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Ilka Franco Ferrari
Ei-los, os quatro grandes
Audemaro Taranto Goulart
Ilka Franco Ferrari
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São quatro luminares de nacionalidades diferentes. São duas línguaspátria em que se expressaram: dois deles em alemão e os outros dois em português. Três campos do saber se misturam nas suas falas: filosofia, literatura e psicanálise. Estamos falando de um alemão, Nietzsche, de um português, Fernando Pessoa, de um brasileiro, Guimarães Rosa e de um austríaco, Freud. Eles constituem o
núcleo de reflexões e discussões que se fizeram no “II Colóquio Internacional: Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud”, evento realizado em Belo Horizonte, resultado
de uma articulação entre a PUC Minas e a Universidade de Lisboa. Professores de universidades brasileiras e portuguesas debruçaram-se sobre a obra dos quatro pensadores da ciência e da cultura. E o resultado encantou a quantos participaram do evento. Aqui, nesta publicação, fica o registro do que se falou, refletiu e debateu durante três dias, na conferência de abertura e nas mesasredondas.
Comecemos, pois, o trajeto que vai projetar o desfile dos principais participantes do II Colóquio, operando aquele “acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia...,” tal como disse alhures o velho Machado de Assis. A primeira menção, por óbvia, é a da fala de abertura do evento que se deu com a magistral conferência “Além-Deus e Morte de Deus: Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa”, do Professor Paulo Borges, da Universidade de Lisboa. As expectativas que se abriram a partir do anúncio da fala do professor português, desenhadas em função do título de seu texto, tiveram significativa receptividade, levando o público à projeção do que poderia vir a ser o cenário que se delinearia no resto do evento.
A fala de Paulo Borges instigou reflexões aprofundadas que transitaram nos mais diversos níveis, restando delas a convicção de que o ser pensante há de sempre se sobrelevar aos que estacionam na superfície dos fenômenos, sem deles extrair o que pode representar um mais-saber do mundo e da própria existência. Desse modo, o
conferencista reuniu três grandes nomes para mostrar a afinidade temática que promana de suas obras, “à luz de um essencial pensar do impensado”. Nesse ponto capital, discute-se a figura da divindade, considerando as colocações de Mestre Eckhart, frade dominicano, filósofo e teólogo da era medieval, associadas às agudas reflexões de Nietzsche e de Fernando Pessoa.
Do filósofo alemão já são por demais conhecidas suas posições sobre a morte de Deus e quanto a Mestre Eckhart, basta citar uma parte das colocações de Paulo Borges para se ter a dimensão das reflexões do teólogo dominicano no tema em questão. Na conferência do professor da Universidade de Lisboa, lê-se: “Foi quando, ‘por livre determinação da vontade’ (aus freiem Willensentschluß), [o ser humano] saiu dessa primordial e pura imanência recebendo o ser criado, que passou a ter “um Deus”, pois antes de haver “criaturas” Deus não era “Deus”, mas apenas “o que (...) era”, sendo somente pela constituição das “criaturas” que Deus deixa de o ser em si mesmo para passar a sê-lo nelas”. Quanto ao poeta português, cita-se o Tratado da Negação, texto apresentado por Rafael Baldaia, uma das personalidades literárias de Fernando Pessoa, em que se
sustenta que “o Mundo é formado de duas ordens de forças”, as “que afirmam” e as “que negam”, sendo as primeiras “as criadoras do mundo, emanadas sucessivamente do Único, centro da Afirmação”, e as segundas as que “emanam de além do Único”. Assim, o “Único”, ainda que sendo a fonte da emanação criadora confronta-se com as forças que negam e que estão além dele. Também preciosas são as colocações feitas sobre um outro texto de Pessoa, bastante afim ao Tratado da Negação. Trata-se de O Desconhecido, onde se fazem
afirmações que, inclusive, ultrapassam a reflexão filosófica para situarem-se no plano da criação literária, o núcleo da produção artística de Pessoa. É o que se pode constatar
com o conceito mesmo de criação, onde pontifica o princípio de que “Tudo é ilusão”, pois tudo é criação , e toda a criação é ilusão. Criar é mentir e Ser é não-ser”. Nesse conjunto de afirmações, tem-se o cerne mesmo da criação artística tal como postula Wolfgang Iser em seu “Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional” . No caso específico do texto literário, verifica-se que a repetição da realidade é um ato de fingir, um ato que produz uma ação que faz aparecer o imaginário, este sim, uma instância que, ao tornar a realidade um signo, transgride os limites dessa realidade, ao transfigurá-la.
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Na área da filosofia, como não poderia deixar de ser, a obra de Nietzsche foi contemplada pela maioria dos filósofos que participaram do Colóquio. Rogério Lopes, professor da UFMG, focalizou “O modelo político dos impulsos em Nietzsche”, destacando, já no início de seu texto, que “Nietzsche desenvolve seu modelo pulsional em contraposição direta ao modelo proposto por Schopenhauer em sua metafísica da vontade”. Neste aspecto, verifica-se nas reflexões de Rogério Lopes que há uma certa estranheza que os dois filósofos, reconhecidos e respeitados por sua trajetória e partindo de “premissas metafísicas essencialmente iguais”, pudessem alcançar posições relativas a um conhecimento do mundo tão contrastantes.
Para ilustrar como o autor do texto dá a ver a oposição que Nietzsche coloca em relação a aspectos marcantes do pensamento schopenhauriano, cite-se o reparo que Rogério Lopes coloca ao afirmar que “ausência de finalidade da vontade”, que é efetivamente uma das marcas essenciais do conceito schopenhaueriano de “vontade de vida”, não é de modo algum concebida por Nietzsche como tal, mas antes como um resultado contingente e patológico de certas formas de vida e que remete a estruturas do autoengano e a estratégias de autodefesa em situações de vulnerabilidade”.
Outro reparo que Nietzsche apresenta às reflexões de Schopenhauer diz respeito à substituição que o filósofo do “Mundo como vontade e representação”
fez para substituir o dualismo entre corpo e alma pelo dualismo entre vontade e representação. Nietzsche vincou profundamente suas posições sobre o conceito de impulso, marcado sobretudo com a convicção de que todo impulso revela sua propensão à instância do poder. Pode-se, inclusive, reconhecer claramente a contraposição entre Nietzsche e Schopenhauer a partir da passagem seguinte, extraída do texto de Lopes: “Aos olhos de Nietzsche, é mais fundamental restituir algum tipo de intencionalidade ao modo de atuação dos impulsos do que a pluralidade, característica que tem sido destacada pela maior parte dos estudos comparativos dedicados aos dois filósofos”. É significativo, como indica o texto, que Nietzsche tenha privilegiado o poder como elemento definidor dos impulsos na cultura grega. É importante lembrar como o mundo grego seduziu as trajetórias cursadas na filosofia e na estética, oportunidade em que se pode lembrar de Friedrich Schiller que, a exemplo de Nietzsche, amparou muito de suas reflexões sobre a estética a partir da originalidade dos gregos. No que se refere a essa propensão também presente em Nietzsche, é esclarecedora a passagem abaixo, que Rogério Lopes extrai de Humano, demasiado Humano: “Eles eram tiranos, ou seja, aquilo que todo grego queria ser e que todo grego era, se podia sê-lo. Talvez Sólon tenha sido a única exceção; em seus poemas ele diz como desprezava a tirania pessoal. Mas o fazia por amor à sua obra, à sua legislação; e ser legislador é uma forma sublimada de tirania”.
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Outra contribuição destacada no plano da filosofia é “Nietzsche e Wittgenstein: estética e perspectivismo”, do professor português Nuno Ribeiro. As reflexões transitam no espaço que envolve as “conexões entre estética e perspectivismo nos pensamentos de Nietzsche e Wittgenstein, tendo em consideração as múltiplas pistas fornecidas nas obras destes dois pensadores a respeito dessa temática”, conforme anuncia o conferencista.
É comum ouvir-se que a filosofia terá sido o domínio em que mais se aprofundaram as reflexões a respeito da estética, até porque esta é uma instância que envolve concepções e moduladores teóricos que se recobrem numa extensa rede nem sempre acessível a cogitações desprovidas do rigor conceptual que o tirocínio filosófico exige.
No texto de Nuno Ribeiro, pode-se perceber como se desenvolve o raciocínio que aproxima as reflexões de Nietzsche e de Wittgenstein no enfoque do perspectivismo e da estética. No caso de Wittgenstein, o autor do texto chama a atenção para a especial dimensão que coloca a filosofia como “poetar”, no horizonte de concepções do filósofo austríaco. Wittgenstein é, sem dúvida, importante representação de uma inteligência que de modo mais agudo foca a questão da filosofia da linguagem. São muito conhecidas suas posições no advertir que a linguagem não é capaz de dar conta do real, sobretudo nos momentos em que ela se vê incapaz de dizer o que ultrapassa a realidade fenomênica para alcançar uma transcendência. Estabelece-se aí, então, a distinção entre o dizer e o mostrar o que abre a efetiva possibilidade de se pensar na contribuição da estética para tornar mais plausível o dizer e também para mostrar, através do universo sugestivo da construção poética, o que se pode vislumbrar numa realidade transcendente.
Isso é o que se pode apreender das palavras de Nuno Ribeiro quando diz que “a concepção da filosofia como “poetar”, presente no pensamento de Wittgenstein, deve ser, então, compreendida no quadro da construção wittgensteiniana de jogos de linguagem fictícios e na capacidade da linguagem de inventar outros modos de olhar para um mesmo objeto. No que se refere ao perspectivismo em Nietzsche, que abre a compreensão para se pensar a dimensão estética na obra do filósofo, o conferencista chama a atenção para a “criação de uma pluralidade de personagens conceptuais correspondentes a uma pluralidade de perspectivas e alternativas, representando várias possibilidades de se relacionar com o mundo”. Isto equivale uma multiplicidade de pontos de vista acerca
de um mesmo objeto. Nuno Ribeiro ainda refere-se à criação de uma pluralidade de
personagens conceptuais em Assim Falava Zaratustra: os “homens superiores”, o “sobrehumano”, o “último papa” e os “pregadores da morte”. Completando a relação entre a estética e o perspectivismo nietzschiano, o texto indica também uma pluralidade de estilos, tal como se pode notar em passagens de Ecce Homo em que pontificam sinais tipicamente estéticos como a afecção interior, marcada no ritmo em que eles se fazem presentes.
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Ainda nesse campo, destaque-se o texto “Os paradoxos da liberdade em Freud e Schopenhauer : o amor e o outro”, da professora da PUC Minas, Jacqueline de Oliveira Moreira. Tomando o tema da liberdade, a autora do texto ressalta que a liberdade se caracteriza “no espaço de reconhecimento do outro, sendo o amor uma possibilidade de abertura ao campo da alteridade”. Desenvolvendo seu raciocínio, Jacqueline Oliveira elege a metáfora do relógio para mostrar que o funcionamento das máquinas podia ser compreendido através de uma análise que levasse em conta o conhecimento de seus componentes básicos. Essa é uma premissa da ciência que se assenta nos princípios da física de Newton, em que prevalece um grande determinismo que pode ser assim sumariado: se se souber num determinado momento onde e como os corpos se encontram, como se dá seu movimento e sob que influência, será possível determinar como se dará seu futuro.
Mas Jacqueline pergunta se os seres humanos e os animais seriam uma espécie de máquina, mostrando como no século XIX desenvolveu-se o postulado de considerar o ser humano como máquina. Isto, evidentemente, abria a perspectiva de se poder investigar a natureza humana sob ângulos supostamente precisos. O texto avança, então, para mostrar como Freud, fundando-se em Schopenhauer, valoriza o determinismo psíquico, já que nada na vida mental é arbitrário. Como se sabe, Freud, no seu Mal-estar na cultura, coloca liberdade e determinismo em campos antagônicos. O texto destaca, então, o aspecto da liberdade individual que o
sujeito procura, advertindo que não se pode ingenuamente pensar que Freud estivesse postulando a liberdade total já que isso poderia produzir efeitos danosos aos indivíduos. Citando Lacan, Jacqueline Oliveira mostra que o inconsciente é ético e não ôntico porque é constituído na relação com o outro Destacando os lugares que determinismo e liberdade ocupam em todo o processo, o texto coloca reflexões que são esclarecedoras para a compreensão dessas instâncias e do papel que lhes cabe no sistema: “O inconsciente, portanto, determina, mas determinismo e liberdade não são opostos. O ics determina a liberdade moral que anuncia a pertinência ao mundo humano, sendo este, então, um determinismo que anuncia seu encontro com a alteridade através da experiência edípica, momento em que o ics é forjado”.
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A obra de Nietzsche tem abordagem bastante original e produtiva no texto “Nietzsche e a experiência musical: três momentos, três luminosidades”, de Clóvis Salgado Gontijo Oliveira, professor na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Clóvis Oliveira indica, inicialmente, a divisão que Charles Andler fez da obra do filósofo, marcada em três fases: a do “pessimismo romântico” (1869-1876), seguida pelo chamado “positivismo cético” (1876-1881), alcançando-se a terceira fase a que se denominou “período de reconstrução” (1882-1888). A proposta do conferencista foi abordar o primeiro momento em que se fazem presentes a metafísica de Schopenhauer e o projeto artístico-musical de Wagner, chamando a atenção para o fato de que se insinua nesse segmento uma simbologia marcada nos indicadores da luz e da obscuridade. É notória a perspectiva que o texto abre para deixar clara a importância do fenômeno musical na obra de Nietzsche, de vez que a presença da música se espalha por grande parte da produção do filósofo, podendo ser rastreada nas três fases a que se aludiu. Assim, Clóvis Oliveira mostra que ao “pessimismo romântico corresponde
exacerbado elogio às potencialidades musicais e ao drama wagneriano; ao positivismo cético, um momento de “niilismo musical”, regado de críticas ao repertório romântico e pontuado por passagens de desvalorização da própria arte sonora e do sentido auditivo; e ao período de reconstrução uma retomada da apreciação positiva do fenômeno musical, a essa altura apoiada sobre novos fundamentos, assim como sobre novas composições e estilos”. É bastante significativa a valorização da noite enquanto momento criador e de inegável propulsão, tal como se pode depreender da citação que se faz de Albert Béguin, para quem a noite é “a mãe do Dia, a fonte dos seus esplendores: sem ela, o mundo da luz acabaria por se desfazer no espaço infinito. E foi a Noite quem enviou as criaturas ao mundo, para que o santifiquem pelo amor e nele semeiem flores imperecíveis”. Estaria nessas perspectivas a valorização que o jovem Nietzsche faz da esfera sonora devido a suas raízes noturnas e obscuras. Também notória é a associação do noturno com a figura de Dioniso, o deus dos movimentos descentradores. Seus cultos orgíacos desenvolviam-se preferentemente à noite, em contraposição ao divino Apolo, o deus-sol e da inspiração profética, marcado pela luminosidade do dia resplandecente. Nessa condição, a música, por sua associação com a noite e o mundo obscuro, como que indica a diminuição do valor do visual que se associa à claridade e à percepção exteriorizada do mundo. É também significativa a colocação que põe em relevo a arte sonora enquanto afirmação da metafísica da música em Schopenhauer, uma posição que Nietzsche acolheu inicialmente. Clóvis Oliveira explicita isso de modo consistente quando evoca o capítulo 52 do livro III da obra schopenhaueriana O mundo como vontade e representação, destacando a independência que a música tem em relação aos fenômenos uma vez que as demais artes sempre têm na sua perspectiva a representação de um modelo, o que não se dá com a música já que nela não se foca um objeto externo para se pôr em evidência e nem mesmo em ideias que pudessem representar algo mais objetivo.
Citando Schopenhauer, o texto mostra que a música, ‘pela sua natureza nunca pode constituir o objeto de uma representação’. “Em outros termos, a música se definiria ‘como cópia de um modelo que nunca pode, ele mesmo, ser representado diretamente’, ou seja, para além de um mero jogo de palavras, como representação do irrepresentável”. A fala de Clóvis Salgado de Oliveira levanta aspectos importantes para se pensar a música de uma outra perspectiva, não aquela a que, normalmente, estão afeitos aqueles que com ela se deleitam.
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O texto do Professor Olímpio Pereira, da UFOP, também investe na questão do perspectivismo, como o demonstra o seu “Notas sobre perspectivismo e heteronímia”, que procura estabelecer uma articulação entre a filosofia perspectivista de Nietzsche e a poética. Reconhecendo que a dimensão da heteronímia está associada à pluralidade (e aí cita-se uma frase de Fernando Pessoa: “Sê plural como o universo!”), o conferencista chama a atenção para a necessidade de que os sujeitos reconheçam tal aspecto em si
mesmos.
A heteronímia, pelo que traz de possibilidades de confronto com a realidade objetiva, dá a ver sua condição de movimento verticalizado, até porque se assenta sobre o aspecto de trabalhar com dados que não variam. Desse modo, Olímpio ilustra a variedade, ou a multiplicidade, com os heterônimos de Pessoa, lembrando que existe uma significativa diferença ente Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, tanto nos aspectos do temperamento quanto nos da formulação de ideias. É assim que o texto destaca o fato de que os dois heterônimos “não são tipos distintos, derivados de uma humanidade essencialmente comum, mas entes realmente diferentes, pouco importando se de carne ou papel, que só existem a partir da tensão recíproca vigente entre eles”.
Inserindo a figura de Nietzsche nas reflexões, o autor do texto chama a atenção para o comprometimento que o filósofo tinha, em seu primeiro livro, com o par conceitual essência/aparência, o que vai ser redesenhado posteriormente para a recusa do dualismo que acaba substituído pela pluralidade efetiva do mundo vivido. Não é, pois, absolutamente explicável que tal disposição nietzschiana tenha marcado de maneira tão
singular muitos filósofos que o sucederam no tempo, como é o caso de Jacques Derrida que investe decididamente contra toda e qualquer espécie de dualismo.
Mas a questão do perspectivismo levanta uma dificuldade que é apontada no texto. Como de um ponto de vista seria possível determinar todos os outros? Isso pode indicar também uma outra formulação como, por exemplo, indagar se a enunciação da verdade sobre o todo não dependeria de um olhar totalizante, não perspectivo.
Mas a coerência que se pode determinar na dimensão do perspectivismo resulta,
no caso da dificuldade apontada acima, na colocação de que a verdade não pode ser vista entre as palavras e as coisas mas entre os participantes de uma vida comunitária. Assim, como diz o texto, “verdade e erro dizem respeito a nossa apropriação do entorno, e não ao que quer que sejam os objetos que povoam este entorno”. Há, assim, na fala de Olímpio Pereira, o reconhecimento de que nossa cognição estabelece uma mediação com os objetos que procuramos conhecer mas nosso acesso a qualquer realidade última é impossível, embora isso não decorra de falha de nossa cognição mas sim da contestação do ideal de episteme, uma vez que se
caracteriza a impossibilidade da verdade definitiva. Olímpio Pimenta refere-se, já nos encaminhamentos finais de seu texto, à natureza antropomórfica e ficcional do conhecimento. Isso parece bem configurado na famosa conceituação que Nietzsche faz a respeito do tema, tal como está num texto de 1873, publicado postumamente, indicando que o conhecimento não tem origem mas sim o fato de que o conhecimento foi inventado. Ao falar do assunto no seu A verdade e as formas jurídicas, Foucault fala da beleza e das dificuldades desse texto, chegando, inclusive, a colocar no mesmo plano da invenção a religião e a poesia.
É esclarecedor, nesse sentido, o que o professor da UFOP coloca como fecho de seu texto: “Reconhecido o caráter antropomórfico e ficcional do conhecimento, o mais honesto a fazer é reduzir os danos disso em nossos empreendimentos que envolvem a cognição. Nessa direção, Nietzsche obtém bons resultados ao promover um desencantamento da linguagem, denunciando o fetichismo vigente em seus usos corriqueiros, conforme sugerido anteriormente. Se o que chamamos de mundo é resultado de nossa apropriação, algo que se torna mundo ao ser moldado segundo nossa imagem, importa multiplicar ao máximo as formas dessa imagem, estimulando a produção de sensibilidades variadas, o que trará consigo novas perspectivas, e daí novos mundos. Onde o poeta português encontra ocasião para a proliferação de estilos e personalidades, o filósofo alemão cria tipos e personagens conceituais. Em última análise, um heterônimo equivale a uma perspectiva complexa”. Note-se, então, a confluência entre as reflexões de Nietzsche e a produção poética de Fernando Pessoa. Há ali toda uma concepção de pluralidade, como a apropriação que fazemos do mundo, segundo nossa imagem. O poeta se multiplica de tal modo que sua heteronímia é muito mais ampla que os quatro autores que normalmente são citados. Especialistas chegam a falar em setenta e quatro, havendo mesmo alguns exagerados que elevam esse número a mais de duzentos. De todo modo, isso é o resultado da produção desse poeta tão múltiplo que o mundo parece ser pequeno para tantas projeções em perspectiva.
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A área da psicanálise produziu inúmeras reflexões situadas no seu núcleo específico assim como variadas intertextualizações com outros segmentos. É o caso do texto “Experiência estética e liberdade em Freud e Nietzsche”, de Guilherme Massara Rocha, professor da UFMG, que propõe um diálogo entre a psicanálise e a filosofia,
com aproximações que focalizam as obras de Kant, Schopenhauer e Nietzsche
Lugar de destaque é conferido à presença da ciência e da arte na obra de Freud, daí a proposição de Guilherme Massara de indagar “em que medida episteme e ars poética coexistem na doutrina metapsicológica”. A importância que Freud atribuiu às manifestações artísticas dizem muito desta pertinência com a prática da psicanálise. Lembre-se, a respeito, o clássico O poeta e o fantasiar, texto iluminador da proximidade entre a criação literária e a fantasia infantil na criação de brincadeiras.
Destaquem-se, então, as esclarecedoras afirmações que Guilherme Massara faz a respeito do tema quando coloca: “De modo geral, a atividade artística é compreendida por Freud como uma via privilegiada de expressão e transformação do
conflito psíquico. O artista lhe aparece, pois, como alguém que cria com seus objetos vias de escoamento para aspectos de sua constituição pulsional que, de outro modo,
assumiriam características afins ao sofrimento psíquico”. Diga-se ainda que as reflexões que Massara faz a respeito do sublime são absolutamente essenciais para compreender a caracterização da fruição a que se entrega o sujeito diante do belo. Falando da redescoberta do sublime por Edmund Burke em
meados do século XVIII, Guilherme Massara faz instigantes reflexões que mostram a relação que se estabelece entre a sublimação freudiana e a noção de sublime.
Cite-se, a propósito, as seguintes colocações sobre o tema, feitas pelo conferencista: “A doutrina freudiana da sublimação, brotada do solo de investigações sobre as vicissitudes da sexualidade, culmina com um certo apelo de espiritualização que se traduz, no texto de Freud, pela ideia de que os objetos por ela visados seriam
mais “elevados”. Essa proposição, conjugada à ideia de que a sublimação visaria uma certa “desexualização” da pulsão, dá ensejo às inferências de que o movimento sublimatório tem por horizonte uma certa tomada de distância em relação ao sensível, ou aos apelos do pathos erógeno da constituição e dos apetites corpóreos”. Acrescentando as reflexões de Kant sobre o sublime, o conferencista faz afirmações que projetam um conceito bastante esclarecedor do sublime, na medida em que chama a atenção para o fato de que a experiência diante dele coloca-se como comoção, “como pura expressão de assombro diante da incomensurabilidade do
real (ou da natureza, como prefere Kant) ou como “calma sombreada de horror” na expressão de Edmund Burke (BURKE, 1757/1998), p.79), derivada da timbragem aniquilante que se impõe ao sujeito frente ao peso do universo infinito”. Na esteira de Kant, coloca-se que o sublime produz uma passagem ao suprasensível o que retira “os objetos humanos do domínio da razão teórica e os reabsorve no plano da razão prática”, destacando que o “momento trágico” de sua filosofia situase na aludida passagem da razão teórica à razão prática como passagem do sensível ao supra-sensível”. Como se pode deduzir de quanto aqui se sumariou, o exame e a tipicidade da obra de arte passam por circuitos que não se limitam, exclusivamente, à manifestação de uma beleza que subsumiria o reconhecimento de uma subjetividade privilegiada.
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A intercessão da psicanálise com a literatura tem presença significativa no texto “Letras em análise”, do psicanalista português José Martinho, Presidente da Antena do Campo Freudiano, de Portugal. Referindo-se a uma afirmação de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, de que “toda arte é literatura”, Martinho assegura que a psicanálise “pode extrair, do mais manifesto ao latente das obras, poemas, dramas, romances, em suma, frases silenciosas ou não que podem ler o sintoma ao pé da letra”. Daí o interesse do conferencista em ler o sintoma de Fernando Pessoa e, para fazê-lo, detalha, dentre várias perspectivas, uma das mais instigantes que é o relacionamento do poeta com Ophélia Queiroz. Neste particular aspecto, José Martinho mostra como Pessoa age no sentido de desviar-se “do alvo genital da libido”, tal como se observa
numa das asserções mais curiosas do poeta, ao romper o namoro com a suposta mulher amada, afirmando surpreendentemente (para Ophélia e para os leitores) que “o seu destino não pertencia a nenhuma mulher, mas a Mestres obscuros, que não permitiam, nem perdoavam”.
É também relevante a afirmação que o autor do texto faz ao dizer que tal desfecho como que já estava consignado desde o princípio do relacionamento, a partir da constatação de que Ophélia tem o mesmo nome da personagem trágica do Hamlet, de Shakespeare, e isso não seria uma mera coincidência. Martinho arremata a aproximação, dizendo que “Ophelia provém etimologicamente de Omphallus, o O-falo cobiçado, a conquistar, mas que acabou por murchar, morrer, como acontece na tragédia do Bardo com aquela com quem o filho do Ghost se devia casar”.
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Há uma proximidade entre a abordagem anterior, do Prof. José Martinho, e a conferência da professora Magda Guadalupe dos Santos, da PUC Minas, que focaliza a questão das figuras do feminino na obra poética de Fernando Pessoa. Magda elege como núcleo de suas reflexões a correlação entre textos pessoanos, como as “Quadras ao gosto popular”, algumas cartas de Pessoa para Ophélia Queiroz e o texto autodiegético “Carta da corcunda ao serralheiro”. É nesses textos que se manifesta e se disfarça a figura do poeta Fernando Pessoa que prodigaliza diversas máscaras para pôr em circulação um olhar multifacetado na direção dos seres e de sua situação no mundo. Esta perspectiva que busca compreender o sujeito, muitas vezes, na sua mais recôndita intimidade, oferece notável extração, sobretudo quando se colocam lado a lado as cartas dirigidas a Ophélia, na sua suposta postura realista, e o texto ficcional “Carta da corcunda ao serralheiro”.
Magda destaca com pertinência que nas cartas a Ophélia pode-se perceber uma articulação entre verdade e ficção o que, inclusive, permite que o heterônimo pessoano Álvaro de Campos insira-se nessa teia de relações, delineando ainda mais significativamente esse jogo de vida e arte. É nesse cenário, como Magda Guadalupe observa, que se encontra a famosa afirmação da carta 22, quando Pessoa adverte a jovem Ophélia, dizendo: “Tens hoje do teu lado o meu velho amigo Álvaro de Campos, que em geral tem sido só contra ti! Alegra-te!”
Uma observação que também tangencia o texto de José Martinho é a seguinte observação de Magda Guadalupe: ”Vale tocar de leve nesse feminino que surge nas cartas. Há de se realçar como faz notar José Augusto Seabra, que Ophélia tem o mesmo nome da personagem de Shakespeare em Hamlet, o qual é também evocado por Pessoa! E sua amada surge em situação de “eterna infância” dentro de um espaço intangível; “menos como mulher que como ser infantil”. Outro destaque que se encontra no texto da professora da PUC são as observações que dão conta de que em Pessoa se pode perceber uma certa negação da mulher ou negação da possibilidade amorosa. Os exemplos mais ilustrativos disso estão na “Carta da corcunda ao serralheiro”. É aí que se depara com um significativo travo que é colocado pela diferença, ocasião em que a jovem corcunda explicita na carta sua lamentosa condição: “Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio”. Um outro ponto de destaque que as reflexões expressas no texto colocam é o fato de Pessoa antecipar, com grande antecedência, traços marcantes do século XX, como “a desconstrução da identidade”, em Jacques Derrida. De um ponto de vista hermenêutico, a heteronímia equivale a uma profunda crítica à tradição filosófica, indicando a ficção e não a verdade como condição essencial do sujeito moderno. A partir da despersonalização que se pode ver na figura da jovem corcunda, há que se concordar com o texto de Magda, no momento em que ele põe a descoberto um princípio notório nos nossos tempos que é a desconstrução da “crença na unicidade do sujeito enquanto a grande ficção da contemporaneidade, revelando-se, ao mesmo tempo, como o principal aspecto das figuras do feminino na produção de Fernando
Pessoa”.
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A professora Márcia Rosa, da UFMG, produz, em seu texto “O psicanalista, o linguista e o poeta – ‘... no fim tudo termina em silêncio e poesia!?’”, uma
aproximação muito pertinente da dimensão psicanalítica com a literatura. Para tanto,
começa mostrando uma perspectiva lacaniana quando afirma que o alcance do dizer psicanalítico não pode ser percebido nos patamares da lógica, razão por que o mestre francês “se volta para o poético na expectativa de instituir uma prática na qual o som e o sentido se uniriam estreitamente”.
Essa posição vai sendo trabalhada ao longo do texto, levantando aspectos
instigantes como a afirmação de que não há saber no real, do que resulta a possibilidade de ocorrerem efeitos de poesia. E tais efeitos seriam transmitidos “não apenas por
cintilações e opacidade, mas também por efeitos de ressonância (assonâncias, dissonâncias etc.) e de esburacamento.
Compreendem-se bem as colocações de Márcia Rosa, na medida em que se aceita a língua como o elemento que, na verdade, cria o real, posto que é a presença do signo linguístico, nomeando as coisas, que faz com que essas coisas existam. Sabe-se que o ser tornado realidade pela linguagem ainda carece de notórias falhas, ou, como
diz a conferencista, de “esburacamentos”, o que se liga à afirmação de Octavio Paz quando destaca que “o valor das palavras reside no sentido que ocultam. Ora, este sentido não é senão um esforço para alcançar algo que não pode ser alcançado pelas palavras. Com efeito, o sentido aponta para as coisas, assinala-as, mas não as alcança jamais. Os objetos estão mais além das palavras”.
Márcia Rosa também produz considerações baseadas em reflexões de Jacques Lacan, como a interlocução que o psicanalisa faz com o poeta chinês François Cheng
e com o linguista russo Roman Jakobson, em que pontuam as considerações sobre a poética e sobre a articulação entre o som e o sentido. É interessante acompanhar no texto as colocações sobre a poesia de Cheng, considerando o mandarim, principal dialeto da língua chinesa. O impressionante nesse aspecto é o que o texto nos diz, ao mostrar que, no mandarim, “as palavras são monossilábicas e isso faz com que o discurso chinês tenha um ritmo de toque de tambor. Como existem apenas 420 sílabas em mandarim (à diferença do inglês, por exemplo, no qual existem 1.200), e como um vocabulário chinês completo contém aproximadamente 50.000 palavras, existem
muitas palavras pronunciadas com o mesmo som ou sílaba. Para diferenciar algumas delas, usa-se o recurso dos tons. Cada um dos caracteres tem um tom fixo, de modo que cada sílaba acentuada numa sentença mandarim é pronunciada em um de quatro tons: “elevado-uniforme”, “elevado-subindo”, “baixo-subindo” e “baixo-caindo”. Destacando a riqueza homofônica da língua chinesa, Márcia Rosa chama a atenção para o fato de que no chinês é possível, na exploração das metonímias, a significação alcançar um significativo aprofundamento. Mantendo a ênfase na articulação som/sentido, o texto destaca, em seguida, as reflexões de Jakobson voltadas para o poeta Fernando Pessoa que merece dele sutis e preciosas colocações sobre o poema “Ulysses”, em que se aponta a degeneração do mito em lenda, do que a ensaísta extrai uma interessante indagação, no sentido de se investigar a possibilidade de se considerar os heterônimos pessoanos como lendas de Fernando Pessoa.
Na evolução das reflexões, Márcia Rosa traz para o centro das discussões a figura de Jean-Claude Milner que destaca como Jakobson, de certo modo, se identifica nos binarismos e simetrias tais como código-mensagem, metáfora-metonímia, seleçãocontiguidade, correlação-disjunção. Os pares de combinação poderiam assim expor uma perfeita ordenação da linguística à poética. Mas tal ordenação pode sofrer um choque quando surge algo que não seria explicado por suas ordenações como uma imparidade ou uma dissimetria, tal como argumenta Milner, advertindo que é nesse aspecto que “o linguista encontra o limite de seu saber: a língua apresenta-se a ele em um ponto sobre o qual não tem influxo, pois é um ponto de falta irremediável”. Aliás, possibilidades como as que Milner apresenta acabaram minando aquele supostamente sólido terreno em que se ergueram os alicerces das reflexões do formalismo e, posteriormente, do estruturalismo. E é no momento em que se vislumbra essa fratura da língua que o poeta se cala.
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O texto “A verdade extra-moral de Nietzsche a Freud”, do professor Antônio Teixeira, da UFMG, põe em questão a ideia de que a produção do saber nada tem de uma atitude contemplativa neutra mas, muito ao contrário, origina-se necessariamente de uma relação de força, de sofrimento e de dominação. Nesse sentido, o conferencista propõe um trânsito entre Nietzsche e Freud, destacando, em um de seus momentos mais agudos, que “tanto Freud quanto Nietzsche transtornam por dizer a verdade, o dizer-a-verdade do qual se trata perturba justamente por ser algo radicalmente distinto de um procedimento de conhecimento ou de demonstração objetiva de uma realidade neutra”. Neste ponto, Teixeira coloca em circulação o conceito de parrésia, associando-o à pretensão de “dizer-a-verdade”, esclarecendo que, na filosofia antiga, entende-se a parrésia como “a fala franca que se distingue da lisonja, da fala de quem visa agradar”. Essa aproximação, fundada em Foucault, tem grande rendimento, na medida em que, para o filósofo francês, a relação entre verdade e saber situa-se nos escaninhos de uma “Teoria geral do poder”. É notável a evocação que Foucault faz dessa questão, sobretudo quando afirma que o saber, como lembra Antônio Teixeira, “em sua relação com a verdade, deve ser pensado nos termos de uma Erfindung, de uma invenção derivada de um jogo de relações de poder, e não de uma Ursprung, de uma origem naturalmente disposta no intelecto humano”. Diga-se que, sobretudo, em termos do conhecimento, algo tão sensível ao interesse e à sensibilidade humana, Foucault é implacável no apontar essa inexistência de origem. Desse modo, o filósofo avança para dizer que a Erfindung caracteriza o conhecimento, assim como também caracteriza a religião e a poesia, arrematando que “no final do primeiro discurso de A Genealogia da Moral [tem-se] essa espécie de grande fábrica de grande usina, em que se produz o ideal”. Foucault mostra então que a Erfindug é uma ruptura, sendo algo mesquinho e inconfessável que se produz por obscuras relações de poder.
Neste cenário, Antônio Teixeira deixa expressa a posição de que a parrésia não se propõe a demonstrar a verdade, a fazer-se uma retórica ou tentar persuadir, já que seu fito é dramaticamente único, como se pode depreender da citação seguinte: “O parresiasta não ensina: ele lança uma verdade cortante na cara daquele a quem se dirige, sem seguir o curso próprio da pedagogia, que vai do conhecido ao desconhecido”. Finalizando, pode-se extrair, como uma conclusão irremediavelmente sintética, devido às finalidades deste texto, o que sobressai nas agudas considerações propiciadas pelo texto de Teixeira na iluminação oferecida pela parrésia, no sentido de que o dizer-a-verdade revela as relações de poder, pondo à mostra “efeitos imprevisíveis, não codificados institucionalmente”.
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Como era de se esperar, o poeta Fernando Pessoa foi focalizado por inúmeros dos participantes do Colóquio. Já na conferência de abertura o poeta português alinhou-se ao lado dos filósofos Mestre Eckhart e Friedrich Nietzsche, assim como nos enfoques de outros conferencistas que estabeleceram uma interlocução de Pessoa com filósofos e psicanalistas. Outras abordagens fizeram do autor de Mensagem o protagonista de suas reflexões, como é o caso do texto “A vertente utópica-milenarista do pensamento de Fernando Pessoa”, apresentado em conferência do professor José Eduardo Reis, da Universidade Trás-os-Montes e Alto Douro. Mostrando como o pensamento profético-utópico de feição milenarista prossegue, desde as mais remotas origens da civilização e da cultura ocidentais, Reis destaca que tal tradição tem percurso importante na perspectiva utópica que se pode encontrar na obra pessoana, através de singular recriação literária e filosófica que revela uma “aspiração teleológica da redenção da história e da sublimação ontológica da humanidade”.
O pensamento profético-utópico ecoa profundamente na obra de Fernando Pessoa pelo fato mesmo de vislumbrar singulares atributos do povo português,
sobretudo quando se percebe que a utopia do enfrentamento dos mares e as grandes conquistas portuguesas já não se fazem tão notáveis à época mesma de Pessoa. Como observa o professor José Eduardo, o próprio poeta dá vazão a tal sentimento quando diz em um dos poemas de Mensagem: “Screvo meu livro à beira-mágoa”, bastante revelador de um certo desencanto com a decadência portuguesa. Não admira, pois, que Fernando Pessoa como que intenta o exercício da esperança quando destaca as três realidades sociais que fazem tanto sentido para ele, expressas na tríplice expressão do indivíduo, da nação e da humanidade. Dentre tais instâncias, o poeta privilegia o indivíduo porque, como diz o texto da conferência, “o indivíduo é a realidade suprema porque tem um contorno material e mental – é um corpo vivo e uma alma viva”. É nessa dimensão que se pode destacar, tal como explicitado no texto, uma temática prospectiva que recupera uma expressão milenarista judaico-cristã, nomeada como Quinto Império, que seria “a hipótese desejada de uma nova ordem universal, um império cultural e civilizacional que teria por alvanca a nação portuguesa, por voz profética a sua própria e por agente messiânico a figura simbólica do Encoberto, um D. Sebastião, com o qual o próprio Pessoa se parece identificar”. É importante salientar uma significativa observação que o professor de Trásos-Montes e Alto Douro faz. Como se sabe, a utopia do Quinto Império, tal como concebida pelo Padre Antônio Vieira, representava um sonho mítico segundo o qual Portugal consumaria a realização do reino universal de Cristo através da ação do rei D. João IV. Entretanto, Reis observa que, em Fernando Pessoa, Portugal não seria o “lugar de nascimento de um imperador, representante do poder secular, com a função messiânica de partilhar com o Papa, representante do poder espiritual, a governação diferida de Cristo por um período de mil anos, mas porque a nação portuguesa estava destinada a inaugurar uma forma última de síntese cultural-espiritual. Na lógica profética de Pessoa, claramente tributária de uma concepção evolutiva-progressista da história, cada novo império teria sucedido ao anterior por um efeito de superação e de realização de uma síntese civilizacional superior, faltando agora consumar-se a síntese civilizacional derradeira”.
Nessa perspectiva de Fernando Pessoa, o texto da conferência destaca que a questão bíblica do Quinto Império ultrapassa o aspecto teológico-doutrinal para colocar-se no plano de uma esperança universal, apontando a possibilidade de voltar-se para o homem, procurando possibilitar-lhe a descoberta das potencialidades humanas.
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Com seu texto “Sinto-me múltiplo: a pré-heteronímia pessoana e o romantismo alemão”, a professora Cláudia Souza levanta aspectos muito interessantes sobre a questão da pré-heteronímia ou, talvez fosse melhor dizer, sobre as personalidades que aparecem na obra de Fernando Pessoa. E ela o faz, aproximando a produção do poeta do romantismo alemão, quando põe em destaque os conceitos de sinfilosofia e simpoesia que significam, respectivamente, filosofar com e poetar com. As quatro personalidades que Cláudia Souza focaliza têm estreita ligação com a sinfilosofia e a simpoesia, como se pode ver no denominado projeto The Transformation Book em que Pessoa põe em destaque as quatro personalidades identificadas com Alexander Search, Pantaleão, Jean Seul de Méluret e Charles James Search. É interessante notar a observação feita por Cláudia Souza, dando conta de que The Transformation Book seria uma espécie de “ante-câmara do momento da criação dos três importantes heterônimos pessoanos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, cada um com uma biografia própria, com um estilo próprio, mas compartilhando aspectos comuns, como é o caso de Reis e Campos que consideram Caeiro seu Mestre”. É imperioso chamar a atenção para o caso da multiplicidade de personalidades que aparecem na obra de Fernando Pessoa. Na verdade, elas estabelecem um diálogo que é, muitas vezes, inesperado, não apenas pelo fato, como observa a conferencista, de que a produção com tais pré-heterônimos envolve uma dupla participação, caracterizada pelo próprio Pessoa e pela personalidade que ele cria, mas também porque essa ambivalência também pode evoluir para um dialogismo ainda mais surpreendente, como é o caso de Alexander Search que parece ser o “herdeiro de um
outro eu pessoano, Charles Robert Anon, personalidade literária que acompanhou Pessoa na viagem do regresso definitivo à Lisboa em 1905”. Os registros e as reflexões que Cláudia Souza faz sobre a importante questão da pré-heteronímia em Fernando Pessoa são de capital importância para o leitor que admira a obra do poeta dar-se conta de detalhes que, muitas vezes, nem são mencionados quando se fala dos heterônimos estelares como Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. É nesse cenário que se poderá ver como Alexandre Search ocupa o centro no projeto The Transformation Book. A riqueza que a leitura dessa criação pessoana oferece dá a ver, muito singularmente, que nas biografias esboçadas de Jean Seul e de Charles James Search existem referências explícitas a Alexandre Search, assim como é significativo o fato de que a obra de Pantaleão faz interlocução com a de Search, manifestando interesse e preocupação com os aspectos políticos portugueses e com a leitura de obras psiquiátricas. Esse autor prolífico, que frequentou inúmeros cenários literários, políticos e culturais da vida portuguesa, consegue, com sua estratégia de representar-se em personalidades outras, traçar um amplo painel de um mundo que ecoa até os dias contemporâneos.
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Às vezes, encontram-se contabilistas que revelam, com admissível orgulho, o fato de Fernando Pessoa ter atuado profissionalmente nesta área. Esse detalhe pode não ser insólito mas chega a surpreender muitos dos admiradores do poeta, posto que a dimensão da obra literária pessoana como que afoga quaisquer outras perspectivas que não estejam ligadas ao seu universo estético. Mas é possível movimentar-se no terreno que inclui os dois planos da trajetória de Fernando Pessoa. É o que se poderá ver com o texto “Fernando Pessoa: heteronímia e organização”, do professor Marcus Vinícius de Freitas, da UFMG.
Chamando atenção para publicações que Pessoa fez na Revista de Comércio e Contabilidade, em 1926, sobre análise econômica e de organizações, Freitas destaca um texto publicado no número 4 da referida Revista cujo título é “Organizar”. Esses e outros textos publicados pelo poeta dão, segundo Marcus Vinícius, uma clara noção de que Fernando Pessoa ao falar de economia política faz uma clara defesa da iniciativa econômica individual enquanto também critica o papel centralizador do estado, uma posição nitidamente liberal. O texto do professor da UFMG coloca de modo bastante pertinente a efetiva possibilidade de se estabelecer, em Pessoa, um vínculo entre os escritos de economia política e os que se situam no plano estético. Isso está bem explicitado na referência que se faz entre “uma entrevista ficcional e não-assinada de Pessoa com um imaginário intelectual antifascista italiano, Giovanni B. Angioletti, na qual Pessoa, conforme nos mostra José Barreto, coloca na boca da personagem as suas críticas ao fascismo”. Transitando nesse cenário, Freitas propõe estabelecer aproximações entre os textos de feição econômica com o conjunto da obra do poeta, lembrando que essa prática pode oferecer significativa contribuição para o entendimento da obra poética e do fenômeno da heteronímia em Fernando Pessoa.
Assim, na análise que se propõe fazer do texto “Organizar”, publicado no número 4 da Revista de Comércio e Contabilidade, o conferencista “pede ao ouvinte/ leitor que ouça e leia as considerações pessoanas sobre organização de instituições com a atenção voltada para a heteronímia”. São destacáveis os comentários que falam de certa ambiguidade nas posições do poeta de Mensagem, ora falando da necessidade dos atos de organização, ora condenando movimentos políticos autoritários que visavam a uma organização demasiada da sociedade.
Essa posição de Pessoa pode ser entendida naturalmente, pois, como diz o texto de Freitas, “Fernando Pessoa havia sido educado, não apenas por ter crescido na colônia inglesa da África do Sul, mas por ter aí, em Durban, frequentado a Commercial School. Poderíamos então concluir que sua crítica às organizações excessivas se assentava em sua educação no seio de uma sociedade de economia liberal, a inglesa, ainda que vista de suas franjas coloniais”.
É interessante observar que as posições ambíguas demonstradas por Fernando Pessoa com relação aos princípios da organização decorrem mesmo do caráter autoritário e centralista que se faz presente automaticamente no cerne da condição de organizar. Desse modo, como observa Freitas, Pessoa critica e busca salvaguardar a organização o que se revela na sua distinção entre organizações artificiais e organizações práticas, entre os “organizadores de gabinete” e aqueles que reconhecem o peso da realidade. De fato, diz o poeta: A experiência ensina que a vida é uma coisa flutuante e incerta, cheia, por mais que busquemos prever, de surpresas e contingências imprevisíveis – imprevisíveis, sem dúvida, porque procedem de leis que ignoramos, e, provavelmente, em grande parte, ignoraremos sempre. Todo o pensador de sistemas fixos, todo o organizador de conjuntos definidos sofre fatalmente desilusões, quando não desastres. Em toda organização há, pois, que contar com o inesperado e o indefinido da vida”. Retomando, então, a identidade que pode ser entrevista entre o princípio de organização e a configuração da obra de Pessoa, observa-se notória proximidade entre a organização e o celebrado tema da heteronímia. Assim, quando se pensa que na organização existe um responsável para delegar funções a outros elementos, pode-se também verificar como isso se dá no plano da criação literária, quando Fernando Pessoa delega tais condições para esses outros que são, na verdade, os seus heterônimos. Isso fica bem caracterizado nas colocações de Marcus Vinícius: “Da mesma maneira que, segundo Pessoa, o ato de delegar funções organizacionais a outrem torna quem as delega voluntariamente incompetente para o seu exercício, podemos entender que cada um dos heterônimos cumpre funções dentro da heteronímia, funções que a eles foram delegadas pelo autor-organizador, o qual voluntariamente se abstém de seu exercício”. É nessa perspectiva que Freitas destaca a figura do heterônimo Alberto Caeiro, considerado, na obra pessoana, como o mestre do ortônimo. Isso decorre do fato de que Caeiro se configura como o mestre e não como o organizador, posto que, ao delegar o discurso ao heterônimo, o ortônimo-organizador explicita a sua incompetência para um tipo de criação estruturada segundo determinados padrões que só seriam plenamente alcançados na voz do heterônimo que, ao cabo, se torna efetivamente o mestre.
É dessa forma que se pode entrever a articulação entre o Pessoa que escreve sobre economia e organizações e o poeta. Como diz Marcus Vinícius de Freitas, ao falar da teoria das organizações, Pessoa parece falar da organização interna de sua própria obra.
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A emblemática figura de Guimarães Rosa dá a ver o quarto autor cuja obra foi abordada no Colóquio por especialistas que se inscrevem dentre aqueles que têm contribuído para a já oceânica fortuna crítica do escritor mineiro. A Professora Marli Fantini Scarpelli, da UFMG, apresentou a conferência “Religiosidade, crenças e mitos em Guimarães Rosa” em que traça um percurso de leitura e análise bastante significativo da obra rosiana. Seu texto centra-se, essencialmente, na obra magna de Rosa, o inexcedível Grande sertão: veredas, e para introduzir o fundamento de sua abordagem, já delineado no título, começa por colocar em cena a personagem do conto “A menina de lá”, em que se destaca Nhininha, uma criança que, no dizer de Scarpelli, “habita o espaço sagrado dos mitos, que balbucia uma espécie de língua dos anjos, em estado nascente, primordial, icônico, aquela língua a que aspiram poesia e poetas”. Passando por outras narrativas e personagens rosianas, Marli Fantini privilegia o Grande sertão: veredas, onde se destaca a personagem Riobaldo que é também o narrador de variados e inesperados acontecimentos que acometem um punhado de jagunços e sertanejos que agudizam a atenção do leitor do princípio ao fim da narrativa. Como diz Marli Fantini, Riobaldo, um homem “cheio de culpas e medo, é temente a Deus e pactário com o Diabo. Nunca deixa de recorrer à religião, ou melhor, a todas as religiões, como ele próprio explica a seu entrevistador no romance. É, no entanto, digno de acento que, nessa opção de Riobaldo, aflore uma espécie de religiosidade universal, sem castas, sem discriminação, preconceitos ou agenciamentos de controle, muito de acordo com o respeito às diferenças que rege a vida e a arte de
Guimarães Rosa”. É isso que se pode ver em outros textos rosianos, como no singular conto “O espelho”, quando o autor, falando do transcendente, assegura que tudo é a ponta de um mistério, como nos fatos ou na ausência deles, finalizando com a singular afirmação: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”. Linha de força no grande romance de Rosa é a que põe em cena o famoso e misterioso espaço geográfico do sertão. Como diz Fantini Scarpelli, “o sertão rosiano pressupõe uma geopolítica com seus currais, suas porteiras e suas múltiplas fronteiras, seu gado, seus cavalos, seus valores, ademais da truculenta concepção jagunça, retroalimentada pelos coronéis e seus latifúndios. Tudo isso minuciosamente descrito e associado à força das superstições, do misticismo e dos mitos sertanejos, à profunda religiosidade e ao manejo dos feitiços, rezas bravas, magias dos curandeiros (em seu arcaico pharmakón)”. Outro componente narrativo de grande apelo é o realizado/imaginado pacto que Riobaldo celebra com o diabo, na expectativa de superar-se emocional e fisicamente para a batalha a ser travada com o impenitente Hermógenes. Nesse aspecto é bastante elucidativa a citação que a conferencista faz de passagem da narrativa onde Riobaldo treme/teme o que teria sido o pacto com o demo: “– Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!” Voz minha que se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado (...). Ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas tranquilidades – de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa do meu pai. Vi as asas, arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí eu podia mais? A peta, eu queria saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!”. O final da narrativa é antológico, seja porque nele está a batalha que Diadorim – o grande companheiro de Riobaldo, filho do insigne chefe Joca Ramiro – trava contra Hermógenes, o matador de seu pai, e na qual acaba morrendo, seja porque é ali que se revela que Diadorim, na verdade, era Maria Deodorina, aquela que, bem antes, Riobaldo já havia dito que “era a sua neblina...”. Essa revelação é impactante para o leitor, embora
nos dias de hoje, dado que o romance já é bem conhecido e já foi apresentado, inclusive, em minissérie na televisão, esse final já seja conhecido da maioria dos leitores. Ainda assim, a morte traumática do ser amado revela-se o mais agudo dos sofrimentos que alcança Riobaldo. É o que se vê na significativa citação que Fantini Scarpelli faz da compunção de Riobaldo: “Diadorim tinha morrido — mil-vezes-mente — para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejavam (...) Não escrevo, não falo! — para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim... (...) Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real me vi”.
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O encontro com o texto “O Aldaz Navegantede Guimarães Rosa: ressonâncias odisseicas”, da Professora Adélia Bezerra de Meneses, docente da USP e da UNICAMP, revela singulares surpresas. A começar pelo fato de que a conferencista propõe fazer um contraponto do pequeno conto de Rosa com o “romance grande” que é a épica, a Odisseia de Homero, num processo de reapropriação “dessa herança clássica, deste capital cultural” que o poema homérico representa.
Segundo a professora paulista, além da dimensão parodística que se pode entrever no conto de Guimarães Rosa, percebe-se o acionamento de um processo de estilização, estranhamento, carnavalização e transgressão que se observa na relação do conto com o texto clássico.
Cite-se, a título de uma primeira ilustração das colocações esboçadas, o que Meneses diz: “Vamos, então, ver o que rende esse contraponto, para além do procedimento primário de dizer: “Olha, aí há um Navegante, que sofre perigos no mar” – que aludiria ao Navegante prototípico, que é Odisseu; e “Aí há uma moça, que ele ama, e de quem sente saudades, e que ele teme que o esqueça” -- que nos remeteria a Penélope”. Também digno de registro é o fato de que Adélia Meneses adianta no resumo de seu trabalho a intenção de estudar a reapropriação em clave minimalista
que o enredo do conto rosiano faz de alguns elementos essenciais da narrativa clássica. Além dessa congruência em termos de fabulação, também coloca em cena personagens que são crianças, o que equivale dizer que aí também se tem um processo minimalista de reduzir os “heróis” a uma dimensão miniaturizada. Tem-se, então, a história que envolve quatro crianças: três irmãs e um primo, sendo que uma delas, Ciganinha, fazia par com o primo Zito, enquanto outra, a Brejeirinha, inventa uma história paralela, sobre um “Audaz Navegante” que permeia a narrativa que envolve as irmãs e o primo.
A narrativa inventada por Brejeirinha revela aspectos claros da apropriação da epopeia homérica, na medida em que, pondo em evidência o relacionamento amoroso de Ciganhinha e Zito, o parzinho apaixonado, evoca aquele tão celebrado amor entre Odisseu e Penélope. Esse paralelismo é intensificado quando Adélia Meneses chama a atenção para o fato de que o amor entre Odisseu e Penélope é revelador de uma paixão ardente. Isso pode ser melhor entendido quando se vê no texto da conferencista a observação de que a dimensão do “romance de amor” na Odisseia não é muito explorada pela crítica que, de um modo geral, prefere apontar a fidelidade de Penélope na sua singular estratégia de tecer e destecer o manto, em cuja conclusão sinalizara o momento em que escolheria um de seus vários pretendentes a um novo casamento. A essa fidelidade Adélia Meneses contrapõe as inúmeras aventuras amorosas de Odisseu com mulheres e semi-deusas, numa perspectiva de traçar a diferença entre um e outro amante. Mas a exuberância do amor dos dois cônjuges sobreleva tudo tal como se pode ver na significativa cena que aqui se reproduz: “quando Odisseu volta e o casal mítico se reúne, cada um contando ao outro o que se passou nessa longa ausência, eles à noite vão para a cama, ou melhor, para o famoso leito conjugal, inamovível (construído pelo próprio Odisseu, num tronco de oliveira solidamente enraizado no centro do Palácio de Ítaca): pois bem, por iniciativa de Atena, a Aurora atrasa, a fim de que a noite se prolongasse, para que eles pudessem saciar a grande saudade dos seus abraços. O amor de Odisseu e Penélope tem uma dimensão cósmica, belíssima – interfere na chegada do sol, atrasa o romper do dia!”
Para além da citada apropriação que o conto de Rosa faz do texto épico, é necessário chamar a atenção para os aspectos de estranhamento e transgressão efetuados no texto clássico, o que Adélia Meneses atribui com muita propriedade às sempre surpreendentes e singulares criações de Guimarães Rosa. Isso pode ser conferido num dos trechos do conto, quando as crianças, passeando perto do riachinho que se enchera com as chuvas, descobrem algo inusitado: uma rodela de esterco de gado com um cogumelo em seu centro. É o quanto basta para que as crianças vejam na rodela de esterco um navio e no cogumelo, com seu chapeuzinho, o aldaz navegante. Esse estranhamento, como diz a autora do texto, é “algo que é muito comum a G. Rosa no seu vocabulário, na sua sintaxe, nos seus enredos, com o objetivo da propalada desautomatização do poético, da ruptura de expectativas, o despertar da percepção adormecida dos leitores”. Registre-se ainda que, além das considerações feitas no texto, a Professora da USP/UNICAMP ainda instiga os leitores com outras abordagens de grande significação. É o caso em que aproveita a tópica da criação da história de Brejeirinha para alinhavar comentários pertinentes a respeito da construção do texto literário. Também aproximações outras, muito interessantes, são feitas como a que aborda os riscos da grande travessia nos mares – seja a de Odisseu na epopeia homérica, seja a do aldaz navegante – com “a tragédia dos barcos naufragados no Mediterrâneo, carregando migrantes fugindo da África e tentando alcançar a Europa – mais precisamente, Lampedusa. As embarcações são outras, não têm aura mítica, mas as águas são do mesmo Mar Mediterrâneo por onde navegou Odisseu”. No que se refere às histórias de amor, é também estabelecida correlação com o episódio de Paolo e Francesca da Rimini, na Divina Comédia. Trata-se do casal de cunhados que se tornaram amantes e, surpreendidos pelo marido traído, foram mortos como adúlteros, no tempo de Dante, em Rimini. O Poeta os encontrará no Inferno, no Círculo dos luxuriosos. Permanecem, no entanto, juntos”. Finalmente, outra correlação é feita com Fernando Pessoa e Caetano Veloso, quando se focaliza a célebre frase “Navegar é preciso, viver não é preciso”, que o poeta português aproveita em sua obra, assim como o compositor brasileiro que cria a extraordinária canção “Os Argonautas”. Enfim, tudo isso pode ser fruído no texto de Adélia Bezerra de Meneses.
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Outra grande expressão dos estudos rosianos, a Professora Cleusa Rios P. Passos, da USP, oferece notável contribuição com seu texto “O erudito e o maldito em “Famigerado” de Guimarães Rosa”. Tomando o sempre surpreendente texto rosiano, que se mostra ao leitor como coisa oferta, chamando-o a uma participação de grande monta, qualquer leitura mostra que a obra de Rosa não faz concessões ao imediatamente fácil, pois o texto revira e inova constantemente o seu modo de dizer, num permanente exercício de capturar a atenção e despertar a reflexão de quem a lê. É o que se pode observar nas considerações que a professora Cleusa Rios faz do celebrado conto “Famigerado” que se encontra no livro Primeiras estórias. Já nas primeiras linhas das reflexões feitas no ensaio, depara-se com apontamentos instigantes a respeito de Guimarães Rosa, quando se anuncia a sua “linguagem insubordinada e renovadora”, em que se percebe como se dá a fratura de “signos convencionais, que parecem dar conta da comunicação, ao retomar repetições, clichês, acontecimentos triviais etc. para os desarticular na busca de reescrever a existência”. Essa é uma introdução que prepara o leitor para o encontro com a surpreendente narrativa de Rosa, num viés que vai articular de modo muito pertinente as noções de mal-dito e bem-dito, a grande linha de força que ilumina o conto “Famigerado”. O conto mostra uma narrativa que diz muita coisa e que insinua muitas outras mais. Trata-se da história de Damázio, um jagunço já no limiar da aposentadoria, que fica intrigado com o sentido da palavra famigerado que lhe atribuíram lá na Serra, onde não havia quem pudesse explicar o sentido do termo desconhecido. Essa a razão de procurar o doutor – o narrador do conto – para saber se a palavra era algo mal-dito contra ele. O desconhecimento de Damázio era tal que nem mesmo a reprodução da palavra lhe era possível, daí a sua pergunta: – “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é fasmisgerado...faz-me-gerado...falmisgeraldo...familhas-gerado...?” A resposta do médico é vazada em erudição: –“Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”...”, ao que Damázio, sem entender, insiste na busca do significado: –“Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me
diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?” Por fim, o médico dá o significado em “linguagem de dia-de-semana, revelando tratar-se de palavra que significa “importante”, que merece louvor, respeito...”. Conforme observa Cleusa Rios, dá-se nesta passagem da narrativa uma curiosa dialética entre o saber e o não-saber. Isto porque o jagunço teme saber de si, o nome que lhe apuseram e que poderia destacar um dizer maldito. O médico, por seu lado, “teme seu saber a respeito dessa mesma acepção do vocábulo, pois verbalizá-la lhe poderia ser fatal” como, aliás, ele anuncia: “O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava”. É importante observar, nas reflexões apresentadas no texto, a guinada que se dá no processo narrativo quando o jagunço retira, em parte, o poder do narrador para fazer aflorar o seu poder. É o que se verifica quando Damázio tenta reproduzir a palavra-problema, criando lacunas que são extremamente sugestivas. Como se lê no texto, “É ele [Damázio] quem, por não entender “famigerado” da perspectiva do letrado, pode aflorar como sujeito que tenta desvendar o mistério da palavra determinante do que ele é para seu meio. Nela, visualizam-se a má fama que o torna, ainda, marginal ou maldito e a boa reputação que o salva, condensando as duas faces do valentão”. Outro aspecto importante que é também levantado pela conferencista é o fato de o jagunço submeter-se ao Simbólico, “isto é, ao significante que gera sua inscrição na comunidade, no presente, e ao significante elidido que “salta na cadeia”, como algo que ele não quer lembrar. Tal significante não é verbalizado pelos habitantes do lugarejo que devem temê-lo; já o moço de fora, ao contrário, atreve-se a expressar o que os demais dissimulam. E é, de novo, um outro, de fora e de longe da Serra, que vai esclarecer sua dúvida sobre o vocábulo obscuro, tão vinculado a ele, mas sonegado e encoberto pela elisão e o esquecimento”. A evolução da análise que Cleusa Rios vai fazendo aponta a colocação de aspectos psicanalíticos que são desenvolvidos nas considerações que se fazem do conto. Assim, é interessante observar como a posição de superioridade instalada na sabedoria do narrador é que vai propiciar a divisão do jagunço, uma vez que este, marcado por um passado mal-dito, não admite se identificar com a má fama. Para
ele, o bem-dito seria “ter acesso à ambiguidade da palavra – as suas duas acepções semânticas –, podendo reconhecer a má fama como constituinte de seu passado, ao lado do desejo de se aquietar”. Chamando a atenção para o aspecto de que o inconsciente se manifesta através de sonhos, atos falhos, lapsos, enganos, esquecimentos, a conferencista mostra como tais manifestações escapam ao sujeito, evidenciando um dizer que lhe é estranho mas, de outro lado, trazendo à tona o sujeito do inconsciente e é aí, como destaca Cleusa Rios, baseando-se em Lacan, que o dito se torna um discurso “bem sucedido”, “pois desvela parte da verdade do sujeito e, no caso do temido cavaleiro, aponta uma possível interpretação de seu desejo”. É interessante verificar com a articulista como se processa uma espécie de troca entre o erudito, o doutor, e o jagunço que não detém um saber aprofundado. Assim, no final, o bem-dizer da resposta do doutor é substituído pela face do mal-dito, pois ele como que aprecia o momento em que vai à desforra com o jagunço, vingandose do medo que sentira diante do afamado matador. Aí, ele joga com as palavras até o desfecho em que afirma que gostaria de ser “famigerado-bem famigerado”. Desse modo, como diz Cleusa Rios, “doutor e jagunço se espelham na palavra que os configura: no primeiro, aflora algo da agressividade do maldito e, neste, ecoa algo da manipulação do discurso, sem que ele o note, no ato de desmembrar o vocábulo intrigante”. Como termo da síntese que se apresenta do texto de Cleusa Rios, seria oportuno fechar as considerações com as significativas palavras finais do ensaio que focalizou o festejado conto de Rosa: “ ‘Famigerado’ pode ser lido graças a um novo modo de luta do ex-jagunço, o da palavra que, “bem-dita” e enganosa, logra apagar/ esquecer seu passado maldito. Ambiguidades, negativas e subversões constroem essa palavra ilusória, permitindo à personagem se inscrever, por instantes, como sujeito de seu desejo em sua vigilante ‘aldeia’ ”.