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Jacqueline de Oliveira Moreira

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Paulo Borges

Paulo Borges

Os paradoxos da liberdade em Freud e Schopenhauer: o amor e o outro

Jacqueline de Oliveira Moreira

O conceito de liberdade se situa entre as categorias filosóficas de maior complexidade. Pode-se entender a liberdade como autodeterminação, como indeterminação, como ato de vontade, como ausência de interferência, entre outras numerosas possibilidades. Podemos falar, dentre muitos possíveis tipos de liberdade, em liberdade física, política, psicológica. Vários autores trataram do tema da liberdade. Contudo, encontramos soluções deterministas e indeterministas, a exemplo de Sartre e Descartes, que, numa perspectiva indeterminista, veem a liberdade como a essência do homem (MONDIN, 1980). As discussões sobre a liberdade que trabalham essa categoria a partir da noção de determinismo podem ser agrupadas em determinismo intrínseco e extrínseco (MONDIN, 1980): as interpretações mitológicas e teológicas sobre o fenômeno humano são consideradas modalidades do determinismo extrínseco; e, no campo do determinismo intrínseco, encontramos teses que abarcam as esferas política (Hobbes), metafísica (Schopenhauer), fisiológica (Lombroso), sociológica (Estruturalistas) e psicológica (Freud). Parece pertinente ressaltar que a Ciência Moderna defende o determinismo, visto que o espírito do mecanismo dominou a Europa do século XVII ao XIX. Os relojoeiros, por exemplo, aplicaram teorias da física e da matemática na construção do relógio/máquina. A ideia ou o conceito básico do século XVII, que sugeria que a filosofia iria alimentar a nova psicologia, era o espírito do mecanismo, ou seja, a imagem do universo era a de uma grande máquina. Os processos naturais são mecanicamente determinados e podem ser explicados pelas leis da física: “Devido à sua visibilidade, regularidade e precisão, os pesquisadores começaram a considerar os relógios como modelos

para o universo físico, perguntando-se se o próprio mundo não poderia ser ‘um vasto relógio construído e movido pelo Criador’.” (SHULTZ, 1992, p. 23). O uso da metáfora do relógio envolve a ideia do determinismo, segundo a qual podemos prever as mudanças que vão ocorrer no relógio, bem como no universo, por causa da regularidade e da sequência operacional de suas partes. O reducionismo como método de análise foi propagado como um artigo de fé para a nova ciência. O funcionamento de máquinas como os relógios podiam ser compreendidos por meio da sua análise e redução aos seus componentes básicos. Da mesma maneira, poder-se-ia compreender o universo físico – que era, afinal, apenas outra máquina – analisando-o ou reduzindo-o às suas partes mais simples: moléculas e átomos. Mas seriam os seres humanos e os animais também uma espécie de máquina? As pessoas passam a considerar o próprio corpo uma máquina feita pelas mãos de Deus, incomparavelmente mais bem-organizada e adequada a movimentos mais admiráveis do que qualquer máquina inventada pelo homem. E assim surgiram, entre os séculos XVII e XIX, a concepção dos seres humanos como máquinas e o método – o método científico – mediante o qual era possível investigar a natureza humana. Assim, dever-se-ia ampliar o ideal mecanicista e aplicá-lo à mente. A psicologia em época de seu surgimento busca reconhecimento por parte da comunidade científica e, nesse sentido, pretende expandir as fronteiras da concepção determinista até a mente. A psicanálise freudiana também se inscreve dentro dessa concepção científica do século XIX. Para Freud, o determinismo é uma realidade inquestionável, e a crença na liberdade carrega uma postura anticientífica. Freud revela:

[...] arrisquei-me a dizer-lhes que os senhores acalentam uma fé, profundamente arraigada, em acontecimentos psíquicos nãodeterminados e no livre-arbítrio; que isso, porém, é bastante anticientífico e deve ceder lugar à necessidade de um determinismo cujo princípio se estende à vida mental. (FREUD, [1916-1915]/1976a, p. 132).

Determinismo em Freud e Schopenhauer

Na concepção freudiana, o determinismo psíquico não é exclusividade dos fenômenos patológicos, aparecendo também nos sonhos e nos atos falhos cotidianos. Assim, existe apenas uma aparente liberdade das funções psíquicas. Negar a determinação dos fenômenos psicológicos seria jogar fora a Weltanschauung da ciência, ou seja, toda a concepção de mundo da ciência (FREUD, [1916-1915]/1976b, p. 42). Para Freud, nada na vida mental é arbitrário, havendo:

muito menos liberdade e arbitrariedade na vida mental do que tendemos a admitir, e pode ser até que não exista nenhuma. Aquilo que no mundo externo denominamos de casualidade pode, como sabemos, ser colocado dentro de leis. Assim também o que chamamos de arbitrariedade da mente repousa sobre leis das quais só agora começamos vagamente a suspeitar. (FREUD, [1907]/1976i, p. 19).

Freud anuncia antecedentes nobres para suas teses do determinismo mental. Para ele, foi a psicologia experimental de Wundt que introduziu a ideia do determinismo psíquico junto à comunidade científica.

Pode-se demonstrar que a ideia referida pelo homem não era arbitrária, nem indeterminável, nem isenta de relação com aquilo que procurávamos. Na realidade, há não muito tempo constatei – posso dizer que sem atribuir muita importância ao fato – que a psicologia experimental também havia obtido provas nesse sentido. (FREUD, 1976a, p. 132).

A escola de Wundt introduziu também o que conhecemos como experiências de associação, nas quais se diz à pessoa uma palavra-estímulo a que a pessoa deve responder tão rapidamente quanto lhe for possível, com qualquer reação que lhe ocorra (FREUD, 1976a, p. 135).

O nome de Wundt é evocado para oferecer legitimidade para a tese do determinismo psíquico, mas Jung e Bleuler demonstraram que a reação à palavra-estímulo refere-se diretamente a uma questão do sujeito.

A escola de Zurique, liderada por Bleuler e Jung, encontrou explicação para as reações que se sucediam na experiência de associação, fazendo as pessoas em experiência elucidarem suas reações por meio de associações subsequentes, no caso de essas reações terem mostrado aspectos marcantes. Constatou-se, então, que essas reações marcantes eram determinadas de forma muito definida pelos complexos da pessoa. Assim, Bleuler e Jung estabeleceram a primeira ponte entre a psicologia experimental e a psicanálise (FREUD, 1976b, p. 135). No entanto, podemos arriscar a dizer que a concepção de Freud sobre o determinismo psíquico se inspira na metafísica de Schopenhauer. No ensaio premiado, “Sobre a Liberdade da Vontade”, resposta à questão colocada pela Sociedade Real de Ciências da Noruega, Schopenhauer ([1841]/s.d.) define e desenvolve sua concepção de liberdade. Schopenhauer (s.d.) inicia sua reflexão distinguindo três tipos de liberdade: a física, a intelectual e a moral. Na acepção física, encontramos o conceito mais original, imediato e comum de liberdade, a qual consiste na ausência de obstáculos materiais que constranjam ou impeçam o livre movimento da vontade. Assim, para o autor, liberdade seria algo negativo que se define pela ausência de qualquer obstáculo. A reflexão sobre a liberdade exige um estudo sobre o conceito de necessidade. Necessário é tudo aquilo que resulta da razão suficiente. Já a liberdade seria a independência absoluta da lei da causalidade, expressão primeira da razão suficiente. Liberdade seria, então, um poder de iniciar uma série por si mesmo, sem causas. Mas todos os objetos da experiência são fenômenos, manifestações da vontade, portanto estão submetidos ao tempo, ao espaço e à lei da causalidade, que constituem as condições de possibilidade da existência desses objetos. O princípio de razão suficiente, condição de possibilidade de todos os fenômenos, é um princípio de determinação universal e necessária. A ausência de causalidade no mundo fenomênico equivale ao acaso absoluto, noção que paralisa o espírito. Assim, positiva é a necessidade; a liberdade é apenas um desvio.

Quanto à liberdade moral, podemos entendê-la em dois sentidos: como potência de agir, que é um conceito empírico de liberdade, em que a consciência ingênua acredita ser possível fazer tudo aquilo que quer; e como potência do querer, em que a liberdade da vontade é considerada em si e por si mesma. Nessa perspectiva, a pergunta em questão é: Será a vontade livre? Ou: Pode-se querer aquilo que se quer? A consciência ingênua considera-se livre, pois pode fazer aquilo que quer; mas seu querer é de fato livre? O testemunho da consciência em relação às volições é simples: Eu posso fazer aquilo que quero. A consciência sabe de sua vontade e da capacidade de seu corpo em movimentar-se na direção da realização. Mas a liberdade do agir não está sendo questionada, questiona-se a liberdade do querer. A consciência ingênua proclamase livre, baseada na liberdade dos atos, mas o problema da liberdade versa sobre as causas e razões da vontade. A dependência ou independência da vontade em relação aos objetos exteriores é um tema estranho à consciência. Segundo Schopenhauer (s.d.), a consciência não poderá nos responder sobre o problema da liberdade, pois “o testemunho da consciência não se refere à vontade senão a parte post, a questão do livre arbítrio, pelo contrário, a parte ante” (SCHOPENHAUER, s.d., p. 67). Constitui um erro procurar a liberdade no operari; a ação é conforme a essência, e a liberdade reside no esse. O sujeito poderia, dentro de idênticas circunstâncias, agir de modo inteiramente diferente, se fosse um outro ser. Assim, a responsabilidade não se refere ao ato; recai sobre o caráter. O homem se sente responsável pelo seu ser, e ser responsável significa admitir que a ação tem uma condição subjetiva, o caráter. Podemos corroborar, então, a afirmação schopenhaueriana de que a ação é conforme a essência e o sujeito é responsável pelo seu ser e seus atos, pensando que a ação é determinada psiquicamente e o sujeito é responsável pelo seu psiquismo e atos. Nessa perspectiva, Freud revela que o psicanalista se distingue pela rigorosa fé no determinismo da vida mental (FREUD, [1910]/1976c, p. 36). Todavia, é importante ressaltar que a psicanálise não trabalha com uma ideia de causalidade simples, linear, calcada no a priori, mas com uma noção de determinismo

múltiplo, às vezes circular e que obedece à lógica do a posteriori, propondo a tese freudiana uma subversão na noção de causalidade. Para Freud, as causas do sofrimento psíquico e dos sintomas psicológicos encontram-se na história do sujeito – na sua trama existencial em um momento anterior ao adoecer. Os sintomas psicológicos são sobredeterminados, e as experiências traumáticas só adquirem essa conotação no depois. Assim, para a psicanálise é fundamental a reconstrução dos “fatos/imagens” psíquicas. No processo de recordar, o paciente colocava-se de volta numa situação anterior, que parece nunca se confundir com a atual. (FREUD, [1912]/1976d). Freud revela que existe um tipo especial de lembrança: trata-se de experiências que ocorreram em infância muito remota e não foram compreendidas na ocasião (FREUD, 1912). A afirmação de que as lembranças mais importantes são aquelas da infância confirma a leitura vulgar da psicanálise como uma terapia que se centra no passado. Todavia, devemos ficar atentos para a sequência da frase, pois Freud aponta o fenômeno do après-coup, ou seja, as experiências apenas serão compreendidas a posteriori. Assim, a concepção de tempo enquanto uma estrutura linear não condiz perfeitamente com a proposta da recordação. Sobre o passado, operase uma significação, e não uma simples rememoração. O passado é aprendido não a partir do que foi, mas antes a partir do que é e será. Percebemos, assim, que mesmo o conceito de recordação não adere perfeitamente à dimensão da temporalidade como progressão linear. Dessa forma, a ideia de “posterioridade” (Nachtäglichkeit) tem um valor operativo no âmbito da teoria determinista freudiana, podendo-se dizer que, na produção de sintoma e no processo analítico, o retorno do recalcado remete ao passado, mas pressupõe o futuro como condição necessária. Ademais, tudo acontece na brevidade do instante presente, no qual o inconsciente se abre, e o sujeito emerge. Assim, a construção sintomática realizase ao longo de um processo tortuoso que sempre mantém a lógica determinista, sem se enquadrar numa lógica linear, mas sim na figura do après-coup, da posterioridade (Nachträglichkeit).

De acordo com Figueiredo (1997), conceber uma experiência passada como irrecuperável pela memória é mostrar que, de fato, ela não aconteceu e só agora, numa nova condição, poderá ser vivida pela primeira vez. Na sua história, o sujeito tenta significar os fatos do mundo empírico que se sucedem no tempo, pois a história não é um amontoado de fatos sequenciais ao acaso; existe uma razão na história. A consciência articula os eventos e cria um sentido para a sucessão dos fatos. É claro que esta significação só pode acontecer a posteriori, ou seja, não é uma ideia que se pode apreender a priori e daí prever o próximo acontecimento. Todavia, a ampliação do determinismo científico até o universo mental constitui, para Freud, um dos obstáculos para aceitação da psicanálise. Do ponto de vista intelectual, devemos considerar, julgo eu, que existem especialmente dois obstáculos, dignos de nota, contra a aceitação das ideias psicanalíticas: primeiramente, a falta de hábito de contar com o rigoroso determinismo da vida mental, o qual não conhece exceção, e, em segundo lugar, o desconhecimento das singularidades pelas quais os processos mentais inconscientes se diferenciam dos conscientes que nos são familiares. (FREUD, 1976c, p. 48). Os preconceitos em relação às teses psicanalíticas podem ser acirrados quando pensamos na hipótese freudiana de uma neurose de destino. Com o conceito de compulsão à repetição, Freud interpreta o fenômeno que aparece nos atendimentos clínicos, a saber, a repetição de situações dolorosas. No processo transferencial, o cliente repete seus laços infantis e reedita suas fantasias, sendo “obrigado a repetir o material reprimido como se fosse uma experiência contemporânea.” (FREUD, [1920]/1976e, p. 31). Mas Freud estende a hipótese da compulsão à repetição para além do espaço clínico, alcançando a vida cotidiana.

O que a psicanálise revela nos fenômenos de transferência dos neuróticos também pode ser observado nas vidas de certas pessoas normais. A impressão que dão é de serem perseguidas por um destino maligno ou possuídas por algum poder ‘demoníaco’; a psicanálise, porém, sempre foi de opinião de que seu destino é, na maior parte, arranjada por elas próprias e determinada por influências infantis primitivas. A compulsão Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional 111

que aqui se acha em evidência não difere em nada da compulsão à repetição que encontramos nos neuróticos, ainda que as pessoas que agora estamos considerando nunca tenham mostrado quaisquer sinais de lidarem com um conflito neurótico pela produção de sintomas. Assim, encontramos pessoas em que todas as relações humanas têm o mesmo resultado, tal como o benfeitor que é abandonado erradamente, após certo tempo, por todos os seus proteges. (FREUD, 1976e, p. 351).

Assim, se levarmos em consideração observações como essas, baseadas no comportamento, na transferência e nas histórias da vida de homens e mulheres, não só encontraremos coragem para supor que existe realmente na mente uma compulsão à repetição (FREUD, 1976e, p. 36), como também ampliaremos o determinismo psíquico até o espaço das escolhas existenciais. Dessa forma, podemos inscrever Freud no grupo dos pensadores deterministas, mas não devemos deixar de mencionar que o tema da liberdade aparece de forma implícita nas discussões sobre a direção da cura. No entanto, essa reflexão parece mais propícia para outro momento. Podemos, por hora, apresentar algumas citações diretas da palavra liberdade.

Liberdade possível: Freud e Schopenhauer

São raras as aparições do termo “liberdade” no texto freudiano em comparação com o vocábulo “determinação”. Contudo, duas passagens parecem ser ilustrativas da forma como Freud trata o tema da liberdade. No Mal-estar na cultura, Freud anuncia um antagonismo entre liberdade e civilização:

A liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização. Ela foi maior antes da existência de qualquer civilização, muito embora, é verdade, naquele então não possuísse, na maior parte, valor, já que dificilmente o indivíduo se achava em posição de defendê-la. O desenvolvimento da civilização impõe restrições a ela, e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições (FREUD, [1930]/1976f, p. 116).

Segundo Freud, o impulso de liberdade do indivíduo é dirigido contra formas e exigências específicas da civilização ou contra a civilização em geral. Nessa perspectiva, o indivíduo irá defender sua reivindicação à liberdade individual contra a vontade do grupo, interpretação que sugere que a civilização cerceia a liberdade do indivíduo, criando um obstáculo para a felicidade. Vale, entretanto, alertar o leitor ingênuo, que poderia pensar que Freud estaria sugerindo uma liberdade total, que, na verdade, seria catastrófica a falta de limitação. O próprio Freud ([1921]/1976g) cita um romance que anuncia ser mentira a história da ressurreição de Cristo e aponta para o desastre dessa liberdade sem fronteiras. Deve-se, ainda, lembrar que, no caso do conflito entre liberdade e civilização, está em questão a ideia de liberdade individual ou livre-arbítrio e não de liberdade moral, pois a liberdade moral pressupõe a escolha por pertencer à humanidade e, por vezes, abrir mão de sua liberdade individual. A palavra “liberdade” aparece, ainda, relacionada com a problemática estética. Para Freud, “seria possível que da liberdade estética brotasse uma espécie de juízo liberado de suas usuais regras e regulações, ao qual, devido a sua origem, eu chamarei juízo lúdico” (FREUD, [1905]/1976h, p. 19). A produção estética preservaria, então, uma cota de liberdade, numa perspectiva que ecoa as teses schopenhauerianas sobre a liberdade presente no salto estético. Entretanto, a própria teoria freudiana apresenta argumentos contrários a essa ideia de liberdade estética quando vincula a produção artística ao ato de sublimação. Afirmar o determinismo da teoria freudiana é uma tarefa muito fácil, mas acredita-se que é necessário compreender também o lugar da liberdade nessa proposta teórica e clínica, pois, se a psicanálise propõe intervir na vida do sujeito, podemos acreditar nas condições de possibilidades da mudança de posição do sujeito frente ao seu sintoma, e parece pouco provável que uma mudança de posição ocorra sem liberdade. Além disso, quando Freud propõe que, no processo analítico, o sujeito deve encontrar-se com o rochedo da castração, entendemos que a psicanálise está propondo uma ética, ou seja, o sujeito deve ingressar no mundo humano, abrir mão do desejo de liberdade ilimitada e aceitar a liberdade moral que rege a vida em sociedade.

Lacan ([1964]/1988) afirma que o inconsciente é ético, e não ôntico, porque é constituído na relação com o outro, e é através dessa relação que se dá o ingresso no mundo humano. Assim, a análise é o encontro com a liberdade moral; ou seja, com a eticidade do inconsciente.

O inconsciente, portanto, determina, mas determinismo e liberdade não são opostos. O ics determina a liberdade moral que anuncia a pertinência ao mundo humano, sendo este, então, um determinismo que anuncia seu encontro com a alteridade através da experiência edípica, momento em que o ics é forjado. No que tange à liberdade possível, temos, também, Schopenhauer, que anuncia a possibilidade da liberdade no ato de negação da vontade individual concomitante à compreensão da verdade metafísica de que a vontade é única e infinita. A possibilidade de superação do individual em direção ao universal situa-se no conhecimento metafísico, não sendo a concretização da liberdade determinada pela razão ou pela submissão à esfera pública, mas a consequência da percepção da verdade metafísica. Assim, a reflexão schopenhaueriana sobre a possibilidade de liberdade aparece em três níveis, a saber: estético, ético e místico. O artista no ato de criação experimenta a liberdade, pois o seu modo de conhecimento não se encontra submetido ao princípio de razão, e sua relação com o objeto não responde diretamente aos caprichos de sua vontade. A ação ética, pautada pelo princípio da compaixão, revela que o sujeito compreendeu que ele e outro são constituídos dos mesmos princípios, e ferir o outro significaria ferir a si mesmo. O fato da consciência do outro é, propriamente falando, a questão da reflexão moral. A liberdade possível se encontra no enlace ético com o outro, pois com ele construímos nossa história e presenteamos nossa vida com o tempo. A beleza do encontro com o outro é poeticamente apresentada por Lima Barreto em “O filho de Gabriela”, conto no qual patroa e empregada, no momento de uma forte discussão, vivem a possibilidade do encontro.

E ambas, pelo fim dessa transfiguração inopinada, entreolharam-se surpreendidas, pensando que se acabavam de conhecer naquele instante, tendo até ali vagas notícias uma da outra, como se vivessem longe,

tão longe, que só agora haviam distinguido bem nitidamente o tom de voz próprio a cada uma delas. No entendimento peculiar de uma e de outra, sentiram-se irmãs na desoladora mesquinhez da nossa natureza e iguais, como frágeis consequências de um misterioso encadear de acontecimento, cuja ligação e fim lhes escapavam completamente, inteiramente... (LIMA BARRETO, [1906]/2005, p. 106).

Considerações finais

Em conclusão a este estudo, podemos pensar que, em última instância, a liberdade se situa no espaço de compreensão da alteridade. Assim, parece fundamental, como sugere Lévinas, rever a afirmação freudiana que aproxima a ideia de Eros da psicanálise com o mito dos andróginos em Platão. O amor do Mito de Aristófanes procura a si mesmo; é um amor incestuoso que regressa a si, que não encontra a alteridade. O amor que apresenta o encontro com o radicalmente outro é proferido por Diotima, através do personagem de Sócrates. Essa tese sugere que o Amor deseja aquilo que não tem e, por esse fato, é carente, caindo por terra a ideia de que ele seria um deus. Nesse sentido, o amor é filho da penúria e da abundância, pois o que o move é a carência, mas o que pode alcançar é a elevação. Segundo Lévinas (1961/1988), o amor visa ao outro na sua fraqueza: “Amar é temer por outrem, levar ajuda à sua fraqueza” (LÉVINAS, 1988, p. 235). A carícia constitui uma experiência paradigmática para descrever esse encontro com o outro, não podendo o eu devorar outro e regressar a si. “Na carícia o que lá está é procurado como se lá não estivesse” (NUNES, 1993, p. 182). O sujeito toca o outro sem dele se apoderar e, no momento em que toca o outro, toca a fragilidade de ambos. Parece-nos pertinente ressaltar que o encontro erótico que abre para o sujeito uma perspectiva para além de sua virilidade não é necessariamente um encontro intersubjetivo. Isso significa que o mais fundamental não é o encontro entre dois sujeitos, mas o encontro com a fragilidade. Lévinas ([1947]/1979) vai além da ideia de intersubjetividade, porque o encontro não é simétrico. Não é exatamente o

encontro entre dois sujeitos que realiza nossa humanidade; o homem é homem no e pelo encontro com a falta, com o limite para a subjetividade viril. O encontro intersubjetivo é o encontro entre duas solidões que podem permanecer em combate eterno. O sujeito, para se realizar, precisa abandonar sua posição viril sem ser esmagado; o eu deve desaparecer para sair da solidão, mas desaparecer não é o mesmo que não existir. Assim, o eu só realiza sua dimensão de sujeito quando se abre e hospeda o outro. Em termos psicanalíticos, o fim de análise “corresponde ao reconhecimento do desejo, a uma certa posição ética” (POMMIER, 1992, p. 203), ou seja, corresponde ao reconhecimento e à sustentação da contradição que funda o humano.

Referências

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