigente entre eles. O conflito, enquanto relação constitucional do que há, tem neles instâncias reais, efetivas. Por mais que não coincidam quanto a ofício, temperamento e estilo, compartilham em profundidade a intuição da impermanência. Se o primeiro escreve “Sinto-me nascido a cada momento/Para a eterna novidade do mundo”2 (PESSOA, 1960, p. 139), o outro repercute percepção semelhante, em versos célebres “Não sou nada/Nunca serei nada/ Não posso querer ser nada/À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”3 (PESSOA, 1960, p. 323). Vale notar que a coexistência entre os heterônimos pode iluminar outro aspecto controverso da recepção dos pensamentos de Heráclito. A expectativa a favor de uma composição dos conflitos em uma ordem superior de sentido é interditada pela irredutibilidade dos vários escritores a uma única fonte. Ainda aqui, é improcedente pensar que o segredo dos heterônimos se encontra na alma de Fernando Pessoa, centro oculto da poesia de todos eles. No máximo, o corpo deste indivíduo pode ser considerado o abrigo provisório em que eles se alojaram e de que se serviram, antes de seu registro em papel e tinta na obra. Se isto é certo, o corpo e a obra de Pessoa são os lugares onde a pluralidade que gera os heterônimos pôde se desenrolar, conferindo a eles existência, mas não o lugar de onde eles partiram e para onde devem voltar, numa síntese que os resolve de uma vez por todas. Se uma analogia é pertinente, não é que o mundo seja uma ideia que se resolve na mente de deus, mas é que deus seja uma figura no desenvolvimento dos conflitos que formam o mundo. Não coaduna com um pensamento que deseja estar à altura do movimento e da mudança, como o que cabe à poética da heteronímia, admitir que o jogo das diferenças em que o mundo consiste precise de ser algo além das aparências.
Trata-se de "O guardador de rebanhos", II.
3 São os versos que abrem "A tabacaria".
4 A afirmação está no aforismo 54, intitulado "Consciência da aparência".
Olímpio Pimenta 137Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Em função da mediação exercida por nosso aparato cognitivo, animado por nossas urgências vitais, o acesso direto a qualquer realidade última nos é vedado. Não obstante, segue sendo verdadeiro, ao menos para nós, que pau é pau e pedra é pedra, por todo o tempo em que isso funcionar a nosso favor. Não se trata de contestar a cognição, mas o ideal de episteme, a noção de verdade definitiva.
podemos enxergar além da nossa esquina”5 (NIETZSCHE, 2001, p. 278), assim falou Nietzsche a respeito das questões que nos ocupam nesta reflexão. Comprometido com o par conceitual essência/aparência em seu primeiro livro, o filósofo percebe depois que o propósito de afirmar a existência, leitmotiv constante de seu pensamento, demandava um ajuste diferente. É na meditação sobre Heráclito que ele encontra o encaminhamento correto: a recusa do dualismo ontológico, em cujo lugar entra a pluralidade efetiva do mundo vivido. Diante disso, porém, manifesta-se uma dificuldade semelhante àquela rebatida junto a Platão. O que autoriza ou fundamenta a afirmação do perspectivismo, senão mais uma perspectiva? Como se poderia, a partir de um ponto de vista dado, ajuizar sobre todos os pontos de vista? Ou ainda: como uma interpretação do mundo, parcial por definição, pode pretender abarcar o todo? Em sentido costumeiro, a confirmação da verdade de um discurso depende da aferição da correspondência entre seu conteúdo e aquilo que ele denota. Sendo assim, a enunciação da verdade sobre o todo dependeria de um olhar totalizante, incondicional, não perspectivo, o que contradiria a alegação de onde se partiu. Uma retomada dos pressupostos da discussão pode desfazer o embrulho. Se se entende a verdade como adequação entre discurso e mundo, de fato não cabe recurso. Diversamente, se se entende a verdade como um acordo, não entre as palavras e as coisas, mas entre os participantes de uma forma de vida comunitária, a respeito das designações válidas para as coisas, a situação muda. Verdade e erro dizem respeito a nossa apropriação do entorno, e não ao que quer que sejam os objetos que povoam este entorno. Mesmo que exista, a essência desses objetos se encontra para sempre alheia às nossas chances de demonstração. A distinção é sutil, mas faz toda a diferença.
Notas sobre perspectivismo e heteronímia 138 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
5 A afirmação está no aforismo 374, intitulado "Nosso novo 'infinito' ".
Reconhecido o caráter antropomórfico e ficcional do conhecimento, o mais honesto a fazer é reduzir os danos disso em nossos empreendimentos que envolvem a cognição. Nessa direção, Nietzsche obtém bons resultados ao promover um desencantamento da linguagem, denunciando o fetichismo vigente em seus usos corriqueiros, conforme sugerido anteriormente. Se o que chamamos de mundo é resultado de nossa apropriação, algo que se torna mundo ao ser moldado segundo nossa imagem, importa multiplicar ao máximo as formas dessa imagem, estimulando a produção de sensibilidades variadas, o que trará consigo novas perspectivas, e daí novos mundos. Onde o poeta português encontra ocasião para a proliferação de estilos e personalidades, o filósofo alemão cria tipos e personagens conceituais. Em última análise, um heterônimo equivale a uma perspectiva complexa.
Olímpio Pimenta 139Nietzsche,
O efeito mais benéfico disso tudo já, se adivinha, é a liberação do vivente para a experimentação existencial. Talvez a maioria se ressinta com o presente recebido e siga preferindo um punhado de certezas a uma carroça cheia de possibilidades. Mas o melhor em nós pode acabar prevalecendo, o que nos tornará livres, outra vez livres para perspectivar os acontecimentos do mundo e os afetos em nós sem a expectativa obsedante de cunhá-los com a feia efígie da segurança a qualquer custo, filha do medo e mãe da verdade absoluta.
Mas não nos enganemos em um ponto crucial. Grandes responsabilidades precisam de ser cultivadas sob os horizontes convergentes da heteronímia e do perspectivismo, sob pena de sucumbirmos como coletividade. Na ausência de uma versão acabada sobre quem somos e sobre o que é o mundo, o risco de desmantelamento da civilização passa a nos rondar. Por que deveríamos participar de projetos comuns, ou mesmo respeitar acordos interpessoais mínimos, se nenhuma perspectiva é capaz de se autorizar cognitiva e axiologicamente em relação às demais? Se falamos em nome da verdadeira verdade ou da realidade mais real, talvez aceitem o que dizemos; o caso é que, nos termos da exposição precedente, sempre falamos em nome de arranjos pulsionais contingentes, a favor de certas convenções e contra outras tantas, sem que Pessoa, Rosa, Freud:
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se veja a base em que estaríamos apoiados. O enfraquecimento da capacidade de acreditarmos no que quer que seja tenderia a provocar uma desvalorização generalizada de todos os valores, ambiente natal do niilismo. Diante de um perigo tão grave, uma mudança de atitude se impõe. À revelia de garantias fundacionais, devemos contar com o que nos é mais próximo: esta vida, as histórias em meio às quais ela se desenvolve, o jogo de afetos que a colore e dota de interesse. O socorro dos dois casos exemplares em pauta é mais que bemvindo uma última vez. Se não amassem tanto a vida, é muito improvável que os dois pensadores tivessem gostado de lhe retribuir os dons com suas respectivas criações. Ao se experimentarem múltiplos e prolíficos, honraram a existência, mostrando na prática como se pode aprovar o mundo sem a necessidade de aderirmos a qualquer ponto fixo fora dele. Referências COSTA, Alexandre (Org.: tradução, apresentação e comentários). Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. PESSOA, Fernando. Obras em prosa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1986. PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro, Ed. José Aguilar, 1960. PLATÃO. Teeteto. Belém: Ed UFPA, 2001.
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RIBEIRO, Nuno Filipe. Heteronímia e perspectivismo-espaço literário e multiplicidade de estilos nos pensamentos de Nietzsche e Pessoa. Cadernos Nietzsche. São Paulo, número 26, p. 155-176, 2010.
Não, nossa ciência não é uma ilusão. Mas seria uma ilusão crer que nós poderíamos receber d´alhures isso que ela não pode nos dar. (FREUD, [1927]/1994, p. 197).
A aversão de Freud pela metafísica e pelo discurso religioso, fundada na raiz comum de sua desconfiança com relação aos saberes fechados sobre si próprios e refratários ao regime de prova que funda a “empiria” própria ao discurso científico, aqui se traduz numa reafirmação da vocação científica da psicanálise sujeita, contudo, a uma nuance, qual seja, uma propriedade específica do “Deus Logos”: precisamente a de ser, parafraseando uma expressão de Lacan, um deus “não-todo” poderoso. Os limites da filiação de Freud a uma versão comteana da ciência – essa que, como observa Georges Minois, engendra, no âmbito do “catecismo positivista”, o advento do estado positivo de substituição do poder religioso pelas verdades científicas (MINOIS, 2005, p. 70) – aqui se deixam apreender. A incompletude que caracteriza o movimento próprio da ciência em sua vocação de apreender a “realidade do mundo” (FREUD, [1927]/1994, p. 196) a 141
Experiência estética e liberdade em Freud e Nietzsche Guilherme Massara Rocha Deixo que o inevitável dance, ao meu redor, a dança das espadas de todos os momentos, E deveria rir, se me restasse o riso, das tormentas que pouparam as furnas da minha alma, dos desastres que erraram o alvo do meu corpo... (GUIMARÃES ROSA, [1936]/1997, p. 146)
A educação liberada das pressões de doutrinas religiosas não mudará talvez grande coisa com relação à essência psicológica do homem, nosso Deus Logos não é talvez tão verdadeiramente todopoderoso, possivelmente ele não poderá realizar senão uma pequena parte daquilo que seus predecessores prometeram. (FREUD, [1927]/1994, p. 196).
partir da experiência consiste, aos olhos de Freud, em um de seus valores fundamentais, e não em signo de seu demérito. A transitoriedade que cinge os valores de verdade das proposições científicas indica a impossibilidade de uma weltanschauung fundada na ciência e apta, portanto, a empreender novas aproximações de seus objetos que são, em última instância, algo refratários a elucidações definitivas. “A dúvida é inseparável da pesquisa”, diria Freud a Stefan Zweig, “e não se pode encontrar senão uma pequena parcela da verdade.” (FREUD; ZWEIG, [1937]/1995, p. 114).
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Experiência estética e liberdade em Freud e Nietzsche 142
Freud dissera ainda que, ao receber em seu consultório um novo paciente, seria necessário que o analista perdesse de vista o caráter obsedante das categorias diagnósticas e dos conceitos para não deixar escapar a contingência do material discursivo que ali seria produzido. O analista, diz Freud em Recomendações aos que exercem a psicanálise, “deve simplesmente escutar e não se preocupar se está se lembrando de alguma coisa” (FREUD, [1912]/1987, p. 150). Assim como no plano teórico, a prática da escuta analítica também pressupõe a aptidão em sustentar uma regulação da potência de afirmação do conceito, sem o qual a experiência corre o risco de estabelecer com esse uma perigosa identidade. Os casos clínicos, sobre os quais Freud se debruçou com tenacidade e rigor notáveis, assim o confirmam. A extensão dispensada ao relato e à discussão de alguns deles, aliada ao grau de sofisticação retórica na descrição cirúrgica dos pormenores do tratamento, ou ainda a laboriosa e lúcida formulação e articulação das teses com as quais Freud confere tratamento epistêmico ao material recolhido do discurso dos analisantes, tudo isso encontrou em sua obra uma envergadura jamais repetida sequer pelos mais célebres de seus sucessores. O que não deixa de ser interessante, contudo, é notar como a episteme freudiana, fundada decididamente no grau de coerência lógica de suas proposições, confunde-se, em grande medida, com um domínio artesanal da prática de argumentação. Ou seja, em que medida episteme e ars poética coexistem na doutrina metapsicológica. Em O poeta e o fantasiar (1908), Freud diria que “a verdadeira ars poetica consiste na técnica de superar esse nosso sentimento de repulsa, sem dúvida ligado às barreiras que separam cada eu dos demais” (FREUD, [1908]/1987, p. 158). Aqui certamente ele indica que Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio
Rodrigo Duarte é quem põe em perspectiva a possibilidade de uma abordagem da sublimação que se faça atenta para uma distinção entre seu valor clínico e aquele relativo às qualidades de um operador para a “crítica da cultura” (DUARTE, 2008, p. 40). Para o autor, o interesse clínico da sublimação refere-se às suas potencialidades de “aclarar as perturbações existentes por trás de certos sintomas externados em construtos sensíveis”, ao passo que, como operador no terreno da reflexa estética, a sublimação se refere à “compreensão das relações da economia psíquica do indivíduo com a sociedade e a cultura na qual ele está inserido” (DUARTE, 2008, p. 39). E é notório ainda o modo como Freud efetivamente espera da elucidação de aspectos da experiência da arte e da “psicologia” dos artistas algumas respostas suplementares às indagações de sua metapsicologia. Mesmo quando compreendida na interface com o discurso religioso, como é o caso da produção de artistas renascentistas, como Leonardo da Vinci e Michelangelo, ou eivada de motivações filosóficas, como se pode atestar nas trajetórias de Shakespeare e Goethe, Freud atribui ao cenário artístico um valor distintivo no que se refere às pretensões heurísticas da psicanálise. Naquilo em que resultam as obras desses sujeitos, suspeita Freud, não são as ilusões do dogma ou da certeza ontológica que prevalecem, mas certa realização de protocolos de subjetivação do desejo, de tratamento da realidade dos sintomas e, no limite, de afirmação da cultura sobre as forças que se lhe opõem. Aqui o que se insinua – e que cumpre investigar melhor – é a convergência, no interior do pensamento freudiano, de propósitos éticos
II Colóquio internacional
Por outro lado, descortinar certos aspectos do sujeito que escapam à formalização metapsicológica – essa, cujo fundamento é a efetividade do dispositivo clínico – é uma intenção que reveste o interesse de Freud pelos procedimentos artísticos e pelas peculiaridades da vida anímica dos artistas. Tal aspiração dará ensejo, para tomar de empréstimo uma expressão de Safatle, a um “limite tenso” de constituição das fronteiras entre os domínios da arte e da racionalidade psicanalítica.
a prática argumentativa, comum em certa medida ao escritor criativo e também ao cientista, supõe o esforço de diminuir as resistências que podem nutrir objeções ou descrédito ao que se quer ponderar ou afirmar.
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Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud:
e estéticos. Em resumo, uma obra de arte não é pensável como uma mera projeção do arcabouço psicobiográfico do Eu, mesmo em sua configuração inconsciente. Não é possível tratar o dispositivo sublimatório como se ele tão simplesmente revelasse, nas palavras de Adorno, a forma assumida esteticamente por essa suposta “quintessência das faculdades psíquicas ´racionais’” (ADORNO, [1946]/2007, p. 18). Freud visava, ao aproximar-se da arte, o horizonte ético que se deixava entrever a partir das relações do artista com seus objetos, suas intenções, sua démarche. Esse horizonte cingia-se, numa primeira aproximação, dos modos de subjetivação que o fazer artístico ofereceria aos seus protagonistas, num plano em que a arte, tal como Freud deixa entrevê-la, parece viabilizar o escoamento de elementos pulsionais, cuja livre expressão seria de outro modo impedida pela ação do recalque, resultando, com isso, nas diferentes formas de sofrimento experimentadas na vertente do sintoma neurótico. E cingia-se ainda, de outra parte, desses mesmos efeitos, de expressão pulsional e de reordenamento psíquico, facultados a todos aqueles que admiram, nutrem-se ou cultivam um apreço pela arte.
O horizonte ético que parecia interessar a Freud em suas incursões pelo terreno das artes talvez não seja distante daquele que, no interior do pensamento filosófico moderno, buscava discernir as relações entre os domínios da natureza e da liberdade. De modo geral, a atividade artística é compreendida por Freud como uma via privilegiada de expressão e transformação do conflito psíquico. O artista lhe aparece, pois, como alguém que cria, com seus objetos, vias de escoamento para aspectos de sua constituição pulsional que, de outro modo, assumiriam características afins ao sofrimento psíquico. Nessa medida é que se pode afirmar que, se há propriamente um valor terapêutico do empreendimento artístico, ele não consiste numa propriedade inerente que seria acionada pelo simples gesto de produção da obra de arte. Freud não aborda a experiência artística como se nela residissem propriedades imanentes de cura passíveis de tradução ou transposição para o campo analítico. Mas, na medida em que a ética da psicanálise não pode recuar de um esforço de reflexão acerca dos fundamentos da liberdade humana, e que têm por pano de fundo uma visão da subjetividade como estética e liberdade em Freud e Nietzsche 144 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
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Nessa medida é que parecem em algum momento convergirem, no interior de seu pensamento, motivos éticos e estéticos.
permanentemente acometida pelo conflito pulsional, seu interesse pela arte passa a residir propriamente nos esforços de discernir como a atividade artística pode se configurar como um terreno privilegiado para a deflexão, expressão e sublimação de quotas pulsionais de teor fortemente patogênico e que, uma vez arregimentadas pelos processos artísticos, fornecem ao sujeito importantes subsídios à sua saúde psíquica.
E é curiosamente nesse contexto de suas primeiras aparições sob a pena de Freud que a sublimação sugere um forte parentesco com a ideia de uma restrição da liberdade humana, traduzida pela figura da renúncia/intercâmbio de modalidades espontâneas de gozo por outras, condicionadas sociomoralmente. Contraposta, todavia, a essa ideia, Freud irá explicitar, ao longo de sua obra, como a liberdade é uma experiência cujo usufruto poderia ser comprometido justamente em virtude da situação contrária. A pulsão, plástica e cambiante em sua origem, tende a fixar-se em modos, processos e principalmente objetos eletivos dos quais dificilmente recua, no curso do desenvolvimento psicossexual. As expectativas de liberdade do neurótico são, liminarmente, comprometidas pela força inconsciente de suas estreitas modalidades de gozo, formatadas pelo enquadre da fantasia e, não raro, frustradas por condições adversas de realização. A própria figura romanesca do perverso – indivíduo liberado do jugo das pressões e restrições morais e sociais e devoto de um gozo irrestrito – é subvertida pela argumentação freudiana que lhe revela sua outra face. O perverso, ao contrário, é escravo da fixidez irredutível de sua paixão de gozar, tiranizado por um imperativo de adequação absoluta entre seu gozo e as formas reificadas e objetos
A ideia de sublimação tem origem nos estudos freudianos sobre a sexualidade infantil. Fortemente identificada à noção de latência, a sublimação consistiu aí como pivô dos esforços de redirecionamento de uma satisfação libidinal da criança confrontada com as exigências típicas dos protocolos e processos de socialização.
Para tanto, a renúncia às exigências imperativas do princípio do prazer e à polissemia das satisfações perversas das pulsões parciais seria uma condição incontornável.
Sob o prisma desse entrecruzamento, de motivos éticos e estéticos, torna-se quase impossível não indagar as possíveis relações entre a sublimação freudiana e o conceito ou experiência do sublime, objeto de farto tratamento no âmbito da filosofia moderna. Pois que o sublime, desde sua redescoberta por Edmund Burke em meados do século XVIII, tornar-se-ia o operador com o qual a tradição moderna amplia e complexifica a doutrina estética do belo e, liminarmente a partir de Kant, tematiza a conexão entre o estético e os motivos morais. O tema, grandioso como os conceitos que persegue, exige aqui um recorte pontual. A doutrina freudiana da sublimação, brotada do solo de investigações sobre as vicissitudes da sexualidade, culmina com certo apelo de espiritualização que se traduz, no texto de Freud, pela ideia de que os objetos por ela visados seriam mais “elevados”. Essa proposição, conjugada à ideia de que a sublimação visaria a certa “desexualização” da pulsão, dá ensejo às inferências de que o movimento sublimatório tem por horizonte certa tomada de distância em relação ao sensível, ou aos apelos do pathos erógeno da constituição e dos apetites corpóreos. Analogamente, o sublime kantiano é o sentimento que consigna a separação entre os planos da natureza e da liberdade. Para Kant, enquanto belo é uma afecção estética e liberdade em Freud e Nietzsche 146 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
positivos que lhe são impostos por um supereu implacável. Basta observar, no recurso freudiano à condição subjetiva do fetichismo, essa timbragem de aprisionamento num regime hiperdeterminado de gozo sensível. Retire-se o látex da cena perversa e todo o esplendor erótico de seu paraíso hedonístico reflui à frustração impotente. Eis como a sublimação é então reabilitada na qualidade de um dispositivo que dialetiza a relação do sujeito com os modos e objetos de sua satisfação. E, nesse sentido, por meio dela, o sujeito reencontraria aspectos da plasticidade ou da abertura originária de sua disposição pulsional, pluralizando, deslocando e quiçá mesmo multiplicando suas experiências de satisfação libidinal. Novamente nesse ponto, comparece, na obra freudiana, a figura do artista, aquele que alcançaria com maestria e desenvoltura esse universo ampliado de expressão, no bojo do qual os clamores e as agruras da existência se desprenderiam de seus apelos próprios e se transfigurariam em objetos que lhes modulam os imperativos e lhes suavizam o ardor.
Experiência
Aqui é que parece residir, conforme sugere Ricardo Barbosa, o elemento propriamente trágico da démarche kantiana, no reconhecimento da finitude das aspirações cognitivas da razão frente à grandeza absoluta da natureza. A reaparição dos motivos morais no âmbito do juízo estético testemunha, quase paradoxalmente, os esforços de Kant em reabsorver, no escopo da metafísica, os fundamentos da liberdade que, dessa vez, se manifestam correlativamente ao efeito estético do sentimento do sublime. Ricardo Barbosa é quem nota aqui, contudo, ″o traço trágico do pensamento de Kant″ que, conforme esclarece ele,está em sua ênfase na não-identidade – não identidade de fenômeno e noumenon, natureza e liberdade, saber e crença, conhecer e pensar, real e ideal, constitutivo e regulativo; não-identidade que se instala no Guilherme Massara Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
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que refere a imaginação ao entendimento, conectando forma e conceito, o sublime exige que a imaginação, a faculdade de produzir formas, seja confrontada à razão e ao incondicionado. Na medida, então, em que é impossível um arcabouço formal para a ideia (esse marco regulatório fundante e exterior à própria razão condicionada), o sublime advém como reiz, comoção (KANT, [1764]/1995, p. 25), como pura expressão de assombro diante da incomensurabilidade do real (ou da natureza, como prefere Kant), ou como “calma sombreada de horror” na expressão de Edmund Burke (BURKE, [1757]/1998, p.79), derivada da timbragem aniquilante que se impõe ao sujeito frente ao peso do universo infinito. Kant conecta, de forma surpreendente, a aisthesis sublime (o sentimento) à manifestação da moralidade pura, num argumento complexo, mas contaminado por certo apelo trágico, referente à não-identidade entre fenômeno e noumenon, entre o constitutivo e o regulativo. A passagem promovida pelo sublime ao suprassensível, ao informe, ao incomensurável, desterra os objetos humanos do domínio da razão teórica e os reabsorve no plano da razão prática. A apresentação negativa, da qual o sentimento sublime é o objeto privilegiado, aqui se esclarece, na medida em que ela não pode ser dada como apreensão de um fenômeno, tal como ocorre no uso regular da razão cognoscente. A razão teórica parece, pois, desonerada de sua função cognoscente justamente por se deparar com a experiência da infinitude, da incomensurabilidade, da pura potência ou, no limite, do absoluto.
Experiência
cerne do próprio homem, cidadão de dois mundos, um ser empírico e transcendental, uma ″natureza mista″, como disse Schiller. (BARBOSA, 2007, p. 41). Para o autor, se em sua primeira crítica Kant já entrevia um certo aspecto trágico do uso da razão – que inevitavelmente formula mais indagações do que aquelas que é efetivamente capaz de responder – o “momento trágico” propriamente dito de sua filosofia deve ser observado justamente “na passagem da razão teórica à razão prática como passagem do sensível ao suprassensível.” (BARBOSA, 2007, p. 41).
E se o caráter desse pathos infinito é, paradoxalmente, ″sublimado″, isso é algo que deve coincidir com sua reabsorção no âmbito de um sentimento. O sentimento sublime é aquele que leva o ânimo a medir-se com a onipotência da natureza, restituindo ao sujeito, através da experiência de sua destinação suprassensível, aquilo a que ele parecia ter renunciado no âmbito da razão teórica. A moralidade, por assim dizer, livra, libera o sujeito da angústia, suas raízes sensíveis e das frustrações de sua racionalidade finita. Mas é bom lembrar que, ainda assim, o sublime é tenso e trágico, sobretudo no sentido de revelar ao homem sua condição contingente, transitória e livrada aos caprichos de um real que não depõe ou pondera acerca de seus efeitos. E os desdobramentos modernos da análise do sublime encontrariam na obra de outro filósofo, pretensamente ainda mais próximo de Freud do que Imanuel Kant, uma acentuação desse peso trágico cuja explicitação nos permitirá mais diretamente um cotejamento com a questão da liberdade na obra freudiana. Schopenhauer assinala que a “impressão da tragédia, mais do que qualquer outra coisa, pertence propriamente ao sublime” (SCHOPENHAUER, [1819]/2003, p. 223). O sublime shopenhaueriano parece definir-se como horizonte máximo de objetivação da vontade no plano da intuição estética. Nesse, os apelos personalísticos, interessados da vontade individual, cedem lugar à lembrança da corporeidade e da volição compreendidas em sua universalidade. O sentimento sublime aparece então como uma disposição apta a incorporar, na apreensão da Ideia, a plenitude da tensão da vontade que ali se objetiva, tomando a forma do sentimento. A “solidão plena”, o estética e liberdade em Freud e Nietzsche 148 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
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Quando nos perdemos na consideração da grandeza infinita do mundo no espaço e no tempo; quando meditamos nos séculos passados e por virem; ou também quando consideramos o céu noturno estrelado, tendo inumeráveis mundos diante dos olhos, e a incomensurabilidade do mundo no espaço e no tempo se impõe à nossa consciência, sentimo-nos reduzidos a nada, sentimo-nos como indivíduos, como corpo vivo, como fenômeno transitório da Vontade, uma gota no oceano, condenados a desaparecer, a dissolver-nos no nada. (SCHOPENHAUER, 2003, p. 110). Para o filósofo, o herói trágico, submetido ao mais extremo sofrimento, opera, ao cabo de sua trajetória, uma passagem do querer mais violento para a resignação daquele que alcança uma nova visão da existência. Fica sugerido ainda que, justamente pela nobreza que constitui seu caráter, o herói renuncia porventura à própria vida, num ato de teor manifestamente moral. A dignidade exigida pela disposição sublime reivindica uma renúncia ampliada à causalidade do interesse, mas parece arrastar em sua esteira toda a disposição vital. Ali onde Kant vincula o sentimento sublime à descoberta da razão prática, Schopenhauer proporia a noção de “indiferença
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
“silêncio absoluto” de um cenário estático, tudo isso dá origem a “certa angústia ou o sentimento do sublime” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 223). Aqui, ainda, a angústia é o signo que confere ao sublime a indicação da lembrança da vontade, sugerindo a atmosfera de certa nostalgia da sensibilidade. O cenário de seu desencadeamento sugere também um desligamento das representações vinculadas à particularidade de uma volição determinada, e que cede lugar à ″pureza″ de um afeto cuja indeterminação imanta a apreensão da Ideia do absoluto. Para Schopenhauer, a “impressão angustiante” é a contraparte afetiva do desvanecimento dos vínculos ao “orgânico” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 107). O estatuto da angústia no sentimento do sublime parece então referir-se àquele de um signo da apreensão metafísica da vontade que se faz iminente. Tal angústia trágica se refere ainda ao fato de que, diante do sublime, não existe anteparo à sensação aniquiladora de reconhecer-se como “fenômeno efêmero da Vontade”, indefeso contra a virulência da natureza e oprimido pela incomensurabilidade do real, o que insufla no espírito a consciência de sua mais absoluta finitude.
Experiência
Nietzsche, em O crepúsculo dos ídolos e numa de suas referências ao sublime, ironiza: “a Ideia tornada sublime, desbotada (...) Konigsbergiana”, aludindo diretamente à tese de um mundo verdadeiro (“o velho sol ao fundo”) (NIETZSCHE, [1888]/2006, p. 163) inalcançável, indemonstrável e, principalmente, imprometível. O filósofo assim o predica: consolo, obrigação, imperativo. Num capítulo intitulado “Moral como contranatureza”, Nietszche pondera a fórmula sublime de Schopenhauer, da qual resulta uma “negação da vontade de vida”. Eis o próprio “instinto de décadence, que faz de si um imperativo: ela diz: “‘vai ao fundo’; ela é o juízo dos condenados” (NIETZSCHE, [1888]/2006, p. 163). Analogamente e num proferimento muito direto, Nietzsche diria, na Genealogia da Moral, que “sempre houve um verdadeiro rancor filosófico contra estética e liberdade e
Nietzsche
Muitas mediações seriam necessárias para restabelecer, de forma consequente e responsável, as articulações entre o sublime e a sublimação freudianas. Aqui cumpre tão somente destacar em que medida o empreendimento de elevação ou espiritualização exigido por ambos – seja na direção das formas e objetos socialmente condicionados, seja no âmbito abstrato dos motivos morais, ou ainda nas mesclas de ambos – pode significar um solapamento da causa sensível que anima os homens, e que, de algum modo, se opõe às metas civilizatórias da razão prática. A distância do pathos imposta pelo sentimento do sublime encontra em Freud sua contrapartida, expressa na ideia de desexualização. Mas teria ela também na psicanálise o efeito de um golpe fatal sobre o desejo? Aqui, um último excurso nos fornecerá os elementos faltantes para responder à questão.
Eis o momento em que o filósofo faz apelo explícito à figura do herói trágico que, “bravamente renuncia aos fins que até então seguira de forma tão veemente, abdica para sempre de todos os prazeres da vida e sobrevive sem querer mais algo ou, com frequência, põe fim à sua vida” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 138)
em Freud
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metafísica’, expressa através da supressão momentânea do sofrimento e, no limite, do próprio desejo (SCHOPENHAUER, 2003, p. 134). Nesse cenário, a “negação da vontade própria” coincidirá com “um meio psíquico de alívio” e, mais que isso, como um “veículo alegórico adequado da verdade” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 138).
Freud, analogamente e a despeito do estranho valor heurístico da noção de dessexualizacão – noção que, diga-se de passagem, é a primeira a ruir no bojo da magnífica revisão do conceito empreendida por Jacques Lacan – sempre apontaria em suas incursões estéticas o caráter de transfiguração, de rearranjo a que as disposições pulsionais são submetidas no curso de efetuação da obra, do texto ou do ato (ético ou estético). Desde sua magistral análise da obra A virgem, Sant’anna e o Menino de Da Vinci, passada por suas conjecturas acerca da função poética e a fantasia, ou na análise da Gradiva de Jensen, ou na dialética de estranhamento e familiaridade em jogo no contato com determinadas formas sensíveis e narrativas, enfim, jamais se depreende de sua argumentação a ideia de um ocaso do sensível, de uma depuração do corpo
Guilherme Massara
Acrescentando: “Schopenhauer é sua explosão mais elegante, mais sedutora” (NIETZSCHE, [1888]/2006, p. 96). Dois aspectos sobressaem da crítica do autor à metafísica do sublime, e dos quais ele demarca veementemente seu pensamento: a solução trágica do problema da moralidade, que celebra a realização dos propósitos da razão prática às expensas da vontade, do desejo e do sensível, causas inseparáveis da condição humana. E um segundo ponto, que põe em questão o fundamento ascético da moralidade em seu cerne: “talvez a sensualidade – pondera Nietzsche – não suprima a emoção estética como pensava Schopenhauer, mas “se transfigure” de modo que não apareça à consciência como excitação sensual” (NIETZSCHE, [1888]/2006, p. 163)
Nietzsche tem razão ao apontar o aspecto sedutor da metafísica schopenhaueriana, pois, enquanto Kant absolutiza o divórcio entre os planos sensível e suprassensível, Schopenhauer mantém a vontade no horizonte da razão prática, todavia sob a forma domesticada de sua lembrança, suprassumida pela dignidade trágica. Ou sob a forma de um certo inelutável, que desemboca no ato suicida do sacrifício terminal frente ao desejo infinito. E aqui o pensamento de Schopenhauer, que tanto representou na formação do espírito nietzschiano, torna-se objeto de uma certa inversão, pois que Nietzsche não pode admitir um fundamento tão absolutamente transcendental para a moralidade, apartado da experiência e acuado diante de suas idiossincrasias, seus paradoxos e sua força volitiva.
a sensualidade”.
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Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Diversas indicações biográficas parecem coincidir no que tange à identidade dos dois interlocutores de Freud nesse episódio. Possivelmente, Lou Andreas-Salomé e Rainer-Maria Rilke. Nessa despretensiosa promenade de verão, relatada por Freud em seu belíssimo artigo “Sobre a transitoriedade” (“Vergänglichkeit”), o assunto em questão não seria mesmo outro do que aquele referente aos verdadeiros valores da vida. O caráter passageiro daquilo que é “belo e perfeito” dá lugar, pondera Freud a partir da posição de seu interlocutor, a duas consequências fundamentais: um doloroso “desgosto do mundo” e uma revolta contra “o capricho” do destino (FREUD, [1916]/1994, p. 325).
O que o pessimista parece, por seu turno, recusar é justamente o caráter finito de uma experiência pulsional, consagrando-se à antecipação imaginária da perda do objeto e, no limite, recusando-se mesmo a elegê-los, num gesto de recolhimento narcísico da libido, desde então não mais disponível para investimentos objetais. A estética e liberdade em Freud e Nietzsche 152 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
e suas vontades ou de uma dissolução do sexual. Possivelmente a dessexualização resta na metapsicologia freudiana como um construto algo subordinado ao cânone moderno do sublime, sobre o qual Freud jamais proferiu uma palavra sequer, mas que ele indiscutivelmente conhecia. Se isso é verdade, talvez não fora a primeira vez que Freud tentara ser kantiano tendo, felizmente, fracassado.
O niilismo com o qual o renomado poeta responde ao caráter finito da fruição, do belo e do sublime é exatamente aquele ao qual Freud vem contrapor-se, interpretando-o.
“Há algum tempo’, escreveu Freud em 1915, ″eu fiz, em companhia de um amigo taciturno e de um jovem poeta já renomado, um passeio através de uma paisagem de verão em flores” O poeta, admirou a beleza da natureza em torno, mas sem com ela alegrar-se. Lhe perturbava o pensamento que toda essa beleza estava votada a passar, que no inverno ela desapareceria, como acontece de resto com toda a beleza humana e com tudo isso que os homens criaram ou teriam podido criar de belo e de nobre. Tudo isso que, de outro modo, ele teria amado e admirado, ora lhe parecia desvalorizado pelo destino de transitoriedade ao qual estava prometido (FREUD, [1916]/1994, p. 325).
Experiência
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
O valor de transitoriedade é um valor de raridade no tempo. A limitação na possibilidade de gozo aumenta seu valor. Eu declarei incompreensível que o pensamento da transitoriedade do belo deva perturbar a alegria que nele encontramos. No que diz respeito à beleza da natureza, após cada destruição pelo inverno ela reaparece no ano seguinte, e esse retorno poderia bem, com relação à duração de nossa vida, ser qualificado de eterno. A beleza do corpo e da aparência humanas, nós a vemos desaparecer para sempre no espaço de nossa própria vida, mas essa brevidade da vida acrescenta uma nova atração àquela da beleza. Se existe uma flor que não floresce senão uma noite, sua floração não nos parece menos magnífica (FREUD, [1916]/ 1994, p. 326).
A potência de elevação sobre a finitude, eis aqui o cerne do argumento de Freud. Argumento sublime, certamente, mas que não perde de vista o aspecto sensual da experiência humana, cujo valor é incrementado pela limitação temporal em que se inscreve. A alegoria da flor que floresce apenas uma noite, eis novamente o que parece recobrir a dimensão algo irrepresentável da causa do desejo, daquilo em virtude do que o sujeito reafirma suas disposições vitais – estéticas e morais – e em cujo horizonte
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miragem que alimenta a posição do pessimista parece então não ser outra do que a de uma dessensibilização do Eu, nutrida pela crença imaginária na possibilidade de extinguir todo e qualquer apelo da libido objetal. O pessimista se defende da ameaça de castração – aqui traduzida pelo efeito traumático que nele faz incidir a constatação do caráter finito e contingente dos objetos e metas de satisfação pulsional – idealizando a desafecção do mundo. Mas o que ele obtém, entrementes, é, não raramente, o exato oposto do que vislumbrara. Torna-se, como Freud parece bem discernir em Sobre a transitoriedade, hipersensível. O pessimista almeja renunciar a todo gozo e à toda fruição sensível, mas ali mesmo onde ele crê realizar em ato a negação da própria vontade de vida é onde possivelmente ele se surpreende confrontado com a soberania do pathos da pulsão de morte. A transitoriedade de sua existência individual, desabonada de quaisquer causas desejantes, converte a vivência do tempo num doloroso instrumento sensível em cujo horizonte, não raramente, a morte se põe como limite desejável.
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Vejamos a resposta de Freud:
O nada da vontade, materializado em ímpeto niilista, Nietzsche e Freud o contrapõem, cada qual a seu modo, mas convictos de uma revitalização ética que tem por fundamento o desejo. O nada da vontade é então um sintagma redefinido, sob a égide de um vazio que preside a indeterminação fundamental de nossa condição corpórea. Eis onde se podem alojar, conforme os ensinamentos desses dois mestres da suspeita, as formas errantes, contingentes, porventura inúteis como uma obra de arte, mas por meio das quais o que nos resta de imortalidade se consubstancia. Pessoa, Rosa, Freud:
o que é belo e nobre aspira imortalizar-se na argila da memória e nos bens e valores da cultura. Seu elogio parece ainda estender-se ao caráter infinito da experiência do desejo, cuja dignidade ultrapassa a realidade transitória de suas manifestações individuais e que, exatamente por essa razão, podem conservar-se de forma ainda mais preciosa. O desejo, intrinsecamente ligado à falta, ao vazio e ao irrepresentável, é formulado pela psicanálise como o elemento-causa das experiências que, a despeito de tudo isso, tornam, para um sujeito, as coisas e os seres, por assim dizer, inesquecíveis. Mas, diferentemente do pathos melancólico, em que a permanência do objeto sob os auspícios do afeto e da memória é revestida de uma recusa em consentir com sua transitoriedade, a dignidade do desejo coincide, por assim dizer, com os monumentos que, no interior do sujeito, celebram o legado daqueles que nele suas marcas deixaram e a partir dos quais a reafirmação do sentido do próprio ato de desejar é reiterada. Freud aqui talvez endossasse as palavras do autor das linhas finais da Genealogia da Moral, em seu diagnóstico de que “o homem prefere a vontade do nada ao nada da vontade” (NIETZSCHE, [1887]/2009, p. 173). Daí seu repúdio, tal como Nietzsche escreve: “a tudo quanto seria humano, quanto seria animal, quanto seria material, aos sentidos, à razão, à felicidade, à saúde, à beleza, à forma, à mudança, ao movimento, ao esforço, ao desejo”. (NIETZSCHE, [1887]/2009, p. 173.)
Experiência estética e liberdade em Freud e Nietzsche 154 Nietzsche,
II Colóquio internacional
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Guilherme Massara Rocha155
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e liberdade
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Nietzsche
Experiência
156 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
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NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 1887-2009.
Como isto é mais evidente para a literatura, é necessário que explique melhor por que se aplica também à psicanálise?
As artes que não são literatura são as projeções de um silêncio expressivo. Há que procurar em toda a arte que não é literatura a frase silenciosa que ela contém, ou o poema, ou o romance, ou o drama. (PESSOA, 1930, p. 22).
Este trecho fornece uma excelente fórmula para a análise das relações entre a vida e a obra de um artista, que, sabemo-lo desde Freud, precede muitas vezes o psicanalista na sua investigação.
O psicanalista não é um médico ou um psicoterapeuta, um técnico da saúde que trata os sintomas com o objectivo de os eliminar. Aquilo que faz é 157
O fio de Ariana do que se segue é dado pelo que escreveu um heterónimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, na “Introdução ao Catálogo do I Salão dos Independentes”, que se realizou na Sociedade Portuguesa das Belas-Artes de Lisboa, em 1930. Ele contou com a representação de 20 pintores, 10 escultores, 10 arquitectos, 21 desenhadores, 2 decoradores, 2 cartazistas e 2 fotógrafos, num total de 312 obras expostas.
A referida passagem é a seguinte:
O postulado fundamental que ali aparece é: “Toda a arte é uma forma de literatura”. Cabe-me acrescentar que não há literatura, nem psicanálise, sem letra.
A fórmula não se aplica apenas à arte dos artistas Modernos, mas a toda a arte. Por conseguinte, pode aplicar-se às artes que não integram a lista das BelasArtes, caso da velha “arte de amar” e da nova “arte de psicanalisar”, que se passa também ela entre falar e estar calado.
Letras em análise José Martinho
Toda a arte é uma forma de literatura. Porque toda a arte é dizer qualquer cousa. Há duas formas de dizer – falar e estar calado.
Concluirei extraindo de uma arte não literária – a fotografia - a enunciação da frase silenciosa que me parece gerar a gramática dos enunciados.
Por mais apressada que seja, qualquer leitura de Pessoa apreende facilmente que existe sempre uma máscara por detrás de cada máscara. Para não reproduzir este jogo de espelhos ao infinito, retiro apenas um poema da vasta obra poética. Escrito em 1930 e publicado em 1932, este conhecido poema, que vai directo ao essencial, tem um título bastante sugestivo para o meu propósito de hoje. em 158 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Poema
Letras
A letra é o que se lê. Mesmo no som volátil da palavra falada existe a materialidade gráfica da letra, o seu desenho, mas também uma morfologia, uma sintaxe, uma lógica. Todas estas dimensões são cruciais para a interpretação psicanalítica que consiste em pontuar da fala do analisando, a repor do traço, a vírgula, o ponto de interrogação, de exclamação, ou o ponto final que faltava; cruciais também para que o psicanalista não se deixe encantar pelo canto de sereia que Freud [1915]/ (1969) chamou o “amor de transferência”, porque em toda a fala há igualmente uma voz, com o seu tom, a sua nota melódica, a sua musicalidade. De um lado, pois, temos a articulação significante, e, do outro, a voz enquanto objecto de gozo. O sintoma como formação de compromisso entre inconsciente e pulsão, entre significante e objecto pode-se ler, mas permanece como Janus, com duas faces que não se sobrepõem senão na fantasia.Dito isto, posso agora dar um exemplo da leitura que tenho vindo a fazer das diferentes facetas do sintoma de Pessoa, indo buscar à sua arte vária os três géneros literários referidos por Álvaro de Campos, na seguinte ordem: poema, drama, romance.
escutar, ao pé da letra, o modo como os sujeitos falam dos seus sintomas.
análise
Aristóteles e Freud falaram a este propósito de uma “primeira mentira” (FREUD, [1950]/1969a). Se aceitarmos que a linguagem é o fundamento dessa mentira, bem como da sua contradição, então o que é dito, escrito ou até mostrado por um falante faz parte da função apofática da ficção.
Retenho para o meu propósito a primeira proposição: “o poeta é um fingidor”. O poeta não é apenas um fingidor porque disfarça, com a beleza dos seus versos, a dor que deveras sente. Também não o é porque quer expressamente enganar, fazendose passar por uma outra pessoa, sendo insincero na expressão dos seus sentimentos e ideias, ou simplesmente dizendo que tem saudades do sino da sua aldeia quando nasceu em Lisboa.
José Martinho 159Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama o coração. (PESSOA, 1985, p. 241).
Talvez entendamos agora melhor a razão pela qual o poeta – mais ainda que o dramaturgo e o romancista - é forçosamente um fingidor. Passo ao segundo item.
AUTOPSICOGRAFIA
Fingidor porque o latim fingere significa igualmente modelar, figurar, representar, inventar uma outra realidade.Mas não é suficiente afirmar que o poeta é um fingidor porque finge, sonha, fantasia uma realidade diferente da real. Ele é basicamente fingidor porque a matéria-prima da sua arte é a língua, e que as palavras, com os seus múltiplos e equívocos sentidos, não são as coisas.
Aquilo que sublinho no interior deste sonho no sonho é aparição intempestiva dessa “quinta pessoa”, porque Pessoa teve desde muito cedo o sentimento que uma misteriosa quinta dimensão intervinha activamente em sua vida.
Drama Numa carta de 11 de dezembro de 1931, ao seu amigo João Gaspar Simões, em que fala igualmente de Freud e do freudismo, o fingidor em questão define-se não só como poeta, mas como “poeta dramático”. “Poema dramático” é um termo que serve para designar a tragédia antiga. Mas a primeira obra acabada que Pessoa publica, “O Marinheiro”, é também um drama, desta vez moderno, que chama “estático”, à maneira do dramaturgo belga Maurice Maerterlink. (PESSOA, 1985e).
Ele foi efectivamente levado a imaginar – quiçá a fingir - que havia uma incidência mágica do número 5 na sua existência, que influenciou o seu destino como homem e escritor. É sempre um 5 ou um múltiplo de 5 que encontra nos momentos cruciais do drama em gente. Aos 5 anos perdeu o pai e o irmão; a mãe volta a casar-se em 1895. Em 1905 o adolescente deixa Durban e regressa definitivamente a Lisboa; escreve então à mãe dizendo-lhe que serão precisos 5 a 10 anos para se tornar um dos grandes poetas contemporâneos. É em 1915 que o Decadentismo (Opiário) e o Modernismo (Chuva Oblíqua) se confrontam na revista Orfeu. Existe a “quinta pessoa” do Marinheiro, mas falará também dos cinco elementos e das cinco partes do conjunto, em particular quando tece considerações de cariz místico-sexual sobre o Cinco no símbolo dos Rosa-cruz. À quadrilha poética formada pelos três heterónimos e o ortónimo, acaba por acrescentar uma quinta personagem, o filósofo António Mora. Quis Letras em análise 160 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
A acção ou melhor inacção desse texto escrito para ser encenado gira toda à volta de um caixão. No círculo fechado onde se encontram, três veladoras sonham com um jovem marinheiro capaz de criar, também ele em sonho, a sua nova terra natal. No final da peça aparece uma misteriosa “quinta pessoa”, que estende o braço para impedir todo o sentimento. Se alguém tem de sentir algo será sem se mexer, nem sequer por dentro, é o que exige o drama extático.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer (PESSOA, 1985a, p. 141).
Pessoa teve, desde muito cedo, o medo de enlouquecer e, no fundo, sempre soube que era louco, ainda que de uma maneira difícil de explicar, mais que não seja porque, sem a loucura, nada mais seria que “besta sadia/cadáver adiado que procria”.
1 Os últimos propósitos clínicos de Lacan sobre os nós borromeanos ajudam a levantar um pouco o véu deste misterioso cinco, na medida em que, quando o nó borromeano a 3 (o da personalidade paranoica) e a 4 (do sinthoma neurótico) falham, resta, ainda, a possibilidade de tentar atar um outro nó. O nó a cinco seria, pois, o primeiro de toda a verdadeira criação, da que está para lá da psicose e da neurose.
Romance O que acontece na infância não fica na infância.
Foi o jogo com as palavras e o trabalho da escrita que o ajudaram a questionar os problemas com que se deparou e a encontrar certas respostas; sobretudo que permitiram tecer uma rede textual que o protegeu do buraco onde podia ter caído e ficado. Com efeito, Pessoa não parou de escrever desde criança, e o verbo criador
festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto.
também comercializar um código de cinco letras, disse haver cinco línguas imperiais, e esperou que Portugal realizasse o Quinto Império. Acrescento mais duas datas: a mãe morre em 1925, provocando no filho uma grande depressão; e ele morre 10 anos mais tarde, em 1935. De todos estes encontros com o Cinco1, o pior foi certamente o que ocorreu com a morte do pai, às cinco horas da madrugada (MARTINHO, 2001). Podia dar vários exemplos das consequências deste fatal acontecimento na vida da criança, mas citarei apenas o que diz outro conhecido poema de Álvaro de Campos, de 1929:
NoANIVERSÁRIOTEMPOemque
Assim, a morte do pai não foi apenas o momento mais traumático da existência do menino, foi também a condição preliminar de “o que se seguiu”, quer projectemos o holofote sobre a loucura ou sobre o génio literário.
José Martinho 161Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Este namoro teve uma primeira fase, de 1º de maio a 29 de novembro de 1920, tinha ele 31 anos e ela 19; e uma segunda fase, nove anos depois, de 11 de setembro de 1929 a 11 de janeiro de 1930.
O que aconteceu de mais romanesco na existência de Pessoa não faz efectivamente parte da Grande literatura, mas do seu “namoro para bom fim” com a menina Ophelia Queiroz.
fertilizou o húmus da louca criatura, fazendo com que desse à luz uma vigorosa criação. A literatura tornou-se cada dia mais omnipresente, obsessiva, como se fosse simultaneamente o seu bálsamo e veneno. Ela ajudou-o a reconstruir parte do que foi destruído, a remendar o que se foi rasgando aqui e ali, mas não pôde remediar tudo. Há, sobretudo, um ponto em que a literatura falhou redondamente, e não só como literatura: o amor sexual.
Depois de ser todo olhares, de trocar recados e bilhetinhos por cima da secretária, de construir charadas como o pré-heterónimo A. A. Cross, de ensaiar todo o tipo de comportamentos perversos para se desviar do alvo genital da libido, Pessoa viuse forçado a romper o namoro, declarando que o seu destino não pertencia a nenhuma mulher, mas a Mestres obscuros, que não permitiam, nem perdoavam.
Ophelia provém etimologicamente de Omphallus, O-falo cobiçado, a conquistar, mas que acabou por murchar, morrer, como acontece na tragédia do Bardo com aquela com quem o filho do Ghost se devia casar. em análise 162 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Só que esta conclusão já estava implícita na premissa, pois Ophelia foi eleita desde o início por ter o mesmo nome da personagem do Hamlet de Shakespeare.
Pode muito bem ter sido este falhanço que fez com que Pessoa nunca se tivesse sentido inspirado para escrever um “romance”, no sentido actual do termo. Nem sequer podemos contradizer esta afirmação com os esboços do que chamamos hoje “romance policial”, mas que Pessoa – inspirado nos “contos de detective” de Poe, e substituindo Dupin por Abílio Quaresma - chamava “contos policiários”, entre os quais está “A janela estreita”, “Um Paranóico com Juízo”, e deixo este título para o fim, “A Carta Mágica”. Não há propriamente literatura, mas uma mágica da letra nas ridículas cartas de amor que Pessoa escreveu a Ophelia.
Letras
José Martinho 163Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Neste finale encontramos em Pessoa a privação da castração que Lacan escreveu Fi índice zero. Esta assinala igualmente que, quando o gozo se liberta do significante fálico, afasta-se da significação conferida ao órgão para fluir sobre tudo o resto.
Foi isso que aconteceu no dia 16 de dezembro de 1929, quando deu um bebé de presente a Ophelia, na forma de um retrato seu com um ano de idade. Reproduzo a carta e a fotografia: Bebé, Aí lhe mando — para cumprir, ao menos, qualquer promessa — as respectivas, não respeitáveis, mas preferíveis (às presentes) ventas do ibismo há, precisamente, quarenta anos. Comparando a fisionomia relativamente humana do animal pequeno, que o retrato representa, com o arremedo de focinho envergonhado que actualmente ofende a humanidade em cima do pescoço do signatário... Oh, Bebezinho, um beijo do Fernando. (PESSOA, 1994, p.47)

Que frase silenciosa se encontra por detrás desta fotografia?
Frase A “destrambelhada sexualidade” de Pessoa fez com que ele sempre tivesse tido grande dificuldade em assumir a virilidade masculina, e nunca se sentisse capaz de fazer um bebé a uma mulher, mas não de lho prometer e até oferecer.
Passo finalmente, do Falo à frase.
Por vezes é Pessoa que chama “Bebé” a Ophelia, outras vezes é ele mesmo que se designa ou se faz designar por esse nome. Num vínculo deste tipo é sempre possível inverter os papéis do agente e do paciente.
Freud reconstrói a gramática generativa desta frase, mostrando que a cena faz parte de um roteiro mais vasto, em que o gozo auto-erótico não é independente da relação a dois e a três (edipiana).
Esta frase anónima diz que se bate, mas não quem bate, nem quem é batido. Apenas fornece o fotograma que convida, conduz à masturbação.
A frase “Bate-se um Bebé” nunca aparece explicitamente. Surge, sobretudo, formulada na relação dual entre os dois namoradinhos, por exemplo do seguinte modo: “o Bebé é mau e bate-me”, conforme carta de 5/4/1920. (PESSOA, 1994, p. 13).
Letras
Freud trouxe a lume em 1919 que, nas elucubrações e fantasmagorias que tecem o texto da vida quotidiana, existe uma frase batida, que cada um repete pelo resto da vida, porque cifra o gozo que busca em vão. É esta frase que Lacan chama a frase do “fantasma fundamental” (LACAN, [1966/1967]/2003).
O título do artigo de Freud é a própria frase que o psicanalista extraiu da fala dos seus analisandos: Ein kind wird geslagen, “Bate-se uma criança”.
O mesmo não acontece na relação a três. A terceira personagem que intervém no que se passa entre os dois namoradinhos e causa ciúme não é nenhum Bebé, mas geralmente o desmancha-ternuras do Engenheiro Álvaro de Campos. Mas o mais importante é que um “Bebé” seja repetidamente evocado, convocado para ser batido ou devir objecto de outros carinhosos maus-tratos, sempre com o objectivo de obter uma satisfação.Aestrutura da proposição compreende o sujeito, o verbo e o predicado. No “intervalo” entre os dois que se completam, o sujeito e o objecto, encontramos o verbo “bater”. em 164 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Nas Cartas de amor de Fernando Pessoa a Ophelia Queiroz encontrarmos diferentes formulações de uma frase semelhante àquela que Freud cita. O termo que nas Cartas substitui geralmente “criança” é “Bebezinho” ou mais simplesmente “Bebé”.
análise
O sujeito da enunciação do fantasma não é um ego, neste caso, o ego de Fernando Pessoa. Quem então? Não foi nas Cartas, mas no fragmento 46 do Livro do Desassossego que acabei por encontrar enunciada a frase do fantasma fundamental que procurava construir. Sabemos que a última versão do Livro do Desassossego é da autoria do semi-heterónimo Bernardo Soares. Porém, a frase em questão sai da boca de alguém aparentemente mais sólido do que esta frágil figura minha-mente alheia, alguém que, antes de morrer em 1915 de tuberculose (como o pai e o irmão do Fernando António), triunfou enquanto “Mestre” do “criador de tudo”: Alberto Caeiro. O que este diz aí é o seguinte: “Sou do tamanho do que vejo” (PESSOA, 1985d, p. 19). Do lugar da enunciação vem um “Sou” e não um “Eu”. É o ser de gozo ou que goza (do que vê) que aí fala, não um ego consciente, com sensibilidade, entendimento, personalidade própria.
Que a frase tenha tido ou não este efeito, o certo é que os preliminares se passam para além do princípio do prazer, ao nível da escrita, e da representação de uma cena masoquista. Esta última indica que o fundamental, para que haja fantasma, é a acção do verbo sobre o corpo, que o verbo bata, chicoteie o corpo e se faça libra de carne. Há quem argumente contra o facto da linguagem, preferira acreditar que quem mexe os cordelinhos deste teatro de marionetas é o próprio Pessoa. Mas o que este diz expressamente a propósito da despersonalização literária e por toda a parte é que o “autor de tudo” é o “menos que ali houve”. (PESSOA, 1986b, p. 199).
Existem outros verbos (como “morder”) nessas Cartas de amor que designam os maus-tratos exigidos para a realização fantasiosa do desejo. Centremo-nos apenas no verbo “bater”.Terá este o mesmo o sentido que na proposição “bater uma p.…..”? Se pensarmos no efeito auto-erótico da frase que Freud sublinha no seu artigo, assim como no que foi a “monosexualidade” de Pessoa, bem como no seu elogio do onanismo – “a cópula é um onanismo disfarçado”, sendo este “a expressão lógica do amoroso (…) o único que não disfarça nem engana” - isso é plausível. (PESSOA, 1985, p. 253).
José Martinho 165Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Alberto Caeiro - tido por Pessoa como o maior dos poetas -, mostra nesta prosa não ser mais que o ventrículo de um enunciado sem metafísica, sem querer dizer, mas não sem estremecimento no corpo.
Este vaivém do olhar entre zero e infinito não impede que o sujeito encontre uma pedra no meio do caminho, pois o que capta o olho e cria a deslumbrante visão é também o que perturba a vista - num pequeno poema dedicado a Ophelia, Pessoa fala de uma “névoa em meu olhar” -, o ponto cego que está na origem da conhecida fobia que Pessoa tinha da fotografia.
É o que confirma o comentário que segue a sentença: “frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica… Depois de as ler […], sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo”. (PESSOA, 1986b, p. 99).
É pois a frase vinda de não se sabe onde que faz vibrar quem a lê ao pé da letra, a ponto de se sentir um “esplendor alado”.
Não convém, assim, que o leitor maravilhado pela arte dos Pessoa separe o sonho de imortalidade do homem – expresso em Heróstrato, texto sobre o incendiário que queimou o templo da Grande Deusa Mãe, Artemis, a Diana dos Efésios – e o retrato do artista enquanto Bebé.
É isso que confirmam estes dois fragmentos: O primeiro é o final do parágrafo 46 do Livro do Desassossego: “´Sou do tamanho do que vejo´. Depois de ler a frase Letras em análise 166 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Aquilo que ocupa o lugar do Mestre é o olhar. É o império do olhar sobre o sujeito que (se) observa. É graças a esse objecto que pode dizer ser do tamanho do que vê, ver-se em miniatura, como o “menino da sua mãe”, que “jaz morto, e apodrece” , ou como o Bebé em fotografia oferecido a uma outra mulher, mas também ver-se nas alturas, como um poeta grande como o universo.
Este arrebatamento obriga-me a completar a definição da letra que dei no início. Acrescento agora que a letra é o que se lê, ao nível do sintoma, como “objecto a” lacaniano. Se a voz de “Sou do tamanho do que vejo” é a voz de Ninguém, o objecto é claramente aí o da pulsão escópica: o olhar.
FREUD, Sigmund. Uma criança é espancada. Uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais. In: FREUD, Sigmund. Uma Neurose Infantil. Rio de Janeiro: Imago, 1919-1969. v. XVII, p. 223-226. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). FREUD, Sigmund. A Proton Pseudos [Primeira Mentira] Histeria. In: Publicações Pré-psicanalistas e Esboços Inéditos. Rio de Janeiro: Imago, 1950-1969a. v. I, p. 463-467. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund LACAN,Freud).
tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvajaria ignorada, de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade vasta aos grandes espaços da matéria vazia”. (PESSOA, 1986).
Jacques. A lógica da fantasia – Resumo do seminário. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, [1966-1967]. 2003. p. 323-328. MARTINHO, José. Pessoa e a Psicanálise. Coimbra: Almedina, 2001. 85 p. José Martinho 167Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Referências FREUD, Sigmund. Observações sobre o amor transferencial. In: O Caso de Schreber. Artigos sobre Técnica. Rio de Janeiro: Imago, 1915-1969, p. 207-222. v. XII. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud).
Continuo a citação, pois o resto desta radiosa passagem: “mas recolho-me e abrando. ‘Sou do tamanho do que vejo!’. E a frase fica-me sendo a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer” (PESSOA, 1986), serve de ponte para a “noite” do segundo fragmento.
Trata-se de uma das últimas confissões de Pessoa a Ophelia, a quem chama finalmente a “Bela alma”: “Durmo pouco e com um papel e uma caneta à cabeceira. Acordo durante a noite e escrevo, tenho que escrever, e é uma maçada porque depois o Bebé não pode dormir descansado”. (PESSOA, 1986, p. 99).
Acesso em: 25/03/2015. PESSOA, Fernando. O Marinheiro. In: PESSOA, Fernando. Obra poética. Lisboa: Círculo dos Leitores, 1985a. Tomo III, p. 9-23. PESSOA, Fernando. Aniversário. In: Poesias de Álvaro Campos. Lisboa: Círculo dos Leitores, 1985b. Obra Poética, tomo II. PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. In: PESSOA, Fernando Obra em prosa. Lisboa: Círculo dos Leitores, 1985c. Tomo I; Tomo II. 1986a. PESSOA, Fernando. Escritos íntimos, cartas e páginas autobiográficas. (Introdução, organização e notas de António Quadros). Lisboa: Publ. Europa-América, 1986b PESSOA, Fernando. Autopsicografia in cancioneiro.. In: PESSOA, Fernando. Obra Poética. Lisboa: Círculo dos Leitores, 1985c, tomo I. PESSOA, Fernando. Em poesias de Alberto Caeiro. Lisboa: Círculo dos Leitores,1985e. Obra Poética, tomo III. PESSOA, Fernando. Obras completas de Fernando Pessoa. Lisboa: Círculo dos Leitores, 1985f– 8 v. Letras em análise 168 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
PESSOA, Fernando (Álvaro Campos). Introdução ao Catálogo do I Salão dos Independentes. Sociedade Portuguesa das Belas Artes de Lisboa, 1930. Disponível em: http://modernismo.pt/index.php/1921-1930/details/20/1935.
Acesso em: 25/03/2015. PESSOA, Fernando. Cartas de amor - Carta de 16/12/1929. 3. ed. (Organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz). Lisboa: Ática , 1994. Tomo I. Disponível em: http:// arquivopessoa.net/textos/3709.
Introdução A abordagem do feminino no universo poético de Fernando Pessoa remete à análise de rastros de sua leitura do mundo e, pois, de sua concepção de vida e mesmo de sua própria vida. Não é façanha simples, contudo, conjugar estes vários aspectos, sob a perspectiva do feminino manifesto no conjunto de sua obra poética. Na presente análise, as figuras do feminino surgem na correlação das “Quadras ao gosto popular” com as cartas que aqui se limitam a algumas das “Cartas a Ophélia Queiroz” e ao texto autodiegético “Carta da corcunda ao serralheiro”. Do espaço poético surgem os textos como potencial de efeitos, os quais são aqui tomados, na esteira de Wolfgang Iser, como produtores de efeito estético, que exigem “a atividade de representar e perceber do leitor” (ISER, 1987, p. 12). É, pois, do confronto com a dimensão textual que tal efeito estético se produz na leitura da profundidade da obra poética de Pessoa e na assunção do fictício como plano necessário de compreensão do código cultural do século XX com os traços que chegam até nós.
As figuras do feminino na obra poética de Fernando Pessoa
Magda Guadalupe dos Santos
Inicio este estudo com uma das quadras de Fernando Pessoa, Aquela loura de preto Com uma flor branca no peito, É o retrato completo De como alguém é perfeito. (PESSOA, 1965, p. 74).
Essa quadra, de nº 149, extraída das Quadras ao gosto popular (PESSOA, 1965), editadas por Ruldof Lind e J. do Prado Coelho em 1965, 169
As cousas são o único sentido oculto das cousas. (PESSOA,1977 p.223)
As cousas não têm significação: têm existência.
sugere questionamentos que margeiam, como propunha Susanne K. Langer (2004, p. 16), “proposições ambíguas”, a partir das quais pretendo examinar qual o lugar das figuras do feminino na leitura filosófico-poética de Fernando Pessoa. Seriam figuras equivalentes a rasgos de um semblante simbólico anônimo e silenciado pelo tempo?
As figuras do feminino na obra poética de Fernando Pessoa
170 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Ao se afirmar o abstrato e não o concreto nas poesias de Fernando Pessoa, o sonho e não a realidade, aponta-se, segundo Isabel Allegro de Magalhães (1996), para traços tão simbolistas, em seu maior interesse pelo particular e individual, quanto modernistas, que fazem uso do “sonho como homólogo da vida e como instrumento gnosiológico da criação artística” (MAGALHÃES, 1996, p. 18). Tais aspectos apresentam-se, simultaneamente como novas concepções estéticas, que sugerem irreverência e contestação, assim como o uso de uma nova linguagem. Tenciono, assim, proceder a uma análise sobre a textualidade e o feminino, buscando em cartas e quadras do autor um modelo poético no qual a ambiguidade do viver, mesclando sonho e realidade, poesia e filosofia, se apresenta e se ressignifica. As cartas e a desconstrução identitária Bem se sabe, a escrita de si, compreendida nas cartas em geral (AUBAUD, 1993) ou na escrita epistolar, faz ressoar a vida do indivíduo comum, constituindo uma espécie de testemunho autobiográfico. O sujeito contemporâneo, já na primeira metade do século XX, diante da constatação de sua identidade fragmentada e descontínua, atende ao desafio de nova delimitação de si e de seu entorno, perante as abordagens que a escritura lhe possibilita produzir. Em Pessoa, as cartas se mesclam às suas várias máscaras, as quais realçam certo descentramento, múltiplos olhares “sobre o mistério do mundo”, no sentido do que afirma Alberto Caieiro: Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos:
Fonte: Correio Braziliense. Diversão e Arte. Acesso em: 13 mar. 2015.
Pode-se dizer que, nas cartas de Fernando Pessoa, produz-se um discurso singularizado que propicia ao emissor certo reordenamento de sua trajetória fragmentada no tempo, no tempo da existência, mesmo que apenas como um autorpersonagem criado somente pela certeza e evidência da escrita. Nesse conjunto, é nas “Cartas a Ophélia Queiroz” e no texto ficcional intitulado “Carta da Corcunda para o Serralheiro” que se apreendem não apenas rastros da elaboração de uma versão singular da vida, como se surpreendem facetas do feminino segundo a concepção ou encenação do poeta. Figura 1
Cartas a Ophélia Queiroz Nas “Cartas a Ophélia Queiroz”, uma configuração do feminino ressoa na mescla de testemunho de si, ficção da existência sonhada e poesia tanto do ortônimo Fernando Pessoa, quanto do heterônimo Álvaro de Campos: “Hoje não fui eu que vim” – afirma Pessoa numa das cartas – “foi o meu amigo Álvaro de Campos” (PESSOA apud PERRONE-MOISÉS, 2000, p. 181). Assim sendo, na singularidade Magda Guadalupe dos Santos171Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional

172 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud:
II Colóquio internacional
As figuras do feminino na obra poética de Fernando Pessoa
Vale tocar de leve nesse feminino que surge nas cartas. Há de se realçar como faz notar José Augusto Seabra, que Ophélia tem o mesmo nome da personagem de Shakespeare em Hamlet, o qual é também evocado por Pessoa! E sua amada surge em situação de “eterna infância” dentro de um espaço intangível; “menos como mulher que como ser infantil” (SEABRA apud MAGALHÃES, 1996, p. 19), muitas vezes referida como “Bebé, “Meu querido bebezinho”, “minha bonequinha”, “meu anjinho bebé”, o que pode implicar também uma forma de tratamento carinhoso ou amoroso. Na carta de número 13, em Cartas a Ophélia, de 5 de abril de 1920, lê-se:
Ao se tentar identificar os aspectos do feminino nas cartas de Fernando a Ophélia, depara-se com uma correspondência particular que explicita certo código de intimidade que prospera no âmbito e na perspectiva pessoal da sociedade, como uma variante de escrita autorreferencial, transitando-se, assim, pelo caminho que faz entrecruzar ficção e verdade. Para Pizarro, Ferrari e Cardiello (2011, p. 153), o namoro entre Ophélia e Fernando, “verdadeiro Hamlet português, já que também se fingiu louco”, tornou possível a Álvaro de Campos se integrar na trama amorosa, convertendo-se assim “uma relação real e trivial num (ficcional) jogo de espelhos”. É nesse sentido que se pode ler o enunciado na carta de número 22: “Tens hoje do teu lado o meu velho amigo Álvaro de Campos, que em geral tem sido só contra ti! Alegrate!” (PESSOA, 2013, p. 70).
da correspondência entre os namorados, apreendem-se, entre tantas coisas, a vida do poeta cheia de mudanças, com a passagem pelo “Orpheu”, os planos de uma empresa tipográfica, as mudanças de residência, os sonhos, os heterônimos experimentados e, em meio à imensidão do mundo, o quotidiano de um dos escritórios em que Pessoa trabalha como correspondente comercial, o “Félix, Valladas & Freitas”, que dispunha também da assistência da jovem datilógrafa de dezenove anos, Senhorita Ophélia Queiroz.
Se o feminino com o qual se depara o leitor das Cartas é apenas uma “máscara”, deve-se ressaltar que ali, no âmbito da textualidade, apreende-se também um “jogo entre os heterônimos” (PESSOA, Cartas a Ophélia, nº 41, 2013, p. 107108)1 o que realça o ‘caráter fictício” da correspondência amorosa, como sugerem Carlos Queiroz e David Mourão-Ferreira (apud MAGALHÃES, 1996, p. 20).
Magda Guadalupe
1 Na segunda fase da correspondência, Pessoa deixa mesmo de reportar-se a Álvaro de Campos, outorgandolhe por inteiro a escrita. Assim, na carta de n. 41, datada de 25 de setembro de 1929, após longos anos de silêncio, o heterônimo escreve: “Exma. Senhora d. Ophélia Queiroz: Um abjecto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa, meu particular e querido amigo, encarregoume de comunicar a V. Ex.ª — considerando que o estado mental dele o impede de comunicar qualquer coisa, mesmo a uma ervilha seca (exemplo da obediência e da disciplina) — que V. Ex. ª está proibida de: (1) pesar menos gramas, (2) comer pouco, (3) não dormir nada, (4) ter febre, (5) pensar no indivíduo em questão. Pela minha parte, e como íntimo e sincero amigo que sou do meliante de cuja comunicação (com sacrifício) me encarrego, aconselho V. Ex.ª a pegar na imagem mental, que acaso tenha formado do indivíduo cuja citação está estragando este papel razoavelmente branco, e deitar essa imagem mental na pia, por ser materialmente impossível dar esse justo Destino à entidade fingidamente humana a quem ele competiria, se houvesse justiça no Cumprimentamundo.V. Ex.ª Álvaro de Campos Engenheiro naval.” dos Santos173Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Nietzsche,
Meu Bebé pequeno e rabino Cá estou em casa, sozinho, salvo o intelectual que está pondo o papel nas paredes (pudera! havia de ser no tecto ou no chão!); e esse não conta. E, conforme prometi, vou escrever ao meu Bebezinho para lhe dizer, pelo menos, que ela é muito má, excepto numa cousa, que é na arte de fingir, em que vejo que é mestra. (PESSOA, 2013, p. 49-50).
Segundo Rita Felski (apud MAGALHÃES,1996, p. 41), em Fernando Pessoa as situações que envolvem a configuração do feminino se ligam a certa negação da mulher real, mas tocam em um feminino que encena junto ao masculino, ampliando suas potencialidades. Nos termos de Eduardo Lourenço, (na analogia entre Nietzsche e Pessoa, 1986), as relações de Pessoa com outrem, se resumem numa construção ficcional em que o outro se projeta como texto, já que “só as relações com a escrita contam realmente” (LOURENÇO, 1986, p. 248).
Na interlocução entre o eu e o “outro”, evidencia-se a profundidade das relações com a escrita, como deslocamento de um eu fixo para um eu textual. Nesse transitar, a figura do feminino surge com “variações de voz para a voz poética”, como se restasse ao feminino apenas a mera representação textual. Ora, se para alguns há uma recusa do amor e do feminino na obra poética de Fernando Pessoa, segundo Isabel A. de Magalhães (1996, p. 20), a contrário sensu, pode-se identificar na obra pessoana certa vertente feminina, que transparece não apenas nas cartas, mas igualmente em Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (PESSOA, 1965, p. 27-28, apud MAGALHÃES, p. 20 nota, 18), nas quais se lê: “Não encontro dificuldades em definir-me; sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem (...) são de mulher.”.
Ouso, entretanto, conjecturar que se pode entender essa declaração sobre o seu lado poético-feminino como aquilo que, de modo mais refinado, paradoxal, aporético, faz o poeta retomar pontos instáveis e mesmo malditos na cultura e transformá-los.
A nova máscara autodiegética As imagens do feminino que perpassam seus poemas e prosas, incluindo-se aí as cartas e quadras, são evocações de imagens vinculadas a uma ligação amorosa que em muito se aproxima de uma “especulação poética” sobre o caráter da “relação amorosa como conceito” (MAGALHÃES, 1996, p. 21). E nessa situação o feminino surge como uma possível negação da possibilidade do amor, ou como algo sofrido e não correspondido, como se vê na fictícia “Carta da Corcunda para o Serralheiro” , em que, na voz singular de Maria José, uma personagem literária, uma máscara autodiegética feminina, instaura o lugar da diferença em oposição ao logocentrismo da tradição europeia.Essapersonagem
As figuras do feminino na obra poética de Fernando Pessoa
174 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
não tem, como os três heterônimos, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, ou como o semi-heterônimo Bernardo Soares, uma expressão com a “mítica autonomia dos heterônimos”, ao mesmo tempo, real
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Graciete Besse (1998, p. 22-24), tal confissão se define por certa “ambiguidade fundamental”, qual seja, o pensar se concebe por meio de uma “dimensão de esquecimento necessário” – como destaca Roland Barthes a propósito do “discurso amoroso”: “sem esquecer, não há vida possível.” (BARTHES, 1995, p. 607)2.
O que me interessa aqui pontuar é como da leitura da “Carta da Corcunda para o Serralheiro” surgem algumas questões filosóficas, de ordem metodológica e 2histórico-cultural.Qu’est-cequeça
Magda
Maria José é uma projeção que surge nessa nova carta. Como no caso de Ophélia Queiroz, está-se diante de uma jovem de dezenove anos, todavia, solitária, tuberculosa, deformada por uma corcunda, uma jovem que se apaixona pelo serralheiro que a cada dia ela vê passar pela rua, sob sua janela. Desse lugar transverso da vida, espaço de abertura para o mundo ou de seu lugar de clausura, Maria José descreve sua percepção sofrida da diferença. Ela instaura um discurso de intimidade e seu interlocutor direto corresponde à figura da ausência ou mesmo à “presença fantasmática” que estimula o seu desejo de mulher apaixonada e que se permite entoar sobre si mesma um “não penso senão em Segundosi”.M.
e fictícia, produzidos “numa constelação orientada desde um centro, constituído de mera ausência” como bem salienta Eduardo Lourenço (“circum-navegando”, 1986, p. 15). Segundo Teresa Rita Lopes, da Universidade Nova de Lisboa, diferentemente dos três heterônimos, que constituem verdadeira “alma-tripla” e se desdobram como “figuras em dramas, ou personagens declamando isoladas em um romance sem enredo” (LOPES, 1990, p. 16), a figura de Maria José, a voz feminina que “se faz ouvir no universo pessoano”, aparece como “a metáfora de uma ‘alma à janela” (LOPES, 1990, p. 142).
O que é isso. veut dire, “penser à quelqu’un?” Ça significa “pensar em alguém?” Isso veut dire: l’oublier (sans oubli, pas significa: esquecer (sem esquecer de vie possible) et se réveiller solvente não há vida possível) acordando muitas de cet oubli. vezes para este descuido (Tradução nossa). Guadalupe dos Santos175
No campo dessa ambiguidade, em que o amor se revela o mais delicado e complexo sentimento de união e afastamento, ao transitar pelas mágoas do esquecimento, Maria José impõe o desejo como profusa afirmação redundante: “Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio”. (PESSOA, 1990, p. 1 ). figuras do feminino na obra poética de Fernando Pessoa 176 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Em primeiro lugar, a questão da ambiguidade. Os existencialistas, desde o final do século XIX, com Kierkegaard e seu jogo paradoxal dos pseudônimos, chegando até Simone de Beauvoir (2005, p. 15), fazem surgir à cena filosófica a dimensão ambígua da realidade. Não tenciono, contudo, dar aqui lugar ao filósofo Fernando Pessoa, desconsiderando o poeta. A grandeza de sua poesia não está apenas nos versos, mas na sutileza poética de sua complexa obra. Assim pensando, pode-se verificar que, desde a virada do século XIX para o XX, sentiu-se “mais vivamente do que nunca o paradoxo” da condição humana. Do reconhecimento intersubjetivo se evidencia tanto a finalidade a que “toda ação deve se subordinar”, quanto o fato de que as “exigências da ação” obrigam todos a se “tratarem uns aos outros como instrumentos ou obstáculos”, como menciona Beauvoir (BEAUVOIR, 2005, p. 15). Em sentido próximo, personagem pessoana, feminina e autodiegética, Maria José escreve na carta ao Serralheiro: Eu gostava de morrer depois de lhe fallar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe fallar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber. (PESSOA, 1990, p.1 , p.1. Ainda segundo Beauvoir, na medida em que se constata que, de forma interligada, vida e morte, solidão e ligação com o mundo, liberdade e servidão se explicitam nos moldes de uma moral da ambiguidade, está-se diante dos enlaces de escolhas em nível de imprecisão e incerteza, no âmbito de situações vividas pelo sujeito cindido. (BEAUVOIR, 2005, p. 15).
As
Essa voz atinge, assim, no entendimento de Teresa Rita Lopes, “o ponto máximo nessa escala da despersonalização” percorrida por Pessoa e incorpora esse “ninguém” vivido por ele em seus vários outros como “estilhaços do espelho partido que ele se tornou”. (LOPES, 1990, p. 143).
Cumpre indagar: seria o corpo disforme da Corcunda mera representação de uma negatividade de um suposto eu, de uma recusa da própria subjetividade no confronto entre identidade e diferença? Na teia especular que as cartas fazem ressoar, Maria José lança em sua escrita tanto a recusa de si, quanto de bases valorativas nas quais o feminino podia se assentar em princípios do século XX. Ao se deparar com o que ela própria não é, faz ressoar a figura de uma outra, modelo de beleza vulgar e mundana, que tanto agrada aos homens, a “rapariga loura alta e bonita”, a amante do serralheiro, que aponta para um “feminino erotizado conforme categorias estéticas convencionais” (BESSE, 1998, p. 24). A diferença lhe possibilita interrogar-se a si mesma, ao seu vago lugar, aos espaços não percorridos e ao tempo de que não dispõe. (“eu não tenho senão dias de vida” escreve a Corcunda).
Isso se torna particularmente expressivo na “Carta da corcunda para o serralheiro”, em que se identificam traços antecipatórios da “Desconstrução”
Maria José traz na alma a constatação de um feminino solitário, cujos traços não se sustentam nos paradigmas estéticos convencionais, “e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me doe, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor” (PESSOA,1990, p.1.). Assim, a Corcunda evidencia a simplicidade e a diferença do feminino diante da complexidade e refinamento da cultura logocêntrica, o que se explora também nas Quadras, em que o poeta transita entre a beleza e a simplicidade, entre a espontaneidade e a naturalidade da língua e da poesia portuguesa.
Em segundo lugar, a questão da antecipação. Vale chamar a atenção para o fato de que Pessoa, de certa forma, antecipa alguns temas da pós-modernidade, como “a desconstrução da identidade”, em Jacques Derrida. De um ponto de vista hermenêutico, a heteronímia equivale a uma profunda crítica à tradição filosófica, indicando a ficção e não a verdade como condição essencial do sujeito moderno.
Magda Guadalupe dos Santos177Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
A jovem moça abandonada à própria sorte em sua juventude leva o leitor aos contornos da realidade cultural do feminino na primeira metade do século XX europeu. A voz que narra exibe os desacertos e certo conformismo de um perfil de mulher. Estamos defronte à voz da interioridade poética portuguesa, denunciando os desencontros entre os sonhos femininos e a realidade masculina. Mas quem é essa mulher desconhecida, disforme, tuberculosa, que confessa o seu amor somente na escritura nunca enviada ou jamais lida pelo amado? Seria a representação da voz espontânea das amarras em que vive o feminino? É a corcunda quem afirma:
Em face a quem ela se coloca? Não há um “outro” lógico e racional masculino que com ela contraste, apenas um “outro” sociável, desejado pelas mulheres ingênuas Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
As figuras do feminino na obra poética de Fernando Pessoa 178
Já na “Carta da Corcunda ao Serralheiro”, Pessoa faz tilintar o lado esquecido da vida, o feminino lançado à própria sorte, com a qual combina pontos mais agudos de seu tempo, a solidão e o isolamento, a tuberculose e o peso da corporeidade, a exigência da escrita como comprovação da vida, as sensações que desafiam as certezas. Assim, afirma a Corcunda: “Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque, como é uma vida que eu nunca posso ter – e agora menos que nem vida tenho – gostava de saber tudo”. (PESSOA, 1990, p. 2).
derridiana, o que se percebe também nas Quadras, enquanto textos que põem em cena elementos similares ao retraimento do feminino na cultura e geram conhecimento por meio de signos de repetição da realidade. Na quadra de nº 146, segundo a ordenação e reconstituição de G. Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, pode-se ler:
Tem a filha da caseira Rosas na caixa que tem. Toda ela é uma rosa inteira, Mas não a cheira ninguém. (PESSOA, 1965, p. 73).
Tantas vezes, o senhor não imagina, andei á espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus”. (PESSOA, 1990, p.2).
Em terceiro lugar, importante também abordar a questão do sentimento, os traços de amor que na carta se registram. Segundo Fernanda Bernardo, Professora da Universidade de Coimbra, estudiosa da filosofia contemporânea, da perspectiva das teorias da Desconstrução não há “amor sem este tormento da (a)destinação”, ou seja, sem o receio de um indulto àquele que se ama, (...)” (BERNARDO, 2014, p. 229). Por isso, “a letra/a palavra ou a carta que se endereça ao amor e tenta dizê lo, confessá lo ou testemunhá lo, porta também já em si o desvio – desvia o amor e do amor e do amado ou da amada”!
Parece, de fato, que o amor, na escrita de Maria José, apresenta os desvios de que trata Derrida, bem como testemunha a “relação do amor à língua, a sua travessia da língua e a sua inscrição (ex crição) na língua, quanto a relação do próprio sujeito à língua” (BERNARDO, 2014, p. 229). Mas a língua do amor é sempre a língua do outro, “tal como a relação da filosofia ao amor”. Vale sempre frisar, de fato a preocupação da filosofia sempre foi com a língua da verdade e não da ficção, mas, ainda nas palavras de Fernanda Bernardo remetendo-se a Derrida, isso ocorreu por um “atraso da própria filosofia relativamente ao amor”, que “ecoa o atraso do próprio sujeito e à língua e a si mesmo”. (DERRIDA, 1992, p. 307).
e vulgares, com as quais a Corcunda gostaria de se confundir: “Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ella mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.”. (PESSOA, 1990, p.2-3 ).
Na “Carta da Corcunda para o Serralheiro”, Pessoa expressa essa relação amorosa como algo que traz sentido a um corpo feminino disforme, consciente de sua alteridade e de sua singularidade: “Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gosta das pessoas que teem o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.”. (PESSOA, 1990, p. 1 ).
II Colóquio internacional
Magda Guadalupe dos Santos179
A alteridade do sujeito feminino, em vista aos modelos culturais historicamente existentes, é o que mais ressalta nessa carta-poema, na qual também se questiona
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud:
Fonte: Bonecas de trapos. Acesso em 23 mar. 2015.

As figuras do feminino na obra poética de Fernando Pessoa 180 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
a verdade relativamente às desventuras histórico-culturais em que o feminino foi lançado na cultura, sem jamais se cansar ou se calar numa resignação silenciosa. Escreve a Corcunda: “- e emfim porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta carta?”. (PESSOA, 1990, p.3 ). As Quadras É esse ponto máximo de despersonalização que desconstrói a crença na unicidade do sujeito enquanto a grande ficção da contemporaneidade revela-se, ao mesmo tempo, como o principal aspecto das figuras do feminino na produção de Fernando Pessoa. Na dicção simples e popular das quadras, especialmente a de no 174 afirma o poeta: Uma boneca de trapos, Não se parte se cair. Fizeste-me a alma em farrapos... Bem: não se pode partir. (PESSOA, nº.174, 1965, p. 80.) Figura 2
Magda Guadalupe dos Santos181
De fato, ao se pensar tanto no retorno de Pessoa “a formas simples de poesia”, como nas quadras, quanto na redefinição de enfoques do sujeito feminino, acaba-se por legitimar no poeta um posicionamento pluralista que “autoriza a revisão de categorias tidas como universais, mas que se realçam tanto na ‘delicadeza do excesso’, quanto na audácia da estabilidade e na sensualidade do entendimento” (VILA MAIOR, 2002, p. 134). Nas Quadras, Pessoa faz ressoar o reencontro do “cantor popular com o poeta culto”, como menciona Georg Rudolf Lind, revestindo-se de mais uma máscara, desta vez a do poeta popular. (LIND, 1965, p. 10).
Está-se aqui diante de uma construção poética de um variado perfil do feminino, no qual formas negativas e de questionamentos do amor, assim como do
Para Jacinto do Prado Coelho, também nas “quadras populares”, Pessoa irrompe “como o poeta do amor, exprimindo-o em variadas situações e múltiplos matizes psicológicos” (DO PRADO RIBEIRO, 1965, p. 19). As figuras do feminino surgem nas Quadras como “tópicos plásticos” que manifestam variados perfis de mulher “pelo singular poder de assimilação do autor, ao mundo popular aldeão ou citadino”. A mulher com vestido de chita, de saia azul, de avental, de xale ou de lenço, com brincos, com uma cruz, de luvas ou de chapéu, em seu trabalho pelas ruas, ou em casa e também “à janela, atraindo os olhares de quem passa” (DO PRADO RIBEIRO, 1965, p. 20). Já na Carta da Corcunda ao serralheiro, esse retorno à simplicidade da vida, que só a poesia é capaz de capturar de forma intensa, faz ressoar as contradições da vida, em que se mesclam ilusão e realidade, falsidade e defesa. Assim pode-se ler: Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar á altura da janela, passo todo o dia a ver illustrações e revistas de modas que emprestam á minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquella saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu ás vezes me envergonha de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar. (PESSOA,1990, p. 2
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
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desejo e de suas possibilidades, mostram-se como artifício de linguagem que faz ressoar grandes inquietações, diante das quais a recusa de si faz surgir o que se é, num “processo dialética entre o ser e o não ser”, como bem ressaltou em sua conferência de abertura ao II Colóquio Internacional Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud, em 2015, e com grande profundidade temática o Professor Paulo A. Borges. Bem, pontuo aqui o meu próprio texto, deixando, então, a palavra aberta por meio de mais uma quadra, a de nº 176: Levas a mão ao cabelo Num gesto de quem não crê. Mas eu não te disse nada. Duvidas de mim? Por que? (PESSOA, nº 176, 1965, p. 81).
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O psicanalista, o linguista e o poeta: “... tudo termina em silêncio e poesia!?”1
Márcia Rosa
1 Para a redação deste artigo retomo a minha pesquisa de doutorado em Literatura Comparada, defendida em 2005, na FALE/UFMG, publicada sob o título Fernando Pessoa e Jacques Lacan: constelação, letra e livro. 185
Ao afirmar que não é do lado da lógica que se percebe o alcance do dizer analítico, Lacan (1998) se volta para o poético na expectativa de instituir uma prática na qual o som e o sentido se uniriam estreitamente. Se a língua se cristaliza no uso, a Poesia e a Psicanálise se resguardariam disso por meio de uma violência feita sobre qualquer uso que transformasse a língua em moeda desgastada, nos termos de Mallarmé (2003). Assim, na medida em que uma interpretação justa desmanchasse um sintoma, a verdade se especificaria como poética. No entanto, ao assinalar os efeitos de sentido, bem como aqueles de buraco, produzidos pela poesia, Lacan (1998) disse não ser bastante poeta, não ser poata o bastante, deixando entredita uma referência ao ato, ao ato poético bem como ao ato analítico.
O jogo homofônico, poète/poâte, nos permite anotar a presença dos trocadilhos como um modo de construção e transmissão da teoria lacaniana a partir dos anos 70. Grandes formulações e construções conceituais são recolocadas em questão com um simples Witz. Se, por um lado, o discurso analítico se propõe como um saber com status de ciência, por outro, com o recurso aos equívocos ele “deslumbra e até certo ponto ofusca, por excesso de alumbramento, sua função teorético-expositiva, seu aparelho nocional, submetendo-o aos aparatos autorreferenciais da função poética da linguagem” (CAMPOS, 2001, p. 113). Esses modos de apresentação e formulação da Psicanálise trazem em si a marca de um tensionamento presente na própria definição do inconsciente deixada no horizonte pelas formulações de O Seminário, livro 20, mais, ainda: uma elocubração de saber sobre a alíngua. Que a equivocidade seja tomada como um modo de transmissão, evidencia-o o título de O Seminário, livro 24, L’insu que sait de l’une-bévue s’aile
O psicanalista, o linguista e o poeta: “... tudo termina em silêncio e poesia!?” 186 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Neste contexto, Lacan (1976) retoma a interlocução com François Cheng e com Roman Jakobson, cujos livros L’écriture poétique chinoise (1976-1977) e Six leçons sur le son et le sens acabavam de ser lançados. Tanto um quanto outro mantêm abertas as trilhas para uma discussão sobre a poética, bem como sobre o som e o sentido. Poetas que cantarolam Em meados dos anos setenta, Jacques Lacan assinala que “a metáfora e a metonímia não têm capacidade para interpretar, a não ser quando elas são capazes de exercer a função de outra coisa com a qual se unem estritamente o som e o sentido” (LACAN, 1998, p. 10-11). Em vista disso, o psicanalista deveria “ser, eventualmente, inspirado por algo da poesia para intervir” (LACAN, 1998, p. 10-11). Se o sentido 2 Para tais comentários, conferir nota de Mário Almeida, tradutor do texto para o português: Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, v. xx, n. 28, p. 19, data julho 2000. Para um comentário e discussão desse título, conferir ainda Haroldo de Campos, “O poeta e o psicanalista”. In:Edson Luiz André de Sousa, Elida Tessler, Abrão Slavutzky (orgs.) A invenção da vida, arte e psicanálise. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001. p. 117-124.
à mourre. L’insu-que-sait, no original, o ‘insabido-que-sabe’, soa em francês como l’insucesso. Lacan joga aí com um equívoco sonoro transliterável, com o sentido e com a homofonia. L’insu que sait de l’une bévue, s’aile à mourre. L’insu: a ignorância, o insabido, que soa como o insucesso, o mau resultado; que sait: que sabe, soa como que c’est, que é; de l’une-bévue: de um equívoco, soa como de l’Unbewusst, em alemão, de um inconsciente; s’aile à mourre; se asa por jogo (mourre; jogo do par ou ímpar), soa como c’est l’amour, é o amor.2 Que o “insucesso” do inconsciente seja o amor, deixa (entre)dito (além de demonstrado), que a equivocidade da língua pode dar passagem a um outro amor, a um novo amor. Um amor ao meio-dizer. Um amor à alíngua. Se não há saber no real, podem ocorrer efeitos de poesia. Como eles se transmitem? A resposta agora seria: não apenas por cintilações e opacidade, mas também por efeitos de ressonância (assonâncias, dissonâncias etc.) e de esburacamento.
tampona, propõe-se um forçamento como recurso através do qual a interpretação psicanalítica produziria um efeito de buraco, que faria ressoar o não-sentido. Assim, com o auxílio da escrita poética, Lacan indica o que poderia ser a interpretação analítica, a saber, um forçamento no campo da língua e em seus efeitos de sentido, produzindoFundadafuros.
A propósito do dialeto principal da língua chinesa3, o mandarim, é interessante anotar que, nele, as palavras são monossilábicas e isso faz com que o discurso chinês tenha um ritmo de toque de tambor. Como existem apenas 420 sílabas em mandarim (à diferença do inglês, por exemplo, no qual existem 1.200), e como um vocabulário chinês completo contém aproximadamente 50.000 palavras, existem muitas palavras pronunciadas com o mesmo som ou sílaba. Para diferenciar algumas delas, usa-se o 3 Para os comentários deste parágrafo, refiro-me ao instrutivo artigo de Yu-Kuang CHU, “Interação entre linguagem e pensamento em chinês”. In: CAMPOS,, 2000, p. 203-207. Rosa 187Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
No seu livro A escritura poética chinesa (1977), depois de apresentar Roland Barthes, Roman Jakobson e Julia Kristeva como seus mestres em semiologia, Cheng faz uma discussão sobre a poesia chinesa clássica, em especial aquela da dinastia dos Tang, (séculos VII-IX), interessante pela sua fecundidade e variedade, bem como pelas suas pesquisas formais.
na ambiguidade de sentido, a poesia é “imaginariamente simbólica” (LACAN, 1998, p. 6) e aproxima-se da varidade (varité) do sintoma, isto é, de uma verdade sujeita à variedade, à variação. Por conseguinte, poesia e verdade estão sujeitas à equivocidade e, tanto na sua transmissão quanto construção, deixam o sujeito às voltas com uma linguagem em ebulição, com “um caldo de linguagem” (LACAN, 1998, p. 9) diríamos, preservando o modo como Lacan faz ressoar a cultura, ao se referir à (agri)cultura. É neste contexto que o psicanalista reafirma, em meados dos anos 70, o seu interesse pela língua chinesa, uma vez que, nela, os poetas não estão reduzidos a uma prática escrita, eles cantarolam. Existe aí “uma modulação que faz com que se cantarole — pois da tonalidade à modulação, há um deslizamento” (LACAN, 1998, p. 11) comenta Lacan, remetendo-nos a Cheng-Tai-Tchen, escritor chinês radicado na França, em cuja língua publica seus trabalhos, com o nome François Cheng.
Márcia
e
Com o comentário de um poema, Cheng nos permite perceber melhor aquilo de que se trata. Seu tema inicial é o reencontro entre amantes, depois de uma longa ausência do homem. No calor da intimidade, o homem relata a duração da viagem e a mulher, que o escuta, tenta representar a sua aflição. De modo engenhoso, o poeta joga com a homofonia entre duas palavras, narrar e caminho; ambas pronunciamse dao e o poema progride sob essa ambiguidade CHENG, 1977, p. 104). Portanto, através da duplicidade de sentido, que nesse poema coloca em jogo a imaginação da mulher e o relato do homem, constitui-se um campo de ressonâncias, também sujeito a dissonâncias, assonâncias etc.
em
recurso dos tons. Cada um dos caracteres tem um tom fixo, de modo que cada sílaba acentuada numa sentença mandarim é pronunciada em um de quatro tons: “elevadouniforme”, “elevado-subindo”, “baixo-subindo” e “baixo-caindo”. Esses tons são indicados na romanização por um sinal diacrítico, sobre a vogal principal, ou por 1, 2, 3 ou 4, subscritos. Assim, temos como exemplo a sílaba mä que, pronunciada no primeiro tom, significa ‘mãe’; no segundo tom, é ‘fio flexível’; no terceiro, ‘cavalo’; e no quarto, ‘ralhar’. De modo que, ao falar chinês, cumpre dizer cada palavra acentuada não somente com o som correto como também no tom certo; caso contrário, não se é compreendido corretamente. Essa característica tonal das palavras chinesas confere ao chinês falado uma qualidade musical. (CHU, 2000, p. 205). De acordo com as formulações de Cheng, que tanto seduziram Lacan, alguns dos poemas da dinastia Tang retomam uma tradição de cantos populares e exploram, com ousadia e bom-humor, as possibilidades homofônicas. Esses jogos, que testemunham a riqueza homofônica da língua chinesa, “são raramente gratuitos ou fortuitos: a partir de uma proximidade fônica, o poeta tenta impulsionar as implicações metonímicas o mais longe possível” (CHENG, 1977, p. 103), sempre com vistas a uma significação profunda, que lhe permitiria unir-se a uma ideia temática inicial.
O
188 Nietzsche,
Além disso, é importante o modo como o poeta e o poema chinês transmitem ao seu leitor uma oscilação “entre a exigência da linearidade e o desejo de uma evasão psicanalista, o linguista e o poeta: “... tudo termina silêncio poesia!?” Pessoa, Rosa, Freud:
II Colóquio internacional
Márcia Rosa
Devido à estruturação monossilábica e não flexionada da sua língua (CHU, 2000, p. 211-213), o pensamento chinês torna-se eminentemente relacional; a atenção volta-se para “as relações entre as palavras, mais do que para as palavras individualmente” (CHU, 2000, p. 211-213), afirma Yu-Kuang Chu. Se, em outras línguas, um substantivo é um substantivo, em chinês quase todas as palavras podem ser substantivadas, isso depende apenas de sua posição e de sua função na sentença. Tal dependência da ordem das palavras e do emprego de palavras auxiliares para esclarecer os significados mostra “a importância das relações e do arranjo estrutural das palavras” (CHU, 2000, p. 211213.), continua ele. A literatura e, em especial, a poesia, vão jogar com isso. Assim, os dois versos do poema de Wang Wei foram construídos conforme uma disposição espacial paralela que lhes permite estarem equiparados quanto à categoria material (lua/fonte; pinheiros/rocha), quanto à estrutura gramatical e à distribuição dos adjetivos (brilhante/ clara) e ao esquema tonal (2/1; 4/2; 1/3; 1/4 e 4/2), no qual nenhum tom corresponde a si mesmo. E o ensaísta chinês está certo ao afirmar que, com palavras polissilábicas, flexionáveis e não-tonais, seria praticamente impossível conseguir um tal efeito.
espacial” (CHENG, 1977, p. 11). A estruturação paralela de um poema, “Tarde de outono na montanha”, da autoria de Wang Wei, permite observá-lo: Ming2 yüeh4 sung1 chien1 chao4 ch’ing1 ch’üan2 shih3 shang4 liu2 y (Brilhante lua entre pinheiros reluz/ Clara fonte sobre rochas flui). (CHU, 2000, p .212).
Finalmente, é interessante observar ainda que, à diferença de um elemento tomado em uma cadeia rígida, a espacialização da organização interna de um poema introduz uma outra ordem na progressão linear da linguagem (CHENG, 1977, p. 35). O estilhaçamento da estrutura e a redução dos “entraves” sintáticos ao mínimo — o que faz vigorar o vazio, figura importante na poética chinesa —, ficam evidentes em um outro poema chinês, “Chang-e”. Nele, o poeta Li Shang-Yin constrói uma estrutura constelar através da omissão do verbo em uma frase: 189Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
No seu ensaio, Jakobson (1970) faz uma análise linguística bastante minuciosa e rigorosa (de leitura, muitas vezes, árida) da estruturação de um poema de Fernando Pessoa. Escolhido no único de seus livros que Pessoa viu editado, Mensagem, o poema “Ulysses” constitui o primeiro do ciclo heráldico, “Os Castelos”. Ele “proclama o primado e a vitalidade do mito em relação à realidade”. Nos seus quinze versos, o poema
Ciel d’azur mer d’émeraude nuit après nuit ce coeur (Céu de azul mar de noiteesmeraldaapósnoite esse coração). (CHENG, 1977, p. 52, p. 191).
“canta Ulysses como o fundador de Lisboa e da nação portuguesa e exalta o caráter puramente imaginário de seus feitos; inaugura assim, apesar desta superposição do mito à vida real, a História heroica de Portugal.
Fernando Pessoa, o mito e as pequenas mitologias A intimidade dos laços entre o som e o sentido, cuja escuta afinada aproxima os estudos linguísticos e literários, redundará em linhas poéticas diferenciadas, conforme predomine certa “aura semântica” (linha poética fonológica) ou um puro jogo sonoro, tal como nas experiências do dadaísmo, que desembocará na poesia fonética (CAMPOS, 1970, p. 188). Obviamente, é na linha fonológica que o linguista Roman Jakobson inscreve a sua análise d’“Os oxímoros dialéticos de Fernando Pessoa” (JAKOBSON, 1970), texto preparado para apresentação em 1968, quando de sua visita ao Brasil. No ensaio, produzido com a colaboração de Luciana Stegagno Picchio, o mestre russo lista Fernando Pessoa no rol de artistas como Picasso, Joyce, Braque, Stravinski etc. e, mais especificamente, entre os grandes poetas da “estruturação”, definidos pelo próprio escritor português como “mais complexos naquilo que exprimem, porque exprimem construindo, arquiteturando, e estruturando” (JAKOBSON, 1970, p. 116), o que os torna necessariamente mais limitados e os situa à frente de outros escritores, mais afeitos à variedade.
O psicanalista, o linguista e o poeta: “... tudo termina em silêncio e poesia!?” 190 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Márcia Rosa 191
O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo. Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos Assimcreou.alenda se escorre A entrar na realidade. E a fecundal-a decorre. Em baixo, a vida, metade De nada, (PESSOA,morre.1999, p. 72).
A propósito da “arquiteturação” desse poema, Jakobson (1970) afirma ser difícil encontrar uma construção poética tão perfeita e cuidada. Por conseguinte, na sua análise, ele lhe realça as rimas, a distribuição dos fonemas em variantes silábicas e assilábicas, consonantais e vocálicas, as correspondências fônicas, os processos de composição, as categorias morfológicas e sintáticas, as singularidades gramaticais, a construção das figuras retóricas, etc. A partir da análise linguística, uma figura estilística da retórica clássica, o oximoro, mostra-se dominante no poema. Entre outros, temos “o nada que é tudo”, “o corpo morto (...) vivo”, “a vida (...) morre”, “metade, de nada” (JAKOBSON, 1970, p. 99, 103). Também um oxímoro, o verso central do poema, “Foi por não ser existindo”, refere-se a Ulysses, cujo desembarque no rio Tejo é uma construção lendária, sustentada no vínculo paronomástico entre seu nome e o nome de Lisboa. Para o linguista, com o verso central, a segunda estrofe do poema “culmina na apoteose do poder paterno atribuído a essa personagem fisicamente ausente e não existente” (JAKOBSON, 1970, p. 100-101). Assim, “o mytho sol”, da primeira estrofe, é concretizado e transposto para esse “herói [que], não tendo existido, e, assim, não sendo mais do que um nada no Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Ulysses O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus É um mytho brilhante e mudo —
Enfim, o mito celeste e solar da estrofe inicial entra na realidade e a transforma em lenda. Na estrofe final, a realidade é fecundada pela lenda, o que se justifica na medida em que “a vida, abandonada a si mesma (ou, talvez, toda a vida em geral?), fica à morte” (JAKOBSON, 1970, p. 108). Como consequência dessa conjugação, o mito perde a sua pureza e degenera-se em lenda, que não é senão o modo como a linguagem comum traduz o seu brilhantismo mudo. No final, o poeta deixa em aberto a questão de saber “se a vida, aqui em baixo, morre, malgrado a intervenção da lenda, ou à falta de sua intervenção” (JAKOBSON, 1970, p. 108), assinala Jakobson. O poema finaliza com os “três dramas do Tudo, do Nada e da Metade” (JAKOBSON, 1970, p. 117-118), variações sobre o mesmo tema. Se, no início, “a verdade intencional do mito transforma o nada em tudo”, no final, “os fatos que existem in actu parcelam, desintegram, aniquilam o todo: Fazendo, nada é verdade” (JAKOBSON, 1970, p. 117-118), diria a mensagem do poema. O psicanalista, o linguista e o poeta: “... tudo termina em silêncio e poesia!?” 192 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
nível histórico, nos bastou completamente e foi, portanto, um tudo no nível sobrenatural” (JAKOBSON, 1970, p. 100-101). Ao assinalar que “Este (...) nos creou” (JAKOBSON, 1970, p. 100-101), o mito heroico “estabelece uma proximidade temporal e espacial entre o herói fabuloso, de um lado, e o poeta e os que o cercam, do outro” (JAKOBSON, 1970, p. 107) conclui Jakobson. Apesar de observar que “a suposta equivalência de som e sentido entre os elementos lexicais dos oxímoros correspondentes acaba por revelar-se equívoca, de acordo com a arte de Pessoa, que busca o duplo sentido nos vocábulos correntes” (JAKOBSON, 1970, p. 103), Jakobson chama atenção para o modo como alguns vocábulos destacamse na harmonização vocálica de toda a primeira estrofe e na tonalidade do jogo dos fonemas /i/ e /u/. Assim, as cinco palavras, 1. “mito — tudo”, 3. “mito — mudo”, 5. “vivo — desnudo”, enfatizam o mito como “o motivo condutor do poema”, o que é confirmado pelo jogo de inversões, 1. “O mito é ... que é ...”, 2. “O ...que...”, 3. “É um mito”. Portanto, “a tripla alternância fônica extrai as palavras mais eficazes para a exaltação do mito que é aclamado como todo-poderoso (“tudo”), inefável (“mudo”), vital (“vivo”) e despido de todo disfarce (“desnudo”)” (JAKOBSON, 1970, p. 116), conclui o linguista.
Ressonâncias Quanto à geração de literatura(s) e de seus escritores, apresentada pelos heterônimos, a originalidade da análise de Jakobson — inspirada, sem dúvida, no jogo anagramático de Saussure — merece ser mencionada: a assinatura do mestre Ca eir o entra, com as duas metáteses (ir ri— e eir rei), no nome e no sobrenome “ajustados” para designar o discípulo Ricardo Reis, e dentre as onze letras desse achado onomástico, nove (isto é, todas exceto a consoante final dos dois temas) reproduzem as de CAEIRO. Ademais, a primeira sílaba desse sobrenome e o fim do nome, Alberto Caeiro, se refletem, com uma metátese, no nome do discípulo Ricardo. (...). (JAKOBSON, 1970, p. 96).
Márcia Rosa 193Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Ao ir além da indicação deste caráter anagramático presente nos nomes dos principais heterônimos, Campos (1970, p. 199) aproxima duas das funções da linguagem propostas por Jakobson — a poética e a metalinguística — e propõe que a mensagem e o código sejam tomados como instrumentos de leitura da poética heteronímica.
Para o poeta e ensaísta brasileiro, os heterônimos diversificam o código
A dita degeneração do mito em lenda deixa sugerida uma discussão sobre a coisa literária. Se a lenda é, “por definição e origem, qualquer coisa de literário” (CAMPOS, 1970, p. 201-202) (do latim, legenda, ‘o que se deve ler’, ‘o que está para ser lido’ (legere), indagamos se, neste contexto, os heterônimos não seriam legíveis como as ‘lendas’ de Fernando Pessoa, ou se retomamos termos propostos por LéviStrauss, como as suas ‘pequenas mitologias’. Através delas, o mito paterno, uma vez degenerado, encontraria a sua força geradora de literatura(s). Neste sentido, o poema deixaria implícita uma discussão sobre a função poética da linguagem como aquilo que se lê mais além do mito paterno, quando ele se degenera em lenda. Neste ato, o mito (paterno) daria passagem a qualquer coisa de literário.
O psicanalista, o linguista e o poeta: “... tudo termina em silêncio e poesia!?” 194 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Na sequência, Siqueira observa que essa estrutura significante coerente, que se denomina obra, denota o que poderíamos designar como um “aparelho literal de gozo” (SIQUEIRA, s/d, s/p). Assim concebida, a obra seria uma multiplicação de sistemas, de regras, de leis comandadas pela letra, que visariam a represar um gozo sem nome. Sem a multiplicação desses diques, fundados sobre as metáforas paternas
4 Nuncius é o Courrier de L´École Européene de Psychanalyse, que no seu número de Juin 2001, Hors série, tomou Pessoa como tema e, em uma edição franco-portuguesa, publicou artigos redigidos por leitores da poética pessoana oriundos do campo da psicanálise.
geral da poesia de Pessoa na medida em que eles constituem um subcódigo próprio. Ao construí-lo, Fernando Pessoa testaria e criticaria as possibilidades de atualização do código geral. Assim, “antes do que um fenômeno biográfico, ou outro, trata-se de um fenômeno de texto ou de escritura”. Neste sentido, os heterônimos seriam “um recurso estilístico” por meio do qual Pessoa consegue, a um só tempo, “escrever sua poesia e meditá-la de distâncias metalinguísticas diversas”. Além de ter ressonâncias nos estudos linguísticos e literários — e é interessante observar que elas incidem, preferencialmente, sobre o fenômeno da heteronímia — o ensaio de Jakobson sobre Pessoa teve também seus interlocutores no campo da Psicanálise. Tal é o caso do psicanalista Paulo Siqueira (um dos responsáveis pela publicação da Revista Nuncius4), em um artigo, ainda inédito, intitulado “Pessoa au pied de la lettre”. É na aproximação da multiplicidade heteronímica à apoteose da potência paterna, tal como Jakobson a abordou, que o artigo deste psicanalista, membro da École de la Cause Freudienne de Paris, encontra a sua originalidade. Diz ele: E se Ulisses fosse para Pessoa o paradigma mesmo do criador, do criador por excelência, o Pai que nomeia, o Pai do Nome? (...) Jakobson tem razão, certamente, de ver aí uma potência paterna. Assim cada heterônimo seria um outro Nome do Pai, no sentido lacaniano do termo.
O Nome do Pai não sendo senão esse significante sem o qual nada se cria na ordem da cultura, Pessoa teria sido o primeiro, antes de Lacan, a colocar o Nome do Pai no plural. De tal forma que cada Nome Próprio pode se substituir ao vazio do sujeito e criar em torno os sistemas significantes que são as obras, cada uma reenviando a um Nome Próprio, cada heterônimo correspondendo então a uma temática, a um estilo, a uma escritura. (SIQUEIRA, s/d, s/p).
internacional
Márcia Rosa
Esses Nomes diversos e variados estabeleceriam, tal como uma barragem dirigida contra um mar enfurecido, um sistema de diques comunicantes entre si, cada um deles recebendo um depósito regulado de fluxo da alíngua, de modo a tornar vivível uma vida de desassossego.
Já o desassossego, que traz à cena o semi-heterônimo Bernardo Soares, seria pensável “em oposição a este sentido suplementar que é próprio da estrutura metafórica dos heterônimos” (SIQUEIRA, 2001, p. 40); deste modo, sua estrutura metonímica seria a causa do afeto que atormenta Pessoa dia e noite. Neste sentido, o desassossego seria, na verdade, “um outro nome para a angústia, único afeto que não engana, pois é real” (SIQUEIRA, 2001, p. 40), comenta Lacan. Deste modo, finaliza Siqueira, a heteronímia pessoana teria o estatuto de sintoma, “um sintoma maior” (SIQUEIRA, 2001, p. 40), enquanto o desassossego seria legível com outra figura da teoria freudiana, a angústia. O poeta, o psicanalista e a debilidade mental generalizada O panorama das discussões sobre a poética, presentes nas formulações do final dos anos 70, encontra-se nitidamente marcado pelas teorias de Roman Jakobson. Na divisa jakobsoniana, segundo a qual “nada da língua deve ser alheio ao linguista” (JAKOBSON, 1952, p. 27), estaria em jogo, no entender de Jean Claude Milner (2002), menos um desejo de enciclopedista, debruçado sobre todo e qualquer campo da linguagem, do que a ideia de que “nenhuma língua pode ser pensada por completo se não se integra nela a possibilidade de sua poesia.” (MILNER, 2002, p. 137). 195Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: Colóquio
representadas pelos heterônimos, seria difícil canalizar o excesso de energia pulsional acéfalo, e o sujeito nomeado Pessoa acabaria submergido pelo que ele mesmo denomina o “maelström negro”, isto é, pela “vasta vertigem girando em torno do vazio, movimento de um oceano infinito, em torno de um buraco no nada” (SIQUEIRA, s/d, s/p). Portanto, para o psicanalista, os heterônimos seriam, literalmente, pontos de ancoragem de um eu ausente e disseminado, que estaria em todas e em nenhuma parte.
II
Na leitura de Milner, em seu livro Le périple structural: figures et paradigme (2002), na medida em que a linguística não completou o dispositivo de suas argumentações, cada linguista inventaria um modo inédito de concluir, e é aí, neste ponto preciso, que entra em jogo “uma ponta subjetiva” (MILNER, 2002, p. 131132)5. Neste sentido, o sujeito Jakobson despontaria nos binarismos e simetrias com os quais constrói suas elaborações linguísticas: código-mensagem, metáfora-metonímia, seleção-contiguidade, correlação-disjunção. Eles seriam a marca registrada das suas análises. Nelas, a língua é, antes de tudo, “lugar privilegiado de simetrias” (MILNER, 2002, p. 137-138); analisar um poema é “estabelecer a rede completa de oposições simétricas que o governam” (MILNER, 2002, p. 137-138). Em vista disso, com alguns poucos pares de combinações, torna-se possível “expor exaustivamente todo um setor de um objeto” (MILNER, 2002, p. 137-138) e, assim, da linguística à poética, tudo se ordena, finaliza Milner.
Pelo que tudo indica, as ressonâncias das elaborações de Jakobson sobre o som e o sentido estiveram presentes nas discussões de Lacan (1988) sobre a interpretação psicanalítica desde meados dos anos 60. Naquele momento, a interpretação era concebida como uma significação que tinha por efeito a produção de um significante irredutível e non-sense, ao qual o sujeito estaria sujeitado. Ao afirmar, então, que “a interpretação analítica não está aberta a todos os sentidos e que ela não é não importa qual” (LACAN, 1988, p. 236-237), Lacan recusava a gratuidade do puro jogo significante. Dez anos depois, quando a discussão ressurge, a ênfase terá se deslocado do sentido para o som. Com isso, Lacan (1988) aproxima a interpretação psicanalítica da poesia, ou, em termos mais genéricos, da poética. No horizonte dessa discussão parece estarem as definições do inconsciente como “uma elucubração de saber sobre a alíngua” (LACAN, 1982, p. 187) que abre o interesse para a musicalidade da língua, e aquela do inconsciente como uma equivocação.
Todavia, se o primeiro ensino de Lacan estava fundado, entre outros, nas contribuições da fonologia estrutural, e, portanto, em um binarismo significante, isso não ocorre nos anos 70. Assim, quando retoma Jakobson no mais, ainda (1972-1973), Lacan não deixa de advertir que a fonologia “encarna o significante no fonema, mas o 5 Loacalizar-se-ia aí o que Lacan denominou linguisteria?
O psicanalista, o linguista e o poeta: “... tudo termina em silêncio e poesia!?” 196 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Em um universo linguístico e poético disposto nos termos jakobsonianos, a desordem se instala quando surge algo que nenhuma das suas regras é capaz de prevenir ou explicar: uma imparidade, uma dissimetria, por exemplo. Ainda com Milner, percebemos que aí: o linguista encontra o limite de seu saber: a língua apresenta-se a ele em um ponto sobre o qual não tem influxo, pois é um ponto de falta irremediável. (...) A captação das ordenações, diante da qual tudo cede, tropeça, com a pedra do escândalo; o real da língua irrompe através do real de uma falta. (MILNER, 2002, p. 142).
A conclusão é que este é o instante em que um poeta se cala. Provavelmente, é também a este ponto de silêncio que Lacan se referia quando, aventada a possibilidade de que se produzisse um significante novo que, como o real, não teria sentido algum, em face a isso, ele afirmava não ser poeta/poata o bastante. Impossível não associar este ponto de real da língua, este silêncio, ao objeto pequeno ‘a’, objeto heterogêneo ao campo significante e que, neste caso, apresenta-se como uma voz, cuja queda configura um silêncio.6 Silêncio e voz. Silêncio e poesia. Assim, tal como dizia Starobinski, ‘depois de ter dito o que tinha a dizer, “o poeta fica estranhamente mudo” (STAROBINSKI, 1974, p. 109). As hipóteses podem suceder-se a seu respeito, ele não aceita e nem recusa. O dito. O dizer. A voz. O silêncio. O X do desejo. A causa. É interessante observar ainda que, no final de suas elucubrações de 19761977, Lacan situa o despertar como um dos nomes do real enquanto impossível. Neste 6 Interessa lembrar que Lacan listou quatro principais figurações do objeto ‘a’: o seio, as fezes, o olhar e a voz.
197Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
significante não pode limitar-se de modo algum a esse suporte fonemático” (LACAN, 1982, p. 29-32). Em vista disso, a pergunta ‘o que é o significante?’ dará lugar a uma outra, ‘o que é um significante?’, que, por sua vez, será deslocada para uma terceira indagação: ‘o que é o significante Um?’. Neste contexto o acento incide sobre o “un tout seul” (LACAN, 1982, p. 29-32), isto é, sobre os uns de gozo que não necessariamente apelam a algum “d’eux”, a algum ‘dois’ e/ou a alguns ‘deles’, diz Lacan, mantendo a equivocidade que a homofonia do termo francês permite.
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Portanto, ao incluir o poeta/poata entre os débeis mentais, Lacan indica que, tal como o psicanalista, ele teria percebido que é impossível desvencilhar-se completamente do aparelho de linguagem para tratar o real, ou melhor, de que o aparelho da linguagem trata o real, mas não-todo. Se o despertar (absoluto) é impossível, a poesia estaria ali, como os próprios sonhos, para proteger o sono? Pode-se levantar tal hipótese, todavia, “desde que ele dorme, o homem equivoca a toda força, e sem inconveniente algum, exceto no caso do sonambulismo. O sonambulismo tem um inconveniente: é quando se desperta o sonâmbulo”, adverte Lacan (1976-1977).
O psicanalista, o linguista e o poeta: “... tudo termina em silêncio poesia!?”
198 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
contexto, em que pese o tom no qual for dita, a poesia, o poeta e o poético serão incluídos em uma debilidade mental generalizada, que é aquela da qual participam aqueles que acreditam na língua como um modo de tratamento do real. Neste sentido, na medida em que não há outro modo de lidar com o real senão a elucubração de saber própria ao inconsciente, é o simbólico mesmo, e sua supremacia, que se torna o fator debilitante do ser falante; em outros termos, é o saber inconsciente que nos torna débeis.
Enfim, à poética psicanalítica interessará um campo de ressonâncias que, depois de extinguir a noção do belo, encontra o Witz. Um chiste, continua Lacan, “ocupa-se de um equívoco ou, como diz Freud, de uma economia. Nada mais ambíguo, mas podemos dizer que a economia fundamenta um valor. Pois bem! Uma prática sem valor, eis o que se trataria para nós de instituir.” (LACAN, 1998, p. 11). Esse aspecto chistoso, e, sem dúvida irônico, o encontramos no autorretrato feito por Pessoa: se eu fosse uma mulher — na mulher os fenômenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de Álvaro de Campos seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem —e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia... (PESSOA, 1986, p. 93)
e
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Márcia Rosa 199Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
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O psicanalista, o linguista e o poeta: “... tudo termina em silêncio e poesia!?” 200 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Nietzsche a Freud Antonio Teixeira
Propomos-lhe somente que fale, sem se preocupar com a verdade do que está dizendo, assegurando-lhe que a verdade irá falar por ela mesma. Mas, ao examinarmos a estrutura dessa verdade que o surpreende, notamos que ela se expressa ao modo de uma força que ora deforma, ora perturba, ora contraria sua intenção expositiva. E é precisamente por considerar a necessidade de se pensar a verdade, na experiência psicanalítica, nos termos não de um conteúdo expositivo, mas de uma relação de forças, que me pareceu particularmente importante resgatar uma aliança fundamental entre o pensamento de Nietzsche e a locução de Freud. 201
A verdade extra-moral de
Ao preparar uma intervenção sobre algum tema freudiano, na universidade, meu pensamento invariavelmente se interrompe diante da questão sobre o que significa preparar uma fala em psicanálise. Eu sempre me lembro de que, quando se vai ao psicanalista, a última coisa que se deve fazer é preparar o que se vai dizer. Não há nada mais contrário ao propósito da experiência psicanalítica do que a atitude do sujeito que organiza a narrativa do seu sonho, que prepara antecipadamente sua sessão, selecionando seu conteúdo, que se preocupa, enfim, em determinar de antemão o sentido do que vai dizer. Distintamente do que ocorre numa exposição universitária, na qual normalmente se espera do expositor que ele saiba do que vai falar, a hipótese psicanalítica do inconsciente supõe que o sujeito que fala, sob transferência, não sabe do que está falando e que, justamente por não saber do que fala, pode fazer a experiência de uma verdade que o surpreende ao se mostrar distinta do que acreditava estar expondo. Para operarmos clinicamente, não necessitamos impor ao paciente o dever de dizer a verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade, como se a verdade pudesse ser destacada de seu discurso ao modo de um conteúdo proposicional.
O principal tema que organiza a argumentação de Nietzsche diz respeito, como se sabe, à ideia filosófica clássica relativa à existência de uma verdade expositiva neutra, extra-moral, uma verdade a ser alcançada, em sua origem, por um saber depurado das contaminações ideológicas presentes nas relações de força que se determinam como vontade de poder. O alvo de Nietzsche se encontra filosoficamente condensado no aforisma clássico de Espinosa, que todos sabem de cor: não rir-se, não lamentar, não odiar, mas entender. Para Nietzsche, essa ideia de uma suposta faculdade neutra do entendimento, isenta do ódio, do riso, da lamúria, é a mentira humana por excelência, o ápice da dissimulação; ela seria a doença da metafísica forjada pelo animal humano para produzir a crença numa verdade estável, separada das relações de força que se manifestam na realidade gregária, uma vez que se sela provisoriamente a paz e se quer estabilizar o arranjo que ordena uma determinada situação (NIETZSCHE, 1969, p. 175). Em seu entender, a própria noção de um sujeito do conhecimento, naturalizada pela ideia de um instinto epistêmico, é falaciosa. Toda produção de saber, longe de se resolver na natureza de uma atitude contemplativa neutra, deriva necessariamente de uma relação patológica de força, sofrimento e dominação. Para irmos, então, de Nietzsche a Freud, gostaríamos de nos valer do comentário de Jacques Rancière, em O inconsciente estético, sobre a referência freudiana ao mito de Édipo, em que ele identifica, no mito freudiano, a testemunha de certa selvageria do pensamento (RANCIÈRE, 2009, p. 26 e seguintes.). Ali igualmente o saber, longe de se reduzir ao gesto de apreensão neutra de uma idealidade objetiva, antes aparece como um afeto, uma patologia, uma enfermidade do vivente. É possível verificar essa patologia do saber no terrível diálogo entre Édipo e Tirésias: ao passo que o primeiro, que quer saber, opõe-se ferozmente ao que lhe é revelado; o segundo que sabe, tomado de medo pelo que sabe, exorta o primeiro a não querer saber daquilo que ainda não sabe e que não deveria saber. No entender de Rancière, tanto Édipo quanto Hamlet
A verdade extra-moral de Nietzsche a Freud 202 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Para esse fim, eu vou me valer de algumas consequências que podemos extrair da leitura do texto clássico escrito por Nietzsche em 1873, intitulado “Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral”.
seriam personagens doentes do saber. Sua hipótese é que dessa equivalência trágica entre saber e patologia teria nascido a psicanálise, por ele entendida como uma prática gestada na confluência em que a filosofia e a medicina se colocam reciprocamente em causa para fazer do saber uma questão patológica e da patologia uma questão do saber.
E de fato o que assistimos, com o surgimento da psicanálise, diz respeito à impossibilidade vivida por Freud de pensar o sofrimento mental como uma idealidade objetiva, sem levar em conta o problema de uma patologia do saber. O simples gesto de dar a palavra a seus pacientes e considerar seriamente o que eles tinham a dizer levava Freud a introduzir uma dimensão que o saber neurológico, do qual ele era um legítimo representante, jamais admitiria. Ao tomar seu paciente como sujeito, e não como objeto de investigação, Freud percebe, por detrás do sofrimento psíquico, a verdade não como conteúdo expositivo de uma patologia neuronal, mas como força psíquica de uma exigência pulsional impedida, sonegada pelo gesto neurótico que dela não quer saber, por nela perceber um desejo contrário aos modos de satisfação que o discurso que o determina autoriza. Por não recuar diante dessa contradição, Freud se viu obrigado a rever as finalidades de sua prática terapêutica, emancipando-se de sua posição originária de técnico de um saber expositivo, para se tornar o ensaísta intelectual que tem verdades a dizer sobre o mal-estar na civilização. Notamos, então, que, se tanto Freud quanto Nietzsche transtornam por dizer a verdade, o “dizer-a-verdade” do qual se trata perturba justamente por ser algo radicalmente distinto de um procedimento de conhecimento ou de demonstração objetiva de uma realidade neutra. Essa atitude de “dizer-a-verdade” adquire antes a forma daquilo que Foucault propõe chamar de parrésia, termo que evoca, na filosofia antiga, a fala franca que se distingue da lisonja, da fala de quem visa agradar. Se existe, para nós, especial interesse em associar a função do “dizer-a-verdade” com o termo de parrésia, a partir da proposição de Foucault, é na medida em que para ele a relação entre verdade e saber ali se desprende não de uma história da origem e do desenvolvimento do conhecimento, mas de uma Teoria geral do poder (FOUCAULT, 2011, p. 41).
Assim como para Lacan não existe pulsão epistêmica (Wissentrieb) – a ignorância é Antonio Teixeira 203Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
A verdade extra-moral de Nietzsche a Freud 204 Nietzsche,
a paixão fundamental -, para Foucault – leitor atento de Nietzsche – o conhecimento não faz parte da natureza humana, não existe um sujeito natural do saber. O saber, em sua relação com a verdade, deve ser pensado nos termos de uma Erfindung, de uma invenção derivada de um jogo de relações de poder, e não de uma Ursprung, de uma origem naturalmente disposta no intelecto humano. No lugar da solenidade radiante da origem, é no sítio das obscuras relações de poder que se deve pensar a invenção do saber. O saber é a centelha no choque de duas espadas, o resultado de um jogo de compromisso e afrontamento. (FOUCAULT, 1973, p. 22).
II Colóquio internacional
Nesse sentido, o “dizer-a-verdade”, do qual testemunha a parrésia, se coloca, para Foucault, no solo do jogo social de forças. O que está em questão, para o parresiasta, não é a demonstração de uma verdade expositiva neutra, alheia ao seu dizer, mas um dever de expressão que se manifesta no interior de uma relação instituída de poder. Para ilustrá-la, Foucault se refere a uma passagem de “As Vidas Paralelas”, de Plutarco, na qual o personagem Dion se ergue diante do tirano e lhe diz a verdade que os outros preferem omitir. Trata-se de uma cena em que o tirano Dionísio criticava o governo de Gelon, dizendo que ele era motivo de riso na Sicília, num jogo de palavras entre Gelon e gelan (rir em grego). Enquanto os cortesãos se riam, fingindo admirar as graçolas de Dionísio, Dion o afronta dizendo: “Apesar de tudo, você governa graças a Gelon, que inspirava uma confiança da qual você tirou proveito, mas depois de te ouvir falando, ninguém mais terá confiança em ninguém!” Dion é dotado de parrésia e se distingue, portanto, dos cortesãos aduladores que rodeiam Dionísio, que riem quando ele faz uma piadinha tola e fingem que a consideram espirituosa, não porque seja verdade, mas porque são aduladores. O que define, porém, a parrésia não é o conteúdo da verdade, mas sua maneira de ser dita, o modo como o sujeito a expressa. Se, por um lado, não se trata de demonstrar uma verdade, já que a parrésia não é uma demonstração, ela não é tampouco uma retórica, uma arte de persuadir: é o engajamento do sujeito com o dizer-a-verdade, e não com a finalidade de convencer o que está em questão. A parrésia também não se confunde com o ensino: em seu gesto de transformar o outro, ela implica uma violência, uma Pessoa, Rosa, Freud:
Uma vez instituída sua função social, o desejo ou a crença de quem o enuncia não contam: pouco importa que o padre creia em deus ou no diabo, para que o batizado se realize, basta que ele diga “eu te batizo”.
Antonio Teixeira 205Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Já no caso da parrésia, tem-se igualmente a situação institucionalizada: Dion na frente do tirano, Nietzsche face à filosofia acadêmica, Freud diante dos representantes da ciência normal, Lacan às voltas com a IPA. Mas, seja qual for o caráter institucionalizado da situação, o que distingue a parrésia é sua irrupção como discurso verdadeiro que determina uma situação aberta. Trata-se de um “dizer-a-verdade” que, ao revelar as relações de poder que estruturam uma determinada situação, sem nelas estarem explicitadas, desestabiliza-a radicalmente, possibilitando o surgimento de efeitos imprevisíveis, não codificados institucionalmente. Dionísio pode mandar matar Dion, Nietzsche pode enlouquecer, Freud arrisca perder sua reputação, Lacan a perda do título de analista didata e a excomunhão. Por isso, na parrésia, a indiferença do sujeito que vimos a propósito do enunciado performativo é impossível: sua afirmação implica o engajamento do sujeito no ato da enunciação.
brutalidade que a distingue da transmissão pedagógica. O parresiasta não ensina: ele lança uma verdade cortante na cara daquele a quem se dirige, sem seguir o curso próprio da pedagogia, que vai do conhecido ao desconhecido. Por isso, a parrésia acarreta necessariamente riscos para quem a pronuncia. Tanto a loucura de Nietzsche, quanto o ostracismo científico vivido por Freud, ou a excomunhão de Jacques Lacan demonstram que a parrésia requer a coragem por ser essencialmente a abertura, pela palavra, de um espaço de risco. Para melhor esclarecer esse aspecto, Foucault opõe a parrésia a seu contrário, o enunciado performativo (FOUCAULT, 2011, p. 59 e seguintes). No enunciado performativo, tem-se também a exigência do contexto institucionalizado, na medida em que sua enunciação efetua a realidade enunciada a partir de uma relação socialmente codificada entre a coisa e a palavra. O presidente abre a sessão ao dizer “está aberta a sessão”, assim como os noivos realizam o casamento ao dizer “aceito”. Diante dos elementos instituídos da situação, segue-se um efeito previsível, regulado de antemão, efeito codificado que é precisamente aquilo em que consiste seu caráter performativo.
É em razão dessa relação de força que constatamos, por exemplo, que um excelente artigo de psicanálise publicado numa revista do interior de Minas Gerais pode ter intensidade existencial mínima no campo freudiano, por melhor que ele possa
A verdade extra-moral de Nietzsche a Freud 206 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Seria, aliás, uma contradição performativa alguém pedir a palavra dizendo “com a permissão da parrésia”. A parrésia dispensa o protocolo da permissão, posto que ela determina uma relação verdadeira entre o que o sujeito diz e o que ele diz, sem garantia de validação externa do que é dito. Mas, se a parrésia dispensa a validação do referente externo sobre o qual se ancora a demonstração filosófica, de que modo podemos distinguir a necessidade do seu proferimento dos enunciados sem necessidade que se apresentam, por exemplo, no discurso sofista? Como pensar a verdade como puro efeito do discurso, em sua estrutura ficcional, e ao mesmo tempo reconhecer a necessidade de sua imposição? Pois se por um lado, a atitude do parresiasta não é fruto de um mero voluntarismo, por outro lado a verdade do que ele enuncia somente existe como efeito de seu próprio discurso. Seria, então, o caso de dizer que o discurso se impõe algo que ele mesmo cria? Ao pensarmos, por exemplo, na parrésia lançada por Antígona sobre Creonte, constatamos que, se o “dizer-a-verdade” a ela se impõe, o ritual fúnebre de Polinices que sua palavra convoca não existe como algo dado, mas como necessidade resultante de sua própria exigência discursiva. Dessa perspectiva deriva que o “dizer-a-verdade” da parrésia não busca uma verdade externa ao discurso; é um dizer fundado sobre a suposição de que o próprio discurso confere a uma verdade sua existência, ou sua intensidade existencial, para retomar o termo forjado por Alain Badiou em sua Lógica dos mundos (BADIOU, 2006). No nível da parrésia interessa menos desvelar algo que já existe do que criar a existência de algo por meio de um ato do dizer. Está em questão uma polarização discursiva do mundo que confere ao objeto sua intensidade existencial, fazendo com que elementos até então indistintos numa determinada configuração possam manifestar maior grau de existência em outro, segundo os modos de organização transcendental da identidade e da diferença, regido por relações de poder.
internacional
II
A consciência que antes tinha intensidade existencial máxima, na fenomenologia de Husserl e Jaspers, apaga-se na mesma medida em que Freud vem iluminar o campo das formações do inconsciente. O problema é que a parrésia se coloca, por se ligar ao ato de fundação de uma nova relação do sujeito com a verdade, como uma figura da precipitação e do instante. Mas ninguém suporta parresiar permanentemente. É verdade que, num primeiro tempo, a parrésia aparece como uma figura de irrupção que atesta a presença do intelectual na mudança sofrida pelo profissional do saber, quando algo que ganha existência na transformação do discurso o obriga a assumir o risco de uma posição contrária à autoridade que ordena sua função. Mas há um segundo momento no qual o saber que abriga a existência desse algo novo necessita se estabilizar, para permitir justamente que esse algo não seja uma expressão fugaz, conferindo-lhe alguma permanência. É a ocasião em que o gesto do pensamento, que se manifesta na irrupção da parrésia, deve se estabilizar na constituição de uma doutrina. Sua eficácia agora depende não mais da paixão irruptiva da parrésia, mas do cálculo relativo à produção de um novo modo de configuração que viabilize a presença do novo texto no interior do contexto modificado pelo seu gesto. Para retomar uma categoria cara a Bordieu, diríamos que o trabalho agora consiste em criar um novo campo para o texto mediante a produção de um enclave através da transformação do contexto, como uma saída que se produz desde o seu interior. Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: Colóquio
Antonio Teixeira 207
ser, ao passo que um artigo medíocre publicado numa importante revista francesa gozará certamente de uma intensidade existencial maior. Se a função do discurso é, pois, a de engendrar uma configuração do mundo que confere intensidade existencial a seus elementos - no sentido em que algo que pode bem ser, sem, contudo, dispor de existência -, o efeito produzido pela parrésia é justamente o de um gesto que desestabiliza a distribuição das intensidades existenciais. Ao se alterar a configuração discursiva do mundo, podemos fazer existir maximamente o que antes não estava reduzido a nada, ao mesmo tempo em que notamos reduzir-se a quase nada o que antes tinha máxima existência. É o que fez Freud, como vocês sabem, com a psicologia de seu tempo.
Falamos, assim, da constituição do campo freudiano como um enclave gerado através da modificação que determina a nova configuração que seu discurso acolhe.
Rosa, Freud: II Colóquio internacional
A verdade extra-moral de Nietzsche a Freud 208 Nietzsche,
Para esse fim, é indispensável que o texto modifique o contexto, que o saber vá além da neutralidade da demonstração e intervenha sobre as relações de força que impediam a emergência desse algo distinto ao qual o novo discurso confere existência. É necessário, enfim, que o conjunto do saber assim gestado possa adquirir a unidade de uma obra, pois é somente por adquirir a forma da obra que o saber consegue modificar o contexto cultural em que se insere como jogo de forças no qual se prescreve a sua função. É através da obra que se constitui a superfície de refração que permite separar o texto como unidade relativamente autônoma no interior da pluralidade de determinações do contexto.Vale salientar, a esse respeito, que a aquisição da forma de obra pelo saber é um fenômeno de exceção. A maior parte do saber gerado num campo discursivo se dá fora da forma da obra, para se inscrever no modo habitual do que chamamos de escrito técnico ou monografia. A produção monográfica diz respeito ao saber demonstrativo neutro, quando aquele que o produz não interroga as relações de força geradoras do contexto que determina sua atividade. É nesse sentido que a ciência, uma vez estabelecida em seu campo doutrinal, deve produzir exclusivamente a monografia, abandonando a obra como produção a parte requisitada pela cultura. Há, contudo, o momento em que é preciso modificar o contexto para permitir a existência do texto. Isso ocorreu, no caso de Freud, pela força de uma decisão. Diante da impossibilidade de conformar sua investigação ao modelo científico de sua época, sem pôr a perder a verdade que se impunha à sua pesquisa clínica, Freud se viu obrigado a adotar o desvio pela forma da obra para estabelecer o que a publicação científica não lhe permitia. O famoso sonho da monografia botânica é paradigmático desse desvio: ao saber que seu colega Koller recebeu a glória pela pesquisa sobre a cocaína que ele havia iniciado, em volume comemorativo que recebera pelo correio, Freud pensa, melancolicamente, na monografia que deixou de escrever e na obra que demora a publicar (A Traumdeutung). Pessoa,
Flectere si nequeo superos acheronta movebo, escreve Freud, citando Virgílio, na epígrafe que se tornou o frontispício de “A Interpretação dos sonhos”. No dizer de Jean-Claude Milner, o sonho da monografia botânica soletra a dolorosa renúncia, por parte de Freud, do recurso à ciência normal e à monografia, com jubileus e laboratórios bem organizados, em razão da necessidade de recorrer à obra para criar um campo de força propício a uma nova forma de saber que se inaugura. Embora houvesse partido rumo à conquista da ciência biomédica (flectere Superos) pela via da monografia, sua investigação o obriga a se colocar fora da ciência normal e substituir a via aberta da atividade científica pelo campo subterrâneo da cultura (Acheronta movebo). (MILNER, p. 16-17).
Antonio Teixeira
FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas.Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 1973.
FOUCAULT, M. A coragem da verdade. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
Referências BADIOU, A. Logique des mondes. Paris: Seuil, 2006.
FREUD, S. Die Traumdeutung. Gesammelte Werke. Frankfurt: Fischer Verlag, 1999. p. 541-546. MILNER, J.-C. L’ouvre Claire. Paris: Seuil, 1995. NIETZSCHE, F. Das Philosophenbuch – Theoretische Studien. Paris: Flammarion, RANCIÈRE,1969.
J. O inconsciente estético. Tradução de Mônica Costa Neto. São Paulo: Editora 34, 2009. 209Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
José Eduardo Reis
1 Sobre o tema do milenarismo e das suas relações com a utopia, ver especialmente as obras clássicas Utopian thought in the western world e In the pursuit of the millenium, referidas na bibliografia final.
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A vertente utópica-milenarista do pensamento de Fernando Pessoa
O pensamento profético-utópico de feição milenarista tem a sua génese em textos bíblicos veterotestamentários (e.g., Isaías 11, 1-9; Daniel 2, 7) e novitestamentários (e.g., Apocalipse 20, 4-6) e, na sua idealização das condições temporais dos tempos futuros, constitui um importante e decisivo veio na configuração do espírito da utopia ou, em termos mais prosaicos, do utopismo em geral1. Assim, se o não-lugar da utopia é o melhor lugar para imaginar a perfeição possível, o ainda-não-tempo-futuro – simétrico, pela disponibilidade em ser imaginariamente idealizado, do mítico passado original – é talvez o melhor tempo para postular um estádio superior, por mais indefinido ou indeterminado que seja, do processo histórico de aperfeiçoamento ôntico-social. No futuro imanente ou no futuro transcendente havemos de ser mais ou melhor do que somos, no futuro havemos de cumprir a nossa total libertação das malhas da necessidade. Assim falam os profetas da graça, os mediadores intérpretes das leis da história ou da vontade de Deus, os utopistas do tempo que há-de suceder, ou da eternidade que está além do tempo. A cultura literária portuguesa atesta, em diferentes momentos da sua história, nomeadamente em momentos de iminente ou de efetiva perda da sua independência nacional, como o da crise da sucessão dinástica da coroa portuguesa de 1383-85, ou o do domínio castelhano de 1580 a 1640, e mediante registos escritos de autoria e índole variada – da crónica historiográfica ao ensaio filosófico, do documento panfletário ao poema profético, mais raramente à narrativa literária –, exemplos múltiplos da reprodução do espírito da utopia na sua vertente milenarista-profética, isto é, do utopismo enquanto esperançoso vaticínio do renovar benéfico do mundo. São textos que, em geral, acusam ideologicamente
Comecemos, portanto, por anotar o descrédito, se não mesmo a reprovação que mereceu a Fernando Pessoa o wishful thinking solipsista e inconsequente, registrado num dos múltiplos fragmentos que integram o seu discurso sobre Portugal e sobre os portugueses, discurso cuja composição se distendeu obsessivamente e atravessou, como um verdadeiro cantus firmus, os vários ciclos que definiram e deram forma à sua
(Das Objectiv-Real Möglishe)2, que dá conteúdo à utopia concreta, a que expande as virtualidades positivas e perfectíveis do presente em direcção a um melhor futuro, a que realiza a revelação do novo, a que se sintoniza com o rumo e com o desenlace positivo e luminoso da história.
uma nítida, discreta ou recriada influência da componente profética da Bíblia e da tradição oracular a ela associada ou dela heterodoxamente derivada. São textos, na sua maioria de conteúdo temático nacionalista, portadores, em consonância com o modelo prospectivo que lhes serve de inspiração, de uma mensagem messiânica sobre o tempo a vir e sobre a consumação terrena da futura bem-aventurança existencial. Consciente ou não das más leituras ou dos deturpados efeitos das suas prognoses, o utopista-milenarista não vê na eventual degenerescência da procura de perfeição um óbice para suspender a denúncia do dado exaurido e já sucedido, não se coíbe em dar curso ao princípio da esperança e em promover o anúncio das possibilidades ainda-não-sucedidas inscritas na realidade material circundante. Não confunde, nem ignora a distinção entre a mera “possibilidade formal” de um sonhar acordado irresponsável, de um wishful thinking, nas palavras de Bloch, que caracteriza o utopismo abstracto e incoerente, e a “possibilidade objetivamente-real”
2 Relativamente às quatro figuras da categoria do possível enunciadas por Ernst Bloch, o possível formal (Das formal mögliche), o possível objetivo ao nível dos factos (Das sachlich-objectiv mögliche), o possível conforme a estrutura do objecto real (Das sachhaft-objektgemäss mögliche), o possível objetivamente real (Das objectiv-real mögliche). (cf. BLOCH, 1976, p. 270-291). vertente utópica-milenarista do pensamento de Fernando Pessoa
A
212 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
No contexto da cultura literária portuguesa do século XX, Fernando Pessoa retomou com impressionante vigor e com consciente deliberação a utopia-profética (ou, nas suas palavras, o mito) do quinto império, requalificando o seu conteúdo, alijando-o das suas mais imediatas implicações bíblico-teológicas e procurando fundamentá-lo não como mera possibilidade formal, mas como possibilidade objetivamente real.
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No que concretamente diz respeito à constante visitação que Pessoa fez do tema do quinto império, basta ler o volume de textos ensaísticos sobre a sua ideia de Portugal, organizado por Joel Serrão, para se ficar a perceber a importância relativa que esse tópico ocupou no conjunto da sua multímoda obra. Esta insistência pessoana na prognose do futuro de Portugal feita em termos profético-messiânicos está, de resto, estudada e provada por Alfredo Antunes, adentro dos parâmetros da tese que desenvolveu sobre a temática do saudosismo na obra do poeta. Em jeito de conclusão escreve este autor: “Reunindo a multiplicidade dos textos profético-messiânicos de Fernando Pessoa pode detetar-se neles uma tríplice atenção: o sentido místico nacionalista, o sentido especificamente político e o sentido civilizacional.”. (ANTUNES, 1983, p. 465).
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Apontamento com data indeterminada – embora, por indicação textual, se possa claramente inferir que tenha sido escrito depois da implantação da Primeira República – o que nele nos interessa destacar é o reconhecimento que Pessoa, com arguta e displicente ironia, faz dos patéticos efeitos deste “fado” português, em que cada qual se revê como um autoconvencido senhor imperial à medida de um império desenhado e projetado pela sua frívola fantasia e ridícula autoestima. Eis o que para o poeta é sintoma de impotência existencial, prova da exorbitante megalomania, testemunho típico de um modo decadente de estar português, o que sonha, frustre e inconsequentemente, com as velhas glórias do passado para justificar a cinzenta modorra do seu medíocre presente e se demitir de se lançar à descoberta do que falta ser descoberto: o novo futuro. Derrogada e escarnecida a vanidade onírica sem conteúdo
José Eduardo Reis213
vida e à sua obra literária. Intitula-se significativamente “Ecolalia interior”, sendo que a ecolalia é uma espécie de repetição automática ou eco mecânico de uma palavra ou ideia – uma obsessão, portanto. Reza assim: O português é capaz de tudo, logo que não exijam que o seja. Somos um grande povo de heróis adiados. Partimos a cara a todos os ausentes, conquistamos de graça todas as mulheres sonhadas, e acordamos alegres, de manhã tarde, com a recordação colorida dos grandes feitos por cumprir. Cada um de nós tem um quinto império no bairro, e um auto-D. Sebastião em série fotográfica do Grandela. No meio disto (tudo), a República não acaba. Somos hoje um pingo de tinta seca da mão que escreveu Império da esquerda à direita da geografia. É difícil distinguir se o nosso passado é que é o nosso futuro, ou se o nosso futuro é que é o nosso passado. Cantamos o fado a sério no intervalo indefinido. O lirismo, diz -se, é a qualidade máxima da raça. Cada vez cantamos mais um fado. O Atlântico continua no seu lugar, até simbolicamente. E há sempre Império desde que haja Imperador. (PESSOA, 1979, p. 79).3
Um ano antes da sua morte, em 1934, Pessoa publica o único livro que deu à estampa em toda a sua vida, o poema épico Mensagem, acontecimento aparentemente insignificante e de teor anedótico, não representasse ele o fecho de um arco vital e constituinte na sua produção literária, o do profetismo-messiânico, que, a par de outros arcos igualmente vitais e destacáveis, o saudosista, o sensacionista, o modernista, o dramático-heteronímico, o neo-pagão, o gnóstico, etc., etc., configuram, no conjunto da sua radial projecção e convergente interseção, uma originalíssima e genial construção estético-literária e testemunham um dos mais complexos casos de identidade autoral na história universal da literatura.
pensante nem propósito atuante, Pessoa, como que por contraste exemplificador, procurará redimensionar e revitalizar, em termos exegético-doutrinais e metafóricoliterários, as virtualidades pragmáticas do sonho acordado, a matéria-prima da utopia, ensaiando converter o nefelibatismo das suas possibilidades formais em esperançosas possibilidades reais. É esse exercício de abertura e de renovação das potencialidades objetivas inscritas na utopia mítica do quinto império, é essa tentativa de reciclar o critério de verdade dessa profecia milenarista e nacionalizada, atualizando-a e adequando-a aos parâmetros da cultura portuguesa da primeira metade do século XX, que ocuparão a criatividade intelectual daquele Fernando Pessoa que a si mesmo se definiu como “nacionalista místico e sebastianista racional”. (COELHO, 1983, p. 635).
À semelhança de Vieira, ou de qualquer assumido poeta-profeta, também Pessoa recorda para demonstrar, reprova para desmistificar, lamenta para sublimar, exorta para estimular, prediz para utopizar. Sigamos este roteiro em cinco pontos para chegarmos à tentativa de perceber quais os contornos e o conteúdo da sua ideia de quinto-império.
Do ponto de vista profético-messiânico, que é o que nos interessa aqui referir, a Mensagem, na sua estrutura tripartida (Brasão / Mar Português / o Encoberto) – e é bom lembrar que a despeito da sua coerente unidade temática nela se enlaçam composições poéticas escritas (e algumas até publicadas) em momentos relativamente espaçados, entre 1913 e 1934 – pode ser lida como uma espécie de súmula poética ilustrando dois A vertente utópica-milenarista do pensamento de Fernando Pessoa 214 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Pessoa-profeta recorda, pois, para demonstrar. Recorda na Mensagem distintos momentos e distintos protagonistas da história coletiva da nação, como se mediante o seu desfile procurasse singularizar discretos atributos do povo português. Fá-lo, porém, sem ligações narrativas explícitas, numa sequência de quadros relativamente independentes, numa exposição de epigramas lapidares subordinados a uma sintaxe complexa em que intervêm o mito, a cronologia e o símbolo, para além de uma muito provável numerologia esotérica, que francamente nos escapa.
Logo no primeiro poema da Mensagem, ao tematizar a antropomorfização do continente europeu, Pessoa recorda que, em relação à posição dos membros superiores do corpo humano (a Itália e a Inglaterra), o contorno litoral do território português demonstra, por analogia, ter o perfil de um rosto em acto de contemplação, em pose de indefinida vigilância, denunciador de uma natural conformação perscrutante, prospetiva, visionária: “A Europa jaz, posta nos cotovelos: / De Oriente a Ocidente jaz, fitando, [...] // Fita com olhar esfíngico e fatal, / O Ocidente, futuro do passado. // O rosto com que fita é Portugal” (PESSOA, [s.d.], p. 21). Na estrutura interna da obra, estes versos do poema-exórdio da Mensagem parecem ocupar a função retórica da proposição das epopeias clássicas, isto é, a função de apresentação do tema a narrar, neste caso, e uma vez que não se trata propriamente de uma narração, do tema a simbolizar, o de um Portugal investido de um missão providencial, ou, por outra palavras, o de um Portugal-nação-território-sinédoque-dos-rostos-dos-seus-heróisprovidenciais. Os versos anteriormente citados datam de 1928. Em 1917, Pessoa, por via heteronímica e pela voz bem menos serena do engenheiro Álvaro de Campos, José Eduardo Reis215Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
níveis imbricados de reflexão: tanto da reflexão feita pelo seu autor acerca da procura de um sentido metafísico e teleológico para a razão de ser da nação portuguesa, de um sentido que não se esgota na narração positiva dos acidentes da sua história e que não se quer limitado à descrição quantitativa e material do território, do povo e da língua que a definem espácio-temporalmente, como também, por antonomásia, da reflexão e justificação de Pessoa acerca da sua automissão profética e até messiânica, da sua autognose enquanto vate do Portugal do futuro.
4 Termina assim o “Ultimatum”: “E Proclamo também: Primeiro: O Super-homem Será, Não o Mais Forte, Mas o Mais Completo! E proclamo também: Segundo: O Super-homem Será, Não o Mais Duro, Mas o Mais EComplexo!proclamo também: Terceiro: O Super-homem Será, Não o Mais Livre, Mas o Mais Harmónico!”. (PESSOA, 1990, p. 130).
Humanidade
O rosto da Europa referido por Pessoa, ou como também diz Camões, de modo igualmente antropomórfico “o cume da cabeça / De Europa toda” (CAMÕES 1979, p. 143, Canto III, estr. 20), que é a nação-Portugal a fitar o largo horizonte, símbolo do ilimitado, símbolo da eternidade, tem a aparência esfíngica dum oráculo; desempenha por isso funções de predição e é isomorfo do rosto, ou de um dos rostos, do poeta que fita o Atlântico e saúda o Infinito. A nação possuidora do dom (profético) de ver o futuro omega no passado alpha, isto é, de intuir no presente o eterno, tem o seu correspondente ontológico no dom (profético) do poeta que, ao saudar o infinito, nele vê a promessa de um devir mais perfeito e adequado a um homem mais completo, mais complexo e mais harmónico.4 Mas regressemos à Mensagem. Pessoa recorda aí, além do rosto da nação, rostos de figuras mítico-simbólicas (Ulisses, Viriato), e de figuras reais-simbólicas (do Conde D. Henrique ao vice-rei da Índia Afonso de Albuquerque), e de figuras profético-messiânico-simbólicas (Bandarra, Padre António Vieira, D. Sebastião) que protagonizaram, nos “campos de Portugal”, eventos-mítico-real-simbólicos, e cumpriram, alguns miticamente (Ulisses, Viriato), outros involuntariamente (Conde D. Henrique), outros imperativamente (D. Duarte), outros coerentemente (D. Pedro, regente do reino) um destino histórico-pessoal indissoluvelmente ligado ao destino histórico-providencial da nação. Mas o poeta também recorda rostos de personalidades reais que sonharam com possibilidades futuras e anteviram realidades por suceder, como o rei D. Dinis, “[o] plantador de naus por haver o rei-poeta que, nos seus cantares de amigo, buscou o oceano por achar e, na sua obra de fomento agrícola, na fala dos pinhais deu a ouvir o marulho obscuro, o som presente desse mar futuro”. (PESSOA, [s.d.], p. 31)
A vertente utópica-milenarista do pensamento de Fernando Pessoa 216 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
proclamara no “Ultimatum” “em altos gritos e para um futuro próximo a vinda de uma matemática e perfeita!” (PESSOA, 1990, p. 130), e proclamara “isto bem alto e bem no auge, na barra do Tejo, de costas para a Europa, braços erguidos, fitando o Atlântico e saudando abstractamente o Infinito” (PESSOA, 1990, p. 130).
Pessoa, na linha do pensamento de Padre António Vieira –, e é esse o sentido da segunda parte da Mensagem – recorda então para demonstrar a função utópica do conhecimento do “mar português”, entendido este mar não tanto como uma expressão adjetiva da grandeza nacional, mas antes como uma dupla alegoria representativa (i) das possibilidades reais, das possibilidades possíveis – digamos com ênfase pleonástica – do sonho acordado, as que conduzem à efetiva descoberta do novo, mas também (ii) das possibilidades simbólicas de transcendência do mundo dado, do mundo histórico, o dos (quatro) impérios materiais.
Reis217
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Na nossa linha de leitura apoiada em Bloch, a alegoria do “mar português” serve, pois, na primeira das duas acepções, para ilustrar o processo de conhecimento ideal (o que sustém a configuração de utopias) que, jogando com a possibilidade (dialética) e vagamente antevista (ainda não consciente), chega, pelo caminho da esperança, a objetivar-se e a adquirir forma concreta. Este processo de conhecimento em que o ideal devém real é exemplarmente demonstrado no poema “Horizonte”, sobretudo na sua segunda estrofe, representativa do movimento de aproximação das naus descobridoras a terra incógnita. Aí se descreve o lento mas nítido divisar, primeiramente da “encosta / Em árvores onde o Longe nada tinha” e, depois, o desembarque dos nautas nesses lugares de aparição onde há “sons e cores, aves, flores,/ Onde era só, de longe a abstrata linha” (PESSOA, [s.d.], p. 58). Esta progressiva definição e clarificação das linhas de uma realidade obscuramente entrevista, serve, portanto, de alegoria ao processo de conhecimento ideal gerador da utopia concreta, explicitada, na estrofe final, nos seguintes termos: “O sonho é ver as formas invisíveis / Da distância imprecisa, e, com sensíveis / Movimentos da esp’ rança. e da vontade, / Buscar na linha fria do horizonte / A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte / Os beijos merecidos da Verdade”. (PESSOA, [s.d.], p. 59).Mas este tipo de sonho (utópico), figurado pelo mar português na descoberta de novas realidades, não conhece, na “mensagem” de Fernando Pessoa, limites, não cessa com o desembarque e com o espanto diante do novo, é-nos apresentado como sendo mesmo avesso à sua apropriação, não se confunde com a expectativa gananciosa
José Eduardo
É este um sonho utópico já de outra qualidade, meta-utópico, digamos assim, processando-se – e é este o assunto principal da terceira parte da Mensagem – num plano de consciência indutor da esperança teleológico-messiânica, sonho-visão de conteúdo milenarista, mas de livre composição poética, sem contaminações de dogma, heterodoxo, portanto, apesar das suas explícitas referências ao universo simbólico cristão. Trata-se afinal de um sonho antigo, essencial, supra-individual, que concerne o destino do objeto sonhado, Portugal, e cujos “Avisos” foram dados por três profetas: o primeiro por Bandarra “Este, cujo coração foi / Não português mas Portugal, o que Sonhava [...] / O Império por Deus mesmo visto” (PESSOA1966, p. 91)5; o segundo por António Vieira, “Imperador da língua portuguesa” que, “No imenso espaço seu de meditar, / Constelado de forma e de visão”, anteviu o surgimento do Encoberto e “no céu amplo de desejo, / A madrugada irreal do quinto império / [Doirando] as margens do Tejo” (PESSOA, 1966, p. 92); o terceiro, sem identificação explícita, mas claramente identificado com a voz do próprio Pessoa, que se interroga sobre a natureza e a hora do segundo advento, sobre o agente messiânico que o deverá anunciar e sobre 5 Esta mesma tese acerca da identidade colectiva de Bandarra é desenvolvida por Pessoa num fragmento em prosa, cujo incipit reza assim: “É Bandarra um nome colectivo, e designa não um só homem, o primeiro português que teve a visão profética dos destinos do país, senão também aqueles outros, que lhe seguiram [...]”. PESSOA, 1979, p. 175) vertente utópica-milenarista do pensamento de Fernando Pessoa
218 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
A
da obtenção de um bem, não se degrada em políticas de colonização e espoliação, não estanca nem se compraze diante do objeto revelado, vai adiante como um rumor que permanentemente brota do fundo do ser, de um rumor que “vem no som das ondas”, mas “Que não é a voz do mar ?”, é antes a “voz de alguém que nos fala, / Mas que, se escutamos cala, / Por ter havido escutar.” (PESSOA, [s.d.], p. 85). É por aí, conduzido por essa voz interior, inapreensível e profunda, por esse murmúrio não consciente ou não-convertido-em-instrumento-de-apego, que o sonho utópico, uma vez ancorado na realidade, terá de cuidar em não se converter em sono ideológico, menos ainda em título de posse, mas de prosseguir na sua aspiração sem fim, na “busca de quem somos, na distância / De nós”( PESSOA, 1966, p. 99), em demanda do “porto sempre por achar” (PESSOA, 1966, p. 61) ou “das ilhas afortunadas das terras sem ter lugar / Onde o Rei mora esperando.” (PESSOA,1966, p. 86).
Mas a terra-nação portuguesa e os seus seres constituintes, isto é, a suma dos portugueses, encontram-se, no presente histórico em que o poeta escreve, alheados desta sua missão. Indiferentes ao apelo do mar que lhes inspirou a abertura de novos horizontes espaciais e a execução de um pioneiro programa de desocultação do real, parecem agora desdenhar da sua vocação indagadora, a de revelar no mundo e ao mundo outras possibilidades existenciais não imediatamente tangíveis. Para os portugueses, a “substância utópica”6 do mar deixou de ser simbolicamente apelativa e, por isso, propendem a reduzi-la a uma mera evocação das façanhas materiais dos 6 Utilizamos aqui uma expressão de Gilles Lapouge para definir a qualidade utópica representada simbolicamente pelo mar.
José Eduardo Reis219
a possibilidade de enlace entre a “A Nova Terra e os Novos Céus” (PESSOA, 1966, p. 93). O “mar português” devém, portanto, num segundo nível da mensagem utópica de Pessoa, uma alegoria das possibilidades infinitas de transcendência e de redenção final do mundo dado – “Deus ao mar o perigo e o abismo deu / Mas nele é que espelhou o céu.” (PESSOA, 1966, p. 70). A enunciação da concretização destas possibilidades sem horizontes materiais definidos determina, consequentemente, uma mudança na qualidade do discurso ideal da Mensagem, que deixa de ser evocativo e demonstrativo da utopia atuante para passar a ser prospetivo e especulativo-interrogativo da utopia messiânica e profetizante:Quecosta
é que as ondas contam / E se não pode encontrar / Por mais naus que haja no mar? // Haverá rasgões no espaço / Que dêem para outro lado, / E que, um deles encontrado, / Aqui, onde há só sargaço, / Surja uma ilha velada, / O país afortunado / Que guarda o Rei desterrado / Em sua vida encantada? (PESSOA, 1966, p. 102).
Eis, portanto, e no essencial, o sentido profético e messiânico da mensagem pessoana que nos é comunicada sobretudo na terceira parte do poema: o sonho-desejo da nação que outrora permitiu dar a conhecer o desconhecido mar da terra para que a terra ficasse mais unida pelo mar, por razões de coerência missionário-reveladora deveria, agora, dar a conhecer o desconhecido mar do céu para que o céu baixasse finalmente à terra e do enlace ressurgisse a unidade original perdida.
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
seus antepassados, a ignorar o valor espiritual do sentido da descoberta. O próprio poeta lamenta-o –“Screvo meu livro à beira-mágoa” (PESSOA, 1966, p. 93) –; como se pelo acto da escrita ele procurasse sublimar o estado de deserção, apatia e decadência de um Portugal a definhar na sua mediocridade auto-indulgente, sem dar sinais de querer cumprir o que prometia a sua vocação descobridora – “Nem rei nem lei, nem paz nem guerra, / Define com perfil e ser / Este fulgor baço da terra / Que é Portugal a entristecer” (PESSOA, 1966, p. 104) –como se pela reprovação desmistificadora desse entorpecimento generalizado e pelo aprofundamento da consciência do enevoado presente circunstante – “Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro. / Ó Portugal, hoje és nevoeiro” (PESSOA, 1966, p. 104) – o poeta buscasse a força renovadora da esperança utópica – “Ah, quanto mais ao povo a alma falta, / Mais a minha alma atlântica se exalta” (PESSOA, 1966, p. 71); como se essa esperança, mobilizadora dos seus excepcionais dons de ser-criador, o chamasse, a ele poeta-visionário, a assumir a função profética de revalorizar o sentido dos nacionais “Símbolos” (título do primeiro subcapítulo da terceira parte da Mensagem), especialmente dos que falam de uma nova era ou de um império a ser inaugurado por um vulto messiânico, por um “Encoberto” (o título da terceira parte da Mensagem) que há-de surgir desse nevoeiro: “E em mim, num mar que não tem tempo ou ‘spaço / Vejo entre a cerração teu vulto baço / Que torna. // Não sei a hora, mas sei que há a hora.” (PESSOA, 1966, p. 72).
A vertente utópica-milenarista do pensamento de Fernando Pessoa 220
Ora, de entre os cinco nacionais símbolos, enumerados por Pessoa, que configuram o sonho utópico português, o segundo tem por título “O Quinto império”. Todavia, mais do que procurar definir ou determinar a sua possível natureza, este império é-nos apresentado como uma imprescindível figuração do descontentamento anímico, como uma necessidade lógica ou causa final da indagação humana, como uma realidade possibilitada pela idealização activa, anti-conformista, obreira do desejo profundo ou da visão da alma. São cinco as estrofes que dão corpo a este poema. As três primeiras de reprovação ou censura por aqueles seres apáticos, conformados ao estado morno Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud:
II Colóquio internacional
necessariamente
da vida, imunes à dúvida investigadora, vegetando na sua acrítica subordinação à lógica das coisas instituídas e à aparência das ideias confortantes mas alienantes da ideologia, por aqueles seres que não sonham senão com o seu pequenino bem-estar e que reproduzem, no domínio imperial da sua vida, as leis fatais dos impérios que se sucederam na história, “Grécia, Roma, Cristandade, / Europa – os quatro se vão / Para onde vai toda a idade” (PESSOA, 1966, p. 83). O quinto império surge então na Mensagem como “Símbolo” de novas e insondáveis possibilidades tanto relativas ao ser como ao conhecer: a sua ontologia é-nos representada como uma condição-vital-outra, que arranca do descontentamento em se viver apenas o contentamento da duração animal da vida, e que se constrói a partir de uma vontade que rompe com as leis cíclicas da biologia e da história – “Triste de quem é feliz / Vive porque a vida dura. / Nada na alma lhe diz / Mais que a lição da raiz / Ter por vida a sepultura” (PESSOA, 1966, p. 82). Quanto às condições que possibilitam o seu conhecimento (a sua gnoseologia), elas são obviamente de tipo ideal-visionário, configuram a actividade da “alma” do sonhador que, de tanto sonhar, se transforma na coisa sonhada, e de tanto esperar vê cumprida a cessação e a transcendência das leis monótonas do tempo histórico –“Eras sobre eras se somem / No tempo que em eras vem. / Ser descontente é ser homem. / Que as forças cegas se domem / Pela visão que a alma tem”. (PESSOA, 1966, p. 82-83).
Com a sua subtil e fina dialéctica, Pessoa discorre neste seu manuscrito, datado de 1935, o ano da sua morte, sobre a importância do patriotismo como princípio axiológico indispensável à perfetibilidade da condição geral humana. E fá-lo em José Eduardo Reis221Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
E porque nos demorámos na Mensagem, convém esclarecer que, de entre a vastíssima e fragmentada obra em prosa de Fernando Pessoa que anda editada, há uma curiosíssima nota explicativa sobre o seu poema épico, na qual o poeta procura elucidar algumas dúvidas e perplexidades levantadas pelos seus leitores relativamente ao conteúdo espiritual desse seu livro, articulando esse esclarecimento com uma justificativa sobre a sua defesa pública da Maçonaria, sociedade secreta visada pela repressão político-ideológica então em curso.
função de uma sociologia elementar, baseada na nomeação de uma constelação triádica de vetores, que ele identifica como sendo as três principais “realidades sociais”, a saber, o indivíduo, a nação e a humanidade. Subordinando essa elementar construção sociológica à lógica de explicação finalista do processo histórico, Pessoa começa, pois, por atribuir uma dupla valência à entidade nação, definindo-a, por sinédoque, como “a suma viva dos indivíduos que a compõem” (PESSOA, 1966, p. 437), e tomando-a como meio ou instrumento de transformação e de regeneração da humanidade, isto é, como órgão para o advento de um estádio mais perfeito de conduta e convivência humanas. Mas, além do reconhecimento que confere ao papel instrumental da nação na execução desse projecto de emancipação cósmica, há nesta sua breve sistemática uma evidente valorização do papel essencial do ser-indivíduo, encarado como livre sujeito espiritual (livre sonhador), protagonista irredutível e co-responsável na modulação do coletivo social. Curiosamente, e muito paradoxalmente, Pessoa reclama-se, neste seu apontamento, da sua educação liberal inglesa tanto para justificar o tom patriótico como para fundamentar as formulações messiânicas e profético-utópicas que expendeu no livro Mensagem, livro que, diga-se a propósito, esteve para se intitular Portugal.
Freud: II Colóquio internacional
Escreve ele: Mas, de facto, fui sempre fiel, por índole, e reforçada ainda por educação – a minha educação é toda inglesa –, aos princípios essenciais do liberalismo – que são o respeito pela dignidade do Homem e pela liberdade do Espírito, ou, em outras palavras, o individualismo e a tolerância, ou, ainda, em uma só palavra, o individualismo fraternitário. (PESSOA, 1966, p. 435). Esclarecida, pelo próprio autor, a índole subjectivista e anglicista da matriz doutrinal do épico poema nacionalista-português, Pessoa passa a descodificar, em termos profanos, a mensagem hermético-rosicruciana que ele afirma atravessar o conteúdo do livro, isto é, passa a traduzir num código secular, acessível aos nãoiniciados, o conteúdo esotérico da sua obra.
Assim, das três realidades sociais que para Pessoa têm forma concreta e pertinência sociológica, a mencionar, o indivíduo, a nação e a humanidade, a prioridade Pessoa, Rosa,
A vertente utópica-milenarista do pensamento de Fernando Pessoa 222 Nietzsche,
essencial recai na tríplice dimensão ôntico-cognitivo-axiológica da individualidade humana: “o indivíduo é a realidade suprema porque tem um contorno material e mental – é um corpo vivo e uma alma viva” (PESSOA, 1966, p. 435). Tanto o indivíduo como a totalidade de todos os indivíduos, a humanidade – a qual, no juízo de Pessoa, é possuidora de maior coeficiente de concretude material que a entidade Nação –são, por analogia com a morfologia arbórea, as “raízes” da vida social. “A Nação –todavia – sendo uma realidade social, não o é material: é mais um tronco que uma raiz.” (PESSOA, 1966, p. 436). A nação ocupa, portanto, nesta dialéctica triádica, uma função mediadora e catalisadora: mediadora, porque serve de trânsito entre a conduta (ideal/perfetível do indivíduo) e a realização do destino (final/ideal) da humanidade; catalisadora, porque promove o sentimento gregário do patriotismo, condição de solidariedade anímica que há-de generalizar-se ao todo social, que é a humanidade.
A super-Nação é, ao fim ao cabo, a condição indispensável para o aparecimento do tal Super-Homem proclamado “em altos gritos” por Álvaro de Campos, “saudando abstractamente o futuro”.
“O Indivíduo e a Humanidade são lugares, a Nação o caminho entre eles. É através da fraternidade patriótica, fácil de sentir a quem não seja degenerado, que gradualmente nos sublimamos, até à fraternidade com todos os homens”. (PESSOA, 1966, p. 436).
José Eduardo Reis223Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
E a dialética triádica pessoana prossegue, agora subsumindo as entidades com contornos materiais mais definidos, do indivíduo e da humanidade, à natureza do termo intermédio, de contornos materiais mais esbatidos, mas talvez por isso mais essenciais, da nação, termo de passagem (o caminho, o tronco) ou factor instrumental para se alcançar o termo final “desejável”, a consumação de uma realidade social futura de qualidade mais perfeita e superior, designada por “super-Nação”. É esta última uma entidade ideal, obviamente articulável com as entidades ideais, não mencionadas explicitamente neste seu apontamento, da super-individualidade e da super-humanidade.
A nação é, portanto, uma realidade social da maior importância na criação dessa outra realidade desejada, a super-Nação, e isto devido, precisamente, à sua função instrumental-redentora, devido, utilizando a linguagem tradicional da escatologia
bíblica, à sua função messiânica. E, para Fernando Pessoa, de acordo com o que havia deixado implícito na Mensagem, a nação investida dessa função messiânica não era outra senão a portuguesa, mesmo que no presente histórico ela se mostrasse adormecida e embotada para cumprir essa missão.
Eis, portanto, como por vias mais secularizantes e menos esotéricas, Pessoa fornece uma explicação-paráfrase do tema sugerido na terceira parte da Mensagem sobre a possibilidade, aberta pela nação portuguesa, da criação de um futuro mais luminoso habitado por uma humanidade mais “completa, mais complexa e mais harmónica”, ou, por outras palavras, por uma super-humanidade – conceito este cujo conteúdo, diga-se a propósito, nos parece estar mais próximo da noção de humanidade globalizada que converge para um ponto de transcendência, como preconizou Teilhard de Chardin, do que da noção de humanidade genericamente medíocre e conduzida por super-heróis, pouco dados à empatia com as “fraquezas” da compaixão, como razoou Nietzsche.É impossível arrumar, como se sabe – muito embora ele-próprio o tivesse feito com vista à edição póstuma do seu imenso espólio literário –, em envelopes selados a obra de Pessoa, de sujeitá-la a categorias fechadas; as temáticas do nacionalismo literário e do nacionalismo profético não fogem, portanto, à regra e, no conjunto da sua poliédrica produção, devem ser cuidadosamente tratadas e interpretadas. Pessoa é demasiado complexo para ser reduzido a uma qualquer interpretação totalizante e sobredeterminante, para ser decifrado por uma explicação monocausal. Não há dúvida, porém, que o futuro da nação-Portugal e momentos paradigmáticos da sua história real e mítica, ofereceram-se-lhe como permanente objecto de tratamento idealizante, profético-utópico. Para além da Mensagem, são de facto muitos e variados os fragmentos em prosa que testemunham esse seu empenho teórico-especulativo, como se no seu disperso e intermitente conjunto configurassem um proto-tratado profético, deliberadamente incompleto, e recriassem, numa perspectiva adaptada à eufórica desordem ideológica do século XX, o projecto também incompleto, delineado no também convulsivo e efervescente século XVII, da História do Futuro, de Vieira.
A vertente utópica-milenarista do pensamento de Fernando Pessoa 224 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
São fragmentos que testemunham o modo de Pessoa praticar, talvez nas horas de maior frustração ou de mais vigorosa inspiração, a esperança no futuro do indivíduo, da nação e da humanidade, e que, ao longo da sua vida, foi compondo com indesmentível força de convicção; são anotações soltas que funcionam como o reverso ideal da conjuntura histórica real que lhe era dada viver, pensamentos sobre uma temática prospetiva que, no seu conjunto, e, recuperando uma consagrada expressão milenarista judaico-cristã, nomeou sob a designação do quinto império para significar a hipótese desejada de uma nova ordem universal, um império cultural e civilizacional que teria por alavanca a nação portuguesa, por voz profética a sua própria e por agente messiânico a figura simbólica do Encoberto, um D. Sebastião, com o qual o próprio Pessoa se parece identificar. Para logo advertir: “todo o Império que não é baseado no Império Espiritual é uma Morte de pé, um Cadáver mandando.” (PESSOA, 1979, p. 225).
José Eduardo
Reis225
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Para Fernando Pessoa, o quinto império seria então português, não, obviamente, porque Portugal tivesse a missão, como sustentara Vieira, de comandar e administrar em nome de Deus o mundo inteiro, não obviamente porque Portugal fosse o lugar de nascimento de um imperador, representante do poder secular, com a função messiânica de partilhar com o Papa, representante do poder espiritual, a governação diferida de Cristo por um período de mil anos, mas porque a nação portuguesa estava destinada a inaugurar uma forma última de síntese cultural-espiritual.
Na lógica profética de Pessoa, claramente tributária de uma concepção evolutivo-progressiva da história, cada novo império teria sucedido ao anterior por efeito de superação e de realização de uma síntese civilizacional superior, faltando agora consumar-se a síntese civilizacional derradeira. Ora, é em conformidade com esta lógica, governada pelo princípio de síntese – isto é, segundo o mesmo modelo de pensamento de um Teilhard de Chardin para explicar a génese, evolução e benigna resolução final do processo cósmico – que o sincretismo se apresenta como a palavrachave, a pedra de toque para se entender a noção pessoana de quinto império. O sincretismo que configura, quer no plano do ser-indivíduo (da psicologia) quer no do ser-colectivo (da sociologia), a hipótese de um estado existencial firmemente dinâmico
A terceira, conforme à tradição profético-nacional, lusocêntrica, numa linguagem superadora do império ideológico do cristianismo-católico e reiterativa da máxima abertura das possibilidades do ser:
A segunda, conforme ao espírito pagão do “panteísmo transcendental”, numa linguagem que evoca a simbologia da alquimia: “Criemos um Imperialismo andrógino, reunidor das qualidades masculinas e femininas; imperialismo que seja cheio de todas as subtilezas do domínio feminino e de todas as forças e estruturações do domínio masculino. Realizemos Apolo espiritualmente”. (PESSOA, 1979, p. 228).
(para utilizarmos a sincrética figura do oximoro), caracterizado pela assimilação de virtualidades díspares, pela integração ideal de possibilidades materiais antagónicas, um estado-existencial-outro, supra-racional e supra-discriminativo, de natural e essencial aliança e não de natural e essencial conflito com o ser do mundo, propiciador da realização da completude, da complexificação, da harmonia última do homem. Em diferentes momentos contextuais, essa ideia é enunciada sob formas distintas.
O Quinto império. O futuro de Portugal – que não calculo, mas sei – está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também nas quadras de Nostradamus. Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? (PESSOA, 1979, p. 245-246).
Poderemos, pois, concluir que em Pessoa a expressão bíblica do quinto império vale, mais do que signo teológico-doutrinal, como signo consagrado de uma esperança universal, e, por isso, supra-nacional, de auto-revelação (psicológica) de si e de A vertente utópica-milenarista do pensamento de Fernando Pessoa 226 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Referiremos três. A primeira, reverberadora da linguagem e da escatologia profética tradicional, repassada de algum esoterismo: Assim temos que no Quinto império haverá a reunião das duas forças separadas há muito, mas de há muito aproximando-se: o lado esquerdo da sabedoria – ou seja a ciência, o raciocínio, a especulação intelectual; e o seu lado direito – ou seja o conhecimento oculto, a intuição, a especulação mística e kabalística. (PESSOA, 1979, p. 146).
COHN, Norman. In the pursuit of the millennium. Oxford: Oxford University Press, 71970.Utilizamos este termo criado pelo filósofo seicentista Francis Bacon na sua obra Novum Organum (1620) para se referir às inúmeras ilusões criadas pela mente humana e que lhe impedem de discernir a realidade em si. José Eduardo Reis227
resolução colectiva (sociológica) do “problema do nós” (para utilizar a terminologia de Ernst Bloch); vale, mais do que símbolo de possibilidades nacionais por realizar, como símbolo de possibilidades humanas por descobrir; vale para designar um estádio activo/ poético de plena-potenciação quer das faculdades de conhecimento quer das virtudes axiológicas do ser. Vale como desafio psicológico, sociológico, histórico-cultural da vivência da alteridade – do estar originalmente disponível para a generosa integração em vez do estar habitualmente intransigente para a temerosa exclusão face ao que é novo, desconhecido, diferente e não-imediatamente compreensível ou gratificante. O quinto império pessoano vale também enquanto estádio de transcendência ou de abandono das categorias normais de avaliação, discriminação e rejeição do mundo dado, de activa neutralização dos “ídolos”7 que condicionam a percepção, a relação e o entendimento da infinita riqueza da vida. Vale enquanto prática consciente (nãoesquizofrénica) da multiplicação de si em consonância com o momento vivido. O quinto império pessoano, enquanto expressão de uma condição ontológica-espiritual “mais completa”, “mais complexa” e “mais harmónica”, e a heteronímia pessoana, enquanto processo multiplicador de estilos e de personalidades poéticas, são, de algum modo, termos de uma equação existencial que figura uma encarnação viva do espírito da utopia. Referências ANTUNES, Alfredo. Saudade e profetismo em Fernando Pessoa. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia, 1983.
BLOCH, Ernst. Le principe espérance. Tradução de Francoise Wuilmart. Paris: Éditions Gallimard, 1976. CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Porto: Figueirinhas, 1979.
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
de Fernando Pessoa 228
do
COELHO, Jacinto do Prado (Org.). Dicionário de literatura portuguesa. Porto: Figueirinhas, 1983. v. 2. LAPOUGE, Gilles. Utopie et civilisations. Paris: Flammarion, 1978.
PESSOA, Fernando. Páginas íntimas e de auto-interpretação. LIND, Georg Rudolf; COELHO, Jacinto Prado do (Org..). Lisboa: Ática, 1966. utópica-milenarista pensamento Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
PESSOA, Fernando. Sobre portugal. Introdução ao problema nacional. SERRÃO, Joel (Org.). Lisboa: Ática, 1979.
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PESSOA, Fernando. Mensagem. Lisboa: Ática, [s.d.].
A vertente
“Sinto-me múltiplo”: a pré-heteronímia pessoana e o romantismo alemão Cláudia Franco Souza
Como o pantheista se sente onda e astro e flor, eu sinto-me varios seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada individuado por uma suma de não-eus synthetizados num eu postiço2. [BNP/E3-20-67-68].
Fernando Pessoa foi um grande crítico literário. Durante toda a sua vida publicou diversos textos de crítica em jornais e revistas de sua época. Analisou a sua própria obra através da uma lente crítica. “Pessoa crítico” refletiu em numerosos textos sobre a sua literatura, sobre a sua multiplicidade interior que transbordou para seu labor literário, como é o caso do seguinte texto:
Não sei quem sou, que alma tenho. Quando fallo com sinceridade não sei com que sinceridade fallo. Sou1 variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ansias que repudio. A minha perpétua attenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um caracter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho. Sinto-me multiplo. Sou como um quarto com inumeros espelhos fantasticos que torcem para reflexões falsas uma unica anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Pessoa confessa sentir-se múltiplo, sente-se como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas, sente-se vários seres. Esses seres, essas reflexões falsas são seus outros eus, suas personalidades literárias que assinam textos, poemas e projetos. Embora o período heteronímico seja o mais estudado no universo literário pessoano - ou seja, o período que se inicia, segundo o próprio poeta português indica, a partir de 1914, com o surgimento de 1 Sou outro. No documento original 2 Transcrição do documento original do espólio. Optamos por manter a ortografia original. 229
Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos - a fragmentação pessoana, sua multiplicidade o acompanha desde a infância, como ele esclarece no documento: Tive sempre, desde creança, a necessidade de aumentar o mundo com personalidades ficticias, sonhos meus rigorosamente construidos, visionados com clareza photografica, comprehendidos por dentro das suas almas. Não tinha eu mais que cinco annos, e, creança isolada e não desejando senão assim estar, já me acompanhavam algumas figuras de meu sonho — um capitão Thibeaut, um Chevalier de Pas — e outros que já me esqueceram, e cujo esquecimento, como a imperfeita lembrança d’aquelles, é uma das grandes saudades da minha vida. Isto parece simplesmente aquella imaginação infantil que se entretém com a attribuição de vida a bonecos ou bonecas. Era porém mais: eu não precisava de bonecas para conceber intensamente essas figuras. Claras e visíveis no meu sonho constante, realidades exactamente humanas para mim, qualquer boneco, por irreal, as estragaria. Eram gente. Além d’isto, esta tendencia não passou com a infancia, desenvolveu-se na adolescencia, radicou-se com o crescimento d’ella, tornou-se finalmente a fórma natural do meu espírito. Hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os auctores varios de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha. [BNP/E3- 20-74r-77r].
Esse documento é muito relevante, pois é, como o primeiro texto, um escrito do Pessoa crítico em que o autor analisa o seu processo interior múltiplo que transborda para sua atividade literária. Pessoa confessa que desde criança teve essa tendência de criar um mundo fictício à sua volta. Esse mundo fictício habitado por uma pequena humanidade só sua é extremamente fecundo no período pré-heteronímico pessoano – anterior ao ano de 1914. O projeto The Transformation Book, circunscrito na primeira década do século XX, revela uma importante faceta deste drama em gente pessoano. Neste projeto estão envolvidas quatro personalidades pessoanas: Alexander Search, Pantaleão, Jean Seul de Méluret e Charles James Search. Cada uma destas personalidades tem tarefas muito bem definidas e algumas delas elementos biográficos, como é o caso de Alexander Search, que teria nascido em 13 de junho de 1888 em Lisboa; Jean Seul que teria nascido em 1° de agosto de 1885 e seria um ano mais velho que Charles James Search e três anos mais velho que Alexander Search; e Charles “Sinto-me múltiplo”: a pré-heteronímia pessoana e o romantismo alemão 230 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Todo esse diálogo entre as personalidades pessoanas no projeto The Transformation Book encontra-se em consonância com as questões da sinfilosofia e da simpoesia definidas pelos primeiros românticos alemães, Friedrich Schlegel, Novalis, August Wilhelm Schlegel e Schleiermacher. Como os nomes indicam, sinfilosofia significa filosofar com e simpoesia, poetar com. Fazer filosofia e poesia em conjunto: essa é uma das principais propostas do primeiro romantismo alemão. Muitos fragmentos publicados na revista Athenäum (1797-1800) foram redigidos em conjunto, constituindo um importante momento de sinfilosofia e simpoesia, como esclarece Márcio Suzuki na nota preliminar do livro, O dialeto dos fragmentos: Também não escapará ao leitor que a segunda série de fragmentos3 não foi redigida exclusivamente pelo autor cujo nome figura na capa deste volume, constituindo antes um momento singular de sinfilosofia e de simpoesia – isto é, daquele trabalho filosófico e poético em conjunto idealizado por ele e concretizado nos fragmentos do Athenäum, pela intervenção de Novalis, August Wilhelm, Schleiermacher e do próprio Friedrich. (SUZUKI apud SCHLEGEL, 1997, p.9).
Cláudia Franco Souza
Uma época inteiramente nova das ciências e arte começaria talvez quando a sinfilosofia e a simpoesia tivessem se tornado tão universais 3 Márcio Suzuki se refere aqui aos fragmentos da revista Athenäum. 231Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
James Search que teria nascido em 18 de abril de 1886 e seria três anos mais velho do que Alexander Search. Como podemos perceber há um diálogo entre as personalidades literárias envolvidas neste projeto pessoano. Para além do que está evidente na relação entre as biografias, é interessante perceber outros dois aspectos: Alexander Search teria nascido no mesmo dia, ano e cidade que seu criador, Pessoa, e Alexander Search e Charles Search seriam parentes, como revela o sobrenome em comum.
É interessante perceber que os primeiros românticos alemães não só defendem a realização de uma sinfilosofia e de uma simpoesia, como realizam essa proposta sobretudo nos fragmentos escritos em conjunto e publicados na revista Athenäum. No fragmento 125 do Athenäum, que não possui uma assinatura única, ou seja, é um texto escrito em conjunto, lemos a respeito da sinfilosofia e da simpoesia:
e tão interiores, que já não seria nada raro se algumas naturezas que se complementam reciprocamente constituíssem obras em conjunto.
Muitas vezes não se pode evitar o pensamento de que dois espíritos poderiam no fundo pertencer um ao outro, como metades separadas, e só juntos ser tudo o que pudessem ser. Se houvesse uma arte de fundir indivíduos, ou se a crítica desejosa conseguisse algo mais que desejar, para isso encontrado em toda parte muita ocasião, então eu gostaria de ver combinados Jean Paul e Peter Leberecht. Tudo aquilo que falta a um, o outro possui: juntos, o talento grotesco de Jean Paul e a formação fantástica de Peter Leberecht produziram um notável poeta romântico. (SCHLEGEL, 1997, p.67-68).
A sinfilosofia e a simpoesia pessoana ocorrem dentro do espaço literário criado pelo autor português. Precisamos evidenciar que o início da sinfilosofia e da simpoesia no caso do projeto The Transformation Book é anterior às relações que podemos estabelecer entre os autores e os escritos desta obra em conjunto. Esse início da sinfilosofia e da simpoesia se encontra na assinatura de cada uma das quatro personalidades envolvidas no projeto, isso porque cada assinatura traz um duplo, a mão do criador, do artista, que desenha outro rosto, outro artista. Alexander Search, por exemplo, comporta Pessoa, pois, apesar de ser outro no espaço literário pessoano, ele é filho mental do autor português. Temos então duas pessoas envolvidas na escrita deste outro eu, poetando em conjunto, filosofando em conjunto. O caso de Alexander Search é ainda mais interessante, porque ele é, ao que tudo indica, o herdeiro de outro eu pessoano, Charles Robert Anon, personalidade literária que acompanhou Pessoa na viagem do regresso definitivo a Lisboa em 1905. Seu nome aparece em um caderno de 1903, abaixo de uma história intitulada “The Mansion”.
“Sinto-me múltiplo”: a pré-heteronímia pessoana e o romantismo alemão 232 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Parece que, de certa forma, Pessoa respondeu à proposta deste fragmento romântico. Criou uma época inteiramente nova da arte, vivendo intensamente a sua multiplicidade, elaborou naturezas que se complementaram reciprocamente e constituíram obras em conjunto. É justamente o que ocorre no projeto The Transformation Book, as quatro personalidades pessoanas se completam, estabelecem um diálogo literário/filosófico/poético.
O nome de Anon aparece também em outros testemunhos neste mesmo caderno. Esse fato nos faz confirmar que a presença de Anon no espaço literário pessoano é anterior a 1904 (9 de junho de 1904), quando assinou um poema satírico publicado em “The Natal Mercury” em Durban, na África do Sul. O nome de Anon aparece também em projetos e listas do espólio, como é o caso do seguinte documento: Anon Poetry Critical Essays. [Carlyle, Byron, Shelley, Camões. Stories of Imagination. [BNP/E3-48B-153].


Cláudia Franco Souza 233Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Figura 1 - Fac-símile do texto intitulado “The Mansion” assinado por Charles Robert Anon Fonte: BNP/E3-144R-15r.
Figura 2 - Fac-símile de uma lista de obras de Charles Robert Anon Fonte: BNP/E3-48B-153.
Anon foi leitor de Lombroso, Bergson e Spencer e suas leituras estão em sintonia com as leituras realizadas por outro eu pessoano, que também deixou um caderno de leituras, Alexander Search. Os escritos de Anon estão, de alguma forma, em contato com o projeto The Transformation Book, primeiramente através do interesse manifesto (como comprova sua lista de tarefas) por Camões, poeta presente neste projeto nas traduções de Charles James Search. E também pelo interesse nas áreas de filosofia e psiquiatria compartilhado por Alexander Search. Mas o movimento “Sinto-me múltiplo”: a pré-heteronímia pessoana e o romantismo alemão 234 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Anon deixou também no espólio pessoano um importante caderno de leituras. Os registros dos livros presentes neste caderno revelam um leitor interessado nas áreas de filosofia, psiquiatria e ciências em geral, como podemos conferir no seguinte documento: Figura 3 - Fac-símile de uma página do caderno de leituras de Charles Robert Anon Fonte: BNP/E3/13A-4
É interessante perceber a importância desta personalidade pessoana: escrevendo em verso e em prosa, Anon foi poeta e crítico. Leitor de Carlyle, Byron, Shelley e Camões. Esse último foi traduzido por Charles James Search no âmbito do projeto The Transformation Book.

Essa evidência revela que Pessoa faria de Alexander Search o herdeiro de Anon. Analisando somente a personalidade literária Alexander Search, encontramos três outros eus envolvidos em seu labor literário, Pessoa, o próprio Alexander Search e Charles Robert Anon. Esse diálogo entre vários eus já seria suficiente para nos remeter às questões românticas da sinfilosofia e da simpoesia. Os textos filosóficos de Alexander Search e a sua poesia representariam esse filosofar e poetar em conjunto. Mas Pessoa ainda dá um passo além, insere Alexander Search numa obra em conjunto, The Transformation Book, em que seus escritos e sua biografia dialogam com os escritos e as biografias dos outros eus envolvidos, como é o caso de Jean Seul, três anos mais velho do que Alexander e Charles James Search, dois anos mais velho do que esse e com o mesmo sobrenome. Os escritos de Pantaleão também dialogam com os textos de Alexander Search, assim como com os outros textos deste projeto. Na época em que The Transformation Book foi idealizado - por volta de 1908 - Pessoa estava imerso em leituras sobre filosofia e psiquiatria e muito preocupado com a política portuguesa. Os textos que fariam parte deste projeto revelam esse universo psiquiátrico/filosófico/político no qual Pessoa se encontrava mergulhado. Textos como “O regicídio português e a situação política em Portugal” (de autoria de Alexander 235Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Fonte: BNP/E3-78B-55r.
contínuo dos escritos pessoanos não para por aqui. Num documento do espólio, Pessoa afirma sua intenção pessoana em tornar Alexander Search o herdeiro de Charles Robert Anon: Figura 4 - Fac-símile de documento contendo a assinatura simultânea de C. R. Anon e Alexander Search
Cláudia Franco Souza

“Sinto-me múltiplo”: a pré-heteronímia pessoana e o romantismo alemão 236 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Search) ou “A psicose adeantativa” (de autoria de Pantaleão), ou ainda “Os casos de exibicionismo” (de autoria de Jean Seul) mostram a mistura entre política, filosofia e psiquiatria nos escritos deste projeto. Charles James Search seria “somente” tradutor e poderia escrever prefácios às suas traduções, sem análises, as quais poderiam ser escritas por Alexander Search. Este projeto revela a complexidade da criação literária no período préheteronímico pessoano. Consideramos, em nosso estudo, Alexander Search, Pantaleão, Jean Seul de Méluret e Charles James Search como pré-heterônimos. The Transformation Book, que permaneceu inédito durante muitos anos após a morte de Pessoa4, mostra ao leitor interessado o exercício do poeta na tarefa da sinfilosofia e da simpoesia. O processo da heteronímia, que vai se tornando claro na escrita literária de Pessoa, se inicia, como ele mesmo defende, na sua infância, em que começa a criar uma humanidade só sua. E vai se desenvolvendo ao longo dos anos. Consideramos The Transformation Book a antecâmara do momento da criação dos três importantes heterônimos pessoanos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, cada um com uma biografia própria, com um estilo próprio, mas compartilhando aspectos comuns, como é o caso de Reis e Campos que consideram Caeiro seu Mestre. Neste drama pessoano, Caeiro e sua poesia pagã funcionam como um eixo principal, que une não somente Reis e Campos em torno desta temática, mas também António Mora e o próprio Pessoa. Essa estrutura da heteronímia se encontra esboçada no projeto The Transformation Book, em que Alexander Search seria o eixo do projeto, o primeiro artista. Nas biografias de Jean Seul e de Charles James Search, encontramos uma referência explícita a Alexander Search, como já analisamos. E a obra de Pantaleão dialoga com a obra de Search, preocupado também com os aspectos políticos portugueses e, também, leitor de obras psiquiátricas. Não podemos considerar Alexander Search como mestre dos demais eus envolvidos no projeto, mas podemos avaliá-lo como importante referência. 4 Alguns estudiosos pessoanos publicaram apenas trechos deste projeto. A publicação integral do projeto The Transformation Book ocorreu somente no ano de 2014. (PESSOA, 2014).
Todo esse diálogo entre os quatro pré-heterônimos aqui em questão revela uma proximidade entre a obra literária e o romantismo alemão. Quando criou uma humanidade só sua, Pessoa trabalhou em conjunto com seus outros eus e criou obras que representam a sinfilosofia e a simpoesia, como é o caso do projeto The Transformation Book.
Neste fragmento, Novalis expõe três tipos de tradução: a gramatical, a modificadora e a mítica. Fica clara a preferência do pensador alemão pela tradução mítica. A tradução gramatical envolveria apenas aspectos técnicos de linguagem. Na 237Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Cláudia Franco Souza
Uma outra questão presente no projeto The Transformation Book aproxima a obra literária pessoana do romantismo alemão: a questão da tradução. Os primeiros românticos alemães se ocuparam com a tarefa da tradução (Schleirmacher traduziu Platão, Novalis traduziu Horácio e Virgílio, August Schlegel e Tieck traduziram Shakespeare) e também refletiram sobre a tarefa do tradutor. Em um importante fragmento, Novalis escreve sobre a tradução: Uma tradução é, seja gramatical, ou modificadora, ou mítica. Traduções míticas são traduções no mais alto estilo. Expõem o caráter puro, perfeito e acabado da obra de arte individual. Não nos dão a obra de arte efetiva, mas o ideal dela. Ainda não existe, ao que creio, nenhum modelo inteiro dela. No espírito de muitas críticas e descrições de obras de arte encontram-se porém claros traços. É preciso para isso uma cabeça, onde o espírito poético e espírito filosófico se interpenetraram em sua inteira plenitude. A mitologia grega é em parte uma tal tradução de uma religião nacional. Também a madona moderna é um tal mito.
Traduções gramaticais são as traduções costumeiras. Exigem muita erudição – mas apenas aptidões discursivas.
As traduções modificadoras requerem, se devem ser genuínas, o mais alto espírito poético. Resvalam facilmente para o travesti – como o Homero em jambos de Burger – o Homero de Pope – as traduções francesas em seu conjunto. O verdadeiro tradutor desta espécie tem na realidade de ser o próprio artista e pode dar a idéia do todo assim ou assim a seu bel-prazer – Tem de ser o poeta do poeta e assim poder fazê-lo falar segundo sua própria idéia e a do poeta ao mesmo tempo. Numa relação semelhante está o gênio da humanidade com cada homem individual. Não meramente livros, tudo pode ser traduzido destas três maneiras. (NOVALIS, 2009, p.73).
tradução modificadora encontramos o processo da reflexão em conjunto com o processo da tradução, pois o tradutor teria que ser poeta do poeta abarcando a sua linguagem à linguagem do outro. A tradução mítica, segundo Novalis (2009), seria do mais alto nível, daria ao leitor não a obra de arte, mas o ideal dela. Para fazer uma tradução mítica, o tradutor teria de possuir um espírito poético e filosófico interpenetrados em inteira plenitude. É interessante perceber que, no projeto The Transformation Book, os espíritos filosófico e poético se encontram presentes. Como mostramos no início deste artigo, Pessoa estava imerso, na época de elaboração deste projeto, em leituras filosóficas, e sua escrita transporta essas leituras, mas ele não deixa de ser poeta, pois tanto Alexander Search quanto Pantaleão são também poetas. E a prosa filosófica presente nesta obra é uma prosa poética, o que mostra a fusão entre poesia e filosofia. Para além disto, Charles James Search é um tradutor, um tradutor de poetas. Um tradutor, filho de um processo de reflexão, que já não é Pessoa, é outro que se interessa pela tradução de outros poetas e escritores, como Camões, Antero de Quental, Eça de Queiróz, Guerra Junqueiro. Sendo Charles James Search uma personalidade que é fruto de uma reflexão pessoana, é difícil imaginar que realizaria uma tradução gramatical, técnica apenas. Poderíamos pensar que as traduções realizadas por Charles James Search seriam modificadoras ou míticas. Uma vez que essa personalidade possui sua origem em um poeta-filósofo que foi Pessoa, certamente ele teria capacidade para realizar a proposta de Novalis, traduções míticas, que dariam ao leitor não a obra de arte, mas o ideal dela.
Porém, uma das principais características do espaço literário pessoano representa um obstáculo para a realização de traduções míticas por Charles James Search: o movimento incessante dos escritos pessoanos. Pessoa tinha muitos projetos de projetos, e, assim como se desdobrou em muitos eus, os seus escritos também são múltiplos e mutantes. As traduções de Charles Search se encontram muitas vezes incompletas, revelando esse movimento do espaço literário pessoano. As traduções da poesia de Camões, principalmente, revelam um tradutor atento não somente às questões técnicas da linguagem, mas um poeta do poeta, capaz de captar a linguagem do artista “Sinto-me múltiplo”: a pré-heteronímia pessoana e o romantismo alemão 238 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Cláudia
e o seu ideal. Ao traduzir Camões para o inglês, Charles James Search talvez almejasse revelar para os leitores, que habitavam para além das fronteiras portuguesas, o ideal da literatura portuguesa, uma vez que as raízes desta literatura encontram-se na obra de Camões, fundador da literatura portuguesa. A escolha de traduzir Camões talvez aponte para a existência de um tradutor mítico, utilizando a perspectiva de Novalis. Porém, definir em qual categoria de tradutor Charles James Search se encaixa melhor é uma questão complexa. Isso porque Charles James Search e sua obra se encontram inacabadas. No trecho de uma carta endereçada a Mário Beirão (1/02/1913), Pessoa define bem a sua relação intensa com a criação literária e a sua dificuldade em finalizar seus projetos: Tenho a alma num estado de rapidez ideativa tão intenso que preciso fazer da minha atenção um caderno de apontamentos, e, ainda assim, tantas são as folhas que tenho a encher, que algumas se perdem, por elas serem tantas, e outras se não podem ler depois, por com mais que muita pressa escritas. As ideias que perco causam-me uma tortura imensa, sobrevivem-se nessa tortura, escuramente outras. V. dificilmente imaginará que Rua do Arsenal, em matéria de movimento tem sido a minha própria cabeça. Versos ingleses, portugueses, raciocínios, temas, projectos, fragmentos de coisas que não sei como começam ou acabam, relâmpagos de críticas, murmúrios de metafísicas... Toda uma literatura, meu caro Mário, que vai da bruma — para a bruma — pela bruma... (PESSOA, 1966, p.29).
Embora esta carta tenha uma data específica – 01/02/1913 – uma análise dos muitos documentos do espólio pessoano mostra que o estado de rapidez habitou a alma de Pessoa durante toda a sua vida de escritor: são numerosas folhas de apontamentos, de poesia, de projetos, de fragmentos, de notas de leituras entre outros papéis. Toda uma literatura realizada através da sua multiplicidade de eus e de escritos. Definir a categoria de tradução à qual pertenceria o trabalho deixado por Charles James Search diante da velocidade dos escritos pessoanos torna-se uma tarefa complicada. Seria prudente afirmar que as traduções de Charles James Search habitaram um espaço intermediário, entre a tradução modificadora e a tradução mítica, de acordo com a concepção de Novalis. Franco Souza 239Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
PESSOA, Fernando. Poesia completa de Alberto Caeiro. Edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
PESSOA, Fernando. Correspondência – 1923-1935. Edição de Manuela Parreira da Silva. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999.
PESSOA, Fernando. Escritosíntimos , cartas e páginas autobiográficas. Introdução, organização e notas de António Quadros. Lisboa: Europa-América, 1986.
É interessante perceber que há um diálogo intenso entre a obra literária pessoana e o primeiro romantismo alemão. Pessoa parece ter realizado, de certa forma, algumas propostas dos primeiros românticos alemães, como é o caso da sinfilosofia e da simpoesia. O autor português criou uma humanidade só sua, em que algumas naturezas que se completam reciprocamente criaram obras em conjunto, como é o caso do projeto The Transformation Book. Para além disto, a questão da tradução, tão presente no espólio pessoano e na tarefa de Charles James Search, também encontra ressonância no primeiro romantismo alemão, sobretudo no fragmento aqui analisado de Novalis, no qual o tradutor não é apenas um técnico, mas um transformador cultural, um artista do mais alto nível. Pessoa parece ter criado – como propunham os primeiros românticos alemães – uma época inteiramente nova na arte, na arte da escrita.
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“Sinto-me múltiplo”: a pré-heteronímia pessoana e o romantismo alemão 240 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Cláudia Franco Souza 241Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
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PESSOA, Fernando. Poesia completa de Ricardo Reis. Organização de Manuela Parreira da Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Entre janeiro e junho de 1926, Fernando Pessoa publicou na Revista de Comércio e Contabilidade, dirigida por seu cunhado F. Caetano Dias, um conjunto de textos de análise econômica e de organizações, em princípio restrita expressão de seus interesses como empregado do comércio. Entre esses textos, encontra-se um que aqui me interessa de perto, intitulado “Organizar”, publicado no número 4 da mencionada Revista, em 25 de abril de 1926, e republicado três meses depois, em 4 de agosto de 1926, no número 6 de Sol: bi-semanário republicano. Cabe notar que o mais destacado texto pessoano do conjunto da Revista de Comércio e Contabilidade, texto esse intitulado “Régie, Monopólio, Liberdade”, publicado em 25 de fevereiro e 25 de março de 1926 nos números 2 e 3 daquela Revista, foi igualmente republicado em 31 de julho e 1° de agosto de 1926 pelo jornal A Informação, o que dá a medida do interesse pessoal e do empenho do autor na divulgação das ideias ali expostas, além de atestar a convergência e o interesse público provocado por seus textos de economia política naquela altura. Não custa lembrar, esses textos pessoanos de economia política, com sua defesa da iniciativa econômica individual e com sua crítica ao papel centralizador do estado, foram publicados em plena efervescência do golpe militar desferido por Gomes da Costa, a 28 de maio daquele ano, o qual, consolidado em 6 de junho, implantaria a ditadura, que veio a ser sancionada constitucionalmente mais tarde com o Estado Novo Salazarista. Cabe observar ainda que o diário Sol, sucedâneo do periódico Sol: bi-semanário republicano (ambos dirigidos por Celestino Soares), que republicara em agosto o texto “Organizar”, publicou, em novembro do mesmo ano, uma entrevista ficcional e não-assinada de Pessoa com um imaginário intelectual antifascista italiano, Giovanni B. Angioletti, na qual Pessoa, conforme nos mostra José Barreto, coloca na boca da personagem as 243
heteronímia e organização
Marcus Vinicius de Freitas
Fernando Pessoa:
Note-se, portanto, que há intensa relação entre os escritos de economia política e a prática ficcional da poesia pessoana, o que se evidencia na intervenção política praticada a partir de uma entrevista ficcional, à qual se relaciona com um rol de textos aparentemente inócuos no conjunto da obra do poeta, os quais, entretanto, ganham relevo ao serem vistos agrupados e colocados diante quer de suas intervenções e interesses políticos, quer da arquitetura de sua composição poética. Em pequeno comentário sobre a contribuição de Pessoa à Revista de Comércio e Contabilidade, Clara Rocha afirma que aquela colaboração “... só se reveste de interesse literário por ser da pena de Fernando Pessoa” (ROCHA, 1985, p. 647). Devo discordar da eminente autora. Não é apenas a curiosidade da assinatura pessoana o que determina o interesse por tais textos, mas as possíveis articulações que deles se estabelecem com a poética pessoana.Nesse sentido, e ampliando o horizonte dos interesses estritamente econômicos e políticos de tais textos, entendo que eles podem e devem ser cotejados com o conjunto da obra poética do autor, ou, por outro lado, que a compreensão da obra poética e do 1 Sobre a figura ficcional de Giovanni B. Angioletti, cabe notar que além do estudo de Barreto, Jerónimo Pizarro também já detectara a sua existência em dois documentos do espólio, um deles uma carta do italiano a um jornal português, que vem a ser exatamente a carta de Angioletti publicada no Sol junto à heteronômica entrevista da personagem forjada por Pessoa. (Ver BARRETO, 2012, p. 228).
Fernando Pessoa: heteronímia e organização 244 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
suas críticas ao fascismo (BARRETO, 2012, p. 225). O mesmo Barreto nos informa que, poucos dias depois de publicada essa imaginária entrevista na primeira página do diário, cujo título é “O ‘Duce’ Mussolini é um louco… afirma-o ao Sol um italiano culto que ama sinceramente a Itália” (BARRETO, 2012, p. 232), o Sol foi fechado, não sendo difícil aquilatar a contribuição da publicação da entrevista para o desfecho do jornal republicano.1 Cabe lembrar ainda que tanto o bi-semanário quanto o diário Sol abrigaram, naquele ano, várias outras publicações de Fernando Pessoa. Para lá o poeta foi levado pelas mãos de seu grande amigo Augusto Ferreira Gomes, que, assim como Celestino Soares, era igualmente colaborador da Contemporânea e atuou como secretário de redação do Sol desde o número 3 (BARRETO, 2012, p. 231 e ss.).
2 Para uma visão estritamente econômica dos textos pessoanos publicados na Revista de Comércio e Contabilidade, ver, entre outros, FRANCO, 2006; NEVES, 1992; e SOUZA, 1985.
Pessoa abre seu texto com uma consideração sobre a importância que ganham as organizações em sua época: As palavras “organizar”, “organização” e “organizador” pode dizer-se que constituem o estribilho teórico da nossa época. E, se o são em quase todas as matérias, sobretudo o são em matéria comercial e industrial, em virtude da reação, que presentemente se revela em toda parte, contra a feição um pouco casual, um pouco dispersa, que tiveram o comércio e a indústria no século passado. (PESSOA, 1992, p. 103).
O tema recebe, na passagem, um tratamento ambíguo, uma vez que, se por um lado, o autor medita sobre e justifica a necessidade dos atos de organização, por outro lado suas palavras podem ser lidas como contraposição aos movimentos políticos de cunho autoritário que visavam a “organizar” em demasia a sociedade a partir do estado centralizador. Parece não ser outro o sentido das palavras “reação, que presentemente se revela em toda parte, contra a feição um pouco casual, um pouco dispersa, que tiveram o comércio e a indústria no século passado”. O comércio e a indústria, no século XIX, foram marcados pelo laisse-faire capitalista (denotado na feição “casual e dispersa” apontada pelo autor) o que, no presente pessoano, sofre um impulso de reação nas diversas experiências políticas de controle da economia pelo estado. Cabe notar que o texto foi publicado em abril de 1926, mas, desde finais de 1919, e em especial desde 1925, diversos setores da opinião pública já ansiavam por uma revolução “organizadora”, nos moldes do que acontecia em outros pontos da Europa, levando a que várias tentativas de golpe ocorressem no período. (SERRÃO, 2001; MATTOSO, 1993).
fenômeno da heteronímia tem muito a ganhar com um olhar atento dirigido a tais textos.2 Nesse intuito, proponho uma análise do texto intitulado “Organizar”, publicado no número 4 da Revista de Comércio e Contabilidade. E peço ao ouvinte/leitor deste texto que, desde o princípio, ouça e leia as considerações pessoanas sobre organização de instituições com a atenção voltada para a heteronímia.
Marcus Vinicius de Freitas 245Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Cabe notar, também, que o capitalismo em xeque era representado em especial pelo modelo inglês, no qual o cidadão Fernando Pessoa havia sido educado, não apenas por ter crescido na colônia inglesa da África do Sul, mas por ter aí, em Durban, frequentado a “Commercial School”. Poderíamos então concluir que sua crítica às organizações excessivas se assentava em sua educação no seio de uma sociedade de economia liberal, a inglesa, ainda que vista de suas franjas coloniais. Entretanto, não se pode esquecer que Pessoa em grande medida se aliava àqueles movimentos de reação autoritária. Em janeiro de 1928, Pessoa escreveu e publicou, no contexto das atividades do Núcleo de Ação Nacional, o texto “Interregno: Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal” (PESSOA, 1976). Da mesma maneira, já publicara, em maio de 1919, no periódico Ação, órgão impresso do mesmo Núcleo, o texto “Como organizar Portugal” (PESSOA, 1919b), e, em agosto desse mesmo ano, e no mesmo órgão, havia publicado o texto “Opinião Pública” (PESSOA, 1919a). Nos três textos, é patente a defesa de um estado forte enquanto elemento organizador da vida nacional, em contraposição ao que o autor denomina de “constitucionalismo inglês”. A posição do autor sobre o papel do estado, portanto, é ambígua, e uma análise completa da evolução de suas posições e indecisões políticas naquela década ainda está por ser feita. O que se pode afirmar, com certeza, é que, nos textos de 1926, sua posição é francamente liberal.
No texto “Como organizar Portugal”, de 1919, pode-se ver uma reflexão incipiente sobre as ideias sobre organização que voltariam a aparecer, agora desenvolvidas, no texto publicado na Revista de Comércio e Contabilidade, em 1926.
No primeiro texto, de 1919, o ato de organizar tem a intenção de servir como antídoto contra a anarquia e a decadência da nação, caso em que o desenvolvimento do comércio e da indústria revelam sua face positiva e progressista: Educação simultaneamente da inteligência e da vontade, transformador ao mesmo tempo da mentalidade geral e do atraso material do país, o industrialismo sistemático, sistematicamente aplicado, é o remédio para as decadências de atraso; é, portanto, o remédio para o mal de Portugal. (PESSOA, 1919b).
Fernando Pessoa: heteronímia e organização 246 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Mas há entre os dois ensaios diferenças patentes.
Já no segundo texto, este publicado em 1926, a organização e o seu corolário, qual seja, o desenvolvimento nacional pela via comercial e industrial – sobretudo em função do viés econômico liberal das ideias ali desenvolvidas –, aparecem expurgados de sua abstração totalizante e surgem modulados pelos percalços e pelas contingências da vida, que tornam menos abstrata e autoritária a teoria organizacional.
Marcus Vinicius de Freitas 247Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Voltando ao texto “Organizar”, vemos que a investigação pessoana do papel da atividade organizativa busca, então, mitigar o caráter autoritário e centralista que o fenômeno da organização pode inadvertidamente adquirir, em qualquer instância da vida. Essa modulação, proposta por Pessoa - a fim de ao mesmo tempo criticar e salvaguardar a organização -, se revela na sua distinção entre organizações artificiais e organizações práticas, entre os “organizadores de gabinete” e aqueles que reconhecem o peso da realidade. De fato, diz o poeta:
Vale notar que o diagnóstico aí disposto, de Portugal como um país doente, que sofre de um terrível mal, dá continuidade ao diagnóstico antes feito por muitos intelectuais portugueses, desde o Romantismo. Em especial, vale lembrar o texto síntese de tal diagnóstico, “Causas da decadência dos povos peninsulares”, da autoria de Antero de Quental, no qual uma revolução mercantil, aliada a uma reforma religiosa aparecem similarmente como remédio para os males do país (QUENTAL, 1996). Esta leitura comparada, entretanto, deve ser deixada de lado no âmbito deste texto, por fugir de seu escopo, e fica aqui apenas como indicativo.
Poder-se-ia dizer que Pessoa mudou o seu posicionamento entre um texto e outro, e tornou-se mais liberal? Se vemos que, dois anos depois, em 1928, ele voltou a publicar ideias autoritárias sobre organização social, poderemos talvez imaginar que se tratou de um interregno liberalizante num pensamento primordialmente centralizador, ou no mínimo que o pensamento do autor sobre o papel da organização possuía um caráter contraditório e ambíguo, como antes apontado: por um lado, uma defesa da organização como modelo teórico; por outro, um reconhecimento da necessária flexibilidade desse modelo diante das contingências da vida, o que, por si mesmo, parece iluminador de suas posições em relação à maior ou menor independência da heteronímia no contexto de sua poética, como poderemos ver à frente.
A experiência ensina que a vida é uma coisa flutuante e incerta, cheia, por mais que busquemos prever, de surpresas e contingências imprevisíveis – imprevisíveis, sem dúvida, porque procedem de leis que ignoramos, e, provavelmente, em grande parte, ignoraremos sempre. Todo o pensador de sistemas fixos, todo o organizador de conjuntos definidos sofre fatalmente desilusões, quando não desastres. Em toda organização há, pois, que contar com o inesperado e o indefinido da vida. (PESSOA, 1992, p. 108).
O autor parte de uma metáfora biológica, incrustrada na própria palavra “organizar”. Diz ele: “organizar é tornar uma coisa semelhante a um organismo” (p. 105), e um organismo, por ser vivo, depende de que cada um de seus órgãos cumpra uma função específica, na qual não pode ser substituído por outro, uma vez que cada órgão ou função concorre com sua parte para a vitalidade do organismo. Colocado esse conceito, o autor desenvolve a seu lado uma outra ordem de noções. Em primeiro lugar, diz ele, “organizar é, essencialmente, um fenômeno intelectual” (PESSOA, 1992, p. 106). Por outro lado, nos lembra Pessoa, há muitas coisas “... que se fazem empiricamente, pelo hábito e a experiência” (PESSOA, 1992, p. 106). Da articulação desse conjunto de noções, deduz o poeta que a organização estável deve ser um “trabalho de inteligência”, inteligência essa que se revela no equilíbrio entre modelo intelectual e vida, o que obriga o organizador a ser mais um atribuidor de cargos do que de funções, mais alguém que sabe delegar do que aquele que visa a controlar. O organizador apenas esboça a relação entre as funções, sem hierarquizá-las. E essa é uma expressão reiterada do autor: “repare-se bem”, diz Pessoa, “que [o organizador] apenas esboça” (PESSOA, 1992, p. 106) a divisão de funções em linhas muito gerais, que nem por isso são indefinidas. Na diferença entre esboçar e determinar se instala a mitigada função de autoridade do organizador. Como consequência, o autor sintetiza assim o papel do organizador que tem atenção concomitante ao modelo, à realidade e à contingência: Assim como o organismo delega, por assim dizer, uma função a determinado órgão, assim o chefe de organização delega determinada função a determinado chefe de elemento. Ora delegar uma função é entregá-la a outrem, tornando-se quem a entrega, por assim dizer, Fernando Pessoa: heteronímia e organização 248 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
voluntariamente incompetente para seu exercício. É este o segredo de toda organização eficaz: há hierarquia de cargos, não há hierarquia de funções. (PESSOA, 1992, p. 107).
Marcus Vinicius de Freitas 249Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Assim vista, a aproximação entre heteronímia e organização poderia parecer a imposição de uma grade de leitura por demais rígida sobre uma obra tão vasta e de tanta complexidade. Mas noto que é Pessoa quem, no desenvolvimento da teoria
Nessa altura, penso que já podemos saltar da reflexão abstrata sobre as organizações e virarmos o nosso olhar para a obra poética de Pessoa à luz das ideias expostas, pois, ao falar da teoria das organizações, dando a entrever sua crítica sobre os caminhos políticos do Portugal de 1926, Pessoa ao mesmo tempo parece falar da organização interna de sua própria obra. A heteronímia configura, por certo, uma organização intelectual, um trabalho de inteligência. Trata-se igualmente de um sistema, mas não de um sistema fixo, uma vez que está cheio de vida. A heteronímia possui um organizador, que delega determinadas funções a determinados chefes de elemento, os quais ocupam cargos na organização, e que não são outros senão os seus heterônimos. Da mesma maneira que, segundo Pessoa, o ato de delegar funções organizacionais a outrem torna quem as delega voluntariamente incompetente para o seu exercício, podemos entender que cada um dos heterônimos cumpre funções dentro da heteronímia, funções que a eles foram delegadas pelo autor-organizador, o qual voluntariamente se abstém de seu exercício. Ora, essa parece ser uma boa explicação para que Alberto Caeiro, por exemplo, possa aparecer como “mestre” do ortônimo, uma vez que, no campo de suas funções, é ele o mestre, e não aquela voz que possui o nome do organizador e em grande medida a ele se assimila, a qual voluntariamente se tornou incompetente em relação às funções delegadas a Caeiro, e assim se colocou como seu discípulo. Da mesma maneira, toda a crítica cruzada de Campos e Reis em relação a Caeiro e ao ortônimo, e também aquela dirigida de um ao outro, revela que cada um deles ocupa um cargo – consagrado em sua poética, em seus temas, em sua filosofia - e que cada um deles é mestre de uma função, da qual o organizador voluntariamente se exilou, deixando ao heterônimo, em cada caso, a função de, no conjunto da obra, se ocupar de determinadas preocupações.
O organizador de um conjunto deve começar por traçar a organização exclusivamente em linhas gerais, e organizar no princípio só a rede de serviços essenciais. Feito isso, põe-se o organismo em marcha; e do contato com a prática, com os acidentes e contingências da realidade da vida, se vai dando a “definição” do conjunto, se vai enchendo o simples contorno inicial, se vão estabelecendo e concatenando os órgãos e sub-órgãos do todo. Criada, assim, em suas linhas gerais, pela inteligência – cuja função natural é precisamente o abstrato e o geral -, determinada depois nas suas linhas particulares pela experiência que adquire em marcha – isto é, pela própria vida -, a organização consegue ser organização sem ser rígida; é complexa e maleável ao mesmo tempo, porque a vida, ao dar-lhe a complexidade que ela precisava como organização, deu-lhe ao mesmo tempo a maleabilidade da própria vida. (PESSOA, 1992, p. 109).
Não há como não lembrar aqui dos diversos esboços pessoanos de organização de sua obra completa, sempre precários e cambiantes. Ao mesmo tempo, deve-se reconhecer que o contorno inicial, dado nas criações de 1914, foi-se preenchendo com o organismo em marcha, a partir, como diz o autor, “do contato com a prática, com os acidentes e contingências da realidade da vida”, uma vez que a produção de cada um dos heterônimos foi também produto dessas contingências e desses acidentes, não respeitando o modelo original mais do que em suas linhas teóricas. O caso de Álvaro de Campos, que evolui de ser o poeta whitmaniano das grandes odes para se tornar um pensador melancólico, parece-me exemplar do processo. Dessa maneira, podemos reler o período final do texto anterior, trocando organização por heteronímia, e dessa maneira alcançarmos um sentido novo, no que toca à nossa compreensão da heteronímia:
sobre organização, chama a atenção para a maleabilidade vital das organizações efetivas, o que permite aproximar com mais clareza a sua teoria organizacional de sua prática poética. Em uma consideração sobre o processo temporal de formação e desenvolvimento de uma organização, diz o autor (e aqui peço uma vez mais ao ouvinte/leitor que ouça/leia estas palavras pensando na heteronímia):
Criada, assim, em suas linhas gerais, pela inteligência – cuja função natural é precisamente o abstrato e o geral -, determinada depois nas suas linhas particulares pela experiência que adquire em marcha – isto é, pela própria vida -, a heteronímia [organização] consegue ser organização
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[...] sem exceção, pecam pela delineação de organismos estudados e escritos até o último detalhe. Quanto mais inteligentes são, pior sai a obra praticamente, por isso mesmo que sai melhor intelectualmente, e portanto só intelectual. Não contam com o que a realidade é de flutuante e de incerta. Aplicam à elaboração do que pensam que há de ser a realidade o processo pelo qual legitimamente se confeccionam os sistemas filosóficos, os poemas épicos e os romances policiais. (PESSOA, 1992, p. 109-110).
A conclusão do texto com uma afirmação dessa natureza, na qual os exemplos comparativos advêm todos eles do ofício literário (a confecção de sistemas filosóficos, de poemas épicos e de romances policiais), parece-me um claro indicativo de que o texto “Organizar” não é mera instrução organizacional para empregados e empregadores do comércio. Trata-se de uma reflexão cujo horizonte se encontra no campo mesmo da construção da obra pessoana. A frase “Quanto mais inteligentes são, pior sai a obra praticamente, por isso mesmo que sai melhor intelectualmente, e portanto só intelectual”, se vista nos termos comparativos em que propus esta análise, soa como uma crítica autoirônica e, ao mesmo tempo, como uma aceitação serena da influência da vida e de suas contingências sobre o desenho idealizado de sua obra Pensopoética.queaadvertência
sem ser rígida; é complexa e maleável ao mesmo tempo, porque a vida, ao dar-lhe a complexidade que ela precisava como organização, deu-lhe ao mesmo tempo a maleabilidade da própria vida. (PESSOA, 1992, p. 109). Há ainda uma passagem do texto que gostaria de explorar, por possuir ela, a meu ver, um caráter nitidamente metatextual e autocrítico. Ao criticar os organizadores chamados “de gabinete”, Pessoa diz que eles
Freitas
feita por Pessoa sobre sua própria obra pode servir a todos nós, críticos, quando, na ânsia de alcançarmos uma visão totalizante de sua obra magistral, acabamos por forçar o seu enquadramento em camisas de força teórico-críticas, e deixamos de lado o fato de que a grandeza dessa obra está, antes de tudo, sobretudo antes do apelo metapoético da heteronímia, antes de tudo no fato de que os grandes poemas pessoanos são magistrais críticas da vida.
Marcus Vinicius de 251Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
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“As pessoas não morrem, ficam encantadas”, disse Rosa aos 18 anos, quando discursava no velório de um colega da Faculdade de Medicina. Em 16 de novembro de 1967, uma vez abandonada carreira de Medicina e tendo se tornado diplomata e escritor com reconhecimento nacional e internacional, toma (depois de quatro anos de adiamento) posse como “imortal” na Academia Brasileira de Letras. Em seu discurso de posse, Rosa repete, na ABL, a frase pronunciada 41 anos antes, no velório do colega prematuramente morto. A emoção resultante da tão sonhada imortalidade, aliada a problemas cardíacos acentuados pelo uso contumaz de cigarro, causam-lhe o enfarte, razão pela qual ele falece três dias depois, aos 59 anos.
Ouviu muitos relatos e estórias do pai, bem como dos contadores de causos e dos narradores orais da região. Temas como façanhas de heróis, pactos com o diabo, assombrações, vinganças e milagres povoaram seu imaginário de menino inteligente e solitário e, no futuro, irão alicerçar grande parte de sua criação literária. Ainda menino, para dar continuidade aos estudos, muda-se para São João Del Rey e, pouco depois, para Belo Horizonte, onde permanecerá para cursar Medicina.
Religiosidade, crenças e mitos em Guimarães Rosa Marli Fantini Scarpelli Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo (ROSA, 1969, p.71). Vida e arte do escritor João Guimarães Rosa nasceu em 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, Minas Gerais, onde viveu em meio a mitos, superstições, religião e religiosidade.
Numa das primeiras vezes que fui a Cordisburgo, conheci a Dra. Calina Guimarães, prima de Rosa, a qual me levou à fazenda onde ele viveu na infância. A despeito de me ter contado muitas histórias da família e da infância solitária do menino Joãozito, perguntei-lhe ainda se o domínio de inumeráveis idiomas atribuído ao escritor seria realidade ou mistificação. Ela revelou-me que sim, que era verdade: Joãozito, que amava tudo que se relacionava à história, à geografia, à botânica, aos mitos, às fábulas às religiões, à zoologia, teve acesso a um livro sobre borboletas, que encomendara a um caixeiroviajante. Contudo, este lhe trouxe a encomenda… em francês. Uma vez lido o livro incansáveis vezes, Joãozito, com um pouco mais de cinco anos, começou a assimilar uma das primeiras dentre as inumeráveis línguas que aprendeu ao longo de sua curta, mas produtiva vida. É de se salientar que o estímulo para a aprendizagem da língua francesa foi desencadeado pela curiosidade científica do menino. O latim, ele o aprendeu sozinho, lendo e relendo uma Bíblia bilíngue, que ficava na sala da fazenda. Mas tudo isso dito para salientar que, antes do interesse em aprender línguas, havia outras motivações, sobretudo, conforme já ressaltamos, a ardorosa fé religiosa e o amor ao conhecimento. A aprendizagem precoce dessas duas línguas desencadeia o gosto pela aprendizagem de muitos outros idiomas, uma prática contumaz ao longo de sua vida.
mitos
Guimarães
Religiosidade, crenças
Muito embora se tenha formado em Medicina e trabalhado nessa profissão por alguns anos no interior de Minas, Rosa, mediante concurso, ingressa no Itamaraty, onde doravante foi-se tornando diplomata de carreira. Durante a carreira diplomática, encontramo-lo motivado pelo conhecimento de línguas, culturas e literaturas estrangeiras. Estas, ele as preferia ler no original, dada sua convicção de que som e sentido genuínos, sobretudo em obras literárias, são intraduzíveis, devendo, portanto, ser lidos na língua “original”, como o revela em entrevista a Günther Lorenz: Aprendi algumas línguas estrangeiras apenas para enriquecer a minha própria e porque há demasiadas coisas intraduzíveis, pensadas em sonhos, intuitivas, cujo verdadeiro significado só pode ser encontrado no som original (...) Cada língua guarda em si uma verdade que não pode ser traduzida (ROSA, 1994, p.51). e em Rosa 254 Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite. “Cheinhas!”olhava as estrelas, deléveis, sobre-humanas. Chamava-as de “estrelinhas pia-pia”. Repetia: - “Tudo nascendo”! essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança. - “A gente não vê quando o vento se acaba...” (ROSA, 2014, p.21).
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Muita fé, seu moço! A conjunção entre razão e sensibilidade se traduzem, na obra rosiana, no diálogo entre o verificável e o insondável. É assim que conhecimentos científicos entram em conexão com mitos, fé, religiosidade, um recorrente leitmotiv do escritor mineiro. No livro Primeiras estórias, por exemplo, (ROSA, 1969), desponta um conto emblemático, nesse sentido. Trata-se de “A menina de lá”, cuja protagonista - uma habitante do espaço sagrado dos mitos - balbucia uma espécie de língua dos anjos, em estado nascente, primordial, icônico, a que aspiram poesia, poetas e santos. O narrador do conto tenta capturar e traduzir esta língua menor da menina. Do ensimesmamento linguístico de Nhinhinha, afloram imagens poéticas de alta voltagem, algo de naif e fundante, diferencial, intermitente como as “estrelinhas pia-pia”, avistadas no alto e apontadas pela menina. Enfim, posto que frágeis e efêmeras, as palavras da menina irrompem como emissões sinestésicas de som, cor e brilho, como o pisca-pisca de vaga-lumes em cujo voo intermitente, pode ser surpreendida uma “luz menor, de forte coeficiente de desterritorializacão (DIDI-HUBERMAN, 1911, p.11):
O espaço mitopoético A recorrência aos mitos é fundamentalmente atestada no conto rosiano através da fala da menina: uma fala desigual, estranha, intraduzível, o que leva seus pais a procurar um médico para diagnosticar a menina. Em seu afã de conceituar o “mito”, Barthes postula que “o mito é uma fala” (BARTHES, 989, p.131). TrataFantini 255Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
Religiosidade, crenças e mitos em Guimarães Rosa 256 Nietzsche, Pessoa,
Por seu turno, o mundo do logos vai cada vez mais separando estas duas temporalidades: de um lado a verdade lógica (conhecimento científico, filosófico, sociológico).
e Freud: II Colóquio internacional
se, contudo, de uma fala, um discurso, uma narração, dotados da verdade dos mitos, cujas construções imaginárias e poéticas são distintas da “verdade” que encerram o conhecimento científico e o saber racional. Identificado como uma “fala” por Barthes, o Mito deriva do grego mythos (palavra, narração ou mesmo discurso), e dos verbos mytheyo (contar, narrar) e mytheo (anunciar e conversar). A função do mito é narrar todos os fenômenos de criação e fundação de algo que não existia, mas passou a existir. No universo mítico, as narrativas do mito se prestam a estabelecer a relação entre os homens e os deuses, entre o mundo natural e o sobrenatural.
“É, pois, sempre, uma narrativa de ‘criação’ em que se conta como qualquer coisa foi produzida, como começou a ser. O mito não fala senão naquilo que aconteceu realmente, naquilo que se manifestou completamente, as personagens do mito são os Seres Sobrenaturais” (ELIADE, apud GRIMAL. s.d., XIII-XIV).
De outro lado, a “verdade” mítica: construções imaginárias que resistem ao conhecimento científico e à “verdade” racional. No conto supracitado, as proezas da menina atestam sua potência para provocar metamorfoses e milagres, a partir dos quais a nós, leitores, e, respectivamente, ao narrador do conto, “um médico de roça”, nos é dado vislumbrar o surgimento de uma santa, a “Santa Nhinhinha”. Tal qual um anjo caído em meio ao cerrado, a meninota milagreira flana entre a dureza do mundo real e o desejo de habitar a extraterritorialidade onírica dos mitos, dos anjos e dos milagres. Apontando para o céu, Ninhinha roga: “Eu quero ir para lá.” – Aonde? – “Não sei” (ROSA, 1969, p.21). Apelidada de Ninhinha, Maria, ao que tudo indica, é, sob o diagnóstico clínico/epistemológico do médico/narrador do conto, uma vítima de microcefalia: trata-se de uma “meninota”, que “nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes” (ROSA, 1969, p.20). Ela fala por fragmentos, por uma linguagem icônica, inusual e edênica, que, pelo Rosa
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Confiante, todavia, no seu saber científico, ele, por um triz, perdeu a chance de compartilhar, in loco, a emergência do pensamento mágico e mítico, o nascimento de uma santa: “Nunca mais vi Nhinhinha. Sei, porém, que foi por aí que ela começou a fazer milagres” (ROSA, 1969, p.24). Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
menos do ponto de vista mitopoético, podem explicar sua intimidade com o sagrado. Nesse sentido, Ninhinha, com poucas palavras e mínimos gestos, logra, dentre outras proezas, vaticinar a própria morte. Com “despropositado desatino”, ela, pouco antes de morrer, descreve à tia o próprio caixãozinho de anjo – “cor-de-rosa com verdes funebrilhos” – onde deseja ser enterrada (ROSA, 1969, p.24).
Malgrado incapaz, como todos os outros, de reconhecer a potência do sagrado, a tia é porta voz do milagre, em razão do qual o pai encomenda, para o “enterro de anjinho”, um caixão idêntico àquele que Ninhinha escolhera e enunciara à tia. Em breve e intersticial fulguração, o caixãozinho deixa-se vislumbrar através da materialidade oscilante e frágil do milagre que, por um triz, se dá a ver. Instante intermitente e fugidio como vaga-lumes em seus sinais moventes, a provocar o vislumbre de “singularidades, pedaços, brilhos passageiros, ainda que francamente luminosos” (DIDI-HUBERMAN, 2014, p.43). Os brilhos ou funebrilhos do caixão onde se encerra a vida de Ninhinha irrompem em cintilações epifânicas, auráticas. Recorrendo a reflexões poéticas de DIDI-HUBERMAN, são como “‘lampejos de esperança’ (que) desapareceram com a inocência condenada à morte” (2011, p.59). Morte de Ninhinha em glória, “Santa Nhinhinha” (ROSA, 1969, p.24). Ancorado que estava em sua hermenêutica monotópica, o narrador-médico, chamado a diagnosticar a “estranheza” da menina, não foi, contudo, capaz de perceber o surgimento do fenômeno. Vale dizer que, malgrado ter testemunhado e registrado a experiência originadora de mito, poesia, quiçá a emergência de um milagre, ele não foi capaz de aprendê-lo. Morta Ninhinha, é que ele, acometido de desespero metafísico, se dá conta de ter tido nas mãos a chave de ingresso ao sem-tempo da criação mitopoética.
O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O Senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara de loucura. No geral. Isso é que é a salvação da alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas [...] vou no Mindubim, onde um Matias é crente metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar — o tempo todo (ROSA, 1984, p.15). Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio
Beber de todas as águas Como nesse conto, é, a partir de um universo antropológico, que inúmeros personagens da literatura de Rosa revelam seus destinos pessoais e mesmo coletivos. Via de regra, semelhantes destinos são constituídos numa ambiência de superstição, de religiosidade arcaica, de pensamento mítico e conhecimentos mágicos oriundos da tradição oral. Muitos personagens sertanejos, ainda que, com traços marcadamente delineados pela herança regional, não deixam, concomitantemente, de se dotar de traços universalizados, identificáveis em várias épocas e vários contextos mundiais. Riobaldo, narrador-protagonista do romance Grande sertão: veredas, é um personagem cheio de culpas e medo, temente a Deus e pactário com o Diabo. Nunca deixa de recorrer à religião, ou melhor, a todas as religiões, como ele próprio explica a seu entrevistador no romance. É, no entanto, digno de nota que, nessa opção do narrador rosiano, aflore uma espécie de religiosidade universal, sem castas, sem preconceitos ou agenciamentos de controle, muito de acordo com o respeito às diferenças que rege a vida e a arte de Guimarães Rosa. É exemplar a passagem abaixo, em que Riobaldo defende suas crenças, com fé, alegria e bom humor:
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Religiosidade, crenças e mitos em Guimarães Rosa 258
GRANDE SERTÃO: VEREDAS (“O diabo na rua, no meio do redemoinho...”)
No meio das palavras, sentidos dentro de sentidos
Uma imagem que ressalta desse redemoinho que, de diversos modos, muda e demuda o universo sertanejo do grande sertão, é o medo-pânico a assaltar o protagonista no meio de sua travessia, remetendo o leitor/espectador à pintura O Grito, Marli Fantini Scarpelli 259Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
Os dois pontos do título do romance rosiano separam e concomitantemente aproximam, em relação fronteiriça e tensional entre o “grande sertão” e as “veredas”. Ou seja, trata-se de uma região com enormes espaços muitas vezes desérticos e inférteis, repentinamente resfriados por pequenos olhos d’água que, junto a buritis, irrompem da secura do cerrado para conferir vida e frescor ao espaço calorento e opressivo. Para explicar a Edoardo Bizzarri, seu tradutor italiano, o sentido de “campo geral”, conforme aparece em Corpo de Baile, Rosa esclarece a característica predominante dos “Gerais”:
O que caracteriza esses GERAIS são as chapadas e os chapadões. São de terra péssima, vários tipos sobrepostos de arenito, terra infértil. (Brasília é uma típica chapada...). [...] A vegetação é a do cerrado, arvorezinhas tortas, baixas, enfezadas. [...] Mas, por entre as chapadas, separando-as há as veredas. [...] Nas veredas, há sempre o buriti. De longe, a gente avista os buritis, e já sabe: lá se encontra água. A vereda é um oásis (BIZZARRI, 1981, p. 22-23).
Essa geografia heterogênea confere a dimensão simbólica do grande ao pequeno, do oásis ao deserto, do universal ao regional, e vice-versa. Assim, se a multiplicidade do cosmos pode comportar o sertão, a singularidade do sertão também pode difundir-se no cosmos, num processo de permanente recursividade: “Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte” (ROSA, 1984, p.8).
Religiosidade, crenças e mitos em Guimarães Rosa
Trata-se de “redemoinho”, exemplo de um rico exemplo de “palavra-valise” que pode ser dissociada, para, ao mesmo tempo, ser reassociada e recombinada gerando uma espécie de “palavras-chave” do romance como em “moi”, “moinho”, “rede”, “medo”, “demo”, “demônio”, “remo”, “heroi”, “homero”, “homem”, “dinheiro”, “moderno”, “reino”, “morno”. Ou seja: signos em rotação enredados entre si e no discurso. Discurso dialógico, polifônico, articulado por seus signos auto-interferentes a se ressignificar no meio da linguagem... e das travessias de Riobaldo, onde este é surpreendido pelo redemoinho — pelas formas rodopiantes de um falso hai kai a imaginarizar a presença pontual e, ao mesmo tempo, permanente do diabo — a 260 Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
Figura
do norueguês Edvard Munch, cujo personagem é surpreendido por um furacão que se está se formando. Um homem a expressar a imagem do próprio pânico, preso no meio de uma ponte, sem saída, sem possibilidade de avançar ou recuar. 1 - O Grito (1893)

Fonte: (Edvard Munch, 1893)
“Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 1984, p.60).
Recurso de justaposição de duas ou mais palavras, com o frequente uso de novos afixos e sufixos, largamente utilizado pelas literaturas das vanguardas europeias e posteriormente na literatura de outros países, as “palavras-valise” são adotadas por Rosa no seu romance, e tal adoção já aparece no título do romance.
Guardando ainda a relevância de religião e religiosidade em suas criações literárias, Rosa, em não raras vezes, ancora sua linguagem no conceito blasfemo de “língua da metafísica”. Assim, ao colocar-se no insubmisso, parricida e paradoxal papel de “amo” da criação, o escritor mineiro estabelece parceria confrontante com Deus, de cujo método criador tenta apropriar-se para, no livre arbítrio de sua escritura, 261Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
Marli Fantini Scarpelli
Natureza, religião e arte A crença de Guimarães Rosa na manifestação do pensamento mágico, mítico e místico se traduz poética e recorrentemente não somente em suas cartas, entrevistas e biografias, mas também em suas obras literárias, como na passagem a seguir, extraída do conto “O espelho”, de Primeiras Estórias: “Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” (ROSA, 1969, p.71).
tudo entrelaçado e implicado no romance. O que, enfim, se repete recursivamente no romance Grande sertão: Veredas: (“O diabo na rua no meio do redemoinho…”).
Muitas das características pessoais do escritor – convicção religiosa, espírito profundamente investigativo, amor ao conhecimento, ao ser humano, aos bichos, à natureza, à língua e à literatura, perseverança, planejamento, alegria, hospitalidade, zelo, lealdade, capacidade de ouvir e respeitar o outro – são invariantes que persistem ao longo de sua obra e de sua correspondência com familiares, amigos, tradutores. Não diferentemente dele, suas personagens conjugam essas qualidades, e isso lhes confere sabedoria e humanidade, razão e sensibilidade. Guimarães Rosa patenteia o elevado valor que atribui à arte, colocando-a, ademais, no mesmo patamar de importância que a natureza e a religião. Essa profissão de fé literária reafirma a tendência de Rosa em materializar crenças e práticas pessoais na criação literária, conforme sua concepção registrada no livro de Vicente de Paula Guimarães, tio de Rosa: “Segundo concebo, arte é coisa seriíssima, tão séria quanto a natureza e a religião” (GUIMARÃES, 1973, p.137).
em Guimarães Rosa 262 Nietzsche,
Eu procedo assim, como um cientista que também não avança simplesmente com a fé e com pensamentos agradáveis a Deus. Nós, o cientista e eu, devemos encarar a Deus e o infinito, pedir-lhes contas, e, quando necessário, corrigi-los também, se quisermos ajudar o homem. Seu método é meu método. O bem-estar do homem depende do descobrimento do soro contra a varíola e as picadas de cobras, mas também depende de que ele devolva à palavra seu sentido original. Meditando sobre a palavra, ele se descobre sobre si mesmo. Com isto repete o processo da criação. [...] a língua dá ao escritor a possibilidade de servir a Deus corrigindo-o, de servir ao homem e de vencer o diabo, mitos Pessoa, Rosa
desenvolver uma verdadeira expressão da outridade: “O homem ao dizer: eu quero, eu posso, eu devo, ao se impor isso a isso mesmo, domina a realidade da criação” (ROSA, 1994, p.48).Ao exercitar-se rigorosa e permanentemente para ultrapassar as limitações impostas pelos códigos – cartográfico, escritural, religioso ou para equacionar as práticas socioculturais –, Rosa busca instituir uma ordem heterogênea, visando desierarquizar referências cristalizadas e via de regra intransponíveis. Ancorado nesse posicionamento, ele postula o direito de renovar a língua, a literatura e a vida, de sorte a poder agenciar o resgate da dignidade humana: “minha língua brasileira é a língua do homem de amanhã, depois da purificação [...] Minha língua [...] é a arma com a qual defendo a dignidade do homem [...] Somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo” (ROSA, 1994, p.52). De fato, a habilidade em manejar veneno e antídoto, seja para salvar vidas ou para regular os eixos do “mundo desconcertado” manifesta-se recorrentemente nas operações em que, além do criativo escritor, intervêm o diplomata, o médico e o homem de fé. “Uma vez [indaga Lorenz] você me disse que quando escreve quer se aproximar de Deus, às vezes demasiadamente. Certamente isso também se relaciona com a língua. Como se deve entender isso?” Essa é uma dentre as muitas perguntas desafiadoras do entrevistador, que revela, desse modo, conhecer bem os matizes com que Rosa tece sua escritura. Frente a tal desafio, Rosa patenteia sua concepção de vida, religiosidade e arte, ainda mais insubmissa do que pressupõe seu entrevistador:
Religiosidade, crenças e
e Freud: II Colóquio internacional
inimigo de Deus e do homem [...]. A ciência existe para expulsar o diabo. O homem sofre sempre o desespero metafísico, pois conhece a existência do diabo e pode liquidá-lo, superando-o até conseguir uma humanidade sem falsidades (ROSA, 1994, p.48).
Marli
Scarpelli
A aptidão para conciliar religião, magia, sensibilidade, ciência, conhecimento de idiomas, manejo das palavras e da medicina faz de Guimarães Rosa um pharmákeus, ou seja, um hábil manipulador do pharmakón. Em seu livro, A farmácia de Platão, Derrida afirma que Thot, o deus (egípcio) da escritura e da medicina, é o deus do pharmakón (DERRIDA, 1991, p.38). Em sua ambivalência, Thot é, simultaneamente, “o deus da medicina, da saúde e da doença, da vida e da morte, do bem e do mal [...]”. Além de significar remédio e veneno, Pharmakón “quer dizer ainda outras coisas” (DERRIDA, 1991, p.45). “Se o phármakon [diz ele] é “ambivalente”, é, pois, por constituir o meio no qual se opõem os opostos, o movimento e o jogo que os relaciona, os reverte e os faz metamorfosear-se um no outro (alma/corpo, bem/mal, dentro/fora, memória/esquecimento, fala/escritura etc.)” (DERRIDA, 1991, p.79). O pharmakón de Guimarães Rosa pode, como o que Derrida pretendeu surpreender na “farmácia” de Platão, a tensão entre remédio e veneno, medicina e escritura, vida e morte, Deus e diabo, bem e mal, medo e coragem. Estes são os ingredientes que regulam guerras, travessias, medo e coragem do “farmacêutico” Riobaldo, narrador-protagonista do romance rosiano, que, no curso das guerras jagunças, assim como o deus Thot, “separara os combatentes e, como deus-médico-farmacêutico-mágico, os curara de suas mutilações e tratara suas feridas” (DERRIDA, 1991, p.35).
O sertão rosiano pressupõe uma geopolítica com seus currais, suas porteiras e suas múltiplas fronteiras, seu gado, seus cavalos, seus valores, ademais da truculenta concepção jagunça, retroalimentada pelos coronéis e seus latifúndios. Tudo isso minuciosamente descrito e associado à força das superstições, do misticismo e dos mitos sertanejos; à profunda religiosidade e ao manejo dos feitiços, rezas bravas, Fantini 263Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
Religiosidade, crenças e mitos em Guimarães Rosa 264 Nietzsche, Pessoa,
Esse processo é cabal para a aceitação do franqueamento de trânsitos e territórios, do conhecimento de si e do outro, o que implica a modulação, a relativização, a indecidibilidade a tornar difusos quaisquer limites, como bem o expressa esta passagem: “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos” (GSV, 7).
magias dos curandeiros (em seu arcaico pharmakón). Mas nada neste universo é absoluto ou separado: tudo é relativo, intercambiável e misturado como o próprio diabo, sobre o qual Riobaldo reclama: “Arre, ele está misturado em tudo” (ROSA, 1984, p.11).
Assim descrito, o sertão desponta como algo i/material, da ordem do desconhecido, do não-sabido, do vir a ser, isto é, algo desterritorializado, a ser constituído na linguagem. Trata-se, em suma, de um sertão desconhecido e indecidível, mas pleno de potencialidades. Em correspondência com o remanejamento de seus territórios referenciais, metafóricos e intersubjetivos, o sujeito da enunciação do Rosa
Via de regra paradoxal, tal permeabilização se expressa em outras inumeráveis reflexões, dentre as quais as seguintes: “O sertão é onde ‘tudo é e não é’” (ROSA, 1984, p.11); “O sertão é do tamanho do mundo” (ROSA, 1984, p.67); “Sertão é quando menos se espera” (ROSA, 1984, p.267); “Sertão é dentro da gente” (ROSA, 1984, p.289); “Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!” (ROSA, 1984, p.18).
Entretanto, é de se salientar que procedimentos dicotômicos tendendo a separar polos (considerados) díspares são inicialmente valorizados pelo narrador que não suporta a heterogeneidade, o convívio entre diferenças. Nesse sentido, ele busca apartar os “opostos”: o bem do mal, a feiura da beleza, a alegria da tristeza, desejando, ademais, “os todos pastos demarcados [...] Como é que posso com este mundo? [...] Ao que, este mundo é muito misturado...” (ROSA, 1984, p.200 /2007). Contudo, a partir de suas dificultosas travessias, ele inicia sua aprendizagem do convívio e da interação. É a partir de seu trânsito pela mão dupla do paradoxo, que suas perspectivas começam a multiplicar-se, desencadeando e dotando suas reflexões de novos sentidos.
e Freud: II Colóquio internacional
Scarpelli
Estruturação do romance Grande sertão: veredas Romance que explora, dentre outros, o tema do pacto com o diabo, Grande sertão: veredas se abre e se encerra de forma inusitada: indiciando um diálogo, ele se inicia com um travessão a introduzir uma “resposta”: “ — Nonada”. Trata-se, todavia, de resposta a uma pergunta, pressupostamente feita não no livro, mas antes e, portanto, externamente a ele, pelo entrevistador de Riobaldo (narrador-protagonista do romance). Trata-se, portanto, de uma pergunta entabulada no âmbito do “real”, no diálogo oral dos dois interlocutores, e não no espaço simbólico a desabrochar da escrita da obra literária. Ou seja: há uma pergunta anterior à existência do livro, o que também salienta a passagem da oralidade para a escritura. Em suma, um diálogo fora do livro, com uma pergunta cuja resposta é “ — Nonada”, frase nominal mediante a qual a grande entrevista constitutiva do romance encontra continuidade no interior da obra. Então, Grande sertão: veredas se inicia com o “travessão” (uma marca discursiva do diálogo pressuposto numa entrevista) seguido de “Nonada” para terminar em “travessia”. Cerrase, ademais, com uma “lemniscata”, signo/ícone de infinito, sabedoria, mestiçagem: . Na estrutura inabitual nas duas partes – início e fim da narrativa – desponta a presença do diabo, encarnado, no início do romance, em um “bezerro erroso”: — Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser — se viu — e com máscara de cachorro (...) Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram — era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas .... Fantini 265Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional

Marli
romance busca incessantemente, como os antigos gregos, o “conhecer-se a si mesmo”: “Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas” (ROSA, 1984, p.19).
Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente — depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão (ROSA, 1984, p.7).
A segunda parte mencionada localiza-se justamente no encerramento do romance que, na verdade, em lugar de concluir, abre-se a novas reflexões sobre a do pacto, em suma, da existência (ou não) do diabo. Trata-se, na verdade, de questionamentos mais amplos e mais filosóficos sobre o viver e o existir, o medo do viver e a coragem para enfrentar desafios, a permanente construção do ser e do vir a ser, conforme se verifica na passagem (imagem) abaixo:

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legitimidade
Passagens e travessias em Grande sertão: veredas O desafiante processo de sancionar a passagem de traumas inconscientes para elaborações conscientes, passando por conflitos entre o medo e a coragem, entre a morte e o luto, situar-se entre Deus e o diabo, resulta na travessia do real catastrófico para sua representação simbólica, ou seja, na passagem da experiência para a vivência, o que, recorrentemente, se traduz em imagens privilegiadas de obras literárias, a exemplo Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio
— Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Compadre meu Quelemém me hospedou, deixou meu contar minha história inteira (...). Mas, por fim, eu tomei coragem, e tudo perguntei: — “O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?” Então ele sorriu, o pronto sincero, e me vale me respondeu: — “Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais...” (...). Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro (...). Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não ? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia (ROSA, 1984, p.568).
Religiosidade, crenças e mitos em Guimarães Rosa 266 Nietzsche,
Queria que eu aprendesse a atirar bem, e manejar porrete e faca. Me deu logo um punhal, me deu uma garrucha e uma granadeira. Mais tarde, me deu até um facão enterçado, que tinha mandado forjar para próprio, quase do tamanho de espada e em formato de folha de gravatá (ROSA, 1984, p.105).
Marli Fantini Scarpelli 267Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
do romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Ao longo do romance se desenrola uma entrevista, cujo modo de configurar-se se identifica com a estrutura do relato testemunhal ou de teor testemunhal1. No presente enunciativo do romance, Riobaldo — o narrador-protagonista, já aposentado da jagunçagem, rico latifundiário, semiletrado, “quase barranqueiro” — relata sua trajetória de vida, aventuras e lutas, a seu entrevistador. Este, cujo nome nunca é mencionado ao longo da entrevista, é um homem culto, estranho à cultura sertaneja, identificado por seu entrevistado como um homem de “toda leitura e suma doutoração” (ROSA, 1984, p.14). A trajetória riobaldiana é narrada desde sua infância, de menino pobre e bastardo, que chega à juventude como um reles jagunço, “homem muito provisório” (ROSA, 1984, p.386), surpreendido em sua luta pela sobrevivência até sua meia idade quando recebe a visita de seu entrevistador.
“Padrinho” de Riobaldo, Selorico Mendes assevera ao “afilhado” que “cada lugar é só de um grande senhor, com sua família geral, seus jagunços mil, ordeiros” (ROSA, 1984, p.104). Introduzir o “afilhado” no manejo de armas é a forma como o latifundiário institui laços com o filho “ilegítimo” e o prepara para ocupar seu lugar no latifúndio. É, portanto, sob o signo da beligerância e da “foraclusão”2 que Riobaldo se insere nessa arcaica tradição rural, cuja “malignidade”, numa reviravolta performática, ele próprio tratará, mais tarde, de combater.
1 O relato testemunhal busca resgatar o que há de irrepresentável e terrível na realidade, e o todo o texto que se propõe a isso pode inserir-se no gênero tesmeunhal ou dotar-se de “teor testemunhal” (SELIGMANNSILVA, 2003, p. 9), ou seja, sem se implicar cabal ou explicitamente com o evento catrastófico que se propõe a testemunhar.
2 Jacques Lacan chama de “foraclusão do Nome-do-Pai” o processo de “foraclusão”, ou seja, a não inserção do indivíduo no campo simbólico do pai, em razão de ele não receber o reconhecimento real ou imaginário da paternidade, como podemos identificar na relação “bastarda” imposta a Riobaldo pelo pai que só reconhecerá a paternidade deste filho quando prestes a morrer. Ver LACAN, Jacques, em verbete “foraclusão”.
À falta de outras habilidades do “afilhado”, Selorico Mendes decide também que ele estude, designando o Mestre Lucas, do Curralinho, para ensinar-lhe as primeiras letras: “Baldo, você carecia mesmo de estudar e tirar carta-de-doutor, porque para cuidar do trivial você jeito não tem” (ROSA, 1984, p.106). É assim que o jovem irá frequentar a escola do “Curralinho”, lugar de transição onde aprende as primeiras letras: Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regrade-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho desenhei bonitos mapas (ROSA, 1984, p.14).
No distanciamento geográfico e crítico do Curralinho, Riobaldo descobre que Selorico Mendes é não seu padrinho, mas seu pai. Pai que não quis lhe assumir a paternidade, despertando-lhe o repúdio e o ódio, o desejo de fugir para outros lugares e guerrear.É, portanto, em nome do pai, que Riobaldo se tornará jagunço, recebendo, cada novo patamar guerreiro, um novo cognome: “Tararana” (lagarta que queima); “Cerzidor”, por ser certeiro nos tiros e nas palavras; e finalmente, o Chefe “Urutu Branco” (cobra voadora). A excelência no manejo de remédio e veneno, armas e palavras o ajuda a se prepara para ocupar e desocupar o lugar do pai. Deus e Diabo, eu e o outro, o mito e o logos transmigram e se intercambiam nas fronteiras intervalares que debordam o imaginário de Riobaldo, que se vê condenado a tramar contra a memória pessoal e retramá-la através da escuta alheia. Peçonha e antídoto são manuseados no ofidiário do Chefe Urutu-Branco. Nele tudo se mistura e se condensa no mesmo frasco onde todas as substâncias se para retramar as “formas do falso”. Esse é um dos estratagemas de que nosso herói se dota para pactuar com o diabo.
O pacto demoníaco a ser realizado por Riobaldo é, então, uma forma de dizer ao diabo (e quiçá a Deus) o que o pai se nega a ouvir. Em ensaio de 1923, ao discorrer sobre a tríade Pai-Deus-Demônio, Freud postula que o Demônio Maligno da fé cristã foi, na Idade Média, um anjo caído, cuja natureza era semelhante à de Deus, e conclui que ambos, Deus e o Diabo, eram originalmente idênticos, uma figura única que posteriormente se cindiu em duas, com atributos opostos. Assim sendo, a ambivalência divina é que governaria a relação entre o indivíduo e seu pai pessoal:
Religiosidade, crenças e mitos em Guimarães Rosa 268 Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas — que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo — que é só assim o significado dum azougue maligno — tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença de campear?! Arre, ele está misturado em tudo. Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem — ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! — é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco [...]. Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia [...]. Tem diabo nenhum. Nenhum! — é o que digo (ROSA, 1984, p.11). Além de o diabo ser algo integrado à natureza ou à vida, fazendo até mesmo parte da esfera sagrada, ele, segundo a compreensão de Riobaldo, somente se distingue de Deus na esfera semântica, como se lê nesta passagem: “O senhor não vê? O que não Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio
Marli Fantini Scarpelli 269
Talvez, por isso, que deseja tanto que nada se misture, ou seja, que cada coisa seja cada coisa, uma separada daQueoutra:isso foi o que sempre me invoco, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim rúim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado... (ROSA, 1984, p.207).
Ainda assim, as coisas fogem sempre ao controle de Riobaldo, principalmente a sua necessidade de desmisturar tudo, de inclusive separar Deus do diabo. Tentativa que resulta vã, como aquele explica a seu interlocutor:
No afã de fugir do pai, mas, no fundo, guardando o desejo de ser reconhecido por ele, Riobaldo ora recorre a Deus, ora ao diabo, e muitas vezes confunde os dois.
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Se o Deus benevolente e justo é um substituto do pai, não é de admirar que também [a] atitude hostil para com o pai, que é uma atitude de odiálo, temê-lo e fazer queixas contra ele, ganhe expressão na criação de Satã. Assim, o pai, segundo parece, é o protótipo individual tanto de Deus quanto do Demônio (FREUD, 1987, p.111).
A peta, eu queria saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas! (ROSA, 1984, p.394).
Cobra antes de picar tem ódio algum? Não sobra momento. Cobra desfecha desferido, dá bote, se deu. A já que eu estava ali, eu queria, eu podia, eu ali ficava. Feito Ele. Nós dois, e tornopio do pá-de-vento — o ro-ró girado mundo a fora, no dobar, funil de final, desses redemoinhos:
A primeira sequência do pacto performa o dramático confronto de Riobaldo com a própria (im)potência. Para tanto, ele necessita ingressar na esfera divina ou na demoníaca. O átimo em que tudo acontece é somente o de uma fração de segundos, só comparável a um incerto fulgurar de estrelas. Ainda que depois duvide da ocorrência, Riobaldo, ao convocar satanás para o pacto, é, num breve instante de epifania, arrebatado pelo supremo gozo do absoluto, vendo atravessado pela aragem do sagrado:
– Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos! Voz minha que se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado [...]. Ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas tranqüilidades –de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa do meu pai. Vi as asas, arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí eu podia mais?
Não obstante o gozo de agarro, a aragem do sagrado e a irrupção da potência antes desconhecida, incluindo a súbita sensação de ser reconhecido pelo pai, tudo isso 270 Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
é de Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa existir para haver — a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo” (ROSA, 1984, p.56). Entre Deus e o Diabo, Riobaldo opta pactuar com este porque, segundo a crença entre os jagunços (alguns dos quais já pactários como já o é o grande inimigo Hermógenes), é o Diabo quem compra a alma dos que o procuram para, em troca, obterem poder, mando e fortuna. Riobaldo, o pobre menino levado do destino, ao ser rejeitado pelo pai, recorre, em contrapartida, à proteção e à potência demoníacas, mas não sem antes medir forças com o diabo, a maior expressão da malignidade. Curiosamente, ao mesmo tempo, identifica-se com o demo... e/ou com Deus?
... O Diabo na rua, no meio do redemunho... Ah, ri; ele não. Ah — eu, eu, eu! Deus ou o demo — para o jagunço Riobaldo! (ROSA, 1984, p.393).
Religiosidade, crenças e mitos em Guimarães Rosa
é muito provisório. Aos poucos, retorna o medo e a culpa inseparáveis do melancólico, Riobaldo que reza para se “penitenciar” do pacto. Ou seja, para tentar salvar a alma vendida ao Diabo: “Reze o senhor para essa minha alma. O senhor acha que a vida é tristonha? Mas ninguém não pode me impedir de rezar; pode algum? O existir da alma é a reza... Quando estou rezando, estou fora da sujidade, à parte de toda a loucura” (ROSA, 1984, p.565).
melancólico,
Marli Fantini Scarpelli 271Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
Em passagem do início do romance, Riobaldo menciona um de seus temores recorrentes: o temor da loucura, da qual acredita poder escapar através da religião, das rezas. Contudo, trata-se fundamentalmente de salvar a alma e, para tanto, não basta uma só religião: é preciso recorrer a todas. A mediação de uma outra voz A voz do narrador, ao longo da narrativa, é a de um sujeito lacunar, faltante e que paulatinamente vai aprendendo sobre si mesmo e sobre o outro, graças à mediação e ao sigilo ético de seu entrevistador. Clivado entre medo e coragem, entre o não ser e o vir a ser, resta-lhe depositar sua confiança no interlocutor. A culpa seja pelo pacto com o diabo, seja pela morte de Diadorim - a amada morta - sempre a abrir feridas, são índices do caráter testemunhal do relato desenvolvido ao longo do romance rosiano. Na formulação do narrador, o “real” é aquele acontecimento sem mediação ou possibilidade de simbolização, que nos toma de assalto, no decorrer da vida ou no “meio do caminho”, como a pedra em que esbarra e “empaca” o sujeito poético do poema drummondiano. A pedra com a qual Riobaldo depara é o desconhecido, aquilo que ainda não foi assimilado ou elaborado e que, assim sendo, acaba nos apanhando de surpresa no meio da travessia, ameaçando-nos, causando-nos receios, inquietação e estranheza. Isso posto, não é difícil concluir que a ocorrência-limite a desencadear narrativas como a do sujeito testemunhal do romance rosiano é o tempo do vivido, das guerras, do trauma, do não elaborado, do real em estado bruto, como bem o percebeu o
sujeito do relato com base nesta reflexão de suma sabedoria: “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 1984, p.60). Range rede Quando lhe é dada a veleidade da “folga”, ou seja, somente quando deixa de enfrentar a miséria ou os perigos que lhe ameaçam a sobrevivência, é que Riobaldo irá entregar-se ao ócio e ao estado de suspensão. Esse estado lhe permitirá dotar-se do relaxamento necessários a sua reflexão acerca do vivido. A oportunidade surge com a rede intersubjetiva que se estabelece entre ele, seu entrevistador e seu vivido (a emergir com a “folga que lhe vem”). Inicia-se, assim, o processo de distanciamento crítico a produzir a passagem da experiência para a vivência, ou melhor, o salto da história traumática de vida para o relato (dela). Não obstante, num breve instante de reflexão filosófica, volta à tona o medo, o perigo do viver, a melancolia, a recorrente dúvida frente à existência do diabo: De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos desassossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito Abrenúncio. Essas melancolias. (...) Viver é negócio muito perigoso... (ROSA, 1984, p. 11-12).
e Freud: II Colóquio internacional
Terminada a era da jagunçagem, em cuja eliminação Riobaldo investiu, ele se encontra numa das duas grandes fazendas herdadas do pai, Selorico Mendes, que, antes de morrer, assume a paternidade do então herói, transformando o “pobre menino levado do destino” em um rico latifundiário. É, então, numa dessas fazendas herdadas, que Riobaldo recebe, com honrarias, seu entrevistador. As perguntas formuladas por este não são explicitadas na narrativa do romance, mas há várias marcas discursivas Rosa
Religiosidade, crenças e mitos em Guimarães Rosa 272 Nietzsche, Pessoa,
Luto e melancolia “Se o trabalho do luto só pode ser levado a cabo através da narração de uma história, o dilema [do relato] reside no caráter incomensurável e irresolvível dessa mediação entre experiência e narrativa” (AVELAR, 2003, p.236). Ao sujeito do relato restaria o esforço de tradução ou negociação no sentido possível de colocar-se “num mais ou numa falta, excessiva ou impotente para capturar o luto em toda a sua dimensão” (Idem, ibidem). Como então traduzir a ausência da amada cuja morte é inassimilável e, portanto, irrepresentável? Como bordejar a morte do ser amado, esse absurdo incomensurável, esse acontecimento irredutível a qualquer tentativa de superação e mesmo de metaforização? Para o real, as palavras sempre faltam, e Riobaldo, gaguejante, paralisado frente ao corpo da amada morta, só faz confirmá-lo: Diadorim tinha morrido — mil-vezes-mente — para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejavam (p. 557). [...] Não escrevo, não falo! — para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Fantini 273Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
Marli
a indicar o tipo de questões ou dúvidas que propõe a Riobaldo. Meio jornalista, meio escritor, meio etnólogo, o entrevistador anota em suas cadernetas de campo o depoimento do sertanejo, personagem heroica com estatura mítica, que se impusera a tarefa de livrar o sertão do mal da jagunçagem. Não possuindo a autoridade da narrativa épica ou da crônica oficial, o testemunho do ex-jagunço só se tornará exemplar e só terá assegurada sua aura, caso entre em interlocução com uma voz legitimadora como a do entrevistador, homem culto e de “suma doutoração”, que vem de outros lugares para realizar a Contandoentrevista.com o cuidado ético do entrevistador, que ouve (e anota) seu relato de Riobaldo, sem críticas ou julgamentos, Riobaldo confidencia àquele sua traumática história de lutas pela sobrevivência: “De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo. Não crio receio. O senhor é homem de pensar o dos outros como sendo o seu, não é criatura de pôr denúncia” (ROSA, 1984, p.91).
Scarpelli
FOUCAULT, 2006, p. 16). O mestre Riobaldo sabe que a ausência – suas perdas – é a fronteira onde principia o discurso. Sua travessia entre o medo e a coragem. Entre o real e o relato. Entre o mito e o logos. Entre Deus e o diabo. e mitos
em Guimarães Rosa 274 Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
Diadorim... [...] Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real me vi (ROSA, 1984, p.561).
Não sendo possível ao pharmakéus Riobaldo desencantar Diadorim no real, para sempre irremediável, ele pode, contudo, intercambiar a história vivida com a versão chancelada pelo relato. O vivido é o real, o acontecimento passado, que já não mais existe. Até mesmo a memória se retrai, se oculta nos desvãos do inconsciente. Somos, então, alertados para a consciência de que, se buscamos tão insistentemente a memória, se falamos tanto dela, é “porque ela não existe mais” (NORA, 1993, p.07).
A morte de Diadorim constitui esta dimensão absurda, intratável, inenarrável do real em que Riobaldo se viu surpreendido. Se o real está no meio da travessia, quando não estamos atentos aos acontecimentos, ele, o real, sempre pode, sem sobreaviso, nos pegar de surpresa, como aquele “diabo na rua, no meio do redemoinho” ou como a morte da pessoa amada. Incapacitado para enfrentar esta experiência única e incompartilhável, Riobaldo não faz senão denegá-la, denegar a morte de quem amamos. Malgrado sua impossibilidade de relatar este acontecimento intraduzível, ele, Riobaldo Tatarana, todavia, o faz, e assim realiza sua grande travessia: a de transformar sua experiência em relato. De transformar sua perda em criação poética.
Religiosidade, crenças
Assim sendo, pode-se, em último caso, fazer um outro pacto, ainda que ficcional, para além daquele outro antes entabulado por Riobaldo com o diabo ou mesmo de sua parceria confrontante com Deus. No real, a culpa é irremissível porque o que aconteceu no passado é irreparável. Não “verdadeiro”, mas “verossímil” é o acontecimento discursivo, visto ser somente através da linguagem, pelas margens da palavra, que o sujeito da enunciação pode atravessar a culpa e caminhar em direção ao futuro. Importa reafirmar que a culpa não se redime no real, visto ser ele para sempre irrecuperável. Isto, se é que de fato existiu, conforme o postula De Man, quando assevera que “é, na linguagem, tão-somente na própria linguagem que a ‘culpa’ se resolve” (Apud
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Marli Fantini Scarpelli 275Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
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Religiosidade, crenças e mitos em Guimarães Rosa 276 Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
Adelia Bezerra de Meneses
ressonâncias odisseicas
Além das possíveis ressonâncias odisseicas, o conto Partida do Audaz Navegante, de Guimarães Rosa (1981) vai fornecer a oportunidade de se estudar o fazer literário do ficcionista mineiro, bem como viabilizar uma abordagem do papel da Fantasia e a relação entre Literatura e Vida. Trata-se de um conto dentro de um conto, ou melhor, de duas narrativas que correm interagindo. Uma, conduzida pelo narrador que relata a manhã de um dia de chuva, em que “parecia não acontecer coisa nenhuma”, vivida por 4 crianças num sitiozinho mineiro. Três irmãzinhas e um primo: uma delas, Ciganinha, fazia par com o primo Zito, mas os dois estavam “estremecidos”. Outra, é a história inventada por Brejeirinha, a menor das crianças, sobre um “Audaz Navegante”, que vai ganhando consistência ao longo da narrativa, e interferindo no tônus emocional do parzinho de Começoprimos.com a questão do contraponto desse pequeno conto com o “romance grande” que é a épica, a Odisseia de Homero. Importa ver a “reapropriação” que se faz dessa herança clássica, desse “capital cultural” (2007) que é a Odisseia. Flagra-se, para além da atitude parodística no manejo das relações com o clássico, um processo de estilização, estranhamento, carnavalização e transgressão. Isso nos obrigará a pôr em pauta, minimamente que seja, a questão do Canon literário. Edward Said aponta uma das etimologias da palavra “canon”, que remeteria a ... um significado musical, o cânon como uma forma contrapontística que emprega inúmeras vozes [...] , uma forma, em outras palavras, que expressa movimento, brincadeira, descoberta e, no sentido retórico, invenção. Vistas dessa maneira, as humanidades canônicas, longe de serem uma tábua rígida de regras fixas e monumentos que nos intimidam a partir do passado[...]sempre permanecerão abertas a combinações mutáveis de sentido e significação[...](SAID, 2007, p.45). 277
O Aldaz Navegante de Guimarães Rosa:
Vamos, então, ver o que rende esse contraponto, para além do procedimento primário de dizer: “Olha, aí há um Navegante, que sofre perigos no mar” – que aludiria ao Navegante prototípico, que é Odisseu; e “Aí há uma moça, que ele ama, e de quem sente saudades, e que ele teme que o esqueça” − que nos remeteria a Penélope.
internacional
Realmente, tudo são “coisicas diminutas”: cruzadinha, carinha, perfilzinho, narizinho... até o verbo está no diminutivo: andorinhava. E o que não é descrição da personagenzinha, o único objeto que nesse trecho é nomeado, é essa espécie de diminutivo de caixa, a saber, “caixa de fósforo”. A gente não pode não se lembrar da Emília, d´As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, e sua torneirinha de asneiras. Pois bem, Brejeirinha, “um azougue de quieta”, que prefere “Antes falar bobagens que calar besteiras”, que tem “infimículas inquietações” declara, taxativamente, bem no início do conto: Eu sei porque é que o ovo se parece com um espeto”! (ROSA,1981, p. 101). Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio
Eu falei em “clave minimalista”: não apenas o enredo é reduzido aos elementos essenciais da épica original, mas também as personagens são, num certo sentido, miniaturizadas: crianças. No entanto esse “mundo em miniatura” não deixa de abrigar os problemas fundamentais do ser humano: o Destino, a Vida enquanto travessia, a questão da Necessidade x Vontade, o encontro de contrários (coincidentia oppositorum), o Amor. Falando do casalzinho enamorado, diz o narrador: “Eles se disseram coisas grandes em palavras pequenas.” (ROSA, 1981, p.106-107).
Tudo é pequeno, diminuto, miniaturizado; e a pequenez (e graça) se concentra na protagonistazinha que é a inventadora de estórias. Efetivamente, assim é descrita Brejeirinha, sentada no caixote de batatas: Toda cruzadinha, traçadas as pernocas, ocupava-se com a caixa de fósforos. A gente via Brejeirinha: primeiro, os cabelos, compridos, lisos, louro-cobre; e, no meio deles, coisicas diminutas: a carinha não comprida, o perfilzinho agudo, um narizinho que carícia. Aos tantos, não parava, andorinhava [...] (ROSA,1981, p. 100).
Mais importante que as retomadas do texto clássico, são as modulações, as rupturas, as transgressões do mito, e qual a significação que isso venha a ter.
O Aldaz Navegante de Guimarães Rosa: ressonâncias odisseicas 278
Adelia Bezerra de Meneses279
Seria interessante transcrever aqui a explicação dada por Guimarães Rosa na sua correspondência com Meyer-Clason, o tradutor alemão, às voltas exatamente com as dificuldades colocadas pelo texto da “Partida do Audaz Navegante”: Há, em português, a expressão “Tão parecidos como um ovo e um espeto”, para dizer que duas coisas, ou duas pessoas, são muito diferentes uma da outra. Aqui, Brejeirinha descobre uma profunda verdade metafísica, desmoralizadora da nossa concepção idiota da “realidade estática”: as coisas aparentemente mais diferentes , são em verdade, às vezes as mais próximas uma da outra. Veja, a respeito, o próprio título, e o próprio tema da estória (BUSSOLOTTI, 2003, p 316-317).
− “Sem saber o amor, a gente pode ler os romances grandes?” (ROSA,1981, p. 101)
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
E essa declaração, que será reiterada nas linhas finais, é o enigma do conto. Efetivamente, esse enigma tem a ver com o amor. Ovo e espeto são elementos polares, em mais de um nível: o espeto, retilíneo e agudo, é a “faca só lâmina” de João Cabral, a figuração do elemento penetrante; o ovo, na sua placidez sem arestas, figura a receptividade incondicional. Ovo e espeto sinalizam um encontro de contrários: orgânico x inorgânico, arredondado (melhor dizendo: ovalado) x pontudo; esfera x seta, masculino x feminino − remetendo, inescapavelmente, a uma simbologia cada vez mais sexualizada, que remontará até o par primordial de opostos: espermatozóide x óvulo.
preocupação
Uma primeira observação que se impõe é que “saber” é da mesma raiz de sabor: a gente “sabe” aquilo que experimenta. E como se diz no português de Portugal,
Então: encontro de contrários, “coincidentia oppositorum” e, como tal, figuração da totalidade, esse enigma não será ao fim propriamente desvendado, mas será por assim dizer efetivado, neste texto que tematiza o amor. E essa é uma fundamental de Brejeirinha, que diz, ainda no começo do conto: − “Eu queria saber o amor...”
Ao inventar sua história, Brejeirinha coloca os circunstantes como protagonistas da sua fantasia. E as reações dos primos não se fazem esperar: Zito se projeta no herói que vai para longe, e sorri; Ciganinha, diante da perspectiva do “nunca-mais” como pano de fundo desse longe, e da separação implicada, projeta-se em quem fica, e estremece.
Essa espécie de Emília, não do Picapau Amarelo, mas de um sítio à beira do sertão, parecido com o Mutum do Miguelim, outro contador de histórias, inicia uma narrativa – bem à moda daquelas que a boneca de pano aprontava: “Zito, você podia ser o pirata inglório marujo, num navio muito intacto, para longe, lo-õ-onge, no mar, navegante que o nunca-mais, de todos?” (ROSA,1981, p.102).
saber é sentir o gosto – por experiência. Brejeirinha, a contadora de histórias, induz a irmã e o primo a “saberem” o amor. A pergunta é: há necessidade de “saber” o amor, para ler os romances grandes? Mas aqui a coisa se inverte: não são os romances que induzem ao amor? A narrativa inventada por Brejeirinha – remetendo à história de amor entre Odisseu e Penélope, desse “romance grande” que é a épica (matriz do romance de aventuras e do romance de amor) não influenciou o relacionamento de Ciganinha e Zito, o parzinho enamorado? (Voltarei a isso mais adiante).
Ele foi num navio, também falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares eram longe, e o mar. O Aldaz Navegante estava com saudade, antes, da mãe dele, dos irmãos, do pai. Ele não chorava . Ele precisava respectivo de ir. Disse: – “Vocês vão se esquecer muito de mim? (ROSA,1981, p.102) Aldaz Rosa: 280 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Navegante de Guimarães
Mas Brejeirinha, “que gostava, poetista, de importar desses sérios nomes, que lampejam longo clarão no escuro da nossa ignorância”, se empolga e prossegue com sua historiazinha:O
Zito: o nome remete a Joãozito, como João Guimarães Rosa era chamado quando criança. E que, significativamente, na idade adulta, adota o pseudônimo de Viator (Viajante) com o qual inscreve, num concurso de ficção, o que viria a ser seu primeiro livro publicado, em 1946, Sagarana.
O
ressonâncias odisseicas
Aldaz Navegante, que foi descobrir os outros lugares valetudinário.
Já apontei, no início, que essa história de um herói que parte perturba os receptores do relato. É por isso que, com a continuação da narrativa, Ciganinha “se feria em zanga”: “– Por que você inventa essa história de tolice, boba, boba?” “– Porque depois pode ficar bonito, ué!” (ROSA,1981, p. 102).
Adelia Bezerra de Meneses281
“Ele vai descobrir os lugares que nós não vamos nunca descobrir...” [...] “Ele vai descobrir os lugares, depois ele nunca vai voltar...” (Rosa, 1981, p. 102).
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Na sequência a fala da Brejeirinha, atingindo todos os demais membros do grupinho, registra também o que “a gente” pensa:
Com força já surgiu aqui, nos termos de Dante, “o ardor / que impelia a conhecer o mundo” (XXVI, p. 98), e o elã fáustico que faz o Nauta atirar-se “ao mar aberto e fundo” (XXVI, p. 98), como diz o Ulisses da Divina Comédia ao Poeta que o encontra no Inferno (XXVI, p. 100). Ele precisava respectivo de ir, diz a narrativa de Brejeirinha; sim, navegar é preciso, como veremos mais à frente. Mas antes é o caso de nos debruçarmos sobre esse outro motivo temático da Odisseia que é a saudade, a espera, a nostalgia – etimologicamente, de nostos (volta) + algia (dor): a dor do retorno, a saudade. E da parte de quem vai, o medo de ser esquecido.
Nesse diálogo entre as duas irmãzinhas, que vale por uma pequena reflexão sobre a Fantasia e sobre a Literatura x Realidade, há uma ambiguidade. De um lado, “pode ficar bonito” primeiramente porque, ao inventar sua história, Brejeirinha pode deixá-la “bonita”, à sua maneira: ela, efetivamente – e transgressoramente – vai alterar o mito: o herói e a moça que ele ama acabam juntos, ela também embarca, vão ambos no navio. De outro lado, a força poderosa da Fantasia age sobre a sensibilidade,
E imediatamente, nessa narrativa inventada na cozinha “perto do fogo familiar”, lugar de contar histórias, repontarão os temas da busca do Longe, da Vita/Via (a vida enquanto caminho), do mar – o mar na sua nudez substantiva; da separação, do risco do esquecimento, da saudade; do imperativo de partir.
mobiliza emoções, a Literatura “atua” sobre os seres, provoca alterações no concreto. Então, depois “pode ficar bonito” na vida afetiva dos pequenos ouvintes daquela historiazinha inventada – na relação dos primos Zito e Ciganinha, sob o impacto da estória de amor contada pela Brejeirinha. Os dois, inicialmente afastados, ficarão, ao longo do conto, “em pé de paz”. Além disso, esse pequeno diálogo abriria outra interessantíssima questão: a da dimensão lúdica da arte, da arte enquanto prolongamento do jogo infantil, como quer Freud em Escritores Criativos e Devaneios (1976) Efetivamente a Literatura –arte da palavra – é um prolongamento do faz-de-conta infantil. “Ficção” vem do verbo fingo = fingir. A criança “finge” que a rodela de esterco é um barco, finge (= faz de conta) que o cogumelo que aí medrou é o Aldaz Navegante com seu chapeuzinho, etc, etc. E a própria história do Aldaz Navegante colocada em palavras, com suas aventuras e seu amor, é fruto de um “fingimento”, de uma invenção, de mimese, de uma representação da realidade no nível da Fantasia. A gente sabe da necessidade de ficção que habita o coração humano. Voltemos à Odisseia, origem da ficção literária no Ocidente, matriz do romance de aventuras mesclado a um romance de amor. É a história das aventuras de um herói, tentando voltar para a sua amada, que o espera, enfrentando todos os assédios, inventando seu famoso estratagema para driblar os príncipes aqueus que com ela querem casar-se. Finda a Guerra de Tróia, Odisseu demorará 10 anos para conseguir voltar a Ítaca, a ilha em que o amor não fenece jamais. Na sua incontornável intepretação dessa epopeia, Adorno diz que a Odisseia é a viagem metafórica do Homem Ocidental em busca da constituição do eu. E é assim que ele interpreta as aventuras de Odisseu, em luta com as forças míticas e mágicas da Natureza, frente às quais ele se constitui como sujeito, num embate entre a Razão e o poder mítico destrutivo arcaico. Ele se contraporá ao Cíclope, aos gigantes Lestrigões, Cila e Caribde, aos lotófagos e ao risco da perda da memória, às sereias e sua sedução, etc, etc.; mas ele tem um rumo, um objetivo na sua rota: Ítaca, onde o espera Penélope. Mas antes, terá que enfrentar o Mar e a força destruidora de Poseidon. Pessoa,
O Aldaz Navegante de Guimarães Rosa: ressonâncias odisseicas 282 Nietzsche,
Rosa, Freud: II Colóquio internacional
II
O conto de Guimarães Rosa continua, a manhã avança, a chuva amaina, as crianças saem para passear e descobrem, no chão perto do riachinho, que encheu com a chuva, rodelas de esterco cogumeleiro. A fabulação de Brejeirinha continuará, agora com elementos novos:O Aldaz Navegante não gostava de mar! Ele tinha assim mesmo de partir? Ele amava uma moça, magra. Mas o mar veio, em vento, e levou o navio dele, com ele dentro, escrutínio. O Aldaz Navegante não podia nada, só o mar, danado de ao redor, preliminar. O Aldaz Navegante se lembrava muito da moça. O amor é original...” – Envém a tripulação... Então, não. Depois, choveu, choveu. O mar se encheu, o esquema, amestrador... O Aldaz Navegante não tinha caminho para correr e fugir, perante, e o navio espedaçado. O navio perambolava ... Ele, com o medo intacto, quase nem tinha tempo de tornar a pensar demais na moça que amava, circunspectos. [...]” – A moça estava paralela, lá, longe, sozinha, ficada, inclusive, eles dois estavam nas duas pontinhas da saudade... O amor, isto é... “O Aldaz navegante, o perigo era total, titular... não tinha salvação (ROSA, 1981, p.105)
Figura 1

Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: Colóquio
Adelia Bezerra de Meneses283
internacional
O
É fantasia, mas na atualidade isso deve ecoar fundo no coração da gente de uma maneira muito doída – nós que estamos vivendo, em pleno século XXI, a tragédia dos barcos naufragados no Mediterrâneo, carregando migrantes fugindo da África e tentando alcançar a Europa – mais precisamente, Lampedusa. As embarcações são outras, não têm aura mítica, mas as águas são do mesmo Mar Mediterrâneo por onde navegou Odisseu.
Figura 2
Leio um jornal do dia 22 de abril de 2015(FIG 2), ainda ecoando a tragédia da véspera: 850 vítimas. TRAGÉDIA FOI A MAIS MORTAL, SEGUNDO A ONU. O naufrágio de um barco pesqueiro com 850 imigrantes no domingo (19 de abril de 2015), no mar Mediterrâneo, foi considerada a tragédia mais mortal na história da travessia entre o norte da África e a Europa pelo Alto Comissariado da ONU para refugiados. Até a conclusão desta edição, só 28 pessoas havia sido resgatadas com vida (Folha de São Paulo, 22 de abril de 2015 – p. A10). Aldaz Navegante de Guimarães Rosa: ressonâncias odisseicas 284 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional

Voltemos para o mundo da ficção. E para o conto do Guimarães Rosa.Vamos retomar o texto anterior da estória inventada por Brejeirinha, selecionando, em meio às aventuras do Navegante, as passagens que configuram a narrativa como um “romance de amor”. Como se constata, há uma necessidade em processo, que é reiterada: ele “tinha assim mesmo de partir?”. (Já vimos, páginas atrás, no início da fabulação de Brejeirinha: “Ele precisava respectivo de ir”.) Mas aqui, a afirmação é questionada: é uma interrogação. E o que é importante é que, mesclada à perigosa aventura no mar, a narrativa de Brejeirinha evolui: cria-se um grande espaço para o amor. “Ele amava uma moça, magra”. E, em meio aos perigos, “O Aldaz Navegante se lembrava muito da moça”.A reação do parzinho, entre os ouvintes, também evolui: “Ciganinha e Zito sorriram. Riram juntos.” Rir juntos é uma forma de comunhão. Evidencia-se uma eficácia da narrativa, a história inventada por Brejeirinha atua nas duas personagens.
Efetivamente, o amor de Ciganinha e Zito parece tornar-se uma atualização do amor do casal mítico, Penélope e Odisseu. Insisto na questão fundamental do Papel da Literatura. Essa atuação da fantasia na sensibilidade, ou melhor, a Literatura como um fator erotizador, tem como exemplo paradigmático, no universo literário ocidental, o episódio de Paolo e Francesca da Rimini, na Divina Comédia (1998, Canto IV, p. 70-142). Trata-se do casal de cunhados que se tornaram amantes e , surpreendidos pelo marido traído, foram mortos como adúlteros, no tempo de Dante, em Rimini. O Poeta os encontrará no Inferno, no Círculo dos luxuriosos. Permanecem, no entanto, juntos. Registra-se no Canto V do Inferno a cena belíssima em que Dante vê o casal, e lhes pede para que contem como conheceram o desejo de um pelo outro, os “dubbiosi disiri”. Francesca se dispõe a contar a “raiz” (a prima radice) daquele amor: um dia eles liam um livro Bezerra de
À medida que avança a fabulação da menininha, continuam a ser registradas as reações de Ciganinha e Zito. Tínhamos já visto os sinais iniciais: Zito sorri, Ciganinha estremece. Agora, “suspiraram-se”; “olham-se nos comovidos não falares”; para eles, o passeio “vira um fato sentimental”, etc... A história do Aldaz Navegante intensificará o enamoramento inicial; ao fim do conto eles estão, “felizes, alguma outra coisa se agitava neles, confusa – assim rosa-amor-espinhos-saudade.” (ROSA, 1981, p. 107).
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Meneses285
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Voltemos, do casal Francesca e Paolo, de Dante, ao casal Ciganinha e Zito, de Guimarães Rosa. Continua a contadeira de histórias: Navegante de Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
juntos , a história de amor de Lancelote e Guinevra, e no momento em que Lancelote beija Guinevra, Paolo beija Francesca: “la boca mi basciò tutto tremante” . E nesse dia, eles não leram mais livro nenhum. (“Quel giorno più no vi leggemmo avante”). Paolo e Francesca “atuaram” aquilo que leram (Inferno, C. V, vs.127 e seguintes, p. 53).
Vejamos a cena, em tradução de Italo Eugenio Mauro: “Líamos um dia, nós dois, para recreio de Lancelote e do amor que o prendeu; Éramos sós, e sem qualquer receio. Vezes essa leitura nos ergueu olhar a olhar, no rosto desmaiado, mas um só ponto foi que nos venceu.
O Aldaz
Guimarães Rosa: ressonâncias odisseicas 286
Foi Galeoto o livro, e o seu autor; Nesse dia não o lemos mais adiante” Noi leggiavamo um giorno per dileto di Lancialotto come amor lo strinse soli eravamo e sanza alcun sospetto. Per più fiate li occhi ci sospinse quelle lettura, e scolorocci il viso, Ma solo um punto fu quel che ci vinse. Quando leggemmo il disiato riso esser basciato da cotanto amante, questi, che mai da me no fia diviso, la bocca mi basciò tutto tremante. Galeoto fu ´l libro e chi lo scrisse; quel giorno più non vi leggemmo avante.”
Ao lermos o sorriso desejado ser beijado por tão perfeito amante, este, que nunca seja-me apartado, tremendo, a boca me beijou no instante.
“Ele, com o medo, intacto, quase nem tinha tempos de tornar a pensar demais na moça que amava, circunspectos”.
“A moça estava paralela, lá, longe, sozinha, ficada, inclusive, eles dois estavam nas duas pontinhas da saudade... O amor, isto é... (ROSA, 1981, p. 105).
É interessante que na estória de Brejeirinha avultam os elementos de “história de amor” que a Odisseia abriga. Essa dimensão – a de um romance de amor – está significativamente presente na Odisseia, mas em geral não é muito explorada pela crítica. Do lado de Penélope, “lá longe ficada”, sim: ela é apresentada como uma espécie de padroeira da fidelidade conjugal, e chora pelo seu marido ausente – além de, astuciosamente, ter urdido a estratégia do manto feito e desfeito, que a reserva para a volta do homem amado. Mas, e do lado de Odisseu? Masculinamente, ou melhor, diríamos – com o inevitável anacronismo dos critérios da atualidade – machistamente, ele tem muitos relacionamentos com mulheres – algumas, semi-deusas, como Circe, Calipso; ou mesmo a jovem Nausicaa, com quem tem um flerte. Não é o caso agora – de relativizar um pouco isso tudo, mostrando o rastreamento que se pode fazer, na Odisseia, da ligação amorosa que Odisseu inequivocamente evidencia com Penélope. Não enquanto estava com suas aventuras no mar, às voltas com ventos, naufrágios, tempestades, ou, quando aportava, lutando com o Cíclope, descendo ao Hades , ou tentando driblar os monstros Cila e Caribde. Nessa situação, assim como o Aldaz de Brejeirinha, “Ele, com o medo, intacto, quase nem tinha tempos de tornar a pensar demais na moça que amava”; mas, por exemplo, ao fim de uma estadia prolongada com Calipso, Odisseu também chora de saudades de casa. Na realidade, ele e Penélope, também, “eles dois estavam nas duas pontinhas da saudade”. Mas eu queria atrair a atenção para apenas uma cena: quando Odisseu volta e o casal mítico se reúne, cada um contando ao outro o que se passou nessa longa ausência, eles à noite vão para a cama, ou melhor, para o famoso leito conjugal, inamovível (construído pelo próprio Odisseu, num tronco de oliveira solidamente enraizado no centro do Palácio de Ítaca): pois bem, por iniciativa de Atena, a Aurora atrasa, a fim de que a noite se prolongasse, para que eles pudessem saciar a grande saudade dos seus abraços. O amor de Odisseu Pessoa, Rosa, Freud:
II Colóquio internacional
Adelia Bezerra de Meneses287Nietzsche,
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e Penélope tem uma dimensão cósmica, belíssima – interfere na chegada do sol, atrasa o romper do dia! Em todo o caso, amor e aventura, alimentando a fantasia humana, sempre. Vamos , agora, de Guimarães Rosa, recuar a Fernando Pessoa, que colocou em circulação a famosa frase “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Pessoa a atribui a “Navegadores Antigos” e, tratando-se de algo vindo do Poeta de Mensagem, seríamos tentados a localizar esse lema na época das Grandes Navegações de Portugal. Mas na realidade, ele é de uma época bem anterior: essa frase está registrada em Plutarco, na biografia do General Pompeu, do século I a. C. Responsável pelos navios romanos que tinham a missão de levarem suprimentos das províncias, sobretudo o trigo, à cidade de Roma, em meio aos perigos da navegação na Antiguidade, Pompeu teria exortado seus soldados, pronunciando a famosa frase: Navigare Necesse, Vivere non Necesse. (Aprox. 70 a.C). Fernando Pessoa se apropria desse lema, toma-o para si, tira-o do contexto das Grandes Navegações e o reinterpreta, redirecionando-o à esfera da criação poética.1 Pois bem, Caetano Veloso pega o mote de Fernando Pessoa e compõe a belíssima canção “Os Argonautas” (1968) – que são navegantes de um tempo mítico muito anterior aos tempos (históricos) do General Pompeu. No entanto, essa frase entrou para a lenda. Eis a canção: O Meubarcocoração não aguenta Tanta tormenta, alegria Meu coração não contenta O dia O marco 1 Escreve Fernando Pessoa: “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso, viver não é preciso’. Quero pra mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar”. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo. Só quero tornála de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade. É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa raça.” (Nota solta não assinada publicada em: “Introdução geral”. In: PESSOA, 1965, p. 15)
O Aldaz Navegante de Guimarães Rosa: ressonâncias odisseicas
Não vou fazer análise, mas quero apenas apontar que nessa canção que fala de navegar, porto, marco e coração que não aguenta (não se sabe bem o que, se tormenta ou alegria), sorriso, veia, etc., há também um duplo registro, de aventura e de amor. Retornarei a essa canção mais adiante.
internacional
Voltemos ao fio condutor, que é o conto “Partida do Aldaz Navegante” acompanhado em sua sequência rigorosamente cronológica. Num determinado momento do passeio das crianças, perto do riachinho que enchera com a chuva, de
Adelia Bezerra de Meneses289
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio
Meu coração O NavegarNãoporto é preciso Viver não é preciso O Noitebarcono teu tão bonito Sorriso solto, perdido Horizonte e madrugada O riso O NavegarViverNavegarViverNavegarSilêncioOBarulhoOODoOOOViverNavegarNadaODaarcomadrugadaportoéprecisonãoéprecisobarcoautomóvelbrilhantetrilhosolto,barulhomeudenteemtuaveiasanguecharcolentoportoéprecisonãoéprecisoéprecisonãoéprecisoéprecisoViver
Uma das crianças aponta o achado, e nomeia: “E – olha o seu “aldaz navegante”, ali. É aquele...”
Estranhamento: algo que é muito comum a Guimarães Rosa no seu vocabulário, na sua sintaxe, nos seus enredos, com o objetivo da propalada desautomatização do poético, da ruptura de expectativas, o despertar da percepção adormecida dos leitores. Do mesmo jeito que Guimarães Rosa recupera o “Cântico dos Cânticos” em Dãolalalão, transformando o Amado e a Amada, respectivamente, em um ex-matador de jagunços e uma ex-prostituta, aqui também ele transforma o grande herói navegante arquetípico e seu navio em uma rodela de esterco bovino, onde cresceu um cogumelo. A ilustração de Luís Jardim (FIG. 3) na capa de Primeiras Estórias (1981) , da Livraria José Olympio Editora, figura o “bovino”, ladeado por uma caravela portuguesa à esquerda, e por um barco a remo, da Antiguidade, à direita. Figura 3 Navegante de Rosa: 290 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Guimarães
repente algo da “realidade” se impõe: as crianças descobrem, no limo, a ponto de ser atingida pela enchente... a coisa vacum, atamanhada, embatumada, semi-ressequida, obra pastoril no chão de limugem, e às pontas dos capins-chato, deixado. Sobre sua eminência, crescera um cogumelo de haste fina e flexuosa, muito longa: o chapeuzinho branco, lá em cima, petulante se bamboleava”. (ROSA,1981, p.105-6).
ressonâncias odisseicas
As crianças transformam uma rodela de esterco de boi em navio, e o cogumelo que medrou desse estrume, com seu chapeuzinho, no Navegante audaz.
O Aldaz

O caráter ambivalente dos excrementos, sua ligação com a ressurreição e com a renovação e o seu papel particular na vitória sobre o medo aparece aqui muito claramente, é a matéria alegre. Nas figuras escatológicas mais antigas, [...] os excrementos estão ligados à virilidade e fecundidade.
Depois de apontado o Aldaz Navegante e seu barco no esterco, Brejeirinha vai continuar sua história,Então,refazendo-a:pronto.Vou tornar a começar. O Aldaz Navegante, ele amava a moça, recomeçado. Pronto. E, de repente, se envergonhou de ter Adelia Bezerra de Meneses291Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Efetivamente, a Odisseia, nas palavras do crítico Edward Said, que eu citei, no início, sobre o Canon, seria um desses “monumentos que nos intimidam a partir do passado”, mas aqui ele é carnavalizado. O termo é do Bakhtin, em estudo sobre a obra de Rabelais (1996). Efetivamente, o navio do herói figurado como esterco de boi é um agudo exemplo de carnavalização – esse processo paródico da cultura popular, vigente na Idade Média e no Renascimento, que se opunha à cultura oficial de tom sério (religioso ou feudal). Os críticos sempre costumavam assinalar a predominância, em Rabelais, do que Bakhtin chama de princípio da vida material e corporal, de um “fisiologismo grosseiro”, mas que adquiriria um caráter cósmico e universal. Para o crítico russo, o “rebaixamento”, que é uma característica do realismo grotesco, mostra uma ambivalência. Esse rebaixamento seria uma “transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato” (BAKHTIN, 1996, p. 17). Bakhtin aponta em Rabelais a importância significativa dos excrementos (num único parágrafo por ele apontado, por exemplo, são citados 15 nomes de excrementos, dos eruditos aos de mais baixo calão).
Por outro lado, os excrementos têm o valor de alguma coisa a meio caminho entre a terra e o corpo, alguma coisa que os une. São assim algo intermediário entre o corpo vivo e o corpo morto em decomposição, que se transforma em terra boa, em adubo; o corpo dá os excrementos à terra durante a vida; os excrementos fecundam a terra, como o corpo do morto (BAKHTIN, 1996, p. 151).
Com essa chave de leitura, poderíamos ver no estrume de boi que figura no “Aldaz Navegante” e seu navio, essa transferência de valores:
O Aldaz Navegante de Guimarães Rosa: ressonâncias odisseicas
Efetivamente, Brejeirinha inventa porque “pode ficar bonito”. Mas como ela é uma criança, não tem compromissos de ficcionista, depois desse “Fim”, que ela mesma apõe, vai “recontar a verdadeira estória”. E é assim que finalizará sua narrativa: Agora, eu sei. O aldaz Navegante não foi sozinho; pronto! Mas ele embarcou com a moça que ele amavam-se, entraram no navio, estricto. E pronto. O mar foi indo com eles, estético. Eles iam sem sozinhos, no navio, que ficando cada vez mais bonito, mais bonito, o navio.... pronto: e virou vagalumes... (ROSA, 1981, p. 107).
292 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Brejeirinha transgride a narrativa mítica: ela faz embarcar a mulher no navio. E o mar, que na primeira versão, era “estático”, fica “estético”. No entanto, esse fim da história, ou melhor, um fim nessa mesma linha era o que Caetano Veloso também tinha aventado na canção “Os Argonautas”. O último refrão, ou melhor, os últimos versos do refrão da canção “Os Argonautas” , são assim cantados: Navegar é preciso Viver não é preciso Navegar é preciso Viver Caetano Veloso “resolve” a terrível equação: NAVEGAR É PRECISO VIVER Nesse mesmo rumo, fiel à narrativa de Brejeirinha, vai a ilustração de Luís Jardim para o Conto XVI (FIG. 4), “Partida do Audaz Navegante”, no inusitado “Índice Ilustrado” de Primeiras Estórias, da Livraria José Olympio Editora (1981).
medo, deu um valor, desassustado, Deu um pulo onipotente.... Agarrou, de longe, a moça em seus abraços... Então, pronto. O mar foi que se aparvolhou-se. Arres! O Aldaz Navegante, pronto. Agora, acabou-se, mesmo: eu escrevi – “Fim”! (ROSA, 1981, p. 106)
Referências ALIGHIERI, Dante: Divina Comedia. Tradução de Eugenio Mauro. São Paulo, Editora 34, BAKHTIN,1998.Mikhail:
Aí se vê ao centro um navio com 3 velas, um homem à direita, uma mulher à esquerda. Pela lógica da tradição, ou melhor, pela lógica do mito, a mulher jamais embarcaria, mas isso é “transgredido” na história de Brejeirinha. Sim, como reitera a pequena ficcionista, nas linhas finais do conto, “o ovo só se parece , mesmo, é com o espeto.”
Cultura Popular na Idade Média: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo, Brasília: Editora Hucitec. EDUNB, 3a. ed.1996.

BUSSOLOTTI, Maria Aparecida Faria Marcondes (Org.): João Guimarães Rosa: Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1958-1967). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Academia Brasileira de Letras: Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003, VELOSO, Caetano. Os Argonautas. In: VELOSO, Caetano. Caetano Veloso. Philips, 1968. Vinil. FREUD. S. “Escritores Criativos e Devaneio”, 1907-8), In: FREUD, S. Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. IX, 1976. Adelia Bezerra de Meneses293Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. Introdução, organização e seleção por Sérgio Micelli. São Paulo, Perspectiva, 2007.
Figura 4
ROSA, Guimarães. Primeiras Estórias, Rio de Janeiro, José Olympio, 12ª.ed, 1981.
ROSA, Guimarães: “Partida do Audaz Navegante”. Primeiras Estórias, Rio de Janeiro, José Olympio, 12ª.edição, 1981.
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro, Aguilar, 1965, p. 15.
O Aldaz Navegante de Guimarães Rosa: ressonâncias odisseicas 294 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
SAID, Edward: Humanismo e crítica democrática. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo, Companhia das Letras, [2004]/2007.
1 Agradeço aos alunos da Unesp de São José do Rio Preto pelo tema que me propuseram como palestra e que, agora, vem sendo enfocado, mais amplamente, em textos de Guimarães Rosa. Meu reconhecimento especial a Márcia Marques de Morais pela sugestão da abordagem de “Famigerado”.
2 Com mais de trinta anos de publicação, a proposta de Roland Barthes sobre a literatura, em Aula (1978, p. 16-7), comporta aspectos que ainda podem sustentar parte da interpretação aqui realizada. 295
O fio condutor desta leitura pode ser entendido como uma questão de linguagem e de seus modos de abarcar saberes distintos. Em linhas gerais, das ciências consideradas “exatas” às humanas, a linguagem verbal procura meios de comunicar as peculiaridades de cada uma delas, marcando seus lugares, semelhanças e diferenças em relação às demais. Em tal multiplicidade de formas de abordar o “real”, graças à convenção de signos, a literatura engendra uma fratura no universo linguístico, configurando-se espaço dos desvios, dos “logros” e inversões2 e, nessa vertente, interessam aqui dois aspectos culturais recorrentes nos jogos de linguagem de Rosa: o erudito e o maldito. Ambos interagem e ganham diferentes acepções no conjunto de sua obra, que privilegia, como diria Lacan na esteira de Freud, a ética do “bem dizer”, ou seja, seu trabalho busca deslocar a palavra repetitiva e encobridora do desejo pela palavra reveladora de um sentido transfigurador para o sujeito.
Constitutiva no autor mineiro, tal busca pode enfocar a transformação de personagens malvistas em seus povoados, condenadas à marginalidade por atos e/ou pelo maldizer, em personagens benfazejas, abençoadas e/ou resgatadas pela palavra eficaz e, com frequência erudita, substituindo o dito mal pelo “bemdito”. Vale sublinhar outra reflexão de R. Barthes, muito apropriada para o conjunto da produção de Rosa. Todo escritor, propõe o crítico, precisa situar-se
O erudito e o mal-dito em “famigerado” de Guimarães Rosa1 Cleusa Rios P. Passos O mal e o bem dizer
3alheias.Ocomentário
na “encruzilhada” de vários “discursos tipificados” (ciência, sociologia, psicologia etc.), “transport(ando)-se para onde não é esperado” (BARTHES, 1978, p. 27). Como poucas, a escrita rosiana jamais abdica de tal encruzilhada, menos ainda de desarticular sentidos, costumes e códigos e surpreender seu leitor. Como poucas, ela não faz da linguagem um mero instrumento, mas literalmente a teatraliza.3 Nesse viés, várias das narrativas de Guimarães, que comportam os processos de alteração do perfil das personagens acima esboçados, são construídas de modo bastante singular. Dentre elas, pode-se citar Grande sertão: veredas, (por exemplo, o episódio de Maria Mutema), “O recado do morro”, “Uma estória de amor” (Corpo de baile), “Famigerado”, “A benfazeja” (Primeiras estórias), “O palhaço da boca verde”, “Desenredo”, “Estoriinha”, “Reminisção” (Tutaméia Terceiras estórias) etc. Comumente, elas enfocam causos, comprovados ou não, que se espalham nos lugarejos, determinando a caracterização de personagens sem lhes dar possibilidade de remissão.“As aldeias são a alheia vigilância” (ROSA, 1976, p. 38), sentencia o contador de “Desenredo” (ROSA, 1976, p. 38-40), trama que gira em torno do percurso do paciente Jó Joaquim perante as traições da amada e os comentários de seu povoado. A afirmação se estende e resume situações de diversos episódios do mundo de Rosa e é, ainda, o mesmo contador que sublinha o “mas”, adversativo responsável pela introdução da reviravolta das estórias. Em geral, alguém de fora ou um morador mais sagaz contesta os (mal) “ditos” cristalizados, desfazendo-os ou relativizando-os, graças ao bem-dizer. A palavra redentora ilumina o outro lado da figura mal afamada. O conto “Famigerado” (ROSA, 1969, p. 9-13), aqui escolhido, constitui um forte elo dessa cadeia a ser recobrada, pois aborda a má reputação de uma personagem em função de feitos passados; porém, sua fama se mantém no presente por lembranças e/ou falas de R. Barthes sobre a encenação da linguagem pela literatura cai como uma luva para a escrita de Rosa, pois a dramatização da língua se faz uma constante de sua produção. Ver BARTHES, 1978, p. 19. Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud:
O erudito e o mal-dito em “famigerado” de Guimarães Rosa 296
II Colóquio internacional
internacional 297Nietzsche,
Contudo, antes de enfocá-lo, cabe recuperar os “termos-eixo” já evocados e sua etimologia em função das virtualidades da língua: segundo Caldas Aulete, erudito, do latim eruditus, a, um, é “aquele que tem grande soma de conhecimento, de sabedoria, vasto saber adquirido pela leitura ou o que efetua a ação de ensinar, daí “instrução”.
E importa, ainda, destacar que, em psicanálise, tal saber não diz respeito à noção corrente de conhecimento, mas ao efeito de sentido que comporta a decifração do que se inscreve como “sintoma”. Nessa via, cabe insistir que a busca de um “bem dizer” sobre o desejo, jamais satisfeito e nunca inteiramente dito, é perceber que, a cada 4 Embora não se alterem ao longo da obra de Lacan, tais noções (inspiradas em Heidegger) estão presentes em seus estudos iniciais. Aqui, elas colaboram com a leitura de “Famigerado”. Para o psicanalista, grosso modo, a “fala plena” estaria mais perto da “verdade” do sujeito inconsciente, sem ser completa ou “definitiva”. V. LACAN, 1966, p. 133-5. Já a “fala vazia” estaria mais próxima da resistência, pois o “sujeito parece falar em vão de alguém que, embora muito semelhante a ele, jamais se juntará à assunção de seu desejo”. Ver LACAN, 1966, p. 123-43 e LACAN, 1975. p. 126.
da linguagem verbal permite separar maldito, algo já presente na escrita do século XV, e inverter sua ordem para “dito mal” a fim de evitar ambiguidades e paradoxalmente partindo delas. Esse movimento instaura uma cadeia associativa que pode sugerir, ao lado do enunciado (o dito), traços de uma enunciação virtual, graças ao verbo maldizer, vinculado a maldito e também passível de divisão, mal dizer ou dizer mal, tendo por contrário o “bem dizer”. É preciso assinalar que a ideia de “bem dizer” não implica dizer o Bem, distanciando-se dessa noção ligada a valores sociais ou sagrados, assim como “mal-dizer” não implica necessariamente o maldito na acepção de amaldiçoado. Na esteira de Lacan, o bem-dizer será entendido como a fala “plena”, que admite o duplo sentido, isto é, os equívocos da linguagem, os chistes, os lapsos, os trocadilhos etc., em oposição à palavra “vazia” que elimina a ambiguidade.
Por sua vez, maldito, do latim maledīctus, a, um, contém as acepções de amaldiçoado, condenado, perverso, funesto etc., bem como compreende aquele que diz ou pronuncia palavras de mau augúrio ou de “injúria, afrontado pelas palavras” – ponto fundamental a esta abordagem.Apotencialidade
A primeira é a fala que gera “sentidos” e, sem ser “completa ou definitiva”, aproximase mais da “verdade” do sujeito; a segunda é a fala “oca” (a tagarelice), mais perto das ilusões do eu4. O bem-dizer é aquele que implica a decifração do saber inconsciente.
Nietzsche Pessoa Rosa Freud: II Colóquio Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
O erudito e o
momento, o sujeito é colocado diante da “impotência” do verbo, da “incompatibilidade essencial do desejo com a palavra”. Em outros termos, o desejo só pode ser dito por alusões, “entre as palavras” (MILLER, 1997, p. 449-450); lembrando que os aspectos levantados saem do contexto originário da teoria de Freud, passam por alguns de seus sucessores (Lacan, em particular) para ganhar espaço na interpretação literária, graças à analogia e seus desdobramentos.
Nessa mesma direção e sem deixar de contemplar também a acepção usual de conhecimento, “erudito” contém “dito”, particípio do verbo dizer, criando um jogo sonoro com “mal dito” e a hipótese de se evocar a palavra “interdito”, não apenas na acepção de vedado, proibido, mas igualmente de “dito entre (-linhas)”, isto é, aquilo que não é explicitado no discurso, mas insinuado por alusões, pela metade sugestiva de um todo impossível de se atingir. Parte de um jogo de ressonâncias, os três termos, se vinculados, criam determinados sentidos no interior das obras literárias, tocandose e ganhando transfiguração artística. Se o erudito leva ao mal-dito e dele depende, pode haver alteração da ordem, e o mal-dito substituir e reconvocar o traço erudito, conforme o texto selecionado. Logo, o enfoque dos termos aqui se faz em mão dupla, abrindo um espaço de possibilidades para uma leitura interdisciplinar que agrega diferentes áreas, dentre as quais a psicanálise, a ser resgatada em algumas passagens. Assim, “Famigerado” não retoma “erudito e maldito” apenas nas acepções retiradas de dicionários, nem os vincula só a questões do contexto histórico-social, mas busca reuni-los por meio de inversões e jogos associativos que ampliam o alcance de cada um no interior da Resumidamente,língua.
o conto gira em torno de um diálogo entre um narrador/ personagem “erudito” – um médico – e um “maldito” – um (ex?) jagunço que procura o primeiro para obter uma “opinião/.../explicada” sobre uma palavra. A composição do discurso do doutor transforma, sem que ele o perceba, o maldito em bendito, no sentido de “bem dizer” ou, em seu inverso, o bendito passa a ser mal-dito por esse mesmo recurso, marcando, com o movimento de vai e vém, a diferença da narrativa em meio às já elencadas. Por um lado, tal conversão aponta o propósito do visitante mal-dito Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
em “famigerado” de Guimarães Rosa 298
que visa saber de que maneira sua comunidade o vê e, também sem o perceber, qual sua “verdade” enquanto sujeito; por outro, entrevê-se o intento do doutor que anseia se livrar do incômodo valentão. Em tal viés, é possível se valer de aspectos teóricos da psicanálise para sublinhar a convergência do desejo, do Imaginário e da procura da palavra transfiguradora que, ligada ao traço humano, expõe certa (ou meia) verdade do sujeito.
Freud:
Há aí o cuidado com o emprego da crase, da colocação pronominal (me), da concordância e da organização sintática, além da ruptura de uma expressão estereotipada (certa feita), evocativa do “certa/era uma vez”, pelo processo de inversão (“incerta feita”), adequando, apuradamente, a linguagem ao temor de um possível ato inesperado do jagunço. O início do texto prepara a lúdica e insistente ação de neutralizar qualquer violência, caso Damázio não atingisse seu objetivo, a ser formulado no decorrer do diálogo entre ambos, ou seja, satisfazer a curiosidade sobre o dito de um rapaz do Rosa II Colóquio 299Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
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Nietzsche Pessoa
O encontro das duas figuras começa com o espanto do narrador que, morando em um sossegado arraial, vê parar a sua porta, um grupo de cavaleiros, receosos e “constrangidos-coagidos”, comandados por Damázio dos Siqueiras, um “homem perigosíssimo”, segundo sua fama pretérita, divulgada no sertão. É a partir dela que o narrador traça o perfil do visitante, empregando um número grande de expressões e adjetivos, tais como “avessado”, “estranhão”, “perverso brusco”, “brabo sertanejo”, “jagunço até a escuma do bofe”, homem que pode “desfechar com algo, de repente, por um és não és”. Ao deter o discurso, o médico vai configurando, imaginariamente, tanto o modo de existir do cavaleiro, quanto o seu próprio, ao selecionar adjetivos terríveis, desfazendo a humanidade de Damázio, por meio de traços caricaturais; frisa, por exemplo, que “sua farrusca, catadura de canibal” causava “inquietude” e, ainda, que ele “propunha sangue, em suas tenções”. O narrador conhece a fala sertaneja e a norma culta com refinamento, dominando o saber da língua, sua arma desde o primeiro parágrafo, “Foi de incerta feita-o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial tranquilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.” (ROSA, 1969, p. 9).
provoca grande receio no médico que vai compondo suas suspeitas sobre o outro, mediadas pela lembrança de ditos alheios sobre a reputação dos jagunços, pelo Imaginário que produz impressões no momento (“alguém podia ter feito intriga”, “atribuir-me palavra de ofensa”) e pelo discurso erudito, vinculado a um saber que Damázio não detém, o saber do acúmulo de conhecimento da língua codificada e seus registros. Em síntese, o narrador interpreta a personagem à primeira vista, “num relance”, e por ditos anteriores, sustentando o mesmo julgamento ao longo do texto, reforçando-o e ignorando qualquer gesto mais ameno do cavaleiro. Este, por sua vez, tem noção de seu desconhecimento da língua dos letrados e suas falas são, textualmente, “frouxas”, misturadas com “travados assuntos, insequentes, como dificultação”, sugerindo uma enunciação entrecortada, farta em suspensão, insegura, de compreensão difícil e levando a refletir sobre qual seria o medo do brabo sertanejo, não o aparente, mas o reprimido, o que determinaria sua imagem no lugarejo, independente 300 Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
governo que o teria chamado de “famigerado”. A pergunta surge por falas difundidas em meio a impressões e desconfianças do narrador que busca tempo para se resguardar. Já o outro, apresenta-se e explica de onde vem: — “Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra...”. (ROSA, 1969, p. 10).
A palavra suspensa O nome próprio intensifica o medo do doutor que passa a ter certeza do que ouvira a respeito dele e sua estória de maus feitos e mortes. Embora tenha a informação de que Damázio “para uns anos (ele) se serenara”, ela é pouco considerada, nada lhe garante a mudança do homem “feroz”, cujo intuito atual é evitar desavenças com o governo, pois, literalmente, declara “não estar [ou] em saúde nem idade” para discórdias. O motivo da viagem expõe o do conto na fala cuidadosa e insegura do sertanejo: – “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é fasmisgerado...faz-me-gerado...falmis-geraldo...familhas-gerado...? (ROSA, 1969, p. 11).Aindagação
O erudito e o mal-dito em “famigerado” de Guimarães Rosa
Nietzsche Pessoa
Irônico, o narrador revida: – “Olhe: eu, como o senhor me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!... (ROSA, 1969, p. 12).
A leitura mostra que ambos temiam as palavras, espelhando-se no temor e no (não) saber: o jagunço teme saber de si, ou seja, da acepção de mal afamado da palavra ignorada e o doutor teme seu saber a respeito dessa mesma acepção do vocábulo, pois verbalizá-la lhe poderia ser fatal. Sob a ironia da última resposta se oculta um profundo desassossego em relação ao (não) saber. Aliás, o próprio médico o anuncia no segundo paragráfo da narrativa: “O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava” (ROSA, 1969, p. 9). Já observado pela crítica, o Rosa Freud: II Colóquio internacional 301Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
Primeiro, a retórica, pois, ele devolve duas vezes a pergunta: “Famigerado? “Famigerado?”
. Em seguida, a erudição, visto que sua resposta se faz intencionalmente na norma culta: “Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”... (ROSA, 1969, p. 12)No entanto, Damázio retruca com humildade: – “Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?”. (ROSA, 1969, p. 12).
Damázio reitera, então, sua humildade, ao determinar seu lugar e classe social, sugestivos da relação entre saber e poder: “– Pois...e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?”. (ROSA, 1969, p. 12)
E o doutor: – “Famigerado? Bem. É: “importante”, que merece louvor, respeito...”. (ROSA, 1969, p. 12).
E o narrador persiste na erudição defensiva: “–Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...” (ROSA, 1969, p. 12).
O sertanejo retruca – “Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?” (ROSA, 1969, p. 12).
do moço do governo, mas despertado por ele. Já o narrador busca se esquivar da pergunta inconveniente, valendo-se de recursos da linguagem específicos e atuantes em conjunto: a retórica e a erudição.
Os termos medo e homem são encarcerados pelos demais, ambos inquietantes e tratados graças às armas da linguagem, manejadas pelo narrador, ideia acentuada pela crítica. Seu receio parece guiar a configuração caricatural do jagunço e, em situação semelhante, o receio de Damázio norteia seu discurso, dificultoso e falhado, diante daquele interlocutor instruído, que pode designar seu papel e lugar no sertão. Nas (entre)linhas: o “verivérbio” Talvez desponte aqui um pequeno acréscimo às agudas e amplas leituras críticas efetuadas até agora5 e voltadas, entre várias questões, para a possível ignorância da genealogia (nome do pai e da mãe) do valentão malvisto. A elas, pode-se somar seu desejo de mudança, que requer um deslocamento do ponto de vista da comunidade sobre seu perfil: mais velho e sereno, Damázio quer evitar violências e, de certo modo, busca a aceitação dos demais. A prova maior está na pergunta enigmática, que substitui atitudes de força e o leva a viajar seis léguas com os cavaleiros-testemunhas,6 nomeados
O e o mal-dito em “famigerado” de Guimarães Rosa 302 Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
impotência?
5 Em meio a vários ensaios, os de Márcia Marques de Morais e José Miguel Wisnik, citados na bibliografia, constituíram importantes contribuições para a trajetória de minha leitura.
erudito
engendrando
6 Em outro viés interpretativo, Luiz Bueno também assinala esse aspecto. (BUENO, 2014, p. 160-161).
termo vem emparedado entre dois O, sublinhando seu sentimento de intimidação. Não por acaso, ele descreve os três cavaleiros-acompanhantes como vítimas do jagunço, a dúvida: análise relevante da cena ou projeção de sua insegurança e Acrescem-se aí as impressões das primeiras cenas do encontro, antes de o visitante se apresentar, estabelecidas pela inquietação do narrador que confessa: “Sei o que é influência de fisionomia” (ROSA, 1969, p. 9), confirmando, de alguma forma, sua vulnerabilidade. Sem possibilidade de saída, resta ao doutor deixar de ser sujeito e configurarse objeto de uma palavra expressiva de um grito contido, dominante e onomatopaico (“me miava”). Uma construção análoga ocorre no início, quando ele revela “tom/eime/ado nos nervos”, acabando por projetar, concretamente, seu cerceamento e espanto na cadeia verbal: “O cavaleiro esse–o oh-homem-oh–com cara de nenhum amigo”.
Nietzsche Pessoa
por ele “compadres”, em posição contrária às primeiras sensações do narrador (“gente receosa”, “prisioneiros”). O conto se ancora num jogo dúbio, no qual predominam as opiniões irônicas e contudentes do médico e, simultaneamente, vai surgindo, nas entrelinhas, o outro lado de Damázio, isto é, sua procura acanhada de se tornar apenas sertanejo, sem pagar o preço por atos anteriores. Ser maldito, compreendido como condenado pela comunidade por “carregar dezenas de mortes”, configura-se um traço intenso da personagem, no cenário inicial. Contudo, depois, a palavra pode ser deslocada para o sentido de mal-dizer, já que sua reputação permanece inalterada, sem se cogitar sua tentativa de mudança. O narrador considera necessário manipular o discurso e encontra na ambiguidade, no logro, uma forma de se salvar e salvar o moço do governo, curvando-se ao desejo do visitante, ao escolher a acepção da palavra que este espera ouvir e que também revela sua própria submissão à lei do significante. Não por acaso, ele recusa a informação “torta” de quem não tem acesso à norma culta, sendo impulsionado a perseguir o sentido dicionarizado da palavra, instaurado e reconhecido como um saber de outro nível sócio-cultural, ligado a figuras que constituem diferentes representações de poder: a comunidade, o governo, a igreja e o letrado. Cabe citar a passagem: – Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo-o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles me engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei? (ROSA, 1969, p. 11-12).
II
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O ex-jagunço sacraliza o dicionário, desconfia dos iguais e da palavra manipuladora do padre, mas confia na do doutor que, embora dominado por um temor algo fantasmático, se vale da mesma arma do padre, confessando habitar “preâmbulos” na hora da resposta. No entanto, o narrador acaba dando vida à palavra dicionarizada e, por extensão, aos envolvidos no episódio, incluindo o temível interpelador que pode retornar a sua atual serenidade. De maneira especular, a questão do “não saber” (por Rosa Freud: Colóquio 303Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
Logo, um olhar mais acurado sobre a ciranda de tropeços verbais evidencia as associações e negativas de Damázio, concernentes à enunciação do termo e seu deslocamento em sentidos que obrigam o leitor a se inserir no jogo em função do saber da língua, ora pactuando com o doutor, ora com o sertanejo. E, para este, o primeiro 7 Cf. sobre o assunto os autores citados na nota 5.
A leitura aqui proposta reconhece a ideia de origem analisada em ensaios anteriores7, mas se detém, especificamente, na força da palavra que, ao qualificar Damázio, acaba gerando para ele, no instante da verbalização, um modo de se constituir algo que o preocupa agora porque ele procura tranquilidade e não lhe basta mais resolver embates impetuosamente. Os tropeços “faz me gerado”, “familhas gerado” apontam uma demanda da “verdade” que o narrador se sente impelido a responder, afinal, “O homem queria estrito o caroço: o verivérbio”. Além da demanda, a perigosa personagem mostra sua submissão ao Simbólico, isto é, ao significante que gera sua inscrição na comunidade, no presente, e ao significante elidido que “salta na cadeia”, como algo que ele não quer lembrar. Tal significante não é verbalizado pelos habitantes do lugarejo que devem temê-lo; já o moço de fora, ao contrário, atreve-se a expressar o que os demais dissimulam. E é, de novo, um outro, de fora e de longe da Serra, que vai esclarecer sua dúvida sobre o vocábulo obscuro, tão vinculado a ele, mas sonegado e encoberto pela elisão e o esquecimento. (MILLER, 2005, p. 180).
socialmente,
inteiro) sobre o outro se manifesta tanto nos artifícios discursivos, como na preservação textual da voz de Damázio, marcada por equívocos fundamentais. Ao transformar o nome “famigerado” em várias expressões, deslizantes em uma ciranda associativa, ele revela um (não) saber de si, diferente do erudito, e mais próximo do sujeito psicanalítico, ou seja, a fragmentação da palavra cria lacunas sugestivas, retirando, em parte, o poder do narrador e permitindo surgir o do jagunço. É ele quem, por não entender “famigerado” da perspectiva do letrado, pode aflorar como sujeito que tenta desvendar o mistério da palavra determinante do que ele é para seu meio. Nela, visualizam-se a má fama que o torna, ainda, marginal ou maldito e a boa reputação que o salva, condensando as duas faces do valentão.
O erudito e o mal-dito em “famigerado” de Guimarães Rosa 304 Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
internacional
deslize “famisgerado” se espraia em “faz-me-gerado”, “falmis-geraldo” e “familhasgerado”, reunindo a própria demanda (me) e o olhar alheio (familhas). Analogicamente, traços do inconsciente aí se iluminam e surpreendem; até o nome próprio Geraldo se desfigura ao compor um inventivo substantivo composto; entretanto, além de conter “gerado”, é uma alteração de Gerardo que pode vir do francês Gerard, com variante Girard de origem germânica (de gari-ger / lança + hard = forte). Tal etimologia evoca o substantivo “guerreiro”, uma espécie de metonímia de Damázio e seus resquícios pretéritos. Nessa linha interpretativa, os dois últimos significantes da conexão podem sugerir que as familhas, ainda, continuam a gerar, ou a reafirmar, sua fama de outrora e, com isso, determinam seu lugar cristalizado no sertão. O passado se desdobra no presente e perpetua a situação da personagem que se mantém fora de determinadas normas sociais. Farsância: expressões neutras? Da perspectiva psicanalítica, a erudição do narrador acaba sublinhando a divisão do ex-jagunço, pois o choque com a palavra do Outro propicia seu surgimento como sujeito que rejeita se constituir a partir da má fama. Contudo, o erudito doutor se curva ao desejo do valentão de continuar “não sabendo” sobre si. Para Damázio, o bem-dito seria ter acesso à ambiguidade da palavra – a suas duas acepções semânticas –, podendo reconhecer a má fama constituinte de seu passado, ao lado do desejo de se aquietar. Esse reconhecimento lhe é recusado, mantendo-se a ambiguidade do conto. A demanda “faz me gerado”, impulsionada pela sonoridade da palavra perturbadora, parece estar em saber a maneira pela qual as familhas concebem sua existência e estória pregressa. A má fama o determina como maldito e compreender o olhar de todos que compartilham seu espaço social é a procura da personagem, engendrada no instante em que o moço do governo verbaliza sua característica fundamental de outrora, indicando sua permanência nos ditos atuais. Assim, na palavra, haveria algo de sua “meia” verdade, negada e indesejada. Pessoa Rosa Freud: II Colóquio 305Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
Nietzsche
Assim, não se pode desfazer inteiramente a dúvida do narrador, porém ela precisa ser pontuada. Seu relato se inclina para a certeza, segundo a qual persiste a face perversa de Damázio. Tal perspectiva desvela o lado oculto da língua e o do próprio médico, cego igualmente em relação ao saber de si mesmo e de seu desejo de desforra, camuflado pela ironia e pelo riso provocado no leitor (cúmplice?). O término do encontro o revela, pois, com a fala ambígua, ele confessa que gostaria de ser “famigerado – bem famigerado”. O narrador joga, uma vez mais, com as virtualidades da língua, seus subentendidos, tons intensos e forte ironia para criar um discurso que lhe propicia trocar de posição com o jagunço, que tem em mãos parte da verdade e se contenta com ela: “Não há como que as grandezas machas de uma pessoa instruída” (ROSA, 1969, p. 13). Aí ocorre uma expressiva inversão, pontuada pelo valentão: a grandeza de ser macho se desloca para o doutor, desvelando-se seu poder, o da língua. Cabe, então, recobrar o renomado axioma lacaniano: “toda verdade tem estrutura de ficção” (LACAN, 1986, p. 21) que atravessa a organização narrativa, atingindo jagunço e doutor. Aliás, este último é agora o maldito, que se vinga do medo sofrido e reconhece, em uma dissimulada sinceridade, seu traço diabólico, antes de expor seu desejo: “Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero, disse:” (ROSA, 1969, p. 12). Contudo, ele não abdica de exercer seu poder: o de lograr o outro com o saber que pensa salvar a todos, graças à ambiguidade do verbo e do tom, visualizando-se algo de sua cegueira, pois acredita dominar o momento. Em síntese, o médico pode transformar, conforme a norma culta, a palavra mal-dita em bem-dita ou ao contrário.Por sua vez, Damázio, maldito pela condição de valentão cruel, entregase a associações em que a cadeia linguística desconexa é bem-vinda e “bem-dita”, pois, como produto do saber ignorado, é criada pelo desejo. Não por acaso, ao ouvir a palavra do moço de fora, fixa-se nela e a persegue até decifrá-la, embora a cegueira do desejo o impeça de obter seu sentido “pleno” (ou próximo disso). Marcado pelo vocábulo que não chega a enunciar, Damázio é levado pelo logro verbal, indicativo do que ele reprime e, por analogia, revelador do trabalho do inconsciente e do desejo. Para O erudito e o mal-dito 306 Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
em “famigerado” de Guimarães Rosa
a psicanálise, sonhos, atos falhos, lapsos, enganos, esquecimentos, etc. são formas do inconsciente se manifestar e, neles, há sempre traços surpreendentes que escapam ao sujeito. Nesse encadeamento metonímico e ambíguo, a palavra-misteriosa requer uma outra ordem de saber: se para o “eu” alguma coisa falha no dizer, para o sujeito do inconsciente o engano verbal, a falha, se torna um discurso “bem sucedido” (LACAN, 1966, p. 103), pois desvela parte da verdade do sujeito e, no caso do temido cavaleiro, aponta uma possível interpretação de seu desejo. Para isso, colabora a ironia final do doutor que substitui o bem-dizer de sua resposta anterior e recupera a face inter/dita do mal-dito, gerando, nas entrelinhas, a ideia de que o saber erudito nem sempre desperta o saber sobre si mesmo, por vezes, até o mascara. Doutor e jagunço se espelham na palavra que os configura: no primeiro, aflora algo da agressividade do maldito e, no segundo, ecoa algo da manipulação do discurso, sem que ele o note, no ato de desmembrar o vocábulo intrigante. Em uma passagem do Seminário VII, Lacan chama o inconsciente de “memória do que se esquece” (LACAN, 1986, p. 272). Textualmente, o narrador e o sertanejo desvelam o que não esperam e lhes escapa, submetidos ao que o significante (e seus efeitos de sentido) sugere: um pouco da verdade reprimida de cada um se manifesta por outras vias. Enfim, a intrincada articulação do conto – seja com os pares erudito-maldito / maldito-bendito, seja com a ideia do (não) saber ou/e suposto saber8 sob diferentes formas, entre as quais o conhecimento da linguagem, seus registros e nuances – tem como contrapartida essa mesma linguagem, graças a lapsos, tropeços, titubeios, dissimulações. Todos eles consistem em índices da presença analógica do inconsciente, desejos e fantasmas do sujeito – os do doutor ou/e os do ex-jagunço. Acresce-se a isso a insistência rosiana na questão temporal, estabelecendo relações expressivas entre a memória do passado e sua atuação no presente. Os tempos se re-elaboram pela criação verbal. Mais uma vez, vale recordar de “Desenredo” (pouco importando se publicado posteriormente a “Famigerado”) e a maneira pela qual a personagem Jó 8 Ver, a respeito da questão, o artigo de ROSENBAUM, 2006, p. 87.
Nietzsche Pessoa Rosa Freud: II Colóquio internacional 307Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
9 No texto já mencionado, José Miguel Wisnik retoma o ensaio de Antonio Candido que ganha importância fundamental para a compreensão do universo do jaguncismo também aqui. (CANDIDO, 1970, p. 133-160.
11 Vale recobrar o relato de Riobaldo, renomado ex-jagunço do romance de Rosa, a respeito do destino dos companheiros sobreviventes da jagunçagem. Alguns permanecem a seu lado e, se preciso, pegam em armas por ele, outros seguem caminhos mais tristes e pobres, levando-o a constatar: “Tempos foram, os costumes demudaram /... / pouco sobra, nem não sobra nada. Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí pena, pede esmola.”. Cf. ROSA, 1971, p. 23. Pessoa, Rosa
10 Cf., em outra direção de leitura, o ensaio de Ana Paula Pacheco (2009, p. 135-136).
O erudito e o mal-dito em “famigerado” de Guimarães Rosa 308 Nietzsche,
e Freud: II Colóquio internacional
Joaquim engendra “nova e transformada realidade”, operando o passado, ao esperar que o tempo “secasse” o assunto das traições de sua amada e a vigilância da aldeia. Em “Famigerado” se impõe o esquecimento dos feitos anteriores de Damázio e seus desmanches, espécie de anulação impossível das manchas da jagunçagem.
Vestígios da “fábula” posta “em ata” de “Desenredo”, responsável pelo desarranjo dos tempos “parafraseados” (e, portanto, repetitivos), parecem ocorrer em “Famigerado” num movimento inverso, pois o discurso explícito do médico-erudito, preocupado com a vida pregressa do ex-jagunço, faz surgir recorrentes lembranças no leitor, impedindo o esquecimento histórico dos tempos de jagunçagem e seus consequentes desdobramentos....9 Sem dúvida, no espaço rosiano, coexistem o arcaico e o moderno, justificando-se a interpretação de parte da crítica que atribui ao contexto do mandonismo, dominante no sertão brasileiro, a transformação dos ex-jagunços em valentões, subordinados às regras violentas do senhor patriarcal, logo, aparentemente, “dentro da lei”10. Contudo, há os que recuperam a atividade de vaqueiro ou carregam o estigma e a falta de lugar na comunidade.11 Estes últimos constituíram, na figura de Damázio, o fio aqui perseguido, centrado em seu intento de abdicar da violência e se inserir na ordem do povoado como qualquer sertanejo em busca de um sereno envelhecimento. E é a complexidade da linguagem e sua força inventiva, reconhecida pelo saber – urbano? –do narrador que o possibilita. “Famigerado” pode ser lido graças a um novo modo de luta do ex-jagunço, o da palavra que, “bem-dita” e enganosa, logra apagar/esquecer seu passado maldito. Ambiguidades, negativas e subversões constroem essa palavra ilusória, permitindo à personagem se inscrever, por instantes, como sujeito de seu desejo em sua vigilante “aldeia”. E o melhor: sem as marcas da jagunçagem. Assim, “o evento”, no início “tão sem pés nem cabeça”, passa da conversa dificultosa e travada a uma lúdica narrativa que, à semelhança de outras estórias rosianas com finais fabulares, dá forma perene ao “famoso assunto”. (ROSA, 1969, p. 13).
BUENO, L. .Segundas estórias: uma outra leitura de “Famigerado. O eixo e a roda: Revista de literatura brasileira, Belo Horizonte, UFMG, v. 23, n. 1, p. 147-164, 2014. CANDIDO, A. Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970. p. 133-160. LACAN, J. Ecrits. Paris: Seuil, 1966.
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Nietzsche Pessoa Rosa Freud: II Colóquio internacional 309Nietzsche, Pessoa, Rosa e Freud: II Colóquio internacional
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Sobre os autores Adélia Bezerra de Meneses Pesquisadora do CNPq, foi docente de Teoria Literária e Literatura Comparada na UNICAMP e na USP. Também lecionou Literatura Brasileira na Technische Universität de Berlim. Aposentada, continua atuando junto à pós-graduação das duas universidades paulistas, como Colaboradora Voluntária. Publicou os livros: A Obra Crítica de Álvaro Lins e sua função histórica. (Vozes, 1979); Desenho Mágico. Poesia e Política em Chico Buarque. (Ateliê, 3ª. ed., 2002; Prêmio Jabuti de 1982); Do Poder da Palavra: Ensaios de Literatura e Psicanálise. (Editora Duas Cidades, 2ª. ed, 2004); Figuras do Feminino (na canção de Chico Buarque e na Pintura brasileira). (Ateliê, 2ª. ed., 2001); As Portas do Sonho. (Um estudo sobre sonhos presentes na Literatura grega). (Ateliê , 2002); Cores de Rosa –ensaios sobre Guimarães Rosa . (Ateliê, 2010); Militância Cultural. A Maria Antonia nos anos 60. (Com-Arte/ EDUSP, 2014.)
Antônio Teixeira
Professor associado do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. É Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, membro do conselho consultivo da International Society of Psychoanalysis and Philosophy. 310
Audemaro Taranto Goulart Professor na área de literatura dos cursos de graduação e de pós-graduação da PUC Minas. Mestre em Literatura Brasileira pela UFMG e doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, tem publicado vários trabalhos em livros e em revistas especializadas no Brasil e no exterior. Dentre esses trabalhos, destacam-se os livros O conto fantástico de Murilo Rubião (Editora Lê), A conversão da leitura (Ed. Fumarc) e O arco da literatura: das teorias às leituras (Paco Editorial).
Guilherme Massara Rocha
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Ilka Franco Ferrari
Professor assistente da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Seus trabalhos acadêmicos são ligados sobretudo ao pensamento de Vladimir Jankélévitch, à Filosofia da Música, às poéticas noturnas e às interseções entre Mística e Estética.
Cláudia Franco Souza É especialista no espólio de Fernando Pessoa. Desenvolve, atualmente, pesquisa de pós-doutorado intitulada Fernando Pessoa e o romantismo alemão, com apoio da Fapesp, no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Possui artigos, capítulos de livros e livros (edições pessoanas, ensaios literários e filosóficos e romances) publicados no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa. Cleusa Rios P. Passos
Professor-Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. É membro do GT “Psicanálise, Política e Cultura” da ANPEPP; do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia da UFMG; da Societé International e Philosophie et Psychanalyse (SIPP) e da Fédération Européenne de Psychanalyse (FEDEPSY).
Sobre os autores311
Professora titular da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária, atuando principalmente nos seguintes temas: Guimarães Rosa, estudo das formas narrativas e confluências entre crítica literária e psicanálise. Desde 2005, coordena (com outro docente) o grupo de pesquisa “Crítica Literária e Psicanálise”. Clóvis Salgado Gontijo Oliveira
Professora adjunta da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, com experiências de ensino na graduação, pós-graduação e em funções administrativas. Atua na área de Psicologia com ênfase em Tratamento e Prevenção Psicológica, principalmente, nos campos da Psicanálise, Psicopatologia e formação e inserção profissional dos psicólogos. É, membro da Escola Brasileira de Psicanálise, Seção Minas Gerais, e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa,Cnpq, nível PQ - 2.
Sobre os autores
Jacqueline de Oliveira Moreira Professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, integrando o corpo docente do mestrado e doutorado em Psicologia desta instituição. É membro do GT Psicanálise, Clínica e Política. Atualmente trabalha em pesquisas e intervenções junto ao sistema de medidas socioeducativas de Belo Horizonte. Bolsista Produtividade PQ2 do Cnpq e Pesquisador Mineiro FAPEMIG (2014-2017). José Martinho Gomes Psicanalista, Doutor em Filosofia (Sorbonne-Paris1) e Psicologia (Rennes 2). Psicanalista - AME da ACF, NLS e AMP. Professor Catedrático aposentado. Autor de uma obra internacionalmente reconhecida José Eduardo Reis Professor associado na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro onde leciona na área dos estudos literários. É investigador integrado do Instituto de Literatura Comparada da Faculdade de Letras do Porto. Publicou 38 artigos em revistas especializadas, 17 capítulos de livros e 4 livros. É autor de recensões críticas da revista académica americana Journal of Utopian Studies, membro do corpo editorial das revistas acadêmicas Letras Vivas, Nova Águia, e Cultura entre Culturas e Atlante. Magda Guadalupe dos Santos Magda Guadalupe dos Santos é Professora do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e da Faculdade de Educação da Universidade Estadual do Estado de Minas Gerais. Doutora em Direito e Mestre em Filosofia (UFMG). Pesquisadora de questões de gêneros e teorias feministas. Integrante do Grupo de Pesquisas Interdisciplinares Feministas GPFEM-PUC Minas. Marli Fantini Professora Associada IV (Graduação e Pós-Graduação) da Faculdade de Letras da UFMG. Atua nas áreas de Teoria da Literatura, Literatura Comparada e Literatura Brasileira. É Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e possui Bolsa Pesquisador Mineiro da FAPEMIG. Publicou diversos livros e artigos em periódicos. 312 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Professor titular de Teoria da Literatura na Universidade Federal de Minas Gerais, na graduação e na pós-graduação. Suas pesquisas se concentram em temas da Teoria da Literatura, Literatura Comparada, Literatura Brasileira, Arquivo Literários, Crítica Literária, Literatura e Economia. Recebeu prêmios literários e possui várias publicações acadêmicas em periódicos e livros. Márcia Rosa Professora Adjunta no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais realizando atividades na Graduação e na Pós-Graduação. Experiência profissional em Psicologia Clínica (na linha da Psicanálise). Interesse em teoria e clínica psicanalíticas, psicopatologia psicanalítica, psicanálise em conexão com a literatura e saúde mental. Nuno Ribeiro Pesquisador de pós-doutorado no Instituto de Estudos de literatura e Tradição (IELT) da Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. É autor de livros, artigos e capítulos de livros publicados na Europa, Brasil e Estados Unidos, com especial incidência sobre os pensamentos de Wittgenstein, Nietzsche e Fernando Pessoa. Olímpio Pimenta Professor titular da Universidade Federal de Ouro Preto. Dedica-se aos estudos de temas relacionados ao conhecimento e à moral, quase sempre referenciados ao pensamento de Nietzsche. Paulo Borges Professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigador do Centro de Filosofia da mesma Universidade. Membro correspondente da Academia Brasileira de Filosofia. Sócio-fundador do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira. Sócio-fundador e presidente do Círculo do Entre-Ser, associação filosófica e ética. Doutor Honoris Causa pela Universidade de Tibiscus, em Timisoara, Roménia. Autor de centenas de conferências e artigos em revistas científicas e obras colectivas, publicados em Portugal, Espanha, França, Itália, Romenia, Alemanha e Brasil. Autor e organizador de 47 livros de ensaio filosófico, poesia, ficção e teatro,
Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
Marcus Vinícius de Freitas
Sobre os autores313
sendo os mais recentes: A “Ode Marítima” de Álvaro de Campos (com Cláudia Souza e Nuno Ribeiro), edição com documentos do espólio de Fernando Pessoa e textos interpretativos,(Apenas Livros, 2016); Agostinho da Silva. Uma antologia temática e cronológica, (Âncora Editora, 2016, 3ª edição); A Renascença Portuguesa. Tensões e Divergências, com Bruno Béu de Carvalho (Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2016); Do Vazio ao Cais Absoluto ou Fernando Pessoa entre Oriente e Ocidente, (Âncora Editora, 2017); A Meditação, Liberdade Silenciosa. Da mindfulness ao despertar da consciência, (Mahatma, 2017); O Apocalipse segundo Fernando Pessoa e Ofélia Queirós, (Talentilicious, 2017). Rogério Lopes Professor Associado junto ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador do Grupo Nietzsche da UFMG (GruNie), fundado em 2009. Seus interesses de pesquisa envolvem, fundamentalmente, a relação de Nietzsche com diversos aspectos da tradição filosófica (filosofia antiga e moderna), assim como sua recepção e eventuais contribuições para debates contemporâneos em filosofia moral.
Sobre os autores 314 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional
