Projeto gráfico e diagramação: Chris Fiorio (o Ponto de Fuga)
Revisão: Ana Paiva
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
E77 Especiarias para José Saramago [recurso eletrônico] / Daniel Neri, Vera Lopes, organizadores. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2024.
E-book (99 p. : il.)
ISBN: 978-65-88547-93-9
1. Saramago, José, 1922-2010. 2. Escritores portugueses - Biografia. 3. Literatura portuguesa. I. Neri, Daniel. II. Lopes, Vera. III. Título.
CDU: 869.0.09
Ficha catalográfica elaborada por Pollyanna Iara Miranda Lima - CRB 6/3320
Apresentação
Prof. Dr. Daniel Neri e Profa. Dra. Vera Lopes
Especiaria 1
Todos os Josés, um tal Saramago (geopoesia em decordel decolonial)
Augusto Niemar
Especiaria 2
Para que não permaneçamos mergulhados na cegueira da vida
Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães
Especiaria 3
Filha e pai, entre-laços
Violante dos Reis Saramago
Daniel Neri, Daniel Vecchio, Vera Lopes
Especiaria 4
Saramago, leitor de Marx: mudar o mundo com corações que sangram
Mauro Iasi
Especiaria 5
Saramago, um homem com sangue na alma
Vera Lopes
Especiaria 6
DIÁLOGOS
FICCIONAIS
Apresentação
Parte 1
Política, economia e atualidades
Parte 2
Tecnologia, meios de comunicação e desigualdade informacional
Parte 3
Literatura & leitura
Parte 4
Ciência, ética e direitos humanos
Parte 5
Guerras & religiões
Especiarias para José
Saramago
Apresentação
Prof.
Dr. Daniel Neri e Profa. Dra. Vera Lopes ¹
A produção de textos acadêmicos sobre José Saramago e sua obra é extensa e variada. Muito se disse, tem-se dito e ter-se-á a dizer sobre o homem, o escritor e seus romances, contos, diários, crônicas, poemas...
Mas há modos singulares de dizer. Este e-book contém algumas dessas singularidades, verdadeiras homenagens em gêneros variados: poema, discurso, entrevista, conferência, palestra e diálogos ficcionais. Trata-se de produções tão especiais como especiarias, que fogem um tanto ao escopo acadêmico, adentram mais na emoção do(s) sujeito(s) que nelas se manifesta(m) e roteirizam caminhos pelos quais sempre passa a figura do autor português. Depois de lê-las ou ouvi-las em contextos acadêmicos, como as jornadas Saramago vive!, ou ainda em situações outras, como uma entrevista gentilmente cedida, percebemos a importância de cada uma delas, como especiarias. Seus autores são próximos a Saramago: quer pela experiência íntima, familiar; quer pela experiência de tê-lo escutado em congressos ou entrevistas que circulam nas redes; quer pela leitura de sua obra ou de escritos sobre ela etc. Uma linha de entrelaces costura todas essas vozes: admiração, afeto, respeito e, agora e cada vez mais, saudade.
¹ Daniel Neri – IFMG Campus Ouro Preto, integrante do grupo de pesquisa “José Saramago, leitor de Karl Marx”, estudioso de Karl Marx.
Vera Lopes – Professora no Programa de Pós-graduação da PUC Minas, doutora em Literatura Comparada pela UERJ, coordenadora do grupo de pesquisa “José Saramago, leitor de Karl Marx” (PUC Minas).
Especiaria 1
Em “Todos os Josés, um tal Saramago”, o poeta Dom Augusto Niemar passeia pela obra saramaguiana, fazendo uma geopoesia em decordel decolonial. Para isso, expõe-se afinadamente com enredos, personagens, espaços. Também com as leituras de Saramago, como Fernando Pessoa e Pe. Antonio Vieira. São versos que convidam o leitor a seguir uma trilha informe, mas distinta e clara para quem frequenta as páginas de Saramago.
Especiaria 2
“Para que não permaneçamos mergulhados na cegueira da vida” é frase colhida (e transformada em título) do discurso do Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães, em abertura solene da III Jornada Saramago, quando os 100 anos de nascimento do autor português estavam sendo comemorados. A tônica do texto é a admiração por um homem até entre os que dizem não o apreciar. Concordâncias... nem sempre. Respeito... sempre. Conforme declara Dom Mol, da leitura de Saramago:
[...] sair ileso, é impossível. Saímos comovidos, outros saem muito inquietos, há os que saem com raiva, irados, irados com Saramago, outros ativos, no sentido bem positivo, atuantes, espertos, outros comprometidos, outros contemplativos, pensativos...
Especiaria 3
Na entrevista com Violante dos Reis Saramago Matos – “Filha e pai, entrelaços” – encontramos o entrelaçamento entre filha e pai, singularmente com laços daqui e de lá meio retorcidos. Sincera, límpida, afetuosa, assim encontramos as palavras da filha de Saramago, uma preciosidade de pequenos enredos, sentimentos, reflexões que revelam o homem que subjaz às obras. Também, e muito importante, encontramos uma leitora das obras saramaguianas, envolvida até a medula pelo discurso literário que se amarra ao discurso político, à experiência humana, a um modo de ser e de pensar. Também, e mais importante ainda, a mulher e escritora que se descola do prêmio Nobel e volta-se para si mesma, e, nessa retrospecção, encontra a palavra sua e a palavra do pai.
Em sua palestra “Saramago, leitor de Marx: mudar o mundo com corações que sangram”, Mauro Iasi, marxista, professor e poeta, retoma um artigo de sua autoria publicado quando da morte de José Saramago, amplia-o com reflexões sobre o DNA comunista que o escritor português assumia ter e o verifica em suas obras. A beleza do texto está nos cruzamentos de dois leitores de Karl Marx e de dois escritores de literatura. Assim, o texto expõe ideias esteticamente, seguindo a proposição de Engels e Marx de que, para compreender a obra, fazer uma crítica da obra literária, é preciso compreender o autor em sua “inserção no seu tempo, nas relações sociais em que ele vive, na parte desse fluir histórico aonde ele tá inserido”.
Especiaria 5
Em “Saramago, um homem com sangue na alma”, eu, Profa. Vera Lopes, discorro sobre o percurso em que me fiz leitora de José Saramago, um histórico que se cruza com o conhecimento da obra de Karl Marx e, assim, à confluência entre esses dois grandes nomes. Disso resultou a formação do grupo de pesquisa “José Saramago, leitor de Karl Marx”, vinculado ao Programa de Pós-graduação da PUC Minas. Há, então, pequenas reflexões, fruto das investigações que vêm sendo realizadas (e algumas já publicadas), as quais detectam o diálogo entre o método de Marx e a produção estética do autor português.
Especiaria 6
Os curiosos “Diálogos ficcionais”, produzidos pelos estudiosos Daniel Vecchio e Fernângela Diniz da Silva, ambos integrantes do grupo de pesquisa “José Saramago, leitor de Karl Marx”, estão compostos por um jogo (perguntas-respostas). As primeiras têm a ver com o cenário atual; as segundas são falas de Saramago – constantes em publicações variadas, de entrevistas a diários. A montagem ilustra a universalidade do autor português e infunde no leitor uma sensação de estar diante de um Saramago sempre vivo.
Este livro se compõe, então, de seis produções peculiares. De poema a diálogos ficcionais, várias vozes se manifestam nessa homenagem a José Saramago. Os autores exploram aspectos de obra e de vida do escritor, de forma a demonstrar sua admiração e fomentar o desejo de desbravar suas páginas.
Especiaria 1
Todos os Josés, um tal Saramago (Geopoesia em decordel decolonial)²
Dom Augusto Niemar
Dom Augusto Niemar ³
do que é feita uma vida uma vida de escritaria desassossego no nascer na morte, tanatografia e são tantos os josés que fazem a geopoesia
do que é feita a saudade que no peito de leitor arde no ano dos 100 anos do nascer luto, morte, luta, escritaria, ser que nasceria ao escrever todos os saramagos, voo, ler
por acaso trouxeste a chave dessa tão longa tradição machado, drummond, bandeira josé j. veiga, josé godoy garcia cora coralina, clarice, mãe: estrelas da vida inteira
² O decordel é uma invenção da geopoesia. Variante decolonial para o cordel é proposta, em verso livre-A4, que estiliza o tradicional cordel, mas não exige de seu autor metrificação e rima. Geopoesia que utiliza apenas a vírgula, extrapolando o ponto e vírgula de Saramago, e estabelecendo diálogo com as vírgulas de Ricardo Reis e Antonio Vieira. A primeira versão desse decordel foi lida na presença de Pilar del Rio, em Brasília, no dia 05 de maio de 2022 – dia Mundial da Língua Portuguesa, na III Semama Mundial da Língua Portuguesa (Cátedra Agostinho da Silva em parceria com a Embaixada de Portugal). A versão definitiva foi finalizada em 16 de novembro de 2022, especialmente para a coletânea organizada pela professora e amiga Vera Lopes.
³ Professor Associado III de Literatura Brasileira da Universidade de Brasília. Coordenador da Cátedra Agostinho da Silva (UnB – 2021-2023). Cursou pós-doutorado em Literatura no programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP/2021), com projeto intitulado “Geopoesia e Literatura de Campo Centroestina: Etnoflâneries por Goiás e Brasília”.
volto às linhas da longa jornada e caminho, pedro, parafrente paredemeia da Conservatória que nome o destino registrou errado nesse errante registar saramago saramarx saramar
os livros foram chegando na escola de nome dramaturgo, e a consciência comunista o engajamento demiurgo se deu como serralheiro, no verbo camponês dexpurgo
quando nasce um autor pergunta meu coração quando assina o nome quando lê o primeiro livro quando ouve uma canção na primeira publicação
mas a escrita se dá nos paços nas pegadas azinhagas nos passos espaços lisboetas reportagens, prensa, imprensa rascunhos a lápis e à caneta um mundo vasto na gaveta
e o sentimento do mundo, deste mundo e do outro, também se deu na tradição saramago jangado de pedro tinha um oceano no meio do caminho do coração
terra do pecado, calado, livro bem prenunciado nem mal, nem bem um livro, livre, em voz movimento de temas e bens de um eu chamado nós
se lançou também em poemas possíveis numa remissão vieiriana até provavelmente alegria e o ano no ano de 1995 que chegava em filosofia
na libertação civil ano do ano do 25 de abril na rua josé afonso ai sabe no fundo sou sentimental o escritor foi cumprir seu ideal foi traduzir as terras de purtugal
prenúncio de manual ensaio, pintura, caligrafia saramares se entregaria a ofício que nunca pararia era tempo de transformação se ia levantando do chão
e tornando aos passos que dera numa força sem explicação saramago acha sua era na voz potente da população diz a palavra e faz os gestos ele próprio levantado do chão
quantas noites a noite revela quantos camões retomar que farei com este livro pergunta a velha do restelo que faremos com os lusíadas perguntam os giros do restelo
era no tempo da abrição de escritança e invenção com ponto e uma vírgula eu faço uma ficção movimento pessoas movimento a tradição
ah blimunda mundana vasta blimunda munda que caminhos por mafra que pedras que arrastaram para que voasses aos passos no meio, josé, dos caminhos
tanta viagem a portugal tanta poesia e heteronímia verbo, vírgula, advérbio, abre-se em claraboia um camponês riobalda correndo buscar a glória no ano da morte de pessoa na migração de campos no ano da volta de reis para contar o ano da morte da europa, lusa, decadente
o maior mestre foi caeiro mestro luso mundinteiro desceu jesus da cruz inscreveu seu evangelho só com versos e sua morte sem sequer dobrar o joelho
e voltemos aos blimundos pois bernardo segue andante na direção de vocês heterônimo não morre descansa em desassossego no reino do era uma vez
e havia uma estátua dessas invenções de josé no meio do caminho
raimundo, cercos e jangadas foi mesmo uma alabarda é certo, o de lisboa
e tantas foram as jangadas que saíram pelo mar império nevoeiro iberia saramar saravá sar-auá jangadas negreiras, águas de matar, avá-canoeiros
a vida teatral de francisco são in nomine dei catolicismo carnaval saramago evangelista ateísta universal era no tempo do rei
veio maior experimento, escrever um evangelho segundo cristo memento a história do individualismo no romance ensaístico, encontra belo momento
e quis o destino que esse mais belo evangelho já escrito por homem nascido de mulher, fosse pós-igreja do diabo purgante e além-quer
daí foi mais um mote para dar mais gestos dos escritos de lanzarote dissoluto absolvido e da vida fez-se a sorte intertexto absorvido
e da sorte fez-se a vida escrita engendrou idas e no meio do caminho entre chuvas e vindas recontar nova história em ensaios sobre a cegueira
e no tempo da pedreira veio, adveio, o sr. josé traduzido don josé e foram tantos os dons dom casmurro, don quixote don juan de lanzarote
todos os nomes um romance feito de nada os nomes todos desses nadas que são tudo dizendo tão pouco josé disse tudo de novo
mas é preciso dar os passos para o povo passar no minho porto cais trapobana seguir as páginas que foram todos os saramagos no meio da vida blimundana
e ensinando nos ensaios de caligrafia e lucidez no novo milênio, a caverna se revela e se abre, a homens duplicados multiplicados outra vez
lugar de ser feliz não é o shopping center entre o desassossego o medo e a deslucidez, o novo normal foi contado certa vez saramago virótico cegueiras armas votos impérios, devotos o certo e o errado entre, vírgulas, lavrado é uma página do pecado
a noite, tão veloz conta histórias do cerco de lisboa e do brasil caim parte arrancada de abel na bagagem do viajante voar na pena do pinel
todos os nomes foi o livro mais lapidado no escrito o sr. josé tão esquisito da conservatória ao lado decidiu desalienar e fazer a revolução do encarnado,
nas intermitências da morte encontrei pulsão de morte pulsão de amor e escritaria no encontro com a mulher o violoncelista o cachorro todos saindo da coxia
na viagem do elefante livro de mote delirante road-book, objeto-quase na bagagem do viajante todos os anos: 1936, 1922, 1974, 1984, 1993
e as opiniões que teve tudo questães de opiniães a maior flor do mundo nasceu no asfalto da iberia no silêncio da água, lagarto, eu muito me demoraria
e agora revelo a vocês uma situação insólita as intermitências da morte levam o humano ao limite como saramago pôde pensar nessa coisa que não existe
um ser que mata a viver a definhar tão triste e essa morte de tanto matar se encarna em mulher provavelmente, alegria provavelmente, aletria
e saramar senhor do bomfim nesse mundo de certo deus escrever para os cristãos os jurados-nobéis e os ateus pregando até o fim retomando as lições de caim
mas é tempo de chegar ao fim nesse geopoesia da lusofonia nesses anos dos 13 anos de luto rememoro todas as mulheres lídia marcenda ilda isabel violante ouroana pílar del
uma parte arrancada de nós uma história tão verdadeira que os gritos que foram dados ainda ressoam nessa clareira pilar, cinêmica, devolucionária traduzindo, stela, da vida inteira
águas de transformação pilar para traduzir e guardar para contar e lembrar essas histórias de imensidão
o que conto nesse geopoema calo e declaro no meu coração
sob um chão de estrelas belas belas e restelas fica um legado de vida na vida conversável chego do chão me levanto, me ergo, de palavras faz-se o desassossego
mas de repente, um jeito diferente não mais que de repente esse decordel em repente à roda de livros encontro josé bibliobiografias na minha ficção nessa multidão é tudo verdade
e enquanto houver palavra eu voo voltar os passos onde as ruas não têm nome onde os escritos repaginados aos pássaros que foram dados niemares nunca dantes navegados
ophiussa das serpentes e tataranas navegar o mar infinito e seguir as terras de dentro por escrito e até o fim dos tempos, proscrito, que se demore esse fim saramago: parte arrancada de mim!
1
Especiaria 2
Para que não permaneçamos mergulhados na Cegueira da vida
Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães
Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães 4
Saúdo Doutor Rui, que aqui está em nosso meio, e reafirmo a ele a certeza de que essa casa também pertence a todos os portugueses. As nossas portas estarão sempre abertas, as luzes sempre acesas e tomara que sempre um cafezinho, um pão de queijo sobre a mesa para servir a todos os portugueses que venham aqui. O senhor sabe muito bem o quanto isso significa para nós, em nossa cultura. Seja sempre muito bem-vindo e é uma honra, uma honra, uma alegria, tê-lo aqui conosco. Saúdo com muita alegria esse caríssimo irmão, de muitos caminhos, professor Caio, a quem sempre estou devendo alguma coisa. Vocês nem imaginam, ele pacientemente espera, mas agora, professor, eu penso que, me desincumbindo de tantas coisas, aí sim, terei atenção suficiente e tempo para cumprir todos os meus compromissos.
E saúdo essas duas mulheres que compõem a mesa. O fato de serem mulheres e serem o que são na Universidade, o trabalho que realizam, para nós, tudo isso já tem um significado transcendente. Então, à professora Vera, à professora Raquel, mais do que simplesmente cumprimentar, eu quero transmitir um abraço fraterno de gratidão por tudo aquilo que é feito, realizado, pela capacidade de intelecção da realidade, pela literatura, pelas análises, por tudo aquilo interessante que tem sido feito ao longo de tantos anos. Agradeço, e agradeço de coração, tudo aquilo que vocês fazem tão bem com este tema, esta realidade, esta tese, esta universalidade que se resume num nome só: Saramago. Então, é realmente um agradecimento muito profundo do meu ser.
4 Este texto é a transcrição da palestra de abertura da III Jornada Saramago vive!, Perturbar a ordem, corrigir o destino, realizada no dia 28/09/2022. O conferencista, Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães, era, no momento do discurso, reitor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Antes de expressar um pouco mais algumas breves palavras, porque todos querem ouvir a professora Vera, informo a vocês que estamos ainda em processo, mas creio que na sexta-feira, agora, nós fecharemos esse processo em andamento, quando se reunirão o Conselho Universitário e o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão, para conferir o título de professor ou professora emérita a diversos professores da Universidade que já nos deixaram e, dentre eles, está incluída a professora Dona Ângela, que receberá essa homenagem que é muito importante: o reconhecimento que fazemos da lucidez dessa mulher que, aliás, continua ativa, não é isso?
Muito bem. O Brasil se entusiasmou muito com o Saramago. Saramago tem muitos colegas aqui no Brasil, mas tem muitos amigos e amigas. Ele, enquanto vivia, aqui passou inúmeras vezes e passava sempre deixando atrás de si uma reflexão, um estudo, um pensamento vigoroso e rigoroso, o que fazia com que todos de fato se posicionassem, [ou] gostando ou não gostando de Saramago. Portanto, celebrar Saramago significa também fazer um reconhecimento daquele que plantou muitas coisas interessantes em nossas terras. Ele, calado, só pela sua imagem – aliás, é a capa de um dos seus livros que olhei, está inclusive ali exposto na entrada do auditório – ele toca. Falando, toca muito mais, mas quando lemos Saramago, porque aí a gente pode dar um ritmo próprio, não é? A leitura, aí sim, nós conseguimos com muita habilidade e não sem esforço, digamos assim, penetrar mais profundamente num grande oceano que, levantando os olhos, só nos permite ver até uma certa altura, tamanha a sua sabedoria, a sua capacidade, a sua literatura. Por causa disso, Saramago tornou-se uma grande referência, muitos lugares que eu frequento, muitas pessoas com quem convivo, muitos grupos aos quais pertenço têm como referência a sua pessoa. Portanto, eu escuto não só o nome dele, mas escuto o pensamento dele, por essas pessoas e em muitas ocasiões diferentes da vida. Aliás, isso também me entusiasmou a vir aqui na abertura desta III Jornada Saramago vive!, e por que isso? É porque é impossível sair a mesma pessoa depois que se encontra com Saramago, é impossível sair ileso, é impossível. Saímos comovidos, outros saem muito inquietos, há os que saem com raiva, irados, irados com Saramago, outros ativos, no sentido bem positivo, atuantes, espertos, outros comprometidos, outros contemplativos, pensativos.
Especiaria 2
Nós saímos, muitas vezes, do encontro com Saramago, com as palavras que ele escreveu, agradecidos, mas sempre intelectualmente felizes, porque ele mexe exatamente com a nossa condição, nossa capacidade de inteligir, não é? Todo mundo, a vida humana, mas nós saímos assim por causa da enorme solidariedade que ele transmite, a esperança de um mundo novo, uma esperança pessimista, mas uma esperança de um mundo novo, capaz de mover, assim como moveu o coração dele, os nossos corações.
Então, nessas palavras que dirijo a vocês, apenas para ser um pequeno acréscimo àquilo que aqui já foi dito, de forma muito apropriada, e com muita competência por cada um dos membros da mesa, eu dedico a vocês que estudam, que estão no programa de Letras, que caminham pelas letras, como se costuma dizer, né? uma pessoa muito querida, que inclusive está aqui participando desse evento, e de modo que, esta III Jornada Saramago vive!, que tem como subtítulo a inquietante expressão “perturbar a ordem, corrigir o destino”, nos faça verdadeiramente felizes, para que não permaneçamos mergulhados na cegueira da vida.
Um bom trabalho para todos vocês.
Transcritoras:
Profa. Fernângela Diniz da Silva , doutoranda em Letras na área de Literatura Comparada, pela Universidade Federal do Ceará, pesquisadora da Literatura saramaguiana à luz da Semiótica discursiva; integrante do Grupo de Pesquisa “José Saramago, leitor de Karl Marx”.
Profa. Luciana Genevan, doutora em Letras, área de concentração Literaturas de Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/Minas - BH). Mestre em Letras pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora - Sociedade Mineira de Cultura (CES/ JF - SMC), área de concentração Literatura Brasileira. Integrante do Grupo de Pesquisa “José Saramago, leitor de Marx”.
Especiaria 3
Filha e pai, entre-laços
Violante dos Reis Saramago
Entrevista com Violante dos Reis Saramago Matos 5
Vera Lopes: Violante, me desculpe por tudo isso [haV ia problemas de tecnologia].
VioL ante: Olá... Olá...
Vera Lopes: Primeira coisa, você... Posso te tratar Por você ou você quer que eu te trate Por senhora?
VioL ante: me faz lembrar a quantidade de cabelos brancos que já tenho.
Vera Lopes: bom, Violante, nós somos do brasil, de belo horizonte, meu nome é Vera lopes e eu pesquiso s aramago como leitor de m arx, eh... temos um grupo de pesquisa nesse sentido. daniel Vecchio que também está conosco [olá, daniel neri... nosso companheiro que nos auxilia nos nossos estudos de m arx... nós somos um grupo que: : : ti V emos a sorte de podermos con V ersar com Você um pouco, né?! eh nós não pretendemos tomar muito do seu tempo, mas ah... ah... as perguntas, elas têm muito a V er com o que nós conhecemos daquilo que Você escre V e e que se V incula com eh com... s aramago, né?, com seu pai. bom a gente queria começar – Você pode completar aí, daniel, tá bom? // tá // com: : : qual a obra do s aramago que mais te impressiona e por quê?
5 Entrevista realizada com a Sra. Violante dos Reis Saramago Matos, em novembro de 2022, virtualmente, estando ela na Ilha da Madeira e os entrevistadores, Daniel Vecchio (UFRJ/FAPERJ) e Vera Lopes (PROPPG – PUC Minas), com participação do Prof. Daniel Neri (IFMG), em Lisboa, novembro/2022.
VioL ante: Ah... a que mais me impressiona, a que mais me impressiona é o Ensaio sobre a cegueira. Eh É difícil... escolher só uma, mas... mas digamos, daquelas três que mais me impressionam eh... talvez o Ensaio sobre a cegueira seja eh... seja... eh... seja o preferido. Embora eu::: em particular, e é evidente que não estou fazendo esta avaliação do ponto de vista da literatura porque eu sou bióloga, e portanto, a minha área, a minha área de saber é efetivamente outra. E portanto... e por isso mesmo que o que me faz ah... determinar essa escolha é o gosto, é::: o assunto. É::: é::: aquilo que está ou não está subjacente em relação a uma série de problemas, alguns dos quais com que nos confrontamos hoje de uma forma particularmente violenta. E por isso mesmo é que::: que eu... enfim, talvez... o Ensaio sobre a cegueira seja aquele que mais... aquilo que vou buscar nos livros ::: embora eu deva dizer que há dois outros livros que do meu ponto de vista fazem... eh completam uma trilogia. E que são Ensaio sobre a lucidez e um pequeno livro que ele publicou em 1975 e que, se não me engano, é um misto de poema e de prosa... um livro que se chama O ano de 1993, que é um livro muito pouco conhecido, muito pouco referido, mas que mas que me::: me parece também de uma enorme importância... de uma enorme importância pelos assuntos, pela forma como toda aquela narrativa está construída... e com a nossa realidade hoje. Portanto, acho, se eu pudesse escolher um conjunto, eu escolheria exatamente este: O ano de 1993, o Ensaio sobre a cegueira e o Ensaio sobre a lucidez.
DanieL Vecchio: [isso] me lembra do seu livro de memórias recentemente Publicado falar que o ensaio sobre a cegueira era o seu livro de cabeceira... agora eu achei curioso você falar que releu as obras de saramago recentemente ou anteriormente à Publicação do livro de memórias... e você disse que há, que havia incomPreensões eh... não resolvidas. então, que diferença tem da sua leitura mais recente dos livros do s aramago Para as leituras anteriores?
VioL ante: Vamos ver, se a gente lê um livro com quarenta anos, não é... não pode ser a mesma coisa que aos setenta e cinco. Há trinta anos de aprendizagem, há trinta anos de amadurecimento, há trinta anos de coisas que vão acontecendo que nos fazem pensar eh... que nos chamam atenção. Porque a leitura para mim é um prazer. Eu gosto de ler, mas ah... talvez porque não sei nada de literatura, o que me chama a atenção em um livro não é ah... não são os variadíssimos campos de intervenção da literatura ou da análise ou do estudo que a literatura proporciona. Aquilo que eu
gosto de ir à procura é do que não está escrito, do que está entre as linhas, do que está entre as palavras e... à medida que vamos lendo e à medida que vamos sabendo coisas novas, amadurecendo, a leitura que fazemos é obrigatoriamente diferente. Portanto, não é que de repente o que era preto passa a branco, mas evidentemente que há coisas que se acrescentam. Há novas coisas que nos chamam atenção, pequenos aspectos que relacionamos com outros livros porque os lemos mais atentamente também e, portanto, nos permite esta... esta... aquilo que me parece que existe na obra de meu pai e que é um fio condutor ao longo de toda a obra, que vai assumindo aspectos diferentes, mas que de fato faz... é muito continuada... é muito... é como se houvesse um fio d´Ariadne que fosse ligando o primeiro ao último livro. E quando a gente descobre, quando a gente suspeita de uma coisa num livro, desperta alguma coisa num livro e de repente, ao ler um outro... entrecruzar pensamentos, entrecruzar reflexões, e::: aparecem coisas que realmente não tínhamos percebido, não tínhamos dado por elas. Por exemplo: há um episódio muito curioso que provavelmente será só meu, e nem sei se tenho razão, porque não posso perguntar ao meu pai, mas foi a última vez que li o Levantado. A primeira vez que fui lendo o Levantado do chão foi me chamando a atenção aquela existência de uns olhos azuis numa terra onde os olhos são castanhos. Eh... só há olhos castanhos no Alentejo, só havia olhos castanhos no Alentejo. E sempre me chamou atenção esta estória de uma família com olhos azuis, até porque como bióloga eu sei que se eu cruzo os genes de olhos azuis com os genes de olhos castanhos, o que sai são olhos castanhos. Não há forma de serem olhos azuis. Mas, achei que aquilo tudo era::: ah... enfim... era uma forma do meu pai caracterizar uma família... fazendo com que ela tivesse olhos azuis. Da última vez que eu li o livro, de repente, eu percebi que aquela descrição... daqueles olhos... era exatamente os olhos da minha avó Josefa, e foi como se de repente ele quisesse homenagear os camponeses pobres do Alentejo, sim, mas trazer também os camponeses pobres que estão do outro lado do rio, no Ribatejo. Isto é uma coisa que eu não sei provar, quer dizer, que eu não consigo provar, como é evidente, como não lhe posso perguntar, mas que provavelmente serei a única pessoa que é capaz de pensar nisto, porque sou a única pessoa viva que viu os olhos da minha bisavó. E aquela descrição de repente fez-me sentido em termos de uma homenagem verdadeiramente::: englobando, digamos assim, a luta dos camponeses pobres num período que, num ponto de vista temporal, é meu contemporâneo e, portanto, aquilo tudo são situações que ocorrem em pura ditadura, em estado de ditadura. São situações enfim... eh... que eu não vivi porque era
estudante e era privilegiada, sem qualquer espécie de eh... enfim não temos outro termo, é mesmo este, mas lembro-me de ouvir falar que era luta dos camponeses pobres nomeadamente por causa da jornada de trabalho de oito horas e isto é uma coisa que era comum a todo o Ribatejo também, a todos os assalariados rurais. Mas eu nunca percebi isto. Não percebi, então de repente isso me fez um certo clique, este ano já numa releitura. É um exemplo. Há vários outros, mas este é um exemplo muito atual, digamos.
Vera Lopes: eh... nosso grupo, como eu anunciei, estuda s aramago como leitor de m arx. a gente tem até feito uma junção. nós temos estudado e V isto tanto m arx em s aramago que nós juntamos o nome e ficou s ara m arx. essa junção é pertinente, Você acha que essa junção é pertinente?
VioL ante: Veja só, pode ser pertinente, entendendo do ponto de vista filosófico, de valores, de concepções do mundo. Pode ser pertinente. Agora, eu, eu, eu acho, apesar de tudo, que há uma diferença substantiva entre os dois. Eh... eh... Eu não vou negar que meu pai, e não tenho que negar evidentemente, tenho muito orgulho, jamais o negaria, que meu pai tinha uma ideologia marxista, e que tinha princípios enfim ah... que estavam segundo ele entendia, estavam de acordo com o PCP6 e, portanto, há aqui uma presença, porque eu acho que os livros refletem sempre seus autores, ah... Esta é minha opinião, não sei se é verdade ou não, mas eu creio que um livro é sempre uma imagem do seu autor. Mas não é, digamos, partidário. É político, porque os atos são políticos, é político porque os compromissos são também políticos, mas Marx não era exatamente isto. Há de ser um propagandista, um ideólogo, portanto eu acho que há aqui... eu compreendo ah... o cruzamento, digamos assim, mas apesar de tudo acho que há uma diferença do ponto de vista dos livros, da obra produzida, exatamente por isto, porque ah... é verdade que em ambos há compromissos sociais, há compromissos ideológicos também, é verdade que sim, mas creio... mas creio que há uma certa diferença, embora, como digo, perceba ah... e percebo porque::: do ponto de vista do meu pai... tinha eh... tinha ideologia absolutamente estruturada, pensada eh... defendia de uma forma muito consistente e vertical e, portanto, não acho que é uma coisa que eu ache um absurdo. Não é nada disso.
6Partido Comunista Português
( ) É totalmente possível entroncar as duas formas de intervenção. Se calhar, é... Quer dizer: eu nunca tinha pensado nisto. Estou a falar alto e a pensar ao mesmo tempo. Portanto, se calhar é possível e é::: e é::: até interessante, até interessante, porque, do ponto de vista da ideologia, do ponto de vista dos princípios, há muitos pontos em comum. Enfim, evidentemente que há. Ah... não há dissociações. Mas ah... ah... como é que isso se entronca... Se calhar, se calhar ah... o Levantado do chão é um tratado de economia marxista. Se calhar... é, e eu não tinha pensado isso. Se calhar, é.
Vera Lopes: você via seu Pai lendo m arx?
VioL ante: Eu não lembro de o ver lendo Marx, mas leu, leu, não tenho dúvida absolutamente nenhuma que ele lia. Claro que sim. Claro que sim. Eu acho que::: Quer dizer SIM. Eu nunca o vi ler eh... nunca o vi ler conscientemente, posso ter visto e nem sequer percebi que estava a ler, mas não tenho dúvida de que lia, evidentemente que sim, não tenho mesmo dúvida nenhuma. Eu diria que é inevitável que tenha lido.
Vera Lopes: consta da biblioteca do s aramago toda a obra do m arx e ele faz Vários comentários sobre isso, sobre essa leitura. e sobre mais ou menos isso que a gente tem se debruçado, né... eh... eh... tem uma relação do homem público e do homem no espaço doméstico que aparece no seu li V ro, de memória dos fa Zemos, essa relação entre o homem público e o homem doméstico, não é? m as me parece não tão harmônico o homem público com [...] o homem doméstico, não tão sinfônico.. eh... Você pode me falar um pouco sobre isso?
VioL ante: Vamos ver... quando uma pessoa está em casa, no fundo está protegida, protegida pela casa, pela família, pelas pessoas que estão junto. É possível que haja... Temos uma certa salvaguarda. Temos alguma sensação de segurança, não é? Agora, quando estamos, quando saímos de casa, evidentemente que o nível de exposição é incomparavelmente maior, não só porque não estamos sempre ao pé de pessoas que conhecemos, de quem gostamos, que constituem os nossos amigos ou a nossa família, também deixamos de ter as paredes de proteção da casa, digamos assim, e, portanto, estamos muito mais despidos, muito mais expostos. E evidentemente que... eu penso que isso acontece com toda a gente, não acontecia só com ele. Acontece
com todos nós duma forma muito inconsciente, quando saímos, temos algumas ah... algumas... alguns mecanismos de proteção, dos quais na maior parte nem damos [conta], mas que existem. Ora, ele era um homem muito conhecido, nesse aspecto estava muito exposto e, portanto, também é verdade que ele sempre foi uma pessoa de emoções muito contidas, não é de emoções contidas, é da expressão de emoções muito contida. Não é que ele não foi ( ) Ele era um homem de uma enorme sensibilidade e muito emotivo, mas, ao mesmo tempo, era um homem que eh... era muito contido na expressão desta emoção. E, portanto, na rua, era ainda mais contido. Porque tinha que ser, não é? Era lógico que salvaguardasse um pouco eh... a sua emoção porque senão depois podia ( ). Eu recordo muito de tudo isso que estou a dizer. Quando... quando ele ah... recebeu o Nobel e foi recebido em Lisboa, no Centro Cultural de Belém, estava o anfiteatro... estava cheíssimo de gente, milhares de pessoas, uma coisa realmente impressionante e eu estava com minha família, e estava emocionada e talvez chorei um bocadinho e depois quando estava com ele disse: olha, vê se não choras, porque eu também estou aqui a fazer um enorme esforço e daqui um bocado eu começo a chorar na frente dessa gente toda e não pode ser. Portanto, verdadeiramente, as emoções estavam todas lá. Mas o que havia era um enorme:::... pudor, se se quiser, que elas transpirassem de uma forma... livre, de uma forma solta, não é? Ele era por si um homem muito contido, ele era um homem muito contido, um homem muito reservado, muito introspetivo, e isso ah... fazia-o ter aquele aspecto aparentemente muito frio, muito austero, muito... muito afastado das pessoas, mas que efetivamente, na maioria esmagadora dos casos ah... ah... [era] apenas um mecanismo d´alguma contenção, d´alguma proteção individual, porque... porque ah... mas... mas... havia percepções, havia gestos em que esta emoção era traduzida, mas era preciso conhecê-lo bem, era a forma como punha as mãos, o que fazia, o jogo entre as mãos e a cara, a expressão dos olhos, e portanto, para quem o conhecia muito bem a gente percebia perfeitamente quando é que a aflição estava ali, quando é que a emoção estava ali a ferver. Mas era e sempre foi um homem muito contido ( ) e essa preocupação. E não há dois Saramagos, estou a dizer, não há o José Saramago caseiro e o José Saramago exposto. O que há é ( ) ele não andava aos saltos e a rir... Ele era um homem que tinha uma contenção natural, uma reserva natural.
Especiaria
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DanieL Vecchio: Violante, digamos que essa tensão entre a figura pública e a pri Vada de s aramago que Você agora nos diz que não haV ia diferença, que s aramago era uma pessoa só, ah... coerentemente uma pessoa só, também entra na sua V ida, né? certa tensão. porque há uma preocupação nos seus relatos de ser a Violante m atos, não a filha de s aramago, não é? como foi depois de mais V elha, Você como Violante m atos, lidar com pessoas que continuaram a tratar Você como filha de s aramago depois de estocolmo?
VioL ante: Vamos ver. Eh... Ser filha d´um pai e d´uma mãe comuns é uma coisa que toda gente tem, toda gente imagina o que é. Pronto. Portanto, é o pai e a mãe, e não há problema nenhum. Agora, quando a gente tem no meu caso um pai e uma mãe que um pai e uma mãe que não são propriamente da normalidade, não é! Quer dizer, tudo é… mais difícil, porque a gente tem que fazer... Eu digo eu, não vou dizer a gente porque acredito que haja quem lide com situações deste tipo de forma completamente distinta da minha. Portanto, eu não vou generalizar, mas EU, a certa altura, enfim, a certa altura, fui-me vendo numa situação em que realmente ou era filha do pai ou era filha da mãe. A verdade é esta. Para os mais ligados à literatura, eu era filha do Saramago, e para os mais ligados às artes plásticas, eu era filha da Ilda Reis. E, portanto, eu senti a certa altura... eu senti uma certa necessidade de individualização. Deixar de ser filha de. Por uma única razão. Não tem nada a ver com gostar ou não gostar. Com ter orgulho ou não ter orgulho. Como ter eh:::... afeto ou não ter. Não tem nada a ver com isso. Tem a ver com uma coisa para mim que é muito importante que é saber que, se eu chegar num sítio, eu chego lá por mim ou ou chego lá porque sou filha do pai ou sou filha da mãe? Se eu chego a um patamar de respeitabilidade seja por isso ou por aquilo que fiz? Se eu chego a um patamar determinado, chego por mim ou por ser filha dele e filha dela? E esta foi uma única questão. Verdadeiramente esta foi a questão. A questão minha. Uma questão de necessidade de ser eu. Saber ser eu. Conseguir ser eu. E isto, é claro... que se eu tivesse assim um nome Souza, José de Souza, Souzas há milhares em Portugal. Saramagos, não. E portanto, qualquer referência a Saramago é, ainda hoje, ah... Saramago, aquele senhor que escreve livros ou que escrevia livros. Isto acontece, não é? Portanto, é verdade, que há uma certa, que houve uma enorme preocupação da minha parte em saber o que, como é que eu era, de saber em que buraco eu estava, em que patamar, em que escada podia subir, mas ser EU,
e por isso, quando nós, quando eu e meu marido viemos para a Madeira, porque ele é de cá, eu pensei... esta é a altura ideal para deixar o Saramago arrumado em casa e ficar Violante Matos enfim na altura em que me casei, usava o nome do meu marido e fiquei Violante Matos. E pronto, e fui crescendo. Eu vim para cá há quarenta e tantos anos, portanto eu tinha trinta e poucos anos quando viemos para cá e aqui fui crescendo e que... aqui fui sendo eu. E quando foi uma altura em que eu achei que as coisas já estavam suficientemente sólidas... passei muito calma e tranquilamente a buscar outra vez o Saramago, que era meu nome de solteira aliás. Fui buscar o Saramago e ficou Violante Saramago Matos. Não vou dizer que foi completamente pacífico, porque nem meu marido e nem meu pai acharam muita graça. Mas o Danilo mais facilmente percebeu que tinha que ser assim em particular em um meio tão pequeno como a Madeira. Meu pai resistiu um pouco mais, mas depois acabou de fato a perceber que aquele era um problema que... não tinha a ver nem com o pai nem com a mãe, era uma coisa que tinha a ver comigo. Exclusivamente comigo. Porque pode haver pessoas que lidam muito bem com isto: sim, sou filha de Ilda Reis, sim, sou filha de Saramago, e não há problema nenhum. Eu hoje lido, eu hoje lido, mas não lidei porque era intimidatório de certa maneira. É que estamos a falar de uma mulher que foi Prêmio Europeu das Artes e das Letras em 1988 e estamos a falar de um homem que foi Prêmio Nobel de Literatura em 1998, quer dizer, é prêmio a mais em casa, e isto pesa, e a gente precisa ter a certeza de que não chegou aonde chegou pelos prêmios, mas sim por si mesma. É tão simples quanto isto. Tão simples quanto isto.
Vera Lopes: eh... no seu livro você comenta da divergência Política que você tinha com seu Pai, isso é uma coisa que me imPressionou muito, Porque saramago é comunista e você também é de uma linha de esquerda. como se divergem duas linhas Políticas tão à esquerda?
VioL ante: Diverge-se... diverge-se, porque ah... quer dizer, a gente sempre tem que ver em que momento se está. A gente está num período em que se aproxima... em que se aproxima sim... em que se caminha, não se aproxima, caminha-se para o final do Estado Novo ah... e evidentemente estamos numa altura dos anos sessenta, setenta, no meio de uma explosão, de uma eclosão melhor dizendo do maoísmo e das contradições entre China e Rússia. É este o quadro partidário ou político-partidário em que temos que nos situar. Ou o sociopolítico-partidário em que temos que nos situar. E evidentemente que naquela altura as relações ideológicas entre
China e Rússia não eram boas, não eram pacíficas. Eram profundamente antagônicas e de grande confronto. E isso... o meu pai do PCP, eu da extrema esquerda, do MRPP7, evidentemente que não havia forma de... fingir que o amor entre o pai e a filha ia apagar tudo. Não havia, naquela altura não havia: nem havia para ele, nem havia para mim. E isto é uma coisa que acontece, acontece em todos os países, acontece em todos [os] momentos, acontece ( ). Eh... Pode ser necessário haver pontos de convergência, sim, claro que sim, claro que havia pontos de convergência, mas também havia muitos pontos de divergência. E havendo estes pontos de divergência ( ) e se falo disso, isso para mim era muito claro e acho que para ele também. Havendo esses pontos de divergência na rua, digamos assim, no confronto fora de casa, não era muito simples de explicar como dentro de casa tudo [ia] ficarmuito::: harmonioso e muito ah... e desaparecia. Não, não acontecia, não acontecia. E, portanto, as divergências existiam, as discussões existiam e ah... eh... um certo afastamento existiu, sim, é verdade. E um dia, porque tem uma base ideológica, ele telefonou-me e disse: “Vamos almoçar”, “Vamos”, “Pronto”, e acabou-se a conversa, porque as coisas também se foram diluindo, porque as coisas se foram naturalmente evoluindo. Eu também cresci. A verdade é essa, eu também cresci. Eh,,, E portanto é um episódio que é natural, é um episódio que é natural, quer dizer, o que para mim é pouco natural, porque é uma ideia que é pouco natural, porque parece um pouco artificial, uma ideia que a gente pode estar em campos bastante afastados e bastante contraditórios em grandes... em grande parte dos assuntos, das abordagens, das estratégias, das táticas, estamos a falar apenas neste campo, e de repente em casa são beijinhos e abraços. Não... não... Em mim não faz sentido este tipo de relação, porque ela fraqueja em qualquer lado, fraqueja em qualquer lado. Não é... não é consistente. E o meu pai também não. E o meu pai também não. Portanto, eu acho que era natural acontecer o que aconteceu. Resulta dum quadro também nacional e internacional também muito próprio, muito específico. E os anos passaram e as coisas resolveram-se, equilibraram-se, e... e... e... nunca falamos disto e nunca falamos disto. Portanto, para mim é muito claro que tudo isto é, era natural que pudesse acontecer naquela altura. E não é por isso, por exemplo, e é tão natural, é tão natural, e é tão estruturalmente natural, que eu sou presa em 73 e não houve nenhuma falha do meu pai e da minha mãe nas visitas da cadeia. Sempre que as visitas foram autorizadas, eles foram lá. Os dois. E já estavam sepa-
7Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado
rados. Portanto, é isso mesmo, porque... apesar das divergências, que eram grandes, a relação era muito, era muito coesa, era muito sólida entre nós, todos. E por isso, e por isso também desapareceu. Arrumou-se e passou.
DanieL Vecchio: m as a Pesar dessa relação tão coesa, tem alguma divergência entre vocês, algo que também assinalava a divergência entre o mr PP e o PcP?
VioL ante: Ah... eh... bom, vamos ver... evidentemente que sim. Eh:::... ôh:::... a doutrina, a prática, e a ideologia dele não era propriamente a da República Popular da China, são teorias que estão neste patamar as divergências, estão neste patamar e sempre estiveram, e sempre estiveram. Eu lembro-me que depois, até em casa dele, chegamos a ter conversas sobre isto, sempre estiveram, era aí que elas estavam, em mais lado nenhum. Agora, a partir de certa altura foi possível encontrar um certo... acerto, não é, porque as coisas também se alteraram, porque eu também cresci, porque eu também cresci, ter vinte anos ou ter dezenove ou ter trinta não é a mesma coisa e, portanto, as coisas foram... foram andando (sic.).
Vera Lopes: você era mais radical que ele no sentido Político?
VioL ante: Sim, sim, é verdade que sim. Basicamente é assim: se vocês forem lá atrás, estudando Marx e podem até fazer de uma forma mais simplificada ou::: mais simples, ir lá atrás e... e medindo ou avaliando as divergências entre a República Popular da China e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, anos setentas, sessentas e muitos setentas, saberão exatamente daquilo que existia e não só Portugal porque toda a Europa ( ), toda a Europa enfim eu conheço um pouco melhor, toda a Europa tinha naquela altura esse tipo de eh... organizações partidárias que ou eram mais próximas do partido comunista da União Soviética ou eram mais próximas do partido comunista chinês e, portanto, havia efetivamente divergências e havia várias.... várias organizações mais ou menos próximas de uma ou de outra que eram no fundo as duas grandes matrizes socialistas ah... digamos assim naquela altura. Não era do ponto de vista do socialismo ou do comunismo... eram... eram as potências mais fortes, a China e a Rússia, e, portanto, era aqui... era exatamente aqui.
Vera Lopes: interessante...
a inda sobre esse camPo, quando você esteve Presa, e seus Pais lhe Perguntaram se você gostaria que eles Pagassem a caução Pra você sair, você disse que não, eh... isso foi dito com muito medo ou foi dito com mais coragem?
VioL ante: É. Não sei, não sei... não sei... não sei medir, não sei medir, mas é inevitável que na prisão há medo, pois claro que há. Eu acho que honestamente ninguém pode dizer ah... eu estive preso e não tive medo nenhum. Se alguém conseguir dizer isso, ótimo, eu não consigo. Claro que tive medo. É evidente que sim. Mas, há... quer dizer, eh... depois, a gente aguenta ou não se aguenta. Ou arranja forma de ultrapassar o medo ou não arranja. Eu não sei se é coragem, não sei... é uma situação para o sentimento de coragem, mas pronto... ah::: a convicção era de certeza. Se me perguntarem foi tanto o medo como a convicção eu sou capaz de dizer que sim. Porque ah::: eu acho que a coragem não se mede assim com grande facilidade, até porque as condições da prisão não eram iguais para toda a gente. Nós... eu, em particular, pertencia a uma elite, estudantes universitários eram uma elite. Porque naquela altura, o acesso ao ensino superior era mu:::ito, muito... muito seletivo. Estamos a falar dos anos finais dos anos 60. Portugal era um país com uma taxa de alfabetização absolutamente dramática. Uma taxa de precariedade social muito grande e, portanto, chegar ao ensino superior implicava ter que fazer a escolha da obrigatória que era a quarta classe, o quarto ano, depois fazer mais ah... sete anos de escolaridade, o que já por si não era possível para um grande número de pessoas. Não havia dinheiro. Pura e simplesmente não havia dinheiro e, além disso, a escolha do liceu... são estes sete anos que precedem, que precediam a faculdade, a escolha do liceu não era óbvia para todos. Porque grande parte das crianças que pretendiam começar a estudar, depois dos primeiros quatro anos, iam para cursos técnicos, ou cursos que lhes davam, determinados cursos profissionais digamos assim. Portanto, cursar o liceu todo e depois ir ainda para a faculdade era ainda mais seletivo porque as propinas eram caras, os livros eram caros e tudo isto custava muito dinheiro, tudo isso limitava muito o acesso dos jovens à faculdade. Então quem chegava à faculdade era filho de gente que podia pagar a faculdade. Ponto final. E gente que podia pagar a faculdade era gente que tinha dinheiro ou que tinha algum dinheiro. No meu caso em particular, além dessa situação, o meu pai já tinha um grau de notoriedade ah... no setor ligado às edições, aos livros, aos autores, e minha mãe também no setor ligado às artes plásticas. Portanto, eu ainda por cima tinha um outro … tinha um outro estatuto, porque falar o meu pai e falar
a minha mãe, ou falar se calhar o pai ou uma mãe de uma estudante que estava na sala ao lado, não tinha o mesmo efeito. De fato, eu fui privilegiada, não há dúvida nenhuma quanto a isso. Não é por isso que eu não deixei de ser torturada também. Tive tortura de sono e pancada sim, como tanta gente, como tanta gente, mas não há dúvida nenhuma que os estudantes universitários tinham alguma proteção entre aspas, chamemos assim, pelo fato de virem de famílias que quase que eram exceção naquela altura, quase que eram exceção. A pobreza era imensa em Portugal, era imensa. Além disso, temos uma outra situação, estávamos em plena guerra colonial. Portanto os homens, os rapazes, ou iam para a guerra ou uma parte substancial emigrava. Imigrava porque iam também à procura de outros meios de subsistência, ou emigrava, em particular os que estavam nos sistemas universitários, para não ir para a guerra. Há aqui uma quantidade enorme de fatores que alteram muito profundamente a sociedade portuguesa daquela altura e que determinam que realmente quem estava na universidade e sobretudo é preciso não esquecer que a luta estudantil tinha um peso muito grande, tinha uma influência muito grande, e todos nós estávamos mais protegidos. Quer dizer, prender um operário não era o mesmo que prender um estudante universitário. O operário, digamos que o operário quase que passava despercebido, um estudante universitário era logo um escarcéu, era logo uma barulheira, era logo uma greve, e naquela altura de 1973, quando nós fomos presos, de fato a academia entrou em luta, e isso deu-nos TAMBÉM dentro da cadeia uma certa proteção. Ah... Apesar de tudo, vamos ver, estarem três ou quatro, ou dez operários presos, dos quais não se sabe quase nada, era muito diferente do que estarem dez universitários com uma academia a fazer barulho, com a academia a reivindicar eh... a libertação, com a academia a questionar as razões da prisão... tudo ( ) e questionar as próprias questões a que diziam respeito à luta estudantil. Tudo isto, factualmente e objetivamente, transformava os estudantes universitários em presos eh... especiais, digamos assim. Havia estudantes universitários que... eles tinham pessoas que lhes tinham pago o curso e neste caso eram bastante maltratados. Portanto, não há dúvida que é uma situação difícil. Ah::: a prisão política não é uma coisa fácil, mas de facto, ah... sim, tive medo. Para mim isto faz sentido porque faz parte das reações humanas. E não acho que seja um problema de coragem. É um problema de convicção. Achar que... se está certo, procurar ir pelo caminho que consideramos certo e não nos desviarmos para aquele que pode ser aparentemente mais fácil, mais simples.
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DanieL Vecchio: v iolante, voltando à sua ligação com o mr PP, criado lá na v ila franca de x ira, na década de 70. eh... esse movimento... ele organiZ ava a federação de estudantes m arxistas-leninistas. você usufrui de uma certa forma de alguma formação Perante essa federação?
VioL ante: Vamos ver. Realmente há coisas curiosas. Eu nunca pertenci à Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas, que por acaso era dirigida pelo meu marido, sem que eu soubesse, uma coisa que ele me escondeu durante toda a vida, toda a vida não, durante algum período, sem que eu soubesse e... não, não participei da Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas, mas evidentemente estava nas escolas, havia informação, havia discussão, havia plenários em que havia intervenções não assumidamente da Federação, da mesma forma como não eram assumidamente do MRPP, porque eram organizações clandestinas, não é, mas com os princípios, se percebia, quais é que eram. Portanto, associar eu não me associei, a não ser em termos de aprendizagem, de conhecimento daquilo que lia, dos comunicados que se liam, pelas discussões que íamos tendo. Porque esta é uma época... é uma época... é uma época de muita agitação na academia, uma época de muita... de muita realização de plenários universitários, dentro da universidade, inclusive interuniversidades. Ah... normalmente, com mais frequência, em Coimbra ( ) e dentro da própria academia de Lisboa ( ). E era muito grande e era muito intenso e, portanto, a gente aprendia, é claro que sim. A gente aprendia porque era assim que::: era assim que se fazia, e íamos lendo ( ) claro disfarçadamente porque eram, enfim, livros proibidos. Ler Marx num café naquela altura era impensável. ( ) Uma simples revista como a Seara Nova a gente tinha a vontade ( ) mas tinha que ser escondida, não se podia ler à vontade e era uma revista com caráter nada mais do que isto. E já não era pouco, já não era pouco. A verdade é que::: íamos aprendendo, é claro que sim, íamos aprendendo desta forma, não diretamente, não diretamente.
Vera Lopes: Pergunta de filha Para mãe. a formação e a educação que você recebeu têm a ver com o Pai marxista, e a mãe que você foi e é tem a ver com o fato de você ser marxista?
VioL ante: Ah:::... não sei. Não sei. Nesses termos estritos, não sei. Sei que, tanto
num caso quanto no outro, até porque, eu não sei por uma razão simples, porque minha mãe foi uma mulher bastante ligada ao MRPP e foi uma mulher que me deixou marcas muito fundas. O que mais eu vi aqui eram, da parte deles, estamos a falar de anos quarenta, cinquenta, não é, estamos a falar da época de 50, eu nasci em 47... eu acho que eu vi aqui da parte deles é a preocupação por uma educação diferente, por uma educação na base dos valores, muito, muito, muito pacífica, digamos assim, em termos de conflitualidade. Eu não me lembro de conflitos em casa, sinceramente não me lembro, mas lembro de coisas que me foram marcando, me foram formando e que resultam mais [em] um conjunto global, digamos, um conjunto basal de princípios, do provimento de uma ideologia estritamente marxista. Eh... Quando eu ensino ou quando eu tento ensinar o valor da justiça, tá bom, pode ser um conceito marxista, não diria que não, mas não é EXCLUSIVAMENTE marxista. Quando eu lhe digo que é preciso ser íntegro e honesto eh... eh... não é só, quer dizer, quando eu estou aqui a pensar, quando estou a falar do marxismo como uma estrutura econômica e política e econômica substitutiva do capitalismo. Acompanhar esta mudança de paradigma de governo e sociedade, temos também um conjunto de valores, e eu acho que são mais que esses valores que levaram meu pai e a minha mãe a educar-me de uma determinada maneira e ter levado a mim e ao meu marido a educarmos nossos filhos exatamente segundo o mesmo padrão, segundo o mesmo conjunto de princípios, o mesmo conjunto de valores, da ética, da responsabilidade, da seriedade, da verticalidade, do não ter falta de respeito. Portanto, não creio verdadeiramente que isso seja exclusivo eh::: acho que qualquer democrata faz isso, para falar com franqueza. Acho que qualquer democrata pode fazer isso, não precisa ser marxista para fazer isso. Qualquer democrata pode e deve e deve fazer isso. Mas não são, não não não são, efetivamente, coisas indissociáveis. Não são. Eu acho que não são.
Vera Lopes: você afirma tanto na sua obra quando falou Pra gente há Pouco que não é uma leitora eh... Proficiente, vinculada à área da literatura, mas é uma leitora. que autores você lê, fora seu Pai?
VioL ante: Olha, para falar com franqueza, nos últimos três anos, é Saramago até dizer Saramago. Não sei por que, mas parei de::: Eu não li mais ninguém. Praticamente eu não li mais nada. Eh::: Também não me perguntem exatamente por que, Especiaria 3
porque eu... porque isso não foi uma opção consciente. Fui precisando de voltar à::: obra dele. E foi precisando acho eu... foi por uma razão... por uma razão pra mim que está lá há muito tempo. Eu creio que eh... eu creio que a importância do meu pai ou da obra do meu pai estará naturalmente na literatura. Não... não ponho nenhuma dúvida quanto a isso, mas está também muito ligada à sua maneira de ser, à sua maneira de pensar, à forma como ele encarava os acontecimentos, como ele se expunha na defesa daquilo que achava certo e::: no fundo, se calhar, foi disso que eu precisei para ah... para este período tão único e tão complexo que estamos a atravessar. E realmente desde que a pandemia começou eu não li mais ninguém. Fora disso, eu gosto (...) gosto... gosto do Mia Couto, gosto muito de autores de língua portuguesa, gosto do Mia Couto, gosto muito do Jorge Amado, gosto muito do... do... do - - ai aquelas coisas que a gente tem que se chama branca, que é uma coisa que a gente...
Vera Lopes: [deu branco]
VioL ante: branco, branquinho, branquinho, não me lembro, ah, que horror... ah já me vou lembrar - - e gosto muito gosto muito de ler Sepúlveda, ah... Eça de Queiroz, Padre Antônio Vieira, eh... - - e não consigo me lembrar do outro que eu queria... realmente não consigo - - . Mas é uma... Gosto de Pessoa, gosto do Pessoa, algumas coisas do Pessoa, menos do Ricardo Reis. Não gosto muito do Ricardo Reis. Mas, sim, mas sim (...). Para além dos neorrealistas ( ). Eu gosto muito de ler em português, confesso. Não é em português, é literaturas de língua portuguesa ou espenhola. Se der, lembrei-me entretanto que de quem me esquecia: foi do Pepetela. Acho que é porque é aquilo que me diz mais do que uma literatura inglesa e porque eu não sou estudiosa de literatura, portanto não posso... não posso apreciar, avaliar tanto, essa é uma característica minha, a qualidade duma literatura mais universal. Claro que li Sartre, claro que li Stendhal, claro que, enfim, [li] alguns clássicos quando eu era mais nova, é verdade que sim. Ah... Tolstoi, é verdade que sim. Mas aquilo que efetivamente que me diz é esta literatura, e talvez porque eu vá à procura de coisas entre as linhas é esta literatura mais perto de nós, ou mais perto de mim, melhor dizendo. E a literatura que eu encontro mais perto de mim é esta que está mais na minha latitude. E, portanto, está nesta, está numa Joana Bértholo, que é
uma escritora nova, portuguesa, de uma grande qualidade, ah... eh... é por aqui, é por aqui. Ou numa Clarice Lispector. Ou numa Clarice Lispector. É por aqui.
Vera Lopes: v iolante, tem uma discussão muito grande com relação à Produção do s aramago, que é a mistura do autor e do narrador. eh... quando você lê as obras do s aramago, você ouve a voZ de um narrador ficcional ou você ouve a voZ do saramago? de carne e osso?
VioL ante: Essa resposta é muito simples, é o meu pai de carne e osso.
Vera Lopes: eu Perdi a sua fala, me desculPe.
VioL ante: É muito simples, é o pai de carne e osso.
Vera Lopes: é o Pai de carne e osso.
DanieL Vecchio: o seu relato de memórias é um relato Pós-Pandêmico, não é? e eu Percebi que há muitas veZes a Palavra esPerança no relato. só que me Parece que você herda algo do seu Pai, de não acreditar no mais... não ser um otimista... essa esPerança não se reduZ a um otimismo ingênuo, mas você também tem Percalços com o Pessimismo, você diZ que os Pessimistas se limitam a diZer que o mundo não tem remédio, e aí você Prefere então Pensar naqueles que se conformam e não se conformam com o mundo. você não acha que esse Pensamento que você disse que não deu temPo de falar
Para o seu Pai, será que não herda bastante aquilo que saramago chama PrinciPalmente em seus c adernos de l anZ arote de ressentimento crítico, ou seja, uma não resignação ao mundo que é Péssimo, Porém, que não uma entrega ingênua em relação à esPerança que devemos ter nele?
VioL ante: Eu acredito que no fundo estejamos os dois a falar da mesma coisa. Eu acredito que no fundo estamos os dois a falar da mesma coisa. Porque, de fato, para ele, o pessimista, o pessimista não é exatamente aquilo que comumente se diz de uma pessoa pessimista. Pessimista, pronto, pessimista é o que temos, paciência, isto não vai para melhor. Não é este o posicionamento, portanto, eu só não gosto da palavra pessimista ou pessimismo exatamente porque tem muito dessa conotação. É o homem, a pessoa que em tudo vê mal. Em tudo vê::: vê o fim, em tudo não encontra saída. E eu não acredito, não era este exatamente o sentido que ele dava à palavra pessimista. Era, pelo contrário, o que reage, o que não se conforma. Por isso que eu gosto mais dos que se conformam e dos que não se conformam, mas não creio, sinceramente, que, no que nos diz respeito, houvesse grandes divergências
com relação ao conteúdo de um termo ou de uma escolha termos ou na escolha de um conteúdo de, de um termo. É claro que não há aqui uma confiança inocente ou esperançosa de que o mundo vai começar a ser uma coisa fantástica e que nós todos vamos olhar agora para os direitos humanos e os humanos de uma forma muito responsável, muito consciente e muito séria, muito ética. Não, não tenho, não tenho ilusão nenhuma disso. Aliás, os tristes anos que vamos vivendo ao longo do correr dos anos... não nos mostram realmente nada disso. Mas, eh... a verdade é que ou nos conformamos ou não nos conformamos. Ou aceitamos as coisas ou procuramos que elas possam, possamos procurar tentar que elas possam ser um bocadinho melhor, um bocadinho melhor, que estamos a caminho de outra coisa melhor. E, portanto, acho que, no meu caso e no dele, dos termos que eu gosto mais, e nos termos que ele usava, não há uma grande diferença de conteúdo, mas um pessimista de uma forma geral não tem saída. Enfim, e quando não tem saída, não tem reação, fica quieto, fica machucado, fica submergido, eh... sem capacidade de lutar ou desejar seja o que for. E nesse aspecto eu não gosto do termo pessimista
Vera Lopes: o que há na autora que você é que tem herança do autor saramago, não do Pai, do autor?
VioL ante: Sei lá, não faço a mais pequena ideia. Não faço não. Não faço. Eu acho que não há grande comparação, a não ser no que diz respeito às personalidades, às pessoas, terão formas semelhantes de avaliar as coisas ou de olhar para as coisas ou de pensar sobre elas. Mas de resto não há, não me parece que haja qualquer espécie de comparação possível. Mas tenho perfeita consciência, em primeiro lugar tenho perfeita consciência do que me separa do meu pai que é o ponto de vista do conhecimento, da quantidade e da qualidade do pensamento dele. Eh... o::: as reflexões que ele fazia sobre inúmeros aspectos da nossa vida cotidiana ou dos fenômenos sociais, os problemas do mundo, eh... Posso dizer: eu também penso isso, me preocupo com isso, que temos uma compreensão parecida, agora do ponto de vista da escrita, vamos pôr as coisas nos patamares onde devem estar porque não há comparação. E eu não sei responder a essa pergunta em termos de lidar com alguma coisa... Não sei... não... não... não... Não acho que haja não, sinceramente não acho que haja não. Eu acho que uma forma muito minha de escrever, também uma forma muito minha de pintar com perfeita consciência de que não vai nem pelo caminho do pai, nem pelo caminho da mãe, porque não é o meu. Como costumo
dizer, jamais escreverei um romance, jamais farei gravura e, portanto, tenho as minhas formas de expressão, mais nada, mais nada do que isso. Há pessoas que se exprimem, há pessoas que se exprimem de uma maneira, outras que se exprimem doutra, outros que são capazes de, com pequenos gestos, fazer grandes coisas, outros que precisam de grandes gestos para fazer pequenas coisas, portanto tem a ver com as formas, com as habilidades de lidar, as capacidades de cada um, mais nada, mais nada.
Vera Lopes: era isso, v iolante... olha, muito obrigada... estou muito, muito agradecida, você se Parece fisicamente com seu Pai, é muito interessante ficar olhando Pra você aqui da tela também. m as suas Palavras são muito enternecedoras em todas as resPostas, agradecemos muito, vamos levar a sua entrevista Para nosso gruPo e vamos estudar muito Pensando na sua Posição, na sua comPreensão desse universo saramaguiano tão Pessoal, tão Político. a gente agradece muito.
VioL ante: É verdade, é mesmo a única área em que eu posso dizer alguma coisa, porque de literatura não sei nada.
DanieL Vecchio: eu agradeço também, v iolante, foi uma honra conhecê-la e conversar com você. eu tenho um recado Para lhe dar. a gente estava aqui nos PreParando Para a entrevista e a Pareceu aqui o Prof. miguel r eal e contamos a ele que íamos estar com você, e ele mandou um grande abraço e Pediu Para avisar que do livro que vai lançar, a s sete vidas de saramago, [guarda] um volume Para você e Para a filha... estão lá na fundação à esPera de vocês.
DanieL neri: é emocionante a gente Poder comPartilhar essa ex Periência tão íntima, de uma Pessoa como a senhora, filha do s aramago, e os estudos que a gente está fa Zendo, nos colocando nessa, não vou diZer nessa vivência íntima, mas nessa PercePção tão íntima de mundo que ele tinha e que ele tentava traduZir Pela literatura. então, foi muito legal.
VioL ante: Muito obrigada, foi um gosto também.
Vera Lopes: um abraço Pra você, v iolante. fique bem. quando for ao brasil, quando for a belo horiZonte, não deixe de se comunicar com a gente, que a gente vai te receber muito bem, e se você Precisar de alguma coisa de lá, também nos Peça, que nós teremos o maior Pra Zer em te atender.
* Entrevistadores:
Daniel Vecchio
Doutor em História pela UNICAMP. Pós-doutorando em Letras Vernáculas - Estudos Literários pela UFRJ/FAPERJ. Integra o Grupo de Pesquisa “Saramago, leitor de Karl Marx” (PUC Minas).
Daniel Neri
IFMG Campus Ouro Preto, integrante do grupo de pesquisa “José Saramago, leitor de Karl Marx”, estudioso de Karl Marx.
Vera Lopes
Professora no Programa de Pós-graduação da PUC Minas, doutora em Literatura Comparada pela UERJ, coordenadora do grupo de pesquisa “José Saramago, leitor de Karl Marx” (PUC Minas).
* Transcritoras:
Mariana Hilbert
Aluna do curso de graduação em Letras da PUC Minas. Possui graduação em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade FUMEC (2005). Tem experiência na área de Comunicação e Marketing.
Vera Lopes
Professora no Programa de Pós-graduação da PUC Minas, doutora em Literatura Comparada pela UERJ, coordenadora do grupo de pesquisa “José Saramago, leitor de Karl Marx” (PUC Minas).
Especiaria 4
Saramago, leitor de Max: Mudar o mundo com corações que sangram
Prof. Mauro Iasi
Prof. Mauro Iasi 8
Obs.: Primeiro início.
Um dos princípios da posição de Marx e de Engels sobre a Literatura e a Arte é que a obra, não é possível fazer uma análise da obra sem que a gente compreenda o autor e o seu tempo na sua sociedade.
Obs.: Pausa; problemas técnicos; falta de som.
Obs.: Reinício. Transmissão: conferência de encerramento da III Jornada Saramago vive!
“Então, vamos lá... eu tava dizendo que a posição de partida de Marx e Engels sobre Literatura e Arte é que é impossível compreender a obra, fazer uma crítica da obra literária, sem que a gente compreenda o autor e esse, por sua vez, é impossível compreendê-lo fora da sua inserção no seu tempo, nas relações sociais em que ele vive, na parte desse fluir histórico onde está inserido. Isso nos dá uma perspectiva que o Daniel lembrou bem na sua primeira pista: que a busca da aparência à essência vem do fato de você inserir esse fenômeno que você quer compreender no seu movimento, naquilo que ele era, naquilo que ele se tornou e no processo do seu vir a ser.
A relação do Saramago como escritor com o Marx é inseparável da sua vida. Por isso, eu vou propor aqui um caminho, dentro do tempo que me foi dado. Que ler um texto, um pequeno texto sobre Saramago que foi feito em homenagem a Saramago por ocasião do seu falecimento. Imagino aqui alguma coisa em torno de
8 Este texto é a transcrição da conferência de encerramento da III Jornada Saramago vive!, Perturbar a ordem, corrigir o destino, realizada no dia 30/09/2022. O conferencista, Mauro Iasi, é professor Associado III, aposentado da ESS da UFRJ, participa do Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas (NEPEM/ESS – UFRJ e é educador popular do NEP 13 de Maio.
20 minutos para depois fazer algumas considerações de como que, a meu ver, essa trajetória de vida de Saramago e a sua produção literária não apenas se inspiram em Marx, mas transcorre na produção literária do autor o método e mais do que isso uma certa compreensão do ser humano como um ser social e dos seus desafios. Vou chamar atenção, fundamentalmente, para um aspecto que, a meu ver, está muito marcado na obra do autor.
Eu peço licença a vocês, já que se trata de uma discussão sobre Saramago e Marx, para ler um texto [ A jangada de pedra]. Aí o Daniel e a Vera fiquem totalmente à vontade para me interromper se eu [es]tiver saindo muito daquilo que eles imaginavam. E a gente volta a conversar. Na minha intenção inicial, vai dar tempo para a gente falar isso e ainda, após a leitura do texto, fazer algumas considerações sintéticas. O texto em homenagem a Saramago se dá através de um certo plágio de tentar assumir a maneira como Saramago transcorre (sic) [escreve]. Nós vamos ver que isso tem também uma ligação com o nosso tema.
Joana Carda traçou uma linha no chão com sua vara de negrilho. Os cães de Cérbere que nunca ladraram, ladraram no fundo enquanto os estorninhos passaram a seguir o pobre José Anaiço, ao mesmo tempo que Joaquim Sassa sobre seus pés incrédulos viu o continente rachar sobre Pedro Orsi e pronto a península ibérica se solta do continente europeu e navega por um oceano tenebroso da mesma forma que muito tempo antes navegantes e portugueses lançavam suas naus, sextantes, velas, em busca de um novo mundo ou fugindo do Velho Mundo que naufragava em terra firme, não se sabe. Mas o que você sabe não vamos adiantar muito essa história, pois nada disso seria possível sem outro fato que ocorreu um outro momento, uma mera quinta-feira. Uma quinta-feira como qualquer outra, pois um dia nada mais é que um dia, ainda que todos os dias, mesmo os mais corriqueiros, tenham a sua história e levariam anos para contá-lo, no mais da vez não passa disso, apenas um dia e só um dia e naquele em especial nada especial aconteceu. Nesse dia, que era uma quinta-feira, 16 de novembro de 1922, nascia José de Souza Saramago, filho de agricultores. Agricultores que tinham uma casa na Província de Azinhaga, que fica em Portugal (...) mas não tinham terra para plantar, mas mesmo assim plantavam na terra que não tinham para produzir os alimentos que não teriam [e] que não seriam deles, e que acabavam por ser expropriados assim como seu trabalho. E José recebe dois nomes Souza, de sua mãe, que como todas as mulheres de Portugal vivem à sombra e de vestido negro para serem logo esquecidas, e Saramago que vem do seu pai. E Saramago significa, traz
na carne da palavra, aquilo que representa na substância do real. Saramago é uma pequena flor, uma pequena flor silvestre que tem o hábito de nascer em escombros e assim nasceu Saramago. Saramago flor silvestre e depois conhecido e renomado escritor mundialmente conhecido como José Saramago. Saramago, diferente das flores, pôde sair da sua terra e foi com seu pai morar em Lisboa. Diferente de flores, os seres humanos podem arrancar suas raízes, levantar-se do chão e mudar para cidades, que é um escombro de outra natureza. Escombro de outra natureza (sic). Escombro feito daqueles sonhos de todos aqueles que fogem para a cidade e nela não se encontram e que vão morar numa terra que também não é sua para trabalhar naquilo que não é seu para enriquecer aqueles que se apropriam do seu trabalho. E José carregava no seu próprio nome uma sina, a sina de trabalhar, trabalhar e trabalhar. Trabalhar no que no que não é seu e ver os produtos do seu trabalho se distanciando dele, assim como José, o santo que dá o nome, é o nome que dá origem ao nome que nunca sabe se a sua obra é a sua mesmo ou de outro. Saramago adorava os livros e adorava estudar, mas tinha por maldição do nome que trabalhar, trabalhar, trabalhar e trabalhar. Trabalhou muito como serralheiro, como mecânico, como desenhador, como funcionário público, desde os seus 12 anos, e depois como funcionário de vários afazeres na Saúde, na Previdência Social, e de tanto trabalhar, não podia mais desposar os livros que ele tanto amava.
E foi aí que, como um amante furtivo, ele frequentava a biblioteca municipal, antes Palácio dos Galveias, na Freguesia de Nova Senhora de Fátima, bem em frente à Praça dos Touros, do Campo Pequeno, que fora no século XVII casa de campo – quando ali ainda era campo – de uma ilustre família do Senhor Marquês de Távora, que, em 1759, acusado de uma tentativa de assassinado do rei Dom Dom José Primeiro (o que mostra que nem todo José carrega a maldição de ter que trabalhar), foi [também] acusado de conspiração e perdeu sua casa, sua mansão, que, passando de mão em mão até 1928, [por] um decreto da Câmara Municipal de Lisboa é transformada em biblioteca. Saramago vai ali, pela segunda vez viaja, agora não mais da sua aldeia para Lisboa, mas através dos livros, por toda humanidade, a história, as aventuras... e se apaixona profundamente pelos livros. Se apaixona pelos livros e através disso também começa a apaixonar-se por pessoas, que como os livros são objetos externos nos quais a gente se vê e muitas vezes tornam possível nos ver e nos entender mais no outro do que em nós mesmos. Assim como as pessoas e as paixões, assim foi que encontrou Ilda Reis em 1944. Logo depois, a terra tremeria, mas não porque Joana Carda traçou uma linha com sua vara de
cedrilho, mas porque um pequeno e ressentido pintor faz o chão tremer e levanta o perigo da barbárie contra a humanidade. E assim como ele queimava livros, queimava livros se não os amava como Saramago. Daí teve dois filhos, nessa aventura e exatamente nesse momento em que quase a humanidade se transforma em escombros. O primeiro é Violeta [Violante], sua filha. O segundo é o seu primeiro livro, um primeiro romance, chamado A viúva , que o editor não aceitou o nome e passou a chamar de Terra do pecado, coisa que Saramago nunca gostou, e foi apresentado aí mais uma vez aquele momento em que você produz algo e algo se estranha a você mesmo.
Eu queria aqui fazer a primeira consideração sobre essa trajetória de vida. Alguém, nascido de filhos camponeses, que tem que trabalhar desde os 12 anos, que se apaixona pelos livros numa biblioteca, que tenta escrever, né? E segue na sina de escrever, a mesma sina de José, o nome que trabalha. Que vê seu aquilo que ele procurou produzir para se entender se distanciar e voltar a ele de uma forma estranha, como nesse primeiro romance, que ele acaba por pensar um nome e a editora produzir com outro nome. Ele fica bravo com os romances e começa a escrever poesias. Ele tem três livros de poesias: Os poemas possíveis (o primeiro em 1966), Provavelmente alegria (em 70) e O ano de 1993 escrito, significativamente, em 1975. Não se encontrou também, verdadeiramente, na poesia, e por sua sina, como já falamos, tem que trabalhar, trabalhar e trabalhar. Por isso, para ficar perto das palavras que ele amava, ele vai trabalhar num jornal, vai trabalhar em jornais, em editoras, em revistas, para ficar perto das palavras que ele amava. Daí vai surgir alguns elementos interessantes, porque o Saramago transita para uma estética de crônicas (sic). Dia a dia vai tratar de vários e pequenos assuntos [e] vai acabar produzindo mais filhos literários como A bagagem do viajante (1973), Deste mundo e do outro (1971) As opiniões que o DL teve (1974), Os apontamentos [1976] e tantos outros.
Nesse momento você tem, na construção estética de Saramago, um romance... em que, nesse primeiro momento ainda segundo ele muito descritivo, né?! (sic) Como disse o Daniel, ainda preso à aparência, sem aprofundar isso nas camadas que a história podia levar, uma poesia, né?! e crônicas. É interessante porque, eh... Saramago nesse momento tá numa crise criativa, né, ele é um romancista, é um poeta, é um cronista, é alguém que trabalha num periódico, num jornal e vai se contentar com pequenas matérias, é pra fazer isso nas horas vagas e não como uma Especiaria 4
(sic).
Nesse momento ele tem um... uma... uma... uma atitude muito parecida com a do Jack London, é o Jack London hm depois de tentar acreditar que era depois do trabalho que ele poderia subir nos andais, andares acima da sociedade e, percebendo o quanto isso na verdade era uma brutal exploração do seu trabalho, ele maldiz os tempos pra dizer “que eu quero que um raio me fulmina se alguma vez mais na minha vida, eu trabalhar mais do que o meu corpo pode”. Saramago, por ser português, por isso mais prudente, faz algo um pouco diferente, a frase do Saramago é mais ou menos essa: “estava eu (dizia Saramago) à espera que as pedras do quebra-cabeça do destino, supondo que haja destino (diz ele né?! não creio que haja) se organizasse, é preciso que cada um de nós ponha suas próprias pedras e aqui eu coloquei foi essa, nunca mais vou procurar um trabalho” e passou a procurar um trabalho e passou a viver das palavras. Passou a viver das palavras, é aí que ele vai ter um momento decisivo na sua trajetória de vida e na sua produção que é, né, é lógico, eu tô pulando uma parte importante, tem seus amores né, Isabel de Nóbrega nos anos 66 e outras que nós veremos, né, mas o que ele vai chegar é... é... a um encontro decisivo que é em 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos (sic). Revolução dos Cravos vira de ponta cabeça sua própria vida, ele vai voltar ao diário, onde trabalhava, agora como diretor, daquele diário onde ele trabalhava. Isso vai produzir em Saramago uma reviravolta muito grande. No entanto, é bom que a gente lembre... né?! É bom que a gente lembre que, desde 1969, eh... Saramago se aproxima e se filia ao partido comunista português, então, 75 já chega já chega em Saramago com uma profunda convicção... não apenas com a teoria marxista como a compreensão da necessidade de transformações profundas em Portugal. A sua própria história e a história de seus pais serão a base de um dos romances que vão colocar isso, traduzir ... essa luta da terra, do camponês até a revolução de 74. No Levantados do Chão, por exemplo, não é... em novembro de 75 há uma reviravolta, né, os militares... eh... acusam o diário de fazer uma... um exagero, uma exacerbação dos princípios da revolução de 74 e demitem toda a equipe do Jornal. Então Saramago se vê diante, na sua própria vida, de algo que ele produziu e se distanciou dele.
Se a gente procurar, principalmente a partir do Memorial do Convento, ou se a gente [procurar] a partir eh... dos romances que vão ser produzidos numa velocidade muito grande a partir daí, ele encontra, na síntese de tudo que ele foi até então, filho de camponeses, trabalhador desde criança, amante dos livros, [na sua] tenta-
tiva de romances, de poemas e de crônicas, ele produz um estilo muito próprio, né, como eu brinco no texto, algo que a gente não sabe, exatamente, se é uma narrativa, se é uma fala, se é um diálogo, se são reflexões filosóficas ou se são conversas onde o escritor está expondo de uma forma... de um fluir [de] seu pensamento, onde a partir desse fluir da narrativa literária a história vai se constituindo, os personagens vão adentrando, vão dialogando, como no diálogo, sem necessidade no próprio corpo do texto de travessões, indicações de quem está falando, se está falando ou apenas pensando, como digo no texto, pra que gere uma relação diferente com o leitor, né?! (sic); o leitor não sabe se ele está lendo o que o autor pensou ou o autor está escrevendo o que ele já pensou e um dia pensará, isso vai... isso vai construindo uma forma de narrativa que, certamente, nasce em Memorial do Convento em 1982, uma série de livros que são todos muito famosos e que, certamente, o grupo de estudo passou por eles e nesse seminário foram tratados, né?! – O ano da morte de Ricardo Reis (1984), A jangada de pedra (1986), A história do Cerco de Lisboa (1989), né, eh... O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), que passare- falaremos um pouco dele, o citado Ensaio sobre a cegueira [1995], A caverna , né, O homem duplicado, o Ensaio sobre a lucidez , naquele raciocínio do Daniel eu agregaria O homem duplicado, né, quer dizer eu acho assim que esse período né, que vai do Ensaio da cegueira até o Ensaio sobre a lucidez , passando pela [obra] A caverna , que é de 2000, e O homem duplicado (2002) até A intermitência da morte (2005), Caim , seu último romance publicado, em 2009, além de peças de teatro, contos, livros sobre viagens, etc. Eu passarei, aqui, a ler o restante do texto... que é curtinho, não se preocupem, pra poder tecer a partir daí alguns comentários e conversar com vocês, né?!
O leitor só se reconhece na obra em que o autor se reconheceu, assim como o humano se reconhece no humano, o homem se reconhece primeiro em seu semelhante, como já disse Marx, pois através da relação com o homem José, na condição de seu semelhante, toma, o homem Mauro, consciência de si mesmo como homem, de forma que é porque o autor se coloca, inteiramente, em sua obra, é que o leitor reconhece naquilo que é outro, aquilo que ele é. Como um cão velho, personagem da A caverna , né, se vocês lembram, que tem por nome “Achado” porque era, por isso mesmo, achado, tivesse ele pai para chamá-lo de flor, nome de flor teria, mas como foi encontrado, achado era o seu nome e que passa a desenvolver, uma incrível sensação, qual seria? Uma vaga sensação de pertencer a algo maior que ele, como nós de uma classe, de um escritor a seu país, um homem à humanidade, esse velho
hábito de nos procurar fora de nós mesmos, em palavras, livros, poemas, pessoas, flores, às vezes nos leva para longe de nós mesmos, em coisas que se voltam para nós como mercadorias, como Deus.
Por isso, Saramago vive buscando o caminho de volta desse estranhamento, desse estranho fenômeno, no qual uma relação entre seres humanos assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas, como também disse Marx, que falava, como também disse Marx né, uma sociedade uma relação social entre seres humanos, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas, e o próprio Saramago dirá, como um dos seus personagens, né, no conto “Coisas”, integrante do livro Objecto quase , que é um livro essencial pra fazer essa discussão sobre o método, né, onde o Saramago diz o seguinte, naquele momento era preciso reconstruir tudo, não tinha remédio, quando nós éramos coisas, mas nós temos que gritar, declarar, não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas (sic).
Foi assim que reescreveu o Evangelho e, nele, Jesus era um homem e era filho de um homem, e como ele chamava José que concebeu um filho com sua Maria, que é como os homens fazem quando o Espírito Santo não está vendo. Um filho que tinha medo e tinha dúvidas, e que errava, como por exemplo quando expulsou os demônios dos porcos e os fez jogar-se no mar, recebendo a ira dos produtores, né, dos proprietários dos porcos, numa cena maravilhosa do Evangelho segundo Jesus Cristo, onde num barco organiza-se um encontro para tentar uma trégua entre Jesus, o Diabo e Deus, ... e o Jesus, o Diabo e Deus estão discutindo, Deus diz o que vai acontecer em defesa da igreja que vai ser construída em nome do menino que vai ser morto, que vai ser sacrificado pelo bem dos homens, e aí vai passar naquele estilo maravilhoso do Saramago, quase a história da humanidade inteira, de guerras, catástrofes, inquisições, assassinatos em nome da fé, da igreja etc... o Diabo diante daquele relato falou, olha... vamo, vamo resolver esse problema, né, quer dizer tudo isso é por causa da guerra do bem e do mal, de Deus e o Diabo, então vamo resolver esse negócio agora, eu me entrego, eu renuncio às minhas pretensões, eu me rendo, volto e me submeto ao poder de Deus, não é.. e o interessante dessa narrativa é que exatamente no momento em que Deus está ouvindo a proposta do Diabo que, pra salvar o menino, se entrega, ouve-se uma voz acima deles, dizendo não, né, o que é interessante, né?! Quer dizer, vamo, vamo relembrar quem tá na canoa é Deus, o Diabo e Jesus, quem estaria em cima desses três e que tem poder de veto: Não!, não é... E isso é a gota d’água... Saramago vai ter que, novamente, sair de sua terra, não mais da sua aldeia pra Lisboa, não mais do seu
trabalho pra viver nos livros, mas agora sair de Portugal em direção à ilha, em que se exila por conta da profunda reação que teve a publicação d’O Evangelho segundo Jesus Cristo – o povo [de] Portugal e cristão parece não ter gostado de ver Cristo como um homem, tanto que estava acostumado a ver outras pessoas, pessoas que estava a ser coisas e a projetar, assim como Feuerbach, o sol de sua existência para alguma coisa fora delas, não gostavam daquilo que leram. Mas a culpa não é do livro, como o culpado não é o espelho que nos mostra o velho que nos tornamos (sic).
Saramago navega mais uma vez para fora de Portugal, exila-se em sua ilha, em seus livros e no coração de Pilar que, procurando, né, o José atrás do autor... do Saramago, lendo, não por um acaso, Memorial do Convento, encontra, e ao encontrar Saramago, encontra a si mesma, né, e vai ser o amor da vida de Saramago até o final de seus dias, ele nunca parou de escrever, amar os livros e as palavras, as flores, as pessoas, nunca parou de pensar nem em um pequeno (sic) flor silvestre, José condenado ao trabalho, cravo rebelado com soldados em um abril ficaram nus e rodeados pelos homens e as mulheres que antes as penas tinham sido roupas e armas. Quando ganhou o prêmio Nobel, em 98, o mesmo Nobel em que inventou a dinamite no mesmo ano em que Marx publicou o primeiro livro de O Capital , que como ele nunca deixou de ser comunista, mesmo sobre os escombros de muros e de estado, acostumado que estava a brotar e renascer e renascer de escombros. Saramago, um dia disse: “eu sou o que pode se chamar de um comunista hormonal, da mesma forma que tenho no corpo não sei onde, o hormônio que me faz crescer a barba, há um outro hormônio que me leva ainda mais, ainda que eu não queira, a ser permanentemente comunista”. Foi então que Joana Carda riscou o chão mais uma vez, a terra não tremeu, penínsulas não partiram como jangadas enfrentando o mar tenebroso, os cães de Cérbere não ladraram, nem os extorninhos seguiram ninguém, Blimunda que esquecera de comer seu pão viu um grande vazio dentro das pessoas e todos ali se juntaram, cegos, votantes, Cipriano Algor, oleiro por profissão e sua filha Marta, cães achados e perdidos, Jesus e o Diabo, Ricardo Reis, homens duplicados, Baltazar Sete-Sóis, Frei Bartolomeu Lourenço, todos nos olhando incrédulos desde suas casas de papel, seu pai partia tranquilamente do mundo em sua jangada, do nada para lugar algum, no colo de sua amada, porque as pessoas, assim como palavras, flores, revoluções... também passam, porque tudo flui, tudo segue, mas algumas flores como certas palavras e determinadas pessoas, desenvolvem a arte de ficar, que foram elas mesmas que se viram nos outros, e
generosos mostram a nós mesmos que nos deixaram morar em suas palavras como se fossem nossa casa e nossa terra, terra que seus pais nunca tiveram e que meus camaradas ainda não têm, mas que um dia teremos, como ele hoje tem, não apenas aquela onde descansa, mas no coração de todos nós, seus personagens. Dizem que, em Azinhaga, no Conselho Colegan, na província de Ribatejo, na mesma hora, uma flor silvestre brotava de um escambro e um cão uivou um ganido tão triste, mas tão triste, que todas as mulheres de Portugal, ao mesmo tempo, soltaram um suspiro, Saramago morreu, pequena flor silvestre, escritor e sempre comunista, no dia 18 de julho, um domingo.
Quando a gente, lógico né, numa brevíssima trajetória da vida do autor, nascido filho de camponeses sem terra em Portugal, passando pela experiência que é uma revolução, né, a Revolução dos Cravos, torna-se um escritor e encontra, na forma literária, a tradução dele próprio, quer dizer, a autenticidade de um escritor, não é quando ele é capaz de criar algo... né, esteticamente perfeito, não é a questão da... da inovação pela inovação, autenticidade vem da capacidade dele, enquanto indivíduo singular, pensando o seu tempo e como seu tempo o afetou, projetar isso para além dele, projetar isso pra aquilo que constitui o ser coletivo do qual ele é uma expressão e, nesse momento, é que a particularidade do estético, é a particularidade que sintetiza ali, a singularidade do indivíduo escritor e a universalidade da sua época, isso é que traduz na obra de Saramago alguém que, em vários momentos, como nas passagens em que eu, aqui, destaquei, demonstra ser um leitor de Marx (sic).
É, Daniel tem razão quando ele... eh... naquel-... naquela, naquelas duas premissas, mas eu chamaria a atenção que a dialética materialista de Marx incorpora-se de tal forma no escritor, que ele não precisa explicitá-la como seria o caso de uma introdução teórica de um artigo acadêmico, de um artigo que trata da teoria social, da história, do problema da luta de classes, mas está lá um elemento central (sic). E é isso que eu queria chamar atenção: a meu ver, qual é esse elemento central que [a] leitura de Marx projeta na obra literária do autor? Eu estou convencido de que é a alienação. Alienação, esse processo magnífico e complexo, em que o próprio ser se coloca pra fora dele e que passa por, pelo menos, quatro momentos decisivos, né... eh... a exteriorização, aquilo que é interno, se exterioriza no mundo, e ao se exteriorizar no mundo se objetiva, e, ao se objetivar distancia-se daquele que criou, podendo gerar, dessa maneira, o estranhamento, entre aquilo que produziu e foi gerado e, portanto, objetivado, e aquele que o gerou, de maneira que, aquilo
produzido, se volta contra o sujeito, numa força hostil que passa a controlá-lo, ao invés de ser controlado (sic).
Eu tô convencido que esse é o tema de Karl Marx, da sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel , da sua transição a partir do contato com Engels e da crítica dos elementos iniciais da crítica da economia política, onde Marx pode, no diálogo crítico da noção de alienação em Hegel, diferenciar algo fundamental, que vai, a meu ver, orientar toda [a] obra do autor até sua morte. A diferença do conceito de alienação em Marx, para Hegel, é que, em Marx, diferente de Hegel, a alienação não é um processo inevitável que, constitui, ao se constituir, o próprio ser social, é impossível ser social e, portanto, histórico, na concepção de Hegel, não se produzir enquanto exteriorização do espírito que ao se por no mundo se objetiva e como isso é constitutivo do ser, diria Hegel, ontológico, né, esse ser que se coloca no mundo, o espírito que se coloca no mundo e se objetiva e, portanto, torna possível separar-se daquele que criou, no caso de Hegel, o espírito absoluto, eh... necessariamente se volta como algo estranho, a única forma de enfrentar isso, que, já que na visão de Hegel é inevitável, que o ser é sempre um ser, que atua num contexto particular, e portanto não vê esse movimento do todo, que é o espírito absoluto se colocando no mundo, ele sempre vai se (pausa breve) eh... se confrontar com contextos objetivos que se apresentam a ele como estranhos. Portanto, alienação, na compreensão de Hegel, é inevitável e na combinação desses, pelo menos desses quatro elementos (sic).
Em Marx, não, quer dizer, o ser humano, esse ser social, que não é expressão de nenhum espírito absoluto, mas do seu próprio fazer, se coloca no mundo, se objetiva, se externaliza e se distancia daquilo que produziu, mas nada na própria constituição ontológica do ser, leva que aquilo que foi produzido ainda que no conjunto do devir histórico e, não por um único ser particular, se apresente de forma estranhada ao ser que o produziu. Isso tá ligado a um momento histórico muito determinado, o momento da mercadoria, o momento de uma certa divisão social do trabalho, o momento de uma forma de propriedade, né... que Marx vai estudar e entender na sua busca, na epopeia de busca da compreensão do ser do capital (sic). Portanto, a conclusão de Marx nisso, que nos interessa diretamente aqui, é que o estranhamento pode ser superado, o estranhamento é... é uma particularidade da forma de uma determinada sociedade e não da constituição do ser, né, os outros elementos, a exteriorização, o distanciamento... são próprios do ser social e histórico, mas o estranhamento não, o estranhamento é do reino
do capital, o que vai fazer com [exista] a pergunta de Marx: “Como superar esse estranhamento?”. Na perspectiva marxiana, isso só pode ser alterado nas relações sociais que produzem esse estranhamento, fundado na propriedade privada e na mercadoria e, depois, na sua compreensão, pela mercadoria na forma capitalista e as suas expressões que daí derivam, assim como o Estado.
Quando nós voltamos na obra de... de... de Saramago, é uma eterna... um eterno perder daquilo que os seres humanos produziram enquanto sociabilidade, né... das estatuetas da caverna [ A caverna], né... talvez a metáfora em que amarre isso da forma mais perfeita esteja na caverna [ A cavern a], mas Portugal se distanciando da Europa, né... e de cegos sendo guiados por uma única pessoa que vê, de serem duplicados naquilo que eles são e naquilo que eles projetam, né, uma longa luta dos trabalhadores né, que vem desde a luta pela terra de seus pais, ou mesmo antes... em séculos passados... até uma revolução que ela própria se distancia e se volta e se nega contra si mesma... esse pano de fundo histórico aparece na obra literária de Saramago como grande desafio, que vai fazer com que ele fale uma frase, a meu ver, mais significativa: “a maior tragédia do ser humano é não poder estar onde a sua vista alcança, é possível ver e compreender pra onde deve caminhar a humanidade, mas nem sempre podemos chegar lá”... Na mesma frase ele vai dizer: “pela maldição, os jovens podem mas não sabe[m] o que podem e o[s] velhos não podem fazer o que sabem”, né, é isso que vai dar esse ser em construção na busca por emancipação da sociedade. Os seus personagens são a multiplificação, o desdobramento desse ser social, em diferentes personagens que têm diferentes aspectos desse estranhamento, seja na Blimunda que vê o interior das pessoas que não comem um pão, seja em alguém que é o único que vê quando outros não veem, ou como uma reação geral de sensatez, de lucidez, quando todos se recusam a ir num dia da votação... [esses] são elementos que, parcialmente considerados, nada mais são do que narrativas, ficções, mas que, visto[s] no seu conjunto, são o produto do dilema da humanidade frente aos produtos que dela se estranharam, que dela se alienaram, de forma explícita nas passagens que eu li, [como] a época em que os homens eram coisas [e] nada podemos fazer, mas aqui vai a decisão: os homens nunca mais serão colocados no lugar das coisas, numa sociedade da livre associação dos produtores como pensava Marx (sic). Eu tô [estou] convencido, e aí a gente abre o debate que eu, não, eu não tô vendo o Daniel para ver se ele me dá sinal de parar, mas assim eu tô convencido de que é mais do que uma mera tradução, né, da dialética materialista pra uma forma estética, a mediação que... que
Saramago encontra, tanto na forma quanto no conteúdo, é uma incessante busca em confronto com a alienação, não é, eu perdi de novo o som, mas eu vou mexer. Aqui e eu vou conseguir o som pra falar com vocês, senão eu coloco o fone. Mas, eh... em poucas palavras, isso que eu queria, dar o nosso ponto de partida para fazer essas conexões entre Saramago escritor, Saramago comunista, né, e a sua fonte... a sua inspiração teórica que, inegavelmente, está em Marx. Obrigada pela atenção e vamos ao debate.
Transcritoras:
Prof. Isabela Padilha Papke
Doutoranda na área de Estudos Literários, na Linha de Pesquisa de Literatura, Sociedade e História da Literatura, no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É mestra na área de Estudos Literários pela Universidade Estadual de Maringá (2019-2021), tendo realizado sua pesquisa com a obra O homem duplicado, de José Saramago; integra o grupo de pesquisa “José Saramago, leitor de Karl Mar x”.
Prof. Dra. Marilda Beijo Fróes
Doutora em Letras, na área de Literatura e Vida Social (Unesp – Universidade Estadual Paulista), professora no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, campus Catanduva, pós-doutoranda na Unesp e integrante do grupo de pesquisa “José Saramago, leitor de Karl Marx”.
Especiaria 4
Especiaria 5
Saramago, um homem com sangue na alma
Vera Lopes
Vera Lopes 9
Esta conferência não se produz isoladamente. Ela é fruto de uma série de reflexões realizadas no grupo de pesquisa “Saramago, leitor de Marx”, amorosamente tratado por SaraMarx. Esse grupo é composto de pessoas interessadas em enfrentar o desafio que é estudar o vínculo entre Saramago e Karl Marx. Esta minha fala se dá em homenagem a esse grupo SaraMarxiano e é um convite às pessoas que nos ouvem para fazerem parte dele, de forma a contribuir para que o sangue vital das palavras de José Saramago se espraie ainda mais pelo mundo.
Bem, o título desta conferência, “Saramago, um homem com sangue na alma”, não se constituiu quando precisava fazer a escolha para nomear esta circunstância acadêmica. Ele tem um histórico.
Eu o pronunciei certa vez, quando participei de um evento realizado na Universidade de Brasília, coordenado pelo professor Augusto Niemar. Em determinado momento do debate, algo me foi perguntado e me saí com essa descrição. Não foi nada preparado, mas me pareceu um retrato preciso do homem e do autor português.
A frase não morreu ali naquela instância de discussão. Alguém a registrou no chat do evento e ela ecoou em um e outro espaços virtuais.
Mas a construção desse conjunto de palavras não começa bem naquele debate, ela tem um histórico.
Tudo começou há muitos anos, durante meu mestrado, nos primeiros contatos com as obras de Saramago, duas em especial. A primeira delas, O ano da morte de Ricardo Reis, quando, sem ainda compreender o porquê, senti-me frustrada ante a vã tentativa do autor-criador de engajar Ricardo Reis no mundo político que o cercava. A segunda delas, História do Cerco de Lisboa , meu objeto de dissertação,
9 Conferência de abertura da III Jornada Saramago vive! Perturbar a ordem, corrigir o destino, realizada no dia 28/09/2022. Vera Lopes é professora no Programa de Pós-graduação da PUC Minas e coordenadora do grupo de pesquisa “José Saramago, leitor de Karl Marx” (PUC Minas).
quando me deparei com vozes de eloquência ímpar, naquele momento também ainda sem compreender, mas já com alguma percepção, que o autor-criador fazia um ajuste de contas com a História oficial, submetendo-a à História Total, embora eu não soubesse ainda sequer da existência dessa categoria, História Total.
Alguns anos se passaram, costurados sempre pelas vozes saramaguianas, mas sem estudos aprofundados. Mais recentemente, há cerca de três, quatro anos, vindo atuar como professora no Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas, pude adentrar verticalmente no mundo da pesquisa, tomando novamente Saramago como objeto de estudo, sua biografia e seus discursos, literários e não literários.
Bem, nesse meio de caminho, comecei a conhecer o pensamento político-econômico de Karl Marx. Isso se deu da seguinte forma: meu grande amigo, Prof. Daniel Neri, se embrenhando nos estudos sobre os crimes das mineradoras em Minas Gerais para sua tese de doutorado, toma como base a obra O capital . Sob a influência desse amigo, passei a me debruçar também sobre o pensamento marxista. Ocorre que estudar marxismo implica apreender sua concepção teóricometodológica, o que exige um enorme esforço de clarificação metodológica, como bem nos ensina Florestan Fernandes.
De forma bastante simplista, porque me interessa aqui apenas relatar o processo como cheguei ao Saramago, um homem com sangue na alma , descrevo o método de Marx, pensando na formação do pesquisador que ele foi e que nos ensina a ser. José Paulo Netto, um estudioso de Marx, em sua obra Introdução ao método de Marx , promove a compreensão do método como uma longa elaboração teórica, desenvolvida sobre um problema central que, no caso de Marx, é “a gênese, a consolidação, o desenvolvimento e as condições de crise da sociedade burguesa, fundada no modo de produção capitalista”, tomado em sua estrutura e dinâmica. Sob essa condição, o caminho que percorreu foi o de ir além da aparência fenomênica, imediata e empírica – por onde necessariamente se inicia o conhe cimento, sendo essa aparência um nível de realidade e, portanto, algo importante e não descartável – e apreender a essência (ou seja: a estrutura e a dinâmica) da matéria analisada. Numa palavra: o método de pesquisa que propicia o conhecimento teórico, partindo da aparência, visa alcançar a essência do objeto, movimento de compreensão dos estratos do conhecimento de certo objeto, atentamente analisados, de forma a percorrer o caminho dialético e dinâmico, da aparência à essência. Trata-se de um exercício, um verdadeiro exercício analítico, que exige a
saída do senso comum, dos interesses e gostos do pesquisador, um processo que não tem fim e que foi, tem sido e é fundamental para minha pesquisa em Saramago, não só porque me ensina a pesquisar, mas também porque o estudo desse método iluminou as leituras das obras do autor português. Na verdade, acompanho as luzes deixadas por Saramago, a trilha marxista que perpassa tramas, narradores, personagens, espaços e tempos. Por meio desse método, comecei a compreender como o material discursivo, vida e obra de Saramago, sofria influência de Marx e como isso reflete uma alma carregada de sangue.
O que se deu foi que, certa vez, lendo o belíssimo discurso “Da estátua à pedra”, no qual Saramago alinhava várias considerações às ideias de Karl Marx, como o conceito literariamente posto sobre História Total (categoria sobre a qual, agora, tenho certo domínio) e ainda sobre sua visão dialético-materialista, ele explica-se, atentem ao SE - explica-SE. Nessa proposta, divide o tempo de construção de suas obras, alojando parte delas no que ele denomina a fase da estátua e outra, a que ele intitula fase da pedra . Ao tratar da primeira, descreve cada uma de suas produções, associando-as à palavra História, sob ângulos diversos (p. 39). Isso significa que o momento da estátua está intimamente associado à História, mas numa dimensão diferente, saramaguiana, lírica e metafórica, mais precisamente conformada ao Passado, assim descrito: [...] vejo a humanidade como se fosse o mar. Imaginemos por um momento que estamos numa praia: o mar está ali, e continuamente aproxima-se em ondas sucessivas que chegam à costa. Pois bem, essas ondas, que avançam e não poderiam mover-se sem o mar que está por detrás delas, trazem uma pequena franja de espuma que avança em direção à praia onde vão acabar. Penso, continuando a usar esta metáfora marítima, que somos nós a espuma que é transportada nessa onda, essa onda é impelida pelo mar que é o tempo, todo o tempo que ficou atrás, todo o tempo vivido que nos leva e nos empurra. Convertidos numa apoteose de luz e de cor entre o espaço e o mar, somos, os seres humanos, essa espuma branca brilhante, cintilante, que tem uma breve vida, que despede um breve fulgor, gerações e gerações que se vão sucedendo umas às outras transportadas pelo mar que é o tempo (p. 27).
A grande preocupação do nosso autor nessa fase primeira é, então, o Passado, [...] e sobretudo o destino da onda que se quebra na praia, a humanidade, empurrada pelo tempo e que ao tempo sempre regressa, levando consigo, no refluxo, uma partitura, um quadro, um livro ou uma revolução (p. 27).
Entre as várias obras elencadas por Saramago para essa etapa e que, portanto, ilustram esse modo de ver a História como Passado, situam-se O ano da morte de Ricardo Reis, Memorial do Convento e História do Cerco de Lisboa . Nesta, o autor pretendeu contar:
[...] a História do Passado, esse tempo que é todo o Tempo, o tempo não organizado e catalogado, onde Miguel Ângelo se confunde com o Homem de Orce, o conquistador aparece junto do separatista que chegará depois, e o anônimo inventor da permuta na troca direta sobressai sobre a nuvem de economistas que trabalham para lograr uma teoria científica que justifique algo tão inumano como o neoliberalismo.10
Teria sido História do Cerco de Lisboa a última produção da primeira fase, não fosse a inusitada inspiração para O Evangelho segundo Jesus Cristo, material em fuga dessa linha tão clara que costura as obras da fase da estátua , pois ela não contempla exatamente esse Passado mareante e oceânico. Pensemos nela, talvez, como um entreato, uma tênue fronteira, uma travessia para a segunda fase, a da pedra , tão bem delimitada quanto a primeira. Isso porque o sangue da alma saramaguiana começa a jorrar nas palavras de O Evangelho segundo Jesus Cristo de forma mais sensível do que nas anteriores e ainda menos sensível que nas que lhe seguem. No entanto, não é possível dizer que alguma dessas obras da primeira fase é feita de leveza. Todas revelam um homem cujos sentidos percebem um mundo dilacerado, como o [país] Portugal da opressão e da tortura visitado por Ricardo Reis. Está ali, com certeza, a essencialidade do espírito de luta, conforme a fala (em entrevista ao jornal El Independente, de Madri): “Damos voltas e mais voltas, mas, na realidade, só há duas coisas: ou você escolhe a vida, ou se afasta dela” [O ano da morte de Ricardo Reis]. E o que Saramago vai fazer é se aproximar cada vez mais da vida, como se vê no segundo momento de sua obra, a fase da pedra . Há que se retomar aqui acentuadamente a palavra do autor português: o que muda de uma fase a outra não tem a ver com qualidade, mas com perspectiva. Segundo Saramago, parece-lhe que “durante catorze anos tivesse se dedicado a descrever uma estátua” [...] “O que é a estátua? A estátua é a superfície da pedra, o resultado de retirar pedra da pedra. Descrever a estátua, o rosto, o gesto, as roupagens,
10 Edição e página não informadas pelo palestrante.
a figura, é descrever o exterior da pedra, e essa descrição, metaforicamente é o que encontramos nos romances” (Da estátua à pedra , p. 42). listados até O Evangelho segundo Jesus Cristo.
O que se segue ao Evangelho saramaguiano é um conjunto de obras cuja perspectiva autoral verticaliza-se na percepção não do Passado, esse objeto fundamental da primeira fase, mas na percepção crua de um perene presente. Não se trata de uma utopia; pelo contrário, um sempre aqui e agora nos acossa. Nenhuma suavização se desenvolve nesses enredos: o mar, que antes trazia e levava, parece não mais trazer nem levar. O Passado se dissolve em um continuum sem fios ligando as pontas, nem há pontas. Parece que tudo se estagna no aperto sobre o peito, na garganta tomada de nós, pois nada há que nos salve, pessoas-personagens que somos de suas obras – a partir desse momento não existirá sonho de revolução para os Mau-Tempo e seus camaradas; nem o poder de Blimunda para Baltazar; nem a morte para Ricardo Reis; nem a Galiza para Ouroana e Mogueime. Não há portas que se abram, não há Minas para onde ir, todo o mar está seco... Em cada uma das tramas da fase da pedra , uma aguda penetração na vida destroça o leitor, posto frente a frente consigo mesmo, inserido no mundo mais que circundante, um mundo cercante, uma evidente análise crítico-estética do capitalismo, desvelado em suas camadas, impiedosamente, até o âmago da pedra. A alma saramaguiana, forjada em sangue, assume essa marca de forma mais intensa. E isso é preciso, para que o autor possa, tomado de compaixão, esteticamente compartilhar conosco seu pensamento de que “no fundo somos todos uns pobres diabos”, mas que trata-se de uma pobreza diabólica para a qual é preciso dizer não, pois, segundo Saramago “a palavra mais importante é não, saber dizer não à injustiça, não à desigualdade”. E não se faz isso com uma alma serena, consolante e consolável.
Então, ao término da minha leitura atenta do discurso “Da estátua à pedra”, aconteceu-me então um Eureka, um Fiat lux, um insight : eu compreendi a veia marxista de Saramago, e tornou-se nítido para mim o entrelaçamento entre ambos – um, cientificamente pensando a brutal realidade do Capital; outro, esteticamente denunciando essa brutal realidade, num percurso que vai da aparência/estátua à essência/pedra. A analogia entre os dois vocábulos diz tudo. Saramago, leitor de Marx, apropriou-se da teoria da economia política de seu camarada, tomou para si
seu método de pesquisa e o expressou na arquitetura de suas obras, esteticamente. As obras dessa segunda fase são tramas que escarafuncham camada por camada a sociedade em que estamos inseridos, capitalista, performadora de homens lobos de homens.
E assim, o autor explica-SE, ou seja, não só explica a sua obra, mas explica a si mesmo, sua condição de homem e escritor, sua alma vibrante, apaixonada, tomada de dor, o que lhe permite dizer: “Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu fizeram-no de carne, e sangra todo dia”. Coração-alma, assim sangrante. Esse é Saramago.
O sangue que emana da alma saramaguiana poreja pelas páginas da fase da pedra. A exemplo de Ensaio sobre a cegueira e Ensaio sobre a lucidez , emolduradas pelas relações sociais que emergem do modo de produção capitalista na contemporaneidade e, nas telas em que se passam as tramas, esse sistema político-econômico é encenado por uma situação de crise, uma peste, e por um movimento de desmascaramento da democracia burguesa, especificamente no que se refere ao seu tão cantado alicerce – o voto. Em Ensaio sobre a cegueira , Saramago sai da totalidade da sociedade burguesa como se em busca de suas determinações. Abstrai do concreto dessa sociedade e formula o concreto pensado, recortando-a em um momento de crise, desnudando-a detalhadamente em suas contradições. Faz isso por meio da figura do narrador, acertando a lente de seu olhar, sob o qual passamos a enxergar a realidade, como em close: dominada por uma peste, a cegueira branca, parte dessa sociedade é colocada em uma camarata. Ali se reproduzem situações avessas e comuns na sociedade como um todo – sujeira, fome, poder e violência social e política, abandono, disputa, vilania, exploração, morte... Ali a voz narrativa expõe um universo de contradições, como a re-ação dialética de pequenos grupos, a exemplo das mulheres que, ao mesmo tempo em que endurecem ante a violência do patriarcado (encenado de forma a ser posto, com toda sua sordidez, em enquadramento), não perdem a ternura. Recolocados os personagens fora da camarata, voltando ao espaço anterior ao aprisionamento, portanto o de suas vidas costumeiras, as cenas passam a ser panorâmicas. Entretanto, o mundo anteriormente frequentado agora é encarado sob nova escala de visão. Da síntese obtida da camarata, das determinações ali levantadas, o autor-criador retorna ao concreto ampliado, à totalidade externa novamente, um movimento marxiano incontestavelmente, e assinado por uma alma acalorada, nobre, generosa, elevada, compassiva,
constituída de um sangue veículo da alma, que pretende comungar a consciência da brutal realidade.
Decorrente dessa narrativa que aclara a cegueira de que somos tomados, Ensaio sobre a lucidez constitui nova análise da sociedade burguesa. Em busca de novas determinações, instauram-se os mesmos e outros desnudamentos, surgem outras mediações. O voto, instrumento máximo de participação e legitimação da democracia burguesa, tem dialeticamente exposta sua maior fragilidade, ou seja, a sua negação. Nessa análise dialética, o alvo é o poder político, sobre o qual é colocada nova lente. O Estado democrático de direito, reagindo à massiva votação em branco, produz o desvelamento da sua maior farsa, a legitimidade do voto, que o encena como espaço civilizado e civilizatório. Ao reagir, deixa à pele sua contradição, por meio de uma conjunção de discursos e ações antidemocráticos e, pior, de despudorada barbárie.
Assim, cada enredo se dá em movimentos de ir e vir: da aparência à essência, e, de volta ao exterior, saturado de determinações, com novo ponto de partida. O entrelaçamento entre esses enredos (essas totalidades) se dá no movimento dos personagens: sofrendo a experiência da cegueira passam a ver e reparar, e podem partir para experenciar a lucidez. Esse continuum se faz em movimentos pelos quais transparece a concepção dialética de Marx, parafraseada aqui do estudo de Florestan Fernandes e aplicada ao nosso autor: Saramago nos apresenta uma possibilidade de um conhecimento sintético e completo da realidade e a existência de um movimento dialético imanente às próprias coisas. Dessa forma, o percurso material-histórico se encena, movido por uma alma que sangra.
Outra obra que prima pelo movimento da estátua/aparência à pedra/essência, originada pela mesma alma tomada de sangue, é A caverna , um franco diálogo com o Mito da Caverna de Platão (A República), mas ajustado ao cenário de horror do capitalismo. O primeiro aspecto a considerar é que, na alegoria grega, os fatos são narrados num percurso do espaço interno para o externo, de dentro para fora, da visão das sombras, passando por uma primeira instância de luz, para a visão da luz absoluta, metáfora do encontro com a sabedoria afinal. Ou seja, primeiramente somos informados dos homens ao fundo da caverna, acorrentados e imobilizados, com olhos fixados na fronteira final do local. Depois, somos inteirados dos que se movimentam, estes que estão mais acima, após uma fogueira. Em seguida, instruem-nos de que um dos aprisionados é levado para fora, passando pela fogueira e por aqueles que se mexem, chegando à luz, à sabedoria, ante a qual se sente
cegado, mas, por fim, maravilhado. Isso em um movimento ascendente. Assim, nas sombras está a aparência; na luz está a essência, a sabedoria. Na obra portuguesa, o trânsito se verifica inversamente: a trama se desenrola a partir do lado de fora, do espaço externo, da visão da luz absoluta, passa para um espaço interno, a caverna shopping-condomínio, cuja luz é fusionada, e, então, chega às sombras. Na esteira desse estranhamento, o curso da trama se dá contra riamente à rota ascendente tradicional com mais vigor: o roteiro é descendente e não apenas de um externo que se encaminha ao fundo da caverna: mais que isso, há um movimento ainda mais vertical, em aprofundamento espacial para abaixo do fundo da caverna – subsolo do shopping-condomínio –, pois ainda há o que ver depois da imagem das sombras, quando se encontra a total escuridão. Trata-se de um movimento paródico, pois o espaço de luz e o de sombra não produzem o efeito de sentido metafórico esperado. Numa troca de lugares e de movimentos, o externo será a aparência, o superficial; em contrapartida, o interno e mais profundo, a essência em uma camada ainda mais essencial.
A ligação entre Saramago e Marx é determinada pela perspectiva materialista histórica. E a transmutação do pensamento científico em literário só é possível porque aquilo que em Saramago pensa está sentindo.
Especiaria 6
Diálogos ficcionais com José Saramago11
José Saramago, leitor de Karl Marx
Grupo de Pesquisa “José Saramago, leitor de Karl Marx”
Apresentação
O que você perguntaria a José Saramago se ele estivesse vivo hoje?
José Saramago, prêmio Nobel de Literatura em 1998, já há muito tempo parecia cansado de dar tantas entrevistas ao redor do mundo, talvez porque estivesse cansado de ouvir sempre as mesmas perguntas e emitir sempre as mesmas críticas de um mundo lentamente transformador. O que para outros públicos e entrevistadores poderia parecer novidade, para Saramago, como ele próprio diz, “tornou-se, com o andar do tempo, caldo requentado” (SARAMAGO, 1997, p. 506).
Aliás, muito ainda se questionava o escritor português, em seus diários dos Cadernos de Lanzarote [escritos entre 1993 e 1998], sobre a importância das vozes críticas na atual conjuntura político-econômica. Exemplo disso é o trecho em que, na altura da realização da famosa entrevista cedida pelo escritor a Baptista Bastos, ele admite:
[...] azeda-me a boca a certeza de que umas quantas coisas sensatas que acaso tenha dito na vida não irão ter, no fechar das contas, importância nenhuma. E por que haveriam de tê-la? Que significado terá o zumbido das abelhas no interior da colmeia? Serve-lhes para comunicar? Ou é um simples efeito da natureza, a mera consequência de estar vivo, sem preconcebimento nem intenção, como uma macieira dá maças sem ter de preocupar-se se alguém virá ou não a comê-las? E nós? Falamos pela mesma razão que transpiramos? Apenas porque sim? O suor evapora-se, lava-se, desparece, mais tarde ou mais cedo, chegará às nuvens. E as palavras? Quantas permanecem? Por quanto tempo? E, finalmente, para quê? (SARAMAGO, 1997, Cadernos de Lanzarote, p. 506-507).
11 Os “Diálogos ficcionais” foram produzidos no âmbito dos estudos do grupo de pesquisa “José Saramago, leitor de Karl Marx” e foram adaptados para uma entrevista encenada, disponibilizada no YouTube: <www.youtube.com/watch?v=kdaGjdvVf_w>. Grupo de pesquisa SaraMarx (PUC Minas).
Por muito que se pratique contrariamente, a entrevista não é um confessionário, um diário ou uma cópia da realidade, talvez a entrevista não passe mesmo de um modo incipiente de fazer ficção. Talvez pudesse chegar mesmo a ser ficção se a função principal da entrevista não fosse a de revelar o entrevistado, o grande autor desse tipo de intervenção. É como se o rosto do entrevistado nos surgisse à mente constantemente a replicar: “Sabeis quem sou?”. No entanto, de uma entre vista com Saramago, seja ela ficcional ou não, não esperamos uma exata e definitiva resposta sobre sua identidade ou sobre sua realidade, mas que compartilhe conosco suas imagens de memória e experiências de vida, que em muitos momentos nos apontam uma forte atualidade.
É diante dessa relação de força que nos surgiu a oportunidade de compormos uma entrevista ficcional para ser apresentada à III Jornada Saramago vive!, organizada pela PUC Minas e realizada em setembro de 2022, fazendo com que, no centenário desse primoroso escritor, retomemos algumas de suas críticas e de seus pensamentos no intuito de ponderá-los em nossa própria realidade presente. Tal sugestiva aproximação entre questionamentos fundamentais ao nosso tempo e as variadas respostas recortadas de obras, ensaios e entrevistas de José Saramago publicadas há algumas décadas nos possibilitou a oportunidade ímpar de criar uma entrevista ficcional com base naquilo que Saramago mais tinha de valioso: a sua sensibilidade de perceber as estruturas de permanência e de dominação que regem nosso mundo.
O proposital desajuste temporal provocado aqui torna-se o grande potencializador de críticas às estruturas permanentes do poder que Saramago criticou em muitas linhas de sua literatura e em muitas falas de suas entrevistas e conferências. Fruto da anacronia mais crônica, somos levados por Saramago a rodar as questões que mais perturbam a sociedade atual, principalmente após os aconte cimentos pandêmicos dos quais, esperamos, não ter sido apenas um ensaio de algo pior. As antigas respostas saramaguianas aos nossos questionamentos atuais nos revelam um escritor magistral que foi capaz de sobreviver ao tempo que lhe coube viver, visto que, como teremos oportunidade de ver nesses ficcionais diálogos, suas ideias, suas obras e suas ações ainda vibram mais forte do que os sinos do Convento de Mafra.
Nesses diálogos, veremos, portanto, que Saramago foi tão preciso e crítico em suas representações, declarações e respostas que muito do que escreveu se sucedeu. Exemplo disso são as crises econômicas vividas pelos países europeus periféricos recém-integrados à Comunidade Econômica Europeia (CEE), atual
União Europeia, ou ainda a perseguição constante ao escritor Salman Rushdie12, anunciada pelo Estado Islâmico aos quatro cantos do mundo, levando preocupação ao próprio Saramago que vivia no Ocidente uma situação paralela com o seu livro
O Evangelho segundo Jesus Cristo.
É com esta extrema habilidade de previsão analítica que apresentamos aqui um José Saramago embebido de realidade e humanidade, atento e atuante pelo bem social. Trata-se de um escritor que extrapolava suas intervenções críticas e criativas para além das páginas dos romances. É para embarcar nessa inquieta jangada da vida e da obra de José Saramago que construímos dedicadamente este espaço, ficando-nos o desejo de que tais diálogos ficcionais incitem cada vez mais o uivo noturno dos cães!
Notas sobre a composição dos diálogos ficcionais
Para criar tais diálogos ficcionais, simulamos uma entrevista semiestruturada face a face com José Saramago, composta por um protocolo de perguntas para cada um dos tópicos considerados: economia, política, atualidades, direitos humanos, literatura etc. Apesar de ser constituída por perguntas com interesses muito próximos, esses diálogos ficcionais foram elaborados com perguntas criadas a partir de formas metodologicamente distintas.
O primeiro conjunto de perguntas é constituído de perguntas organizadas a partir de dimensões e categorias temáticas, distribuídas em um guia de entrevista semiestruturada (protocolo que não deve ser aplicado de forma ordenada). No segundo conjunto, temos perguntas criadas mediante a escolha antecipada de trechos de falas e escritos de Saramago com alto potencial de resposta crítica.
A partir de ambos os procedimentos, chegamos à representação de um rico diálogo ficcional com Saramago, cujo pensamento mostra que ainda pode nos orientar na abordagem de muitos problemas atuais. Logo, com a proposta desse cruzamento entre uma entrevista semiestruturada, previamente esboçada, e um diálogo aberto, em que as respostas muitas vezes se adiantam pela importância natural que ainda possuem à nossa sociedade, é que revisitamos aqui algumas das mais ricas lições que Saramago ainda pode nos proporcionar, uma claraboia em tempos de cegueira pandêmica.
12 O ensaísta e autor de ficção britânico de origem muçulmana indiana Salman Rushdie foi esfaqueado várias vezes em um palco, pouco antes de dar uma palestra na Instituição Chautauqua, em Nova York, em agosto de 2022. Rushdie é autor de Versos satânicos
Política, economia e atualidades
Governos com tendências autoritárias, pandemia, crise econômica, como pensar o futuro diante de tantos acontecimentos que acabam por alimentar uma desesperança?
“Não sei se haverá futuro, do que agora se trata é de saber como poderemos viver neste presente. Sem futuro, o presente não serve para nada, é como se não existisse. Pode ser que a humanidade venha a conseguir viver sem olhos, mas então deixará de ser humanidade, o resultado está à vista, qual de nós se considerará ainda tão humano como antes cria ser” (Ensaio sobre a cegueira , 2020, p. 228).
As décadas passadas revelaram importantes mudanças que acreditávamos estar relacionada com uma aparente luta por justiça social. No entanto, nos últimos anos aponta-se uma tendência ao regresso. São tempos de guerra que colocam a democracia como refém do poder. Como o escritor percebe essa questão?
“O poder democrático terá de ser sempre provisório e conjectural, dependerá da estabilidade do voto, da flutuação das ideologias ou dos interesses de classe, e, como tal, pode ser entendido como um barômetro orgânico que vai registando as variações da vontade política da sociedade. Mas, ontem como hoje, e hoje com uma amplitude cada vez maior, abundam os casos de mudanças políticas aparentemente radicais que tiveram como efeito radicais mudanças de governo, mas a que não se seguiram as mudanças econômicas, culturais e sociais radicais que o resultado do sufrágio havia prometido” (“Claro como água”. In: Caderno, 2009, p. 39).
O que sustenta tanta desigualdade no mundo? Será a desigualdade social nosso vírus mais letal?
“Faz sentido enviar ao espaço uma sonda para explorar Plutão enquanto aqui há pessoas morrendo de fome? Estamos neuróticos. A desigualdade se faz presente não só na distribuição da riqueza, mas também na satisfação das necessidades básicas” (As palavras de Saramago13, 2010, p. 457).
“Vamos de desastre em desastre e não aprendemos com os erros. Para solucionar alguns dos problemas da humanidade, os meios existem e, contudo, não são utilizados” (As palavras de Saramago, 2010, p. 139).
“Se o homem não é capaz de organizar a economia mundial de modo a satisfazer a necessidade de uma humanidade que está morrendo de fome e de tudo, que humanidade é essa? Nós, que enchemos a boca com a palavra “humanidade”, creio que ainda não chegamos a isso, não somos seres humanos. Talvez um dia consigamos sê-lo, mas não somos, falta muitíssimo. O espetáculo do mundo está aí, é uma coisa de arrepiar. Vivemos ao lado de tudo o que é negativo como se não tivesse nenhuma importância, a banalização do horror, a banalização da violência, da morte, principalmente se é a morte dos outros, claro. É-nos indiferente que esteja morrendo gente em Sarajevo, e também não devemos falar só dessa cidade, porque o mundo é um imenso Sarajevo. Enquanto não despertar a consciência das pessoas, isso continuará assim. Porque muito do que se faz, se faz para manter todos nós na abulia, na falta de vontade, para diminuir nossa capacidade de intervenção cívica” (As palavras de Saramago, 2010, p. 146).
13 Este livro, editado por Fernando Gómez Aguillera, biógrafo espanhol de Saramago, traz uma ampla seleção de declarações do escritor extraídas de jornais, revistas e livros de entrevistas, publicados em Portugal, no Brasil, na Espanha e em diversos outros países, da segunda metade da década de 1970 até março de 2009.
A sua bibliografia apresenta uma história de militância e envolvimento partidário, ademais verifica-se um discurso crítico que também é refletido na sua arte. Em suas produções percebemos a problematização do poder e a figurativização de contextos opressores. Pode falar um pouco sobre sua visão a respeito do sistema capitalista no qual estamos inseridos?
“Não é a altura de fazer considerações sobre o sistema capitalista, mas a verdade é que estamos nas mãos deles” (Com o mar por meio: uma amizade em cartas, 2017, p. 90).
“As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrênica humanidade que é capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante” (Da estátua à pedra e discursos de Estocolmo, 2013, p. 90).
A economia parece nortear os interesses da política atual nesse processo que chamamos de globalização. Como o senhor acha que isso está afetando nossa forma de viver e se relacionar no mundo?
“O que temos chamado de ‘poder político’ converteu-se em mero ‘comissário político’ do poder econômico” (As palavras de Saramago, 2010, p. 387).
“Se toda política requer uma economia, a economia determina uma política; é isso que está acontecendo [com a globalização]” ( As palavras de Saramago, 2010, p. 431).
“Por trás desta ideia aparentemente simples de uma globalização econômica se esconde – e hoje nem sequer se esconde – uma ambição imperialista que nos mostra os sonhos de poder dos Estados Unidos, o sistema capitalista que, finalmente, encontra um objetivo claro. A globalização econômica é uma arma nova de um projeto imperialista que passa, com certeza, por um novo tipo de exploração mundial” (As palavras de Saramago, 2010, p. 435).
“No fundo, a globalização é um totalitarismo soft, quer dizer, promete de tudo, nos vende a sua felicidade e cria necessidades que não tínhamos antes. É uma forma de domínio político, mas os cidadãos não se dão conta disso ou não encontram uma forma de reagir” (As palavras de Saramago, 2010, p. 435-436).
“A questão política principal do nosso tempo deveria ser o respeito pelas nações e a dignificação de todas as minorias étnicas, como meio de prevenir os nacionalismos xenófobos, reconhecendo em cada povo a sua capacidade própria de alargar as suas potencialidades criativas, naturalmente em diálogo com os outros povos, mas sem , 1997, p. 488).
Recentemente, o Brasil viveu a tensão provinda da maior participação civil já ocorrida no país em eleições presidenciais de 2022, numa luta acirrada entre dois principais candidatos que se situam em posições opostas da política. O senhor pensa que tais eleições podem decidir o futuro desse país que sempre abrigou muitos dos seus leitores?
“Não podemos continuar falando de democracia no plano puramente formal, ou seja, que haja eleições, parlamento, leis etc. Pode haver um funcionamento democrático das instituições de um país, mas estou falando de um problema muito mais importante, que é o problema do poder. E o poder, embora seja algo trivial afirmá-lo, não se encontra nas instituições cujos membros elegemos. O poder está em outro lugar” (As palavras de Saramago, 2010, p. 386).
“Um dos dramas do nosso tempo é que há um poder – o único poder que existe no mundo, que é o financeiro – que não é democrático! E as pessoas não reparam nisto, apesar de estarem sempre a falar em democracia. Tanto mais que sabemos que os governos, indireta ou diretamente, estão ali para executar políticas que não são as suas” (As palavras de Saramago, 2010, p. 384).
No mês de agosto de 2022, a comunidade acadêmica, os artistas e até os empresários leram a “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros pela Defesa do Estado Democrático de Direito14” , registro que reafirma o compromisso contra a ditadura. Qual é o papel da universidade no contexto político atual?
“A universidade não tem de salvar-nos, não se trata de salvar ninguém, digamos mesmo que a universidade tem de assumir a sua responsabilidade na formação do indivíduo, e tem de ir além da pessoa, porque não se trata apenas de formar um bom informático ou um bom médico, ou um bom engenheiro, a universidade, além de bons profissionais, deveria lançar bom cidadãos. Precisamos disso, todos, que se formem turmas de cidadãos e para mais, cidadãos bons, porque ainda que a palavra esteja gasta, há que reivindicá-la” (Democracia e universidade , 2013, p. 41).
Considerando o recente Brexit e as muitas crises econômicas vividas principalmente por países europeus periféricos desde o início do século XXI, qual é o seu balanço das primeiras décadas de formação da União Europeia?
“A Europa, estimulada a viver na irresponsabilidade, é um comboio disparado, sem freios, onde uns passageiros se divertem e os restantes sonham com isso. Ao longo da linha vão-se sucedendo os sinais de alarme, mas nenhum dos condutores pergunta aos outros e a si mesmo: ‘Aonde vamos?’” (Cadernos de Lanzarote , 1993, p. 65).
“Uma vez mais. Sou um europeu céptico que aprendeu tudo do seu cepticismo com uma professora chamada Europa. Não falando da questão do ‘ressentimento histórico’, a que sou especialmente sensível, mas que, de todo o modo, é ultrapassável, rejeito a denominada ‘construção europeia’ por aquilo que vejo estar a ser a constituição premeditada de um novo ‘sacro império germânico’, com objetivos hegemônicos que só nos parecem diferentes dos do passado porque tiveram a habilidade de apresentar-se disfarçados sob roupagens de uma falsa consensualidade que finge ignorar as contradições subjacentes, as que constituem, queiramo-lo ou não, a trama em que se moveram e continuam a mover-se as raízes históricas das diversas nações da Europa. A União Europeia parece não querer compreender
14 Em agosto de 1977, em meio às comemorações do sesquicentenário de fundação dos Cursos Jurídicos no País, o professor Goffredo da Silva Telles Junior, no território livre do Largo de São Francisco, leu a Carta aos Brasileiros, na qual denunciava a ilegitimidade do então governo militar e o estado de exceção em que vivíamos. Fonte: Universidade de São Paulo. Disponível em: <https:// direito.usp.br/noticia/3f8d6ff58f38-carta-as-brasileiras-e-aos-brasileiros-em-defesa-do-estado-democratico-de-direito>.
o que se está a passar na ex-União Soviética, nem sequer, apesar de tão à vista dos seus míopes olhos, nos Balcãs, para não falar do que irá passar-se amanhã em África, espaço já anunciado dos grandes conflitos do século XXI, se uma oportuna estratégia de hegemonias partilhadas não instaurar ali um colonialismo de novo tipo...” (Cadernos de Lanzarote , 1997, p. 487-488).
O que nos dizer sobre sua previsão de quase quarenta anos atrás sobre os rumos de Portugal ao entrar na antiga CCE (Comunidade Económica Europeia)? O balanço atual concorda com os ímpetos críticos de A jangada de pedra e de outras crônicas em que o senhor toca criticamente no assunto?
“Confessarei uma verdade: de tanto ter lido sobre o Mercado Comum, ou Comunidade Econômica Europeia, ou CEE, considerava-me pessoa equilibradamente informada, exceção à geral indiferença, olhava-me no espelho e via um cidadão nobremente preocupado com os destinos da pátria, desdenhoso do comum que só pensa em ralis e treinadores. Confessarei agora outra verdade: já não me via nos últimos tempos como me vira antes, declaro o meu feio pecado de orgulho e, tal como estão os meus compatriotas, assim me achei: desinformado, ignorante, sem saber como iria o Mercado Comum cuidar de mim, como iria eu tratá-lo, com que vénias e respeito. Há agora, no entanto, uma importante diferença, cujo benefício devo ao acaso. Graças a ele, encontrei-me de repente incluído na minoria privilegiada que conhece as razões profundas e autênticas por que a CEE nos quer no seu regaço. Revelo-as aqui em três definitivas palavras – porque somos atrasados. Fôssemos nós um país rico, próspero, com boa indústria, boa agricultura, boa pesca, pleno emprego, saúde para dar e trocar, qualidade de vida de primeira, ensino que só visto, teatro do melhor, cinema do perfeito, música como dos anjos, literatura sem nódoa nem jaça, fôssemos nós tudo isto, tivéssemos nós isto tudo, e o Mercado Comum rejeitar-nos-ia. Compreende-se [o] porquê: iríamos complicar o funcionamento das instituições, os europeus só quereriam os nossos produtos, as pátrias economias deles ficariam arruinadas e quanto à cultura, temos conversado: os nossos emigrantes, onde quer que estivessem, passariam a dar lições e a fazerem-se pagar bem por elas. Não é assim, e assim não será. A CEE quer-nos (ou faz parecer que nos quer) pela já dita razão: porque somos atrasados. Aprendi-a eu ao ler, há poucos dias, uma notícia proveniente duma comissão qualquer do Mercado Comum, que tranquilizava os inquietos produtores de conservas de peixe dos países da Comunidade, dizendo-lhes que não havia que temer a concorrência das conservas de sardinha portuguesas, por três boas razões: a primeira,
por ser tão escassa a sardinha que ainda frequenta as nossas costas; a segunda, porque a frota pesqueira portuguesa é pouco menos que pré-histórica; a terceira, porque as fábricas de conservas deste rincão à beira-mar largado só são boas para a sucata, desde que o sucateiro não seja demasiado exigente. Portanto, se não vamos concorrer nos Mercados da CEE, podemos, sem perigo para os DEZ, entrar na Europa, ou, por outras palavras, se não temos nada para vender à CEE, estamos nas melhores condições para tudo termos de comprar da CEE. Somos, por consequência, o parceiro ideal do vendedor, aquele que à exclusiva condição de comprador se sujeitou. Coletivamente, seremos, pela negativa, a demonstração do sábio ditame chinês: saber pescar é melhor do que comprar peixe ou recebê-lo de graça. Como a Europa nada quer de nós, espero bem que não nos recusem subsídios para podermos adquirir aquilo de que precisamos. Para mim, a situação, agora, é clara. Fico apenas com uma dúvida: se, mesmo assim, tão atrasados, a CEE não nos quiser nos seus armazéns, que vamos nós fazer deste país, que faremos com esta terra? Tendo desaprendido de pescar, sem remos, sem redes, com o leme avariado e alguns rombos no casco – deitamo-nos a afogar?” (Folhas Políticas , 1985, p. 135-136).
Por que, globalmente falando, as pessoas não acreditam mais na democracia ou mesmo nos políticos que a representam? Seria determinante a sua falta de representatividade e de participação civil?
“Transformamos nossa democracia ocidental em uma espécie de superstição, estamos idolatrando-a e a exportamos para povos que não têm nenhuma tradição em relação a ela, implantando-a de maneira forçada, chegando, inclusive, a violentar suas culturas tradicionais. De certa forma, repete-se o que aconteceu com os colonizadores da América, quando os frades diziam aos índios: ‘Seus deuses são falsos, trago para cá o verdadeiro Deus’. Ao afirmar isso, não estou me colocando contra a democracia em si, mas contra a democracia-armadilha, como instrumento do capitalismo, em que as próprias vítimas se transformam em cúmplices, seja pelo silêncio, seja pela renúncia à participação” (As palavras de Saramago, 2010, p. 385).
“[...] não nos damos conta de que no mesmo instante em que coloca seu voto na urna o cidadão está realizando um ato de renúncia ao seu direito e ao seu dever de participar, delegando o seu poder a outras pessoas, que às vezes nem sabe quem são. A democracia pode ser apenas uma fachada sem nada por trás. Por isso, o cidadão deve fazer de sua participação cívica uma obrigação” (As palavras de Saramago, 2010, p. 384).
Sabemos hoje que a pandemia (Covid-19) e a manifestação de outros vírus estão muito ligadas à destruição sistemática do meio ambiente. Como o senhor enxerga o persistente desequilíbrio entre o meio ambiente e a política agrária dos grandes países produtores de alimento, como o Brasil, a Índia, os EUA e tantos outros?
“Hectares e hectares de terra plantados de oliveiras foram impiedosamente rasoirados há alguns anos [em Portugal], cortaram-se centenas de milhares de árvores, extirparam-se do solo profundo, ou ali se deixaram a apodrecer, as velhas raízes que, durante gerações e gerações, haviam dado luz às candeias e sabor ao caldo. Por cada pé de oliveira arrancado, a Comunidade Europeia pagou um prêmio aos proprietários das terras, na sua maioria grandes latifundiários, e hoje, em lugar dos misteriosos e vagamente inquietantes olivais do meu tempo de criança e adolescente, em lugar dos troncos retorcidos, cobertos de musgo e líquenes, esburacados de locais onde se açoitavam os lagartos, em lugar dos dosséis de ramos carregados de azeitonas negras e de pássaros, o que se nos apresenta aos olhos é uma enorme, um monótono, um interminável campo de milho híbrido, todo com a mesma altura, talvez com o mesmo número de folhas nas canoilas, e amanhã talvez com a mesma disposição e o mesmo número de maçarocas, e cada maçaroca talvez com o mesmo número de bagos. [...] ouço dizer à gente da aldeia que foi um erro, um disparate dos maiores, terem-se arrancado os velhos olivais. Também inutilmente se chorará o azeite derramado. Contam-me agora que se está voltando a plantar oliveiras, mas daquelas que, por muitos anos que vivam, serão sempre pequenas. Crescem mais depressa e as azeitonas colhem-se mais facilmente. O que não sei é onde se irão meter os lagartos” (A pequenas memórias , 2006, p. 12-13).
Como o senhor vê a permanência do trabalho escravo no mundo atual, até mesmo na execução de grandes eventos mundiais como a Copa do Mundo do Qatar em 2022?
“[...] homens, de enxada ao ombro, desciam aos caboucos já fundos, neles desapareciam, enquanto mais homens lançavam cestos para dentro e depois os puxavam para cima, cheios de terra, e os iam despejar afastadamente, aonde outros homens iam por sua vez encher os carros [...], que lançavam no aterro, não há diferença nenhuma entre cem homens e cem formigas, leva-se isto daqui para ali porque as forças não dão para mais, e depois vem outro homem que transportará a carga até a próxima formiga, até que, como de costume, tudo termina num buraco, no caso das formigas lugar de vida, no caso dos homens lugar de morte, como se vê não há diferença nenhuma” (Memorial do Convento, 2013, p. 129-130).
O que tem achado da legalização da oferta de serviços via empresas ou aplicativos virtuais, o que gerou empregos, mas diminuiu o salário e as garantias dos trabalhadores do terceiro setor?
“Ninguém assume suas responsabilidades, muito menos os governos, porque não sabem, porque não podem, porque não querem ou porque isso não lhes é permitido por aqueles que realmente governam o mundo: as grandes empresas multinacionais, pluricontinentais, que detêm todo o poder. Não podemos esperar que os governos façam nos próximos cinquenta anos o que não fizeram nos últimos cinquenta [...]” (As palavras de Saramago, 2010, p. 374).
“A globalização econômica é compatível com os direitos humanos [ou, nesse caso, com os direitos trabalhistas]? Temos de nos colocar essa pergunta e verificar que a resposta é que ou existe globalização ou existem direitos [...], por mais que os poderes tenham a hipocrisia de dizer que a globalização favorece os direitos humanos, quando o que ela faz é fabricar excluídos. A globalização é simplesmente uma nova forma de totalitarismo, que não precisa chegar sempre vestindo uma camisa azul, marrom ou preta e com o braço em riste; o totalitarismo tem muitas faces, e a globalização é uma delas. Para reverter a situação, seria preciso voltar a Marx e Engels, embora seja quase politicamente incorreto se referir a esses cadáveres da história quando a ideologia parece que morreu” (As palavras de Saramago, 2010, p. 450-451).
A Reforma Agrária em Portugal sofreu os reveses da Lei Barreto de meados de 197515 que promoveu a devolução de grande parte das terras dada aos trabalhadores agrícolas sem-terra do Alentejo após o 25 de abril. Como retomar essa luta hoje e quais são os caminhos possíveis já elucidados desde o romance Levantado do chão ?
“A grande guerra será entre os que possuem bens e os que carecem de tudo. O que acontece é que os pobres, pobres coitados, não conseguem nem sabem se organizar. Para isso, é preciso poder, e eles não o têm” (As palavras de Saramago, 2010, p. 459).
“A cada dia que passa a iniciativa privada cresce e acaba por ocupar terrenos que, em princípio, não deveriam ser dela. Os Estados não cumprem com suas obrigações, [...]” (As palavras de Saramago, 2010, p. 462).
“Está nas nossas mãos que isto acabe amanhã ou depois de amanhã” ( As palavras de Saramago, 2010, p. 472).
15 Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Barreto https://run.unl.pt/bitstream/10362/20924/1/22985_105542_1_PB.pdf.
Parte 2
Tecnologia, meios de comunicação e desigualdade informacional
Hoje as redes sociais figuram-se como ferramentas no cotidiano, por meio delas a opinião chega a mais lugares. O embate ideológico torna-se comum até nas relações familiares, isso porque os algoritmos formam bolhas de opiniões. Além disso, observa-se uma postura chamada de “cancelamento”. Sendo um indivíduo que observa e problematiza a realidade, o senhor acredita que tal atitude é reflexo do contexto atual ou especificamente da dificuldade das pessoas em dialogar?
“Vivemos numa sociedade que parece ter feito da violência um sistema de relações. A manifestação de uma agressividade que é inerente à espécie que somos, e que em tempos pensamos pela educação haver controlado, irrompeu brutalmente das profundidades nos últimos vinte anos em todo o espaço social, estimulada por modalidades de ócio que viraram as costas ao já simples hedonismo para se transformar em agentes condicionadores da própria mentalidade do consumidor” (O caderno, 2009, p. 48).
Não que seja algo novo na História, mas é fato que uma das estratégias para alcançar o poder atualmente baseia-se na fabricação de fake news, comportamento antiético que contamina o debate. Vivemos em um momento que alguns sociólogos chamam de “era da pós-verdade” e nesse contexto os fatos já não são relevantes para formar um pensamento; como enxerga isso?
“A sociedade humana atual está contaminada de mentira como da pior das contaminações morais, e ele é um dos principais responsáveis. A mentira circula impunemente por toda parte, tornou-se já numa espécie de outra verdade” (O caderno, 2009, p. 23).
Especiaria 6
Em um contexto no qual as pessoas estão imersas em muitas informações, sujeitas a um sistema que explora e coloca o tempo a serviço da produção, uma situação que exige reação e luta, é possível encontrar respiro nesse cotidiano?
“Todos nós ingerimos diariamente a nossa dose de morfina que adormece o pensamento. Os hábitos, os vícios, as palavras repetidas, os gestos repisados, os amigos monótonos, os inimigos sem ódio autêntico, tudo adormece. Vida plena!... Quem há aí que possa declarar que vive plenamente? Todos trazemos ao pescoço a canga da monotonia, todos esperamos, sabe o diabo o quê! Sim, todos esperamos! Mais confusamente uns que outros, mas a expectativa é de todos” (Claraboia , 2017, p. 254).
Uma vez que a internet é indispensável no cotidiano de hoje, os algoritmos possuem estratégias para ditar as escolhas de um indivíduo, seja ao fomentar bolhas de opiniões, seja ao oferecer o produto mais adequado para cada um. Parece-nos quase impossível proteger totalmente as informações acessadas que acabam por estar à disposição do capital. O que [o senhor] pensa sobre a privacidade no contexto atual?
“Nós vivemos num mundo que Marx não conheceu, vivemos num mundo vigiado, somos vigiados. Acabou-se a privacidade. Se a vida privada, de alguma forma, acabou, a consciência privada, para usar o mesmo termo, sofreu um atentado similar. A liberdade, e agora falo da liberdade de consciência, por vezes arrisca-se a converter-se em algo utópico, com muito pouco conteúdo” (Outros cadernos, 2011, s/p.).
O senhor considera que boa parte da grande mídia hoje é bastante manipulada? E de acordo com sua experiência profissional nessa área, como fazer jornalismo num mundo em que a circulação da informação é muito veloz?
“[Primeiramente,] Dizer mídia, sem mais nem menos, é uma abstração. O que conta são os jornalistas, as pessoas. E essas são boas ou más, inteligentes ou estú pidas, honestas ou desonestas, como toda a gente. O pior jornalista é aquele que se comporta como um camaleão, sempre preparado para mudar de cor conforme o ambiente” (As palavras de Saramago, 2010, p. 442).
“[Em segundo lugar,] Toda a informação é subjetiva, e isso é inevitável. Subjetiva em sua origem, em sua transmissão e em sua recepção, pois há tantos entendimentos possíveis, quanto receptores” (As palavras de Saramago, 2010, p. 443).
“A superabundância de informação pode fazer do cidadão um ser muito mais ignorante. Explico-me: creio que as possibilidades tecnológicas para desenvolver a massificação das informações surgiram rapidamente demais. O cidadão não dispõe dos elementos e da formação adequados para saber escolher e selecionar, o que o leva a ficar perdido no meio dessa selva. É justamente nessa defasagem que se produz a instrumentalização em prejuízo do indivíduo e, portanto, a desinformação” (As palavras de Saramago, 2010, p. 443).
“Se a única coisa que se oferece às pessoas é o lixo televisivo, escondendo-se delas outras coisas, elas acreditarão que não existe nada além desse lixo. Nessas circunstâncias, reina a audiência, e na disputa por ela aceita-se até mesmo matar a própria mãe. Os meios de comunicação têm grande parte de responsabilidade por isso, embora seja necessário sempre perguntar quem é que movimenta os seus fios. Por trás há sempre um banco ou um governo. Um jornal independente? Uma rádio livre? Uma televisão objetiva? [Uma rede social transparente?] Isso não existe. Esta mistura, do lixo televisivo com os meios dependentes, faz com que a sociedade se encontre gravemente adoecida” (As palavras de Saramago, 2010, p. 444).
Recentemente o diretor da Cambridge Analiyca, Steve Bannon, foi preso por divulgar nas redes sociais uma série de notícias falsas, que agiam em favor de diversas campanhas políticas de candidatos contratantes da empresa, incluindo a campanha de Donald Trump e a histórica votação do Brexit. Até onde acha que os meios de comunicação digital podem interferir no nível informacional da sociedade mundial?
“Estabeleceu-se e se levou a uma tendência de preguiça intelectual, e os [novos] meios de comunicação têm responsabilidade por essa tendência” (As palavras de Saramago, 2010, p. 441).
“Não se fala do cordão umbilical que une a imprensa às empresas” (As palavras de Saramago, 2010, p. 442).
“É a dominação da grande empresa sobre os jornais e a relação de concubinato entre a grande empresa e o governo de plantão. Tudo isso forma uma cadeia de interesses cujo ponto final é o jornal. É normal que o jornal se limite a informar, sem correr riscos. Quando se arrisca, está suficientemente protegido para dar a opinião que convém ao poder. Às vezes arrisca, se tem a expectativa de que o poder será substituído. É a aposta no governo seguinte. Há sempre uma relação perversa nesse trinômio Estado-empresa-jornal. Pode-se dizer que, a rigor, já não existem jornais: o que há são empresas jornalísticas” (As palavras de Saramago, 2010, p. 441-442).
“A lógica empresarial das tiragens [ou das postagens] e das audiências convida inevitavelmente ao sensacionalismo, à manobra rasteira, ao compadrio, aos pactos ocultos. Não há muita política nas colunas dos jornais, o que há é muitos políticos. Ambições, em vez de ideias” (As palavras de Saramago, 2010, p. 442).
Acha que, com o avanço das novas tecnologias, o uso do livro físico tende a acabar?
“[Direi novamente algumas palavras] sobre a sorte do livro nestas passagens de século e milênio, cercado de informática por todos os lados, diretamente ameaçado pelas ‘internetes’. O problema, avisei, não estará em vir a perder-se o livro, mas a curiosidade. Escreveu-se e leu-se em placas de argila, mais em papiros, muito mais em pergaminhos, muitíssimo em papéis, e sempre a curiosidade foi o que levou o ser humano a escrever e a ler. A questão do suporte não é, portanto, decisiva, embora (como não reconhecê-lo?), sendo, como somos, filhos culturais do papel, resistamos a imaginar um mundo que, por cobrir-se de ecrãs de computador, tenha feito desaparecer o livro. Seja como for, sempre será preciso imprimir o que se escreveu, e não consta que a <<escrita imaterial>> que actualmente manipulamos e consumimos tenha levado a uma diminuição do consumo de papel no mundo: os anúncios de automóveis...” (Cadernos de Lanzarote , 1995, p. 614).
Parte 3
Literatura & leitura
Sejam nos poemas, nos contos e, mais especialmente, nos romances, a linguagem se faz meio de descoberta e tradução da vida. A busca pela melhor palavra revela o trabalho do escritor. Tal postura encontra-se presente no universo saramaguiano. Sendo assim, como descreveria o processo de escrita?
“Escrever não é outra tentativa de destruição, mas antes a tentativa de reconstruir tudo pelo lado de dentro, medindo e pesando todas as engrenagens, as rodas dentadas, aferindo os eixos milimetricamente, examinando o oscilar silencioso das molas e a vibração rítmica das moléculas no interior dos aços” (Manual de pintura e caligrafia , 2010, p. 20).
A linguagem que revela a essência ou a aparência das relações está presente em suas obras, independente do gênero. O senhor já se perguntou como transpor o contexto que o rodeia para sua prosa?
“[...] se tenho algum papel a me representar amanhã, que casos acontecidos hoje vão ficar à minha espera? (A não ser que esta esperança numa justiça distributiva seja, afinal, a manifestação protectora e do espírito de renúncia. Oponha-se-lhe, pois, o espírito das de vontade. Gostaria de saber o que Goya teria pensado a esse respeito. E Marx” (Manual de pintura e caligrafia , 2010, p. 230).
Uma luz inesperada e A maior flor do mundo são exemplos de obras editorialmente voltadas para o público infantil. No entanto, a infância também percorre os discursos de premiações e seus diários Por isso, qual é a importância que a memória da infância possui na sua vida?
“O mito do paraíso perdido é o da infância – não há outro. O mais são realidades a conquistar, sonhadas no presente, guardadas no futuro inalcançável. E sem elas não sei o que faremos hoje. Eu não o sei” (Uma luz inesperada, 2021, p. 6).
Faz parte de uma leitura marxista tentar perceber a essência das relações. A considerar seu posicionamento engajado, no qual a crítica às instituições se faz frequente, como escritor, o que interessa desvelar na sua literatura?
“A este escrevinhador sempre o preocupou o que se esconde por trás das meras aparências, e agora não estou a falar de átomos ou de subpartículas, que, como tal, são sempre aparência de algo que se esconde. Falo, sim, de questões correntes, habituais, quotidianas, como, por exemplo, o sistema político que denominamos democracia, aquele mesmo que Churchill dizia ser o menos mau dos sistemas conhecidos. Não disse o melhor, disse o menos mal” (O caderno, 2010, p. 36).
Para além da construção de mundos de forma crítica que desnuda problemas estruturais, na sua prosa há também a presença do desalento mais íntimo que se esconde na exposição das dores do homem. Como essas complexidades surgem na escrita de um romance?
“[...] todo o romance é isso, desespero, intento frustrado de que o passado não seja coisa definitivamente perdida. Só não se acabou ainda de averiguar se é o romance que impede o homem de esquecer, ou se é a impossibilidade do esquecimento que o leva a escrever romances” (História do Cerco de Lisboa , 2011, p. 49).
Como e o quanto o leitor pode recriar ou reinterpretar seus romances, mesclando as narrativas com suas próprias experiências e memórias pessoais?
“Pergunto-me se o que move o leitor à leitura não será a secreta esperança ou a simples possibilidade de vir a descobrir, dentro do livro, mais do que a história contada, a pessoa invisível, mas omnipresente, que é o autor. O romance é uma máscara que oculta e ao mesmo temo revela os traços do romancista. Se a pessoa que o romancista é não interessa, o romance não pode interessar. O leitor não lê o romance, lê o romancista” (Cadernos de Lanzarote , 1994, p. 234).
Especiaria 6
Parte 4
Ciência, ética e direitos humanos
Como reagir ao negacionismo científico que recusa a vacina e até a forma circular da terra, nos transportando praticamente aos tempos de História do Cerco de Lisboa? Estaríamos vivendo, na contemporaneidade, uma efetiva história do cerco da razão?
“Estamos a repetir, mutatis mutantis, o modelo da Idade Média, em que o saber disponível estava centrado numa gruta de teólogos, uns poucos mais, o resto era uma massa ignorante” (As palavras de Saramago, 2010, p. 465).
“Somos nós que nos afirmamos, por oposição ao comportamento dos animais, seres dotados de razão; por isso, não posso aceitar (e aí entra uma questão ética) que a razão seja usada contra a razão. Neste sentido, uma razão que não é conservadora da vida, uma razão que não defende a vida, uma razão que (pondo a coisa num terreno mais prático, mais lhano, mais imediato) não se orienta para dignificar a vida humana, para respeitá-la, muito simplesmente para alimentar o corpo, para defender da doença, para defender de tudo o que há de negativo e que nos cerca, e que desgraçadamente é também produto da razão, é uma razão de que se faz um mau uso. Se o homem é um ser racional e usa a razão contra si mesmo – um contra si mesmo representado pelos seus semelhantes –, então de que é que serve a razão?” (As palavras de Saramago, 2010, p. 134).
“Se a razão não serve à ética, ela se transforma numa arma destrutiva” (As palavras de Saramago, 2010, p. 135).
“Ou a razão, no homem, não faz senão dormir e engendrar monstros, ou o homem, sendo indubitavelmente um animal entre os animais, também é, indubitavelmente, o mais irracional deles todos. Vou-me inclinando cada vez mais para a segunda hipótese, não por ser eu doentiamente propenso a filósofos pessimistas, mas porque o espetáculo do mundo é, na minha humilde opinião, e de todos os pontos de vista, uma demonstração explícita e evidente do que chamo de irracionalidade humana” (As palavras de Saramago, 2010, p. 135).
Blimunda, a mulher do médico, Lídia e as mulheres de O ano e 1993 são exemplos de figuras femininas que expõem uma potência de luta como marca de personalidade. Percebe-se, assim, que as mulheres, na sua ficção, possuem atitude e consciência que direcionam o enredo. Na realidade, a luta pelos direitos das mulheres continua por meio de protestos e de reivindicações. Qual sua visão acerca dessa pauta?
“[...] pergunto-me uma vez mais que desgraçado planeta é este em que ainda metade da população tem que sair à rua para reivindicar o que para todos já deveria ser óbvio... [...]. Continuo vendo manifestações de mulheres na rua. Elas sabem o que querem, isto é, não ser humilhadas, coisificadas, desprezadas, assassinadas. Querem ser avaliadas pelo seu trabalho e não pelo acidental de cada dia” (O caderno, 2010, p. 36).
“Não fosse falarem as mulheres umas com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta” (Memorial do Convento, 2017, p. 119).
Quando o senhor acha que as mulheres serão livres o suficiente para poder escolher o que fazer com o próprio corpo? Opto por aqui incluir a questão do aborto nessa minha divagação.
“E estou à espera, já há demasiado tempo, que a mulher decida a tomar no mundo o papel que não seja o de mera competidora do homem” ( As palavras de Saramago, 2010, p. 264).
“Como pudemos viver tanto tempo a condenar a metade da humanidade à subordinação e à humilhação” (As palavras de Saramago, 2010, p. 268).
“Sinto que as mulheres são, em regra, melhores do que os homens. É como se o homem tivesse renunciado ao ponto de vista viril, marialva, e depois não soubesse muito bem como é que havia de ser. A mulher, ao mesmo tempo que já está a ser, está sempre para ser” (As palavras de Saramago, 2010, p. 262).
Especiaria 6
Diante de uma lenta evolução, a mulher ainda luta hoje pela equidade salarial em diversos postos e setores de trabalho. Quando e como esse patamar de equidade pode ser atingido com mais rapidez e eficácia?
“Se é só para ocupar o lugar que o homem tem desempenhado ao longo da História, não vale a pena. O que a humanidade necessita é qualquer coisa de novo, que eu não sei definir, mas ainda tenho a convicção que pode vir da mulher” (As palavras de Saramago, 2010, p. 264).
O senhor viveu nas Ilhas Canárias e deve estar ciente do problema dos refugiados que vem crescendo em muitas partes do mundo, principalmente na fronteira entre o México e os EUA e no Mediterrâneo. Como diminuir ou acabar com esse fluxo de imigrantes que são obrigados a deixar suas terras em busca de melhores condições de vida?
“O desbarato mais absurdo não é o dos bens de consumo, mas o da humanidade: milhões e milhões de seres humanos nasceram para ser trucidados pela História, milhões e milhões de pessoas que não possuíam mais do que as suas simples vidas. De pouco ela lhes iria servir, mas nunca faltou quem de tais miuçalhas tivesse sabido aproveitar-se. A fraqueza alimenta a força para que a força esmague a fraqueza” (Cadernos de Lanzarote , 1994, p. 229).
Como tornar o mundo um espaço mais representativo para as sociedades que lutam pela legitimação de suas crenças ou identidades? Exigir e praticar mais tolerância pelas formas distintas de ser e viver é o suficiente?
“Eu sou contra a tolerância, porque ela não basta. Tolerar a existência do outro e permitir que ele seja diferente ainda é pouco. Quando se tolera, apenas se concede, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro. Sobre a intolerância já fizemos muitas reflexões. A intolerância é péssima, mas a tolerância não é tão boa quanto parece. Deveríamos criar uma relação entre as pessoas da qual estivessem excluídas a tolerância e a intolerância” (As palavras de Saramago, 2010, p. 145).
“Estou de acordo com a criação de um novo código ético mundial, imprescindível para a sobrevivência do mundo. Aí mesmo é que eu tenho querido chegar quando digo que estamos todos precisados de uma boa Carta dos Deveres Humanos” (Cadernos de Lanzarote , 1994, p. 204).
“Limitei-me, portanto, a sugerir: 1. Desenvolver para trás, isto é, fazer aproximar da primeira linha de progresso as cada vez maiores massas de população deixadas à retaguarda pelos modelos de desenvolvimento actualmente em uso; 2. Criar um novo sentido dos deveres da espécie humana, correlativo do exercício pleno dos seus direitos; 3. Viver como sobreviventes, isto é, compreender, de facto, que os bens, as riquezas e os produtos do planeta não são inesgotáveis; 4. Impedir que as religiões continuem a ser factores de desunião; 5. Racionalizar a razão, isto é, aplicá-la de modo simplesmente racional; 6. Resolver a contradição entre afirmar-se que cada vez estamos mais perto uns dos outros e a evidência de que cada vez nos encontramos mais afastados; 7. Definir éticas práticas de produção, distribuição e consumo; 8. Acabar de vez com a fome no mundo, porque isso já é possível; 9. Reduzir a distância, que aumenta em cada dia, entre os que sabem muito e os que sabem pouco. Na minha décima proposta preconizava um <<regresso à filosofia>> (apesar de ser leigo na matéria), mas retirei-a quando vi que os meus colegas, felizmente de acordo quanto ao essencial, discordavam resolutamente nos particulares, que é onde as questões realmente se decidem... (Cadernos de Lanzarote, 1997, p. 656).
Parte 5
Guerras & religiões
O Evangelho segundo Jesus Cristo, Caim e, bem antes, O ano de 1993 apresentam como um dos temas a religião e as relações que advêm dela. Qual sua posição acerca do impacto das instituições religiosas nas relações sociais?
“As religiões, não só não aproximam seres humanos, com uma vivem, elas, em estado de permanente inimizade mútua, apesar de todas as arengas pseudo-ecuménicas que as conveniências de uns e outros considerem proveitosas por ocasionais e passageiras razões de ordem táctica. As coisas são assim desde que o mundo é mundo e não se vê nenhum caminho por onde possam vir a mudar” (O caderno, 2009, p. 189).
“A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com Deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele” (Caim , 2017, p. 88).
Assim como o fator Deus em suas obras, a dualidade vida versus morte é também um elemento destacado em sua manifestação literária. A saber que a relação do homem com a morte alicerça crenças e posturas, como percebe isso em nossa sociedade?
“A propósito, não resistiremos a recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem” ( As intermitências da morte , 2005, p. 69).
“A morte é discreta, prefere que não se dê pela sua presença, especialmente se as circunstâncias a obrigam a sair à rua. Em geral crê-se que a morte, sendo, como gostam de afirmar alguns, a cara de uma moeda de que deus, no outro lado, é a cruz, será, como ele, por sua própria natureza, invisível. Não é bem assim. Somos testemunhas fidedignas de que a morte é um esqueleto embrulhado num lençol, mora numa sala fria em companhia de uma velha e ferrugenta gadanha que não responde a perguntas, rodeada de paredes caiadas” (As intermitências da morte , 2005, p. 93).
No ano de 2022, o mundo se deparou com o início da Guerra da Ucrânia, tornando-se a Rússia, no mundo contemporâneo, alvo de todo tipo de crítica e sansões econômicas, principalmente por parte da Inglaterra e dos Estados Unidos. No entanto, o que e quem está verdadeiramente por trás dessa guerra em sua opinião? [Pergunta que considera a morte de Saramago, ocorrida em 2010]
“Sabemos muito bem que os Estados Unidos precisavam controlar o petróleo do Iraque. E não é só isso. É o controle de todo o Oriente Médio [e além]. Controlar toda região significa abrir as portas para a Ásia, onde está um país chamado China, com o qual mais cedo ou mais tarde os Estados Unidos vão ter que se confrontar. De resto, [cabe dizer que] essa formação do império americano [que hoje adentra os países desmembrados da antiga União Soviética] começou a ser desenhada nos anos 20, depois da Primeira Guerra Mundial” (As palavras de Saramago, 2010, p. 433).
“Os Estados Unidos são realmente odiados por uma parte do mundo e objeto de desconfiança e receio de outra. Ganharam tudo à força com suas torpezas e arbitrariedades, com sua soberba e sua insolência, com suas mentiras e seus abusos, com o seu quero tudo e mando em tudo. E agora se queixam. É preciso ser muito hipócrita” (As palavras de Saramago, 2010, p. 437).
Após a publicação explosiva de O Evangelho segundo Jesus Cristo, sua obra foi retaliada por cristãos ortodoxos da política portuguesa, o que o motivou a se mudar para as Canárias. Paralelamente a esses conflitos pessoais, é possível acompanhar em seus diários o interesse pela perseguição do Estado Islâmico a Salman Rushdie, após esse escritor ter investido na refiguração literária de uma outra entidade religiosa, o profeta Maomé do romance Os versículos satânicos, de 1988. Como registrado em seu diário [de Saramago], em 11 de outubro de 1993, o editor norueguês desse romance, William Nygaard, da editorial Aschehoug, foi atingido com três tiros. Em agosto de 2022, Rushdie acabou sofrendo um esfaqueamento brutal no Estado de Nova Iorque que o deixou hospitalizado em estado grave. Com esse triste e chocante acontecimento, o senhor se sente mais ameaçado pelos extremistas cristãos que repudiam as representações de Jesus Cristo traçadas em seu romance de 1992?
“[Certa vez no Chile] Estivemos com Salman Rushdie meia hora, por trás da muralha da segurança. Rushdie pareceu-me um homem simples, sem sinal de sofisticação e vedetismo. Se já o era assim antes que Alá o tivesse fulminado, não sei. Agradeceu-me a carta que lhe escrevi [...], citou passagens dela. Manifestou a sua esperança de que as dificuldades políticas e econômicas com que o Irã se debate actualmente contribuam para a anulação da sentença, mas insiste que a pressão da solidariedade internacional continua a ser tão necessária como nos primeiros dias. [Fui] menos optimista do que ele quanto às probabilidades de um desenlace feliz desta absurda história. Ainda que o governo e as autoridades religiosas do Irã anunciem o cancelamento da ‘fatwa’, Rushdie ficará sempre à mercê de um fanático desejoso de entrar no céu pela porta principal. Sem esquecer que os riscos de um atentado [passaram] a ser maiores a partir desse dia: despedida a segurança, Salman tornar-se-á mais vulnerável do que qualquer cidadão comum...” (Cadernos de Lanzarote , 1997, p. 126).
“Escrevi, para um jornal sueco, um artigo a propósito do aniversário (mais um...) do <<caso>> Rushdie. Chamei-lhe ‘Heresia’, um direito humano e é, simplesmente, um exercício de razão e de bom senso. Digo que no pecado e na heresia se exprimem uma nova vontade de rebelião, portanto uma vontade de libertação, seja qual for o grau de consciência que a defina. Que ao longo da história da Igreja, as heresias, manifestadas pela negação ou recusa voluntária de uma ou mais afirmações de fé, não fizeram senão escolher, de um conjunto autoritário e coercitivo de supostas verdades, o que acharam de mais adequado, simultaneamente à fé e à razão. Que não devemos esquecer a facilidade e o à-vontade com que os mais encarniçados defensores de heterodoxias ideológicas e políticas se conciliam, em nome de interesses práticos comuns, que não de Deus, com os aparelhos institucionais e as manipulações <<espirituais>> das diversas Igrejas do mundo, que pretendem manter e aumentar, pela condenação das heresias antigas e modernas e pelo castigo dos pecados de sempre, o seu poder sobre uma humanidade absurda mais disposta a pagar multiplicadas as suas pretensas ofensas a Deus do que a reconsiderar as culpas e os crimes de que, contra si mesma, é responsável” (Cadernos de Lanzarote , 1997, p. 203).
Daniel Vecchio
Doutor em História pela UNICAMP. Pós-doutorando em Letras Vernáculas - Estudos Literários pela UFRJ/FAPERJ. Integra o grupo de pesquisa “Saramago, leitor de Marx” (PUC Minas).
Profa. Fernângela Diniz da Silva
Doutoranda em Letras na área de Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará, pesquisadora da Literatura saramaguiana à luz da Semiótica discursiva; integrante do grupo de pesquisa “José Saramago, leitor de Marx”.
Especiarias para
José Saramago
Referências
AGUILERA, Fernando. As palavras de José Saramago. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
AMADO, Jorge. SARAMAGO, José. Com mar por meio: uma amizade em cartas. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
SARAMAGO, José. Uma luz inesperada. Ilustrações de Armando Fonseca. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2021.
SARAMAGO, José. Caim. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
Memorial do Convento. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Da estátua à pedra e discursos de Estocolmo. Lisboa: Fundação José Saramago, 2013.
Democracia e universidade. Lisboa: Fundação José Saramago, 2013.
História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Claraboia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Manual de pintura e caligrafia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
O caderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Cadernos de Lanzarote I. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Outros cadernos de Saramago (Site). 2011. Acessado em josesaramago.org.