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Paulo Borges

Além-Deus e morte de Deus: Mestre Eckhart, Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa

Paulo Borges

Pretendemos mostrar que há uma profunda afinidade temática entre estes três autores em torno de uma das questões maiores do pensamento ocidental, na qual se abrem também horizontes de diálogo com o pensamento oriental e sobretudo vias para reinterpretar Eckhart, Nietzsche e Pessoa à luz de um essencial pensar do impensado. Com efeito, a compreensão de como a metafísica e teologia ocidental, na sua vertente neoplatónica, pensa Deus como um além-Deus indeterminado e inefável permite compreender a outra e imprevista luz, a morte de Deus anunciada por Nietzsche, bem como iluminar a posição central de Fernando Pessoa nesta questão que abre para a experiência do vazio nalgumas vertentes do pensamento oriental. Defendemos a tese de que a morte de Deus, proclamada pelo “louco” na Gaia Ciência, explicita, mas sem que Nietzsche disso se haja dado conta, um pressuposto fundamental da metafísica de matriz neoplatónica, mais plena e ousadamente assumido por Mestre Eckhart, o de que a natureza primordial de tudo é alheia a todas as determinações, inclusive a de “Deus”, abrindo para a emergência de uma espiritualidade livre da religião e da teologia centrada na experiência directa de um nada ou não-ser não negativos nem niilistas 1 e por aí em diálogo ou convergência com a experiência oriental do vazio meta-ontoteológico, infundado fundo e fonte de todas as possibilidades. Defendemos ainda que nesta articulação entre Ocidente e Oriente, que porventura mais sugere uma copertença do que uma disjunção, avulta a mediação de textos pessoanos fundamentais, como o Tratado da Negação, atribuído a Raphael Baldaya, e de O Caminho da Serpente, entre muitas outras passagens da obra poética e em prosa. Para que se compreenda toda a importância destes textos, cabe fazer um percurso que mostre o horizonte onde a Ocidente se inscrevem.

No âmbito do neoplatonismo pagão, Plotino reconhece que o alvo supremo do desejo unitivo da alma, embora designado como Uno e Bem (BORGES, 2005), “não é nada para si mesmo” e que “em realidade nenhum nome lhe convém”, sendo apenas “para os outros” e em função da necessidade de nomear que como tal surge e se designa (PLOTINO, VI 2, 7, 41, 1989, p. 117; 9, 5, p. 178; 9, 6, p. 180). Isto culmina na radicalidade dialéctico-mística de Damáscio, ao afirmar que mesmo a expressão-limite de um “nada” (ούδέν) “melhor do que o uno” (DAMÁSCIO, 1986, p. 7-8) deve, por fidelidade a isso mesmo que se busca expressar, ser ultrapassada numa recusa a designá-lo seja de que forma for, exigindo-se “nem o proclamar, nem o conceber, nem o conjecturar” (DAMÁSCIO, 1986, p. 4). O mesmo se verifica no neoplatonismo cristão, pese o maior esforço de conciliar com o infinito ou absoluto a estrutura da sua trinitária diferenciação interna, desde a interpretação pelo pseudoDionísio da experiência de Moisés como uma união perfeita com o que transcende o “tudo” e o “nada”, a mesmidade e a alteridade, “conhecendo além do espírito graças ao acto de nada conhecer” (CARVALHO, 1996, I, p. 15; II, p. 17), sendo o próprio eros divino o que inspira e move a suplicante busca de união com isso que, “liberto de tudo”, é inacessível a toda a afirmação e negação, transcendendo toda a ordem de categorias, pois nem é nem não é, não “é um nem unidade, não é divindade ou bondade” (CARVALHO, 1996, V, p. 25). Isto se confirma, para ficarmos apenas na vertente ocidental do dionisismo, em João Escoto Erígena, ao emancipar Deus ou o Bem do ser que dele procede, considerando-o como um supra-ser (superesse), um não-ser por excesso ou um nada por eminência ou “por infinidade”, que ignora, por excesso, toda a quididade, pois “não é um quid objetivado”, permanecendo assim “incognoscível em simultâneo para Ele-mesmo e para toda a inteligência” (ERIÚGENA, 1995, I, 482 a b, p.126-127). A “glória”, todavia, consiste no seu “conhecimento por experiência directa” (ERIÚGENA, 1995, I, 451 c, p. 80), além de toda a palavra e de todo o entendimento, além de toda a dicotomia, dualidade e categorização (ERIÚGENA, 1995, 283 b c, p. 203-207).

É a isso que exorta Mestre Eckhart, de modo mais radical no sermão sobre a pobreza em espírito, que na sua dimensão interior consiste no despojamento ou liberdade total: nada querer, nada saber, nada ter. No que respeita ao primeiro destes três aspectos de uma mesma liberdade plena, ao libertar-se de toda a “vontade criada” - incluindo a de “realizar a vontade de Deus” -, bem como do “desejo” ou “saudade” (Verlangen) “da eternidade” e “de Deus”, o ser humano devém “como era, quando <ainda> não era”, quando não tinha “nenhum Deus” e era “causa primeira” de si mesmo, fruindo da “verdade” numa pura coincidência entre ser e querer, “livre de Deus e de todas as coisas”. Foi apenas quando, “por livre determinação da vontade” (aus freiem Willensentschluβ), saiu dessa primordial e pura imanência recebendo o ser criado, que passou a ter “um Deus”, pois antes de haver “criaturas” Deus não era “Deus”, mas apenas “o que (...) era”, sendo somente pela constituição das “criaturas” que Deus deixa de o ser em si mesmo para passar a sê-lo nelas. A determinação de Deus como Deus é assim relativa à determinação das criaturas como criaturas, num mesmo movimento de transformação de uma comum natureza ou fundo primordial, pois “a mais ínfima criatura”, na medida em que é “em Deus”, tem a mesma “categoria de ser” que ele, o que faz com que Deus, enquanto apenas o é para a criatura, não possa ser o seu “fim supremo”. Na verdade, se uma “mosca” possuísse “intelecto” e fosse capaz de “buscar intelectualmente o abismo eterno do ser divino de onde saiu”, o mero “Deus” que o é para a criatura não a poderia satisfazer. É por esse motivo, diz o pregador, que “nós rogamos a Deus ser livres de Deus” (Darum bitten wir Gott, daβ wir Gottes ledig werden), fruindo eternamente a verdade “aí onde os anjos mais elevados, a mosca e a alma são iguais”, essa mesma imanência abissal e primordial onde se residia antes da livre decisão criadora, quando se queria o que se era e se era o que se queria, nada querendo, portanto, na original “pobreza” do estado incriado e pré-criatural (ECKHART, 2008, p. 553 e 555). A mesma liberdade radical expressa-se no nada saber, num esvaziamento de todo o conhecimento de modo a que o ser humano não saiba nem sinta que Deus “vive nele”, pois quando ainda residia “no ser eterno de Deus” nada aí vivia senão

ele mesmo, livre de toda a alteridade (e da distinção sujeito-objecto inerente a todo o conhecimento). Libertando-se de todo o conhecimento, o ser humano recupera o estado primordial, anterior a ser algo ou alguém, anterior à determinação da existência e da criatura, o que o pregador vê como um deixar Deus operar o que quiser e permanecer livre de saber algo acerca disso (ECKHART, 2008a, p. 555 e 557). Na verdade, na nova visão eckhartiana, equidistante dos termos da disputa tradicional, a beatitude não reside nem no conhecimento nem no amor, mas em “algo (Etwas) na alma, de onde emanam conhecimento e amor” e que “não conhece e não ama”, “não tem antes nem depois”, nada espera e “não pode nem ganhar nem perder”. Isso não sabe ser Deus que em si opera, sendo pura autofruição divina, e é também neste sentido que o ser humano deve permanecer “quite e livre”, sem nada saber acerca do operar divino em si, pois Deus, ao contrário da doutrina tradicional dos “mestres”, “não é Ser nem intelectual”, consistindo antes num estar livre “de todas as coisas” que é a razão pela qual “é (...) todas as coisas”. O nada saber, “nem de Deus, nem da criatura, nem de si mesmo” (ECKHART, 2008a, p. 557 e 559), é a “pobreza” de nada retirar nem acrescentar a esta divina liberdade, riqueza e plenitude. O terceiro e para Eckhart mais claro aspecto desta pobreza ou liberdade radical é o nada ter, no sentido mais profundo de nem sequer haver no ser humano um lugar distinto onde Deus possa operar, de modo a que Deus não opere senão em si mesmo ao operar “na alma”. “O homem padece assim Deus em si”, tão “livre de todas as criaturas e de Deus e de si mesmo” que não mantenha qualquer “lugar” ou “distinção” própria, reencontrando “o ser eterno que foi, que é agora e que permanecerá para sempre” ECKHART, 2008a, p. 559 e 561). É neste contexto que Eckhart volta a rogar a Deus que o livre de Deus, pois o seu “ser essencial” (wesentliches Sein) está acima de Deus enquanto o concebemos como origem das criaturas”. Na verdade, como reitera, é nisso que em Deus está “acima de todo o ser e acima de toda a diferença” que ele próprio residia (e reside), na imanência primordial onde é eterna causa de si mesmo. Aí é “não-nascido” (ungeboren) e como tal não pode morrer, sendo eternamente, agora e para sempre. Noutra perspectiva, é nesse

seu “nascimento (eterno)” que tudo nasce, é nesse advir atemporal que é causa de si e de todas as coisas, incluindo do Deus que é Deus (nas e para as criaturas), o que lhe permite afirmar que, caso o quisesse, nada seria, nem ele, nem Deus, nem todas as coisas. (ECKHART, 2008, 561 e 563). Segundo um “grande mestre” que não identifica, a “abertura” ou “trespasse” (Durchbrechen) é “mais nobre” do que o “sair” ou “emanar” (Ausflieβen), pois este é o devir criatura, que, ao instituir o humano, co-institui Deus e o mundo como seus correlatos, ao passo que o primeiro – esse “romper através”, Durch-brechen – é uma libertação radical de todas as determinações, pela qual não se é “nem Deus nem criatura” e se reassume a plena, primordial e atemporal indeterminação ou infinidade. O Durchbrechen é uma “elevação” ou “des-envolvimento” (Aufschwung) pelo qual se recupera uma “riqueza” superior a Deus e todas as suas obras e que não é outra senão a unicidade com Deus: “ich und Gott eins sind”. Isso é o que sempre se é, sem aumento nem diminuição, “uma causa imóvel, que faz mover todas as coisas”. E essa é a “suma pobreza” (ECKHART, 2008, p. 563), a de não haver/ser menos que o Infinito. Eckhart conclui exortando a que não se aflija quem não compreender “este discurso”, pois expressa uma “verdade desencoberta (unverhüllte Wahrheit) vinda diretamente / sem mediação (unmittelbar) do coração de Deus”, que só pode ser compreendida quando o ser humano se igualar ela. (ECKHART, 2008a, p. 563). Encontramos nesta transcensão de Deus - por reassunção do “abismo eterno” alheio ao conceito de haver Deus, ser humano e mundo, “a grande Vacância, essa Liberdade “além” mesmo de Deus” (LELOUP, 2014, p. 91) 2 (além e aquém, notamos) cuja experiência é o programa da mística da (supra-)essência que se estende do movimento das beguinas, com Marguerite Porete (BORGES, 2010, p. 349-371), entre outras, a Eckhart e a Angelus Silesius3 - uma mais radical “morte de Deus” que

2 Comentando a súplica eckhartiana de ser livre de Deus, Leloup escreve que “o homem livre é sem ideias, sem ideal, sem ídolo, sem Deus” (LELOUP, 2014, p. 98). Cf. também LELOUP, 2013, p. 106-111. 3 Veja-se de Silesius o poema com o título “Deve-se ir ainda além de Deus”: “Onde é a minha morada? Onde eu e tu não estamos. / Onde é o meu fim último, para o qual devo ir? / Aí onde nenhum se encontra. Para onde irei então? / Devo ir ainda além de Deus, para um deserto” (“Man muβ noch über Gott – Wo ist mein Aufenthalt? Wo ich und du nicht stehen. / Wo ist mein letztes End, in welches ich soll gehen? / Da, wo man keines findt. Wo soll ich denn nun hin? / Ich muβ noch über Gott in eine Wüste ziehn”) – Angelus Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional 45

permite repensar a sua proclamação por Nietzsche surpreendendo o impensado que encobre o seu sentido e implicações mais profundos. Tal como o cínico Diógenes no passado procurou um homem, o “louco” nietzschiano corre pela praça pública com uma lanterna acesa em pleno dia procurando Deus e anunciando a sua morte às mãos da humanidade (NIETZSCHE, 1977, p. 143). Nietzsche dramatiza neste episódio o soçobro da fé na representação cristã de Deus, que teria sido “despojada da sua plausibilidade”, como “o maior dos acontecimentos recentes” (NIETZSCHE, 1977, p. 230). Isto suscita um sentimento ambíguo: por um lado, traz aos “filósofos” e “livres espíritos” um sentimento de iluminação “como por uma nova aurora”, que reabre um horizonte marítimo vasto e livre onde se pode viajar sem limites pré-estabelecidos ao conhecimento e à experiência (NIETZSCHE, 1977, p. 231-232); por outro, mal se adivinha ainda tudo o que se vai afundar como consequência desse fim da fé no Deus cristão, a “longa sequência” e “abundância de demolições, de destruições, de ruínas e de subversões”, entre as quais a de “toda a moral europeia” (NIETZSCHE, 1977, p. 230-231); por outro ainda, apesar de Deus haver morrido, Nietzsche adverte que os humanos são tais que a “sua sombra” perdurará ainda “durante milénios”, sendo necessário que a vençam aqueles mesmos que já vêem e anunciam a sua morte (NIETZSCHE, 1977, p. 129). Na verdade, o “louco” que proclama a morte de Deus espanta-se perante ter sido possível “esvaziar o mar”, “apagar o horizonte inteiro” e desprender a “terra” do “Sol”: são imagens de dissolução das anteriores referências, negativas mas libertadoras, que, como vimos, dão lugar ao imaginário positivo e esperançoso de um novo e promissor horizonte marítimo aberto e livre. Não deixa, todavia, de ser ambígua a caracterização que o profeta da morte divina faz do presente momento da consciência humana, imediatamente emergente do seu descrédito no fundamento divino de tudo:

Que fizemos quando desprendemos a corrente que ligava esta terra ao Sol? Para onde vai ela agora? Para onde vamos nós próprios? Longe de

Silesius. Cherubinischer Wandersmann, I, 289, in Sämtliche Poetische Werke, III, p. 7-8 e 219. Numa nota ao último verso esclarece que se trata de ir “além de tudo o que se conhece de Deus ou dele se pode pensar / segundo a via negativa”, acrescentando: “acerca de tal, procurar nos Místicos”. Cf. BORGES, 2009. p. 439-457. 46 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional

todos os sóis? Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para os lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio? (NIETZSCHE, 1977, p. 143-144).

Interrogamo-nos se não assistimos aqui à experiência involuntária e súbita do mesmo que Eckhart assume, voluntária e programaticamente, como o libertar-se de Deus, ou seja, de todas as ideias a seu respeito, incluindo a de ser “Deus”, libertandose simultaneamente da condição de criatura e regressando nisso à abissalidade da infinidade e indeterminação primordial e eterna. Não há neste sentimento de ausência de fins, orientação, coordenadas e referências, nesta sensação de “cair” em todas as direcções e para “todos os lados” ao mesmo tempo, nesta errância “através de um vazio infinito”, a experiência daquela “pobreza em espírito” inerente ao nada querer, nada saber e nada ter que é simultaneamente a transcensão do ser criado e a reintegração no abismo eterno de um fundo sem fundo – Abgrund – que na linguagem eckhartiana não deixa de convocar as imagens do “deserto”4, do “nada”5 e do “vazio” (ECKHART, 2008c, p. 35)? Não há nesta “morte de Deus” – que é primeiro que tudo uma “morte do sujeito que o pensa como criador de si e do mundo” - uma abertura à experiência plena de “Deus” tal como é, o puro infinito, livre de ser Deus para o ser humano e o mundo, ou seja, livre de todas as representações antropocêntricas, das metafísicas às morais? Não há nesta “morte de Deus” um “ser Deus” como “nada-tudo ser”, nessa imanência e liberdade radical e primordial alheia a toda a determinação e autorreferência intelectual, nessa superabundante pobreza do vazio pleno de todos os possíveis? Não há nesta morte de Deus a experiência mística da coincidência com o fundo sem fundo de tudo, com a desnuda infinidade, sem predicados, atributos ou características, com

4 O “fundo simples” (“einfaltigen Grund”) é simultaneamente o “deserto silencioso onde jamais a distinção lançou um olhar, nem Pai, nem Filho, nem Espírito Santo” (“die stille Wüste, in die nie Unterschiedenheit hineinlugte, weder Vater noch Sohn noch Heiliger Geist”) (ECKHART, 1979, p. 316). 5 Veja-se entre outros o sermão onde Eckhart comenta o passo dos “Actos dos Apóstolos”, 9, 3-9, que narra a aparição de Jesus ao futuro São Paulo, subitamente envolvido por “uma luz vinda do céu” que o faz cair por terra. Quando se ergue, diz o texto que, “embora tivesse os olhos abertos, não via nada”. Eckhart encontra aqui quatro sentidos: “Um desses sentidos é: quando se levantou da terra, de olhos abertos nada viu e esse nada era Deus; pois, ao ver Deus, chama-o um nada. O segundo sentido: quando se levantou, nada viu senão Deus. O terceiro: em todas as coisas, nada viu senão Deus. O quarto: ao ver Deus, viu todas as coisas como um nada” (ECKHART, 2008b, p. 65). Cf. BORGES, 2008a, p. 567-579. Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional 47

a liberdade radical isenta das categorias e modalidades do divino, do humano e do cósmico, além-aquém de todas as orientações, caminhos, sentidos e finalidades, numa perdição que é encontro e salvação? Não será isto conforme ao ensinamento evangélico de só se salvarem os que se perderem6, ao ensinamento eckhartiano de abandonar todo o “modo” (Weise) de buscar Deus, pois assim se tomam os “modos” e se perde Deus, que neles fica “oculto”, apenas sendo experimentado por quem o busca “sem modos” e se converte na “própria vida”, “sem porquê” (ECKHART, 2008d, p. 71 e 73) ou ainda ao ensinamento de São João da Cruz de chegar à mesma experiência de Deus perdendo-se de todos os “caminhos” e “formas” criaturais de o procurar 7? O “louco” nietzschiano expressa o vislumbre de que a “morte de Deus” é a acção mais grandiosa da humanidade e da história, dividindo esta num antes e num depois que faz deste “uma história mais elevada do que, até aqui, nunca o foi qualquer história!”. Mas constata que tal grandeza é excessiva para a humanidade, de onde resulta a interrogação a nosso ver crucial: “Não será preciso que nós próprios nos tornemos deuses para, simplesmente, parecermos dignos dela?” (NIETZSCHE, 1977, p. 147). O que significa isto? Há, a nosso ver, duas possibilidades de interpretação. A primeira, mais fácil e por isso predominante, é a que se converteu no programa do humanismo ateu e antropocêntrico, mesmo sem consciência disso ou negando-o: substituir o lugar vazio do “Deus” cristão pela humanidade autodivinizada, que se autoinstitui como o novo centro do mundo, que doravante não ofereceria mais limites ao domínio do humano, tal como este se representa e celebra na civilização tecnocientífica de matriz europeia-ocidental hoje globalizada (BRAGUE, 2015, p. 14). Reconhecendo a representação teológica do divino como projecção psicológica humana (Feuerbach), a consciência humana preencheria consigo mesma o vazio aberto pela morte de Deus. Já a segunda leitura - bem mais exigente, em termos teóricos e práticos, espirituais, intelectuais e éticos, e por isso mesmo minoritária - é a que entende a necessidade

6 “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” – Mateus, 16, 24-25. 7 “[…] cuando una alma en el camino espiritual a llegado a tanto que se ha perdido a todos los caminos y vías naturales de proceder en el trato com Dios, que ya no le busca por consideraciones ni formas ni sentimientos ni otros modos algunos de criaturas ni sentido, […]” (CRUZ, 2002, p. 858). 48 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional

de se tornar deus para ser digno da morte de Deus como a exigência de uma plena e infinita transcensão do próprio humano, que se deve esvaziar radicalmente de todas as determinações, referências e apoios, a começar pelo autocentramento, para ser capaz de habitar o vazio, ou antes, ser o vazio aberto pelo Deus que nele deixou de colocar. A “grandeza” do deicídio (NIETZSCHE, 1977, p. 144) seria assim inseparável dessa suma “grandeza” humana que Nietzsche, no Assim Falava Zaratustra, proclama consistir em o humano “ser uma ponte e não uma meta”, residindo precisamente o que nele há de amável em ser “transição e perdição” e “uma corda estendida entre o animal e o Super-Homem – uma corda sobre um abismo”: “Amo os que só sabem viver com a condição de perecer, porque perecendo se superam” (NIETZSCHE, 1964, p. 15). Esta grandeza seria a da superação do humanismo, quer na sua anterior versão teocêntrica, quer na sua moderna versão antropocêntrica, para esse coalescer com o vazio abissal na assunção da plenitude em acto de todo o possível que nos parece ser o programa intemporal da mística mais radical, porventura obscuramente vislumbrado por Nietzsche na figura equívoca do Supra-homem. É esta superação do humanismo e do próprio humano que Eudoro de Sousa lucidamente viu como o impensado imperativo do “Homem” que quiser ocupar o esvaziado lugar da divindade: “O Homem sofrerá pior destino se quiser ocupar o lugar que Deus deixou vazio: terá de morrer vezes sem conta, excedendo-se de cada vez que morre, porque Deus é Excessividade caótica, o Excesso que vem subindo do abismo sem fundo”. (SOUSA, 2002, p. 52). Seja como for, é porventura para ambas as interpretações e consequências da morte de Deus que o “louco” reconhece haver chegado “cedo demais”, pois o que ele vê já consumado ainda vem a caminho para a consciência da maioria dos humanos, embora tenham sido eles os seus agentes. (NIETZSCHE, 1977, p. 144-145). É neste contexto que nos parece fecundo compreender o Tratado da Negação, texto pessoano assinado por Rafael Baldaia. É um curto ensaio em onze pontos, que nos três iniciais sustenta que “o Mundo é formado de duas ordens de forças”, as “que afirmam” e as “que negam”, sendo as primeiras as “criadoras do mundo, emanadas sucessivamente do Único, centro da Afirmação”, e as segundas as que “emanam de

além do Único” (BALDAIA, 1993, p. 42). Há assim uma fundamentação positiva da totalidade do existente, o “mundo”, num princípio unicitário, o “Único”, que todavia, apesar de ser a fonte da emanação criadora, não corresponde à realidade primeira e última, pois há forças no mundo, as “que negam”, que emanam de além dele. O ponto seguinte vai mais longe, declarando que “o Único, de quem Deus, o Deus Criador das Coisas, é apenas uma manifestação, é uma Ilusão”. Sabemos assim que o “Único” transcende o que se representa como o Deus criador, mas que, além de não ser a realidade primordial, aparenta uma realidade que não tem. A razão parece residir no facto de “toda a criação” ser “ficção e ilusão”, abrangendo tudo o que se afigura ser princípio e causa da existência de algo, tudo o que é factor ou processo de determinação positiva do existente. Na verdade, todas as instâncias da aparente constituição ontognosiológica do real são ilusórias: “assim como a Matéria é uma Ilusão (...) para o Pensamento”, este o é “para a Intuição”, esta o é “para a Ideia Pura” e esta o é “para o Ser”, o qual “é essencialmente Ilusão e Falsidade”. Em última instância, “Deus é a Mentira Suprema”, o que neste contexto parece referir-se não ao “Deus Criador das Coisas”, mas ao próprio “Ser” supremo ou “Único” (BALDAIA, 1993, p. 42), que não é assim o absoluto das metafísicas tradicionais de cariz henológico, como a plotiniana ou as suas possíveis influências indianas upanishádico-vedânticas (McEVILLEY, 2002, p. 549-567), pois tem algo que o transcende e, porventura por isso mesmo, é ilusório. Na verdade, a lógica do texto é a de que tudo o que é algo, tudo o que tem uma determinação, é uma negação e uma ilusão perante o que não possui determinações e limites, o indeterminado e ilimitado. Encontramos aqui radicalizada a visão de Espinosa de que toda a determinação é uma negação, referida por Hegel8, que a esse respeito afirma que todo o “ser-aí” é a limitação e a negação do que, pensado “sem limite”, é o “nada vazio”. (HEGEL, 1812-1972, p. 111-112). O ponto 5 do Tratado da Negação reitera que “as forças que negam” – que não são criadoras do mundo, mas que o integram em conjunto com as que o criam – “partem de além do Único”. Isso que transcende o “Único” é inapreensível pela

8 Espinosa escreve na carta 50 a Jarig Jelles que “determinatio negatio est” (“a determinação é negação”), o que Hegel cita como “Determinatio est negatio” – (HEGEL, 1812-1972. p. 111).

inteligência humana, que por sua natureza só pode conceber os objetos que determina e constitui. Por este motivo, para ela “não há nada” fora do “Único”. Num argumento algo obscuro, Baldaia considera, todavia, que a possibilidade de pensar a não existência do “Único”, a possibilidade de o negar – que no fundo parece ser a operação negativa das forças que emanam de além dele – mostra que afinal ele “não é o Único, o Supremo, o realmente Supremo”: “poder negá-lo é negá-lo; negá-lo é ele não ser”. É como se a negação do “Único” revelasse o que o transcende, que todavia não pode ter entidade ou determinação, pois se assim fosse não escaparia à esfera da “criação”, da “ficção” e da “ilusão”, que, como vimos, são sinónimos. (BALDAIA, 1993, p. 42-43). Sendo a negação do que aparenta ser supremo, o que a negação do “Único” revela é a “negação suprema” e isso é o “Não-Ser”. Não pensável em si mesmo, porque pensá-lo seria “não pensar”, ele é, todavia, de algum modo pensável na medida em que é designado como tal. Ao ser pensado, adquire determinação e Baldaia diz que se converte no “Ser”, afirmando ser assim que “o Ser sai, por oposição do Não-Ser”. Nos limites da “linguagem humana”, é como se o “Não-Ser” precedesse o “Ser” (BALDAIA, 1993, p. 43), o que, todavia, não pode corresponder à realidade, pois já havíamos antes visto que “o Ser é essencialmente Ilusão e Falsidade”. (BALDAIA, 1993, p. 42). Se o “Ser”, porventura idêntico ao “Único” ou a “Deus”, enquanto mais original e universal determinação, é já uma negação e uma limitação do indeterminado que o transcende, a sua progressiva manifestação, nas várias instâncias ontognosiológicas referidas, é uma crescente autonegação que na verdade é uma crescente negação da negação. Daí que a sua final manifestação na “Matéria”, em vez de ser a sua maior determinação e limitação, como nas metafísicas e ontologias de matriz neoplatónica e espiritualista, seja na verdade a maior negação de todas as ilusórias determinações e limitações ontognosiológicas procedentes do “Único” por via das forças afirmativas e criadoras do mundo que são nesta perspectiva as forças da própria “ilusão” e dissimulada negação do indeterminado primordial. Como diz Baldaia, sendo a “Matéria (...) a maior das negações do Ser”, é o “estado” que mais se aproxima do “Não-Ser” e por

isso “a menor das Ilusões, a mais fraca das mentiras”, de onde resulta a sua evidência (BALDAIA, 1993, p. 42). Nesta evidência da “Matéria” é, todavia, sobretudo o “Não-Ser” que se evidencia, pela crescente autonegação da negação que é o “Ser” na sua progressiva manifestação criadora. O “Ser” manifesta-se nas várias instâncias ontognosiológicas – da “Ideia Pura” à “Intuição”, ao “Pensamento” e à “Matéria” – deconstituindo-se e revelando o indeterminado que é o fundo sem fundo de tudo. É por isso que Baldaia, numa linguagem que nos parece equívoca, diz que o “Ser”, “à medida que se vai negando, vai criando o Não-Ser”. Consciente das dificuldades deste modo de expressão, escreve: “Como o Não-Ser é anterior ao Ser, essa negação que o Ser faz de si-próprio é uma “criação”, se assim é possível falar”. (BALDAIA, 1993, p. 43). Parece claro que Baldaia usa aqui a palavra “criação” num sentido diametralmente oposto ao anterior, quando afirmou que “toda a criação é ficção e ilusão”. “Criação” tem agora o sentido de uma revelação do “Não-Ser” por dissipação dos véus ilusórios da determinação do “Ser”: o “Não-Ser” não pode ser criado, mas apenas desvelado como o fundo sem fundo incriado e indeterminado de tudo. Esta revelação ou desvelamento, que aparenta no início ser negativa, é no fundo positiva, pois como vimos é a negação de todos os modos de negação que constituem o mundo por via das forças que o criam e que, apesar de serem no início definidas como afirmativas, sabemos agora serem negativas e ilusórias na medida em que negam e encobrem o ilimitado e impensável que nos limites do pensamento e da linguagem se designa como “Não-Ser”. Neste sentido se compreende que Baldaia, no ponto 9, afirme que “a negação consiste em auxiliar o Manifestado a manifestar-se mais, até ele se dissolver em Não-Ser”, estabelecendo programaticamente no ponto 8 que “devemos ser criadores de Negação, negadores da espiritualidade, construtores de Matéria”. Acrescenta que “a Matéria é a Aparência” e que esta “é ao mesmo tempo o Ser e o Não-Ser” (BALDAIA, 1993, p. 43), o que entendemos no sentido de que a matéria ainda é uma determinação, ainda é alguma coisa e, portanto, ilusão, mas a mínima e a mais frágil das determinações e ilusões, na transição para a negação e dissolução de todas

as determinações, ilusões e criadoras negações do indeterminado, pensado ao limite como “Não-Ser”. Sendo a máxima negação da negação do indeterminado que instaura toda a determinação positiva do real e da consciência, a matéria é nesta visão – nos antípodas do platonismo - o que há de menos ilusório na esfera da ilusão que é todo o universo ontognosiológico. Sendo a realidade que menos nega o “Não-Ser” primordial e englobante, o indeterminado onde todas as determinações negativamente se processam, a matéria é a realidade menos determinada e ilusória e por isso menos irreal na exata medida em que mais transparece, na sua fluida indeterminação de mera aparência, o “ir-real” ou “Não-Ser” que nesta outra lógica, radicalmente apofática (apophasis pode significar “negação”, sugerindo etimologicamente um “desdizer” ou “falar distanciando-se”, que implica negar uma afirmação anterior) (SELLS, 1994, p. 2-3), coincide com o que na linguagem ontológica se representa como o ser pleno e absoluto.

Num mundo constituído por forças afirmativas e criadoras que o Tratado da Negação denuncia afinal como niilistas e ilusórias, na medida em que instauram todas as dimensões do real negando e ocultando o ilimitado, compreende-se o programa de um aparente “niilismo activo”, para usar a expressão nietzschiana (NIETZSCHE, 1995, p. 15), que consiste em acelerar e levar o processo de manifestação até às suas últimas consequências, que são a autodissolução “em Não-Ser”. É neste contexto que, no ponto 10, Baldaia considera haver no mundo “dois princípios em luta: o princípio de Afirmação, de Espiritualidade, de Misticismo”, que diz ser “o Cristão” – acrescentando “para nós, actualmente”, o que pode sugerir que noutra época ele assumiu outra forma – e “o de Negação, de Materialidade, de Clareza, que é o Pagão”. “Lúcifer – o portador da Luz” seria “o símbolo nominal do Espírito que Nega”. Baldaia identifica, de forma obviamente controversa, as forças criadoras, e portanto ilusórias, com a espiritualidade, a mística e o cristianismo e as forças negadoras, agentes da des-ilusão, com a materialidade, a clareza e o paganismo. No contexto do Tratado da Negação, e tendo em conta o ponto seguinte, isto parece significar que a afirmação de um princípio espiritual e divino, criador transcendente do mundo e ao qual o ser

humano deveria religar-se e unir-se, é a fonte de toda a ilusão, ao passo que a negação racional disso, preferindo a matéria ao espírito como a menor das ilusões em busca da sua superação total, seria o caminho de emancipação da consciência, simbolizado em “Lúcifer” como figura iluminativa (“Lúcifer” significa “o que traz a luz”) e libertadora, ao invés do seu tradicional entendimento cristão. Daí a referência adicional à “revolta dos anjos” como criadora da “Matéria” enquanto “regresso ao Não-Ser” e “libertação da Afirmação” (BALDAIA, 1993, p. 43). Baldaia ecoa aqui os interesses esotéricos de Pessoa, propondo uma leitura de “Lúcifer” de inspiração gnóstica, que parece valorizar a revolta angélica como instância positiva de insubordinação contra a ordem do mundo criado pela “Mentira Suprema” que seria “Deus” e da qual teria resultado a matéria, pela qual se negaria a ilusória negação do ilimitado que é a criação do mundo e se regressaria ao “Não-Ser”, numa libertação de todo o poder afirmativo da ilusão. Isto parece supor que a matéria não faria parte da original criação divina, o que recorda a doutrina das duas criações, a espiritual e a material, nalguns Padres da Igreja como Orígenes, Gregório de Nissa e Evágrio Pôntico, resultando neste caso a segunda criação de uma benigna adequação divina à queda da humanidade induzida por Lúcifer (BORGES, 2011, p. 59-60). Não é obviamente esta a leitura que Baldaia faz da criação material, que vai no sentido de um neognosticismo tanto heterodoxo em relação à visão gnóstica da matéria como corrupção do espírito, como anticristão, em curioso contraste com a assunção pessoana, no final da vida, de ser um “cristão gnóstico”. (PESSOA, 1986, v. III, p. 1 428; MOTA, 2008, p. 310-313). O derradeiro ponto do texto é o mais explicitamente fecundo para o nosso tema. Nele Baldaia dialoga agora com a teosofia, afirmando haver “realmente todos os mundos que os teósofos afirmam”, mas estarem “dentro da Ilusão, que, enquanto existe, é a Realidade”. O autor confirma aqui o ilusionismo universal antes teorizado, no qual a ilusão preside à ontogonia e à ontologia, fazendo com que os múltiplos planos de existência não sejam mais do que os múltiplos níveis de uma ilusão da consciência ainda não reconhecida como tal, que confere estatuto real àquilo que na verdade é apenas uma sua objetivação e entificação limitadora do ilimitado. Mas o essencial é

que a ilusão procede precisamente disso que se pensa como o princípio e fundamento de todos esses “mundos”, o “Deus”-“Mentira Suprema”, que é ele mesmo o supremo estado iludido de consciência. Citemos um trecho decisivo:

Deus existe com efeito para si-próprio; mas Deus está enganado. Como qualquer de nós julga existir, e para Deus não existe, senão como parte dele, e isto é não-existir, em absoluto; assim, Deus julga existir e não existe. O próprio ser é o Não-Ser do Não-Ser apenas, a afirmação mortal, da Vida. (BALDAIA, 1993, p. 44).

O texto é de uma subtil complexidade, pois não se reduz à posição ateia comum de afirmar como ilusão da consciência humana a crença na existência de Deus, radicando antes na consciência divina esta crença ilusória na sua própria existência. Deus existe assim de um certo modo, mas apenas como ilusão de uma consciência que se julga dotada de uma existência absoluta, quando na verdade apenas existe, tal como todo o existente, como determinação de alguma coisa que é uma não-coisa e que não existe, pois transcende a esfera da determinação inerente a toda a existência. Há assim no cogito divino uma auto-ilusão que é o modelo daquela que condiciona a consciência de todo o ente humano, na medida em que se julga possuidor de uma existência autónoma quando na verdade apenas participa da existência mais plena, no domínio da ilusão, que é a de Deus. Tal como o ser humano ilusoriamente existe para si mesmo como dotado de uma existência em si e por si, não contingente nem relativa, assim o próprio Deus em Baldaia se vê e crê plenamente existente, como o Ser absoluto, quando na verdade apenas se inscreve no abismo incriado do indeterminado e ilimitado, concebido nos limites do pensamento e da linguagem como “Não-Ser”. A ilusão de Deus, matriz de toda a ilusão possível, é não ver o próprio ser como afirmação intrinsecamente negadora, e por isso limitadora, veladora e “mortal”, do infinito que no final do Tratado da Negação uma única vez se expressa positivamente, como “Vida”. Revisita-se e radicaliza-se assim um antigo tema gnóstico - o da ignorância do Deus criador ou demiurgo, Iahweh, denunciado como não mais do que um arconte ou demiurgo criado que se toma por Deus único e princípio absoluto na medida em

que ignora a Fonte primordial e transcendente de tudo9 -, já no pensamento português renovado de modo original por Teixeira de Pascoaes10 -, ao mesmo tempo que se transita da hipótese mais que tudo exorcizada pelo racionalismo ocidental, de Platão a Descartes, a do Deus enganador (PLATÃO, 379b-380b, 380d-381c, 382a-383a; DESCARTES, 1968, p. 44 e 47-49; 1976, p. 110-114 e 137-138), para a integrar nesta mais radical tese do Deus (auto-)enganado e a partir daí enganador, que a par de Pessoa também se formula em Teixeira de Pascoaes. (BORGES, 1997, p. 465-485; 2008d; 2008c).

Considerando as forças afirmativas e “criadoras do mundo” como ilusórias e procedentes da suprema ilusão que é a de Deus se julgar existir plenamente quando é apenas a determinação negativa do impensável pensado como “Não-Ser”, o Tratado da Negação é um tratado de des-ilusão e desmundificação radical que visa extirpar a raiz de toda a ignorância que nesta perspectiva poderia residir na divina resposta dada por Iahweh a Moisés, quando este questiona o seu nome: “Eu sou aquele que é” ou “EU SOU”, problemática tradução de ´ehyeh ´aser ´ehyeh (Êxodo, 3, 14). A ilusão divina residiria nessa determinação do “Não-Ser” ou da “Vida”, seu sinónimo positivo, como um sujeito ou pessoa divina que se vê a si mesmo como puro ser, o que é ainda uma determinação e uma limitação, ocultando o abismo primordial e inefável de uma “Vida” supra-pessoal na consciência intelectual de si e assim configurando o Deus que é pensamento eterno de si mesmo, como diversamente acontece de Aristóteles (ARISTÓTELES, Metafísica Λ 7, 1072 b 19, 2002) a Hegel ([1807] / 1994, p. 37-39), objeto já da crítica de Plotino (VI 2, 7, 37, p. 111-112.) e de Mestre Eckhart (2008a, p. 557). Esta visão conhecerá várias versões no pensamento português, destacando-se, além de Pascoaes e Pessoa, José Marinho e Agostinho da Silva, numa vertente que remonta a Antero de Quental e ao seu vislumbre de que a personalização e divinização da “Vida”, convertendo-a num “Deus” objeto de culto, é a sua morte na consciência que assim idolatricamente a representa:

9 Cf. São IRENEU, Contre les hérésies. Dénonciation et réfutation de la gnose au nom menteur, I, 26, 1 e 30, 4-6, p. 116 e 125-127; HIPÓLITO, Refutação de todas as heresias, VII, 25, 3 e 26, 1-3; Apócrifo de João, 42, 13 e ss; 44, 9 e ss. – citados em JONAS, 1978, p. 179-183; p. 249-254. 10 Cf. entre muitos outros lugares, a ideia da criação como a fuga do criador a algo anterior que não se suporta: “E que é o mêdo? É o Deus anterior aos deuses... a última Fôrça misteriosa... Para fugir à sua sombra, Jéovah criou a luz” ( PASCOAES, s.d., p. 74) 56 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional

Que vivi sei-o eu bem... mas foi um dia, / Um dia só – no outro, a Idolatria / Deu-me um altar e um culto... ai! Adoraram-me, // Como se eu fosse alguém! Como se a Vida / Pudesse ser alguém! – logo em seguida / Disseram que era um Deus... e amortalharam-me! (QUENTAL, 1994. p. 107).

Este soneto de Antero é muito convergente com o tema de Rafael Baldaia, com a diferença de que este parece falar de uma ilusão inerente ao cogito divino que o limita no seio da “Vida” que o transcende, enquanto Antero remete a ilusão para a consciência humana que representa em termos pessoais e teomórficos uma Vida suprapessoal e sem qualificações.

Um outro texto de Fernando Pessoa pode ser aqui útil, por ser muito afim à temática do Tratado da Negação. Tendo como título “O desconhecido”, nele se reafirma a tese de que “Tudo é ilusão”, pois “tudo é criação, e toda a criação é ilusão”. “Criar é mentir” e “Ser é não-ser”, pois tudo o que se pensa e concebe passa a existir como ilusão que se desconhece, como, por exemplo, “Deus, céu, anjos, almas imortais e eternas”. Todavia, “A própria ilusão é uma ilusão”, pois apenas existe como não reconhecimento de uma instância não ilusória e enquanto não for reconhecida como tal, jamais se constituindo como algo efectiva e irredutivelmente existente. E a possibilidade do seu reconhecimento, a possibilidade da “des-ilusão”, mostra haver algo que escapa à ilusão e à criação que lhe é inerente: “Só há uma coisa que não pode ser ilusão, porque ela não é criada: é a consciência”. Nesta visão, a consciência é a única coisa que “escapa a toda a crítica”, na medida em que não é criada nem cria. Estamos, porém, a falar de uma consciência que diríamos nua, meramente contemplativa, sem modalidades operativas, pois “Pensar, sentir, querer, são ilusões; mas ter consciência não é uma ilusão”, o que entendemos como ter consciência ou experiência das determinações dessa consciência ou experiência que são o pensar, o sentir e o querer, sem se identificar com elas. Esta consciência não é um conceito ou ideia humana, pois na medida em que o seja “é falsa”, e escapa assim às categorias mentais que são “ser” e “não-ser”, bem como a toda a determinação, ôntica ou mé-ôntica (PESSOA, 1993, v. I, p. 44-45). A consciência em causa é alheia à noção comum e falsa “de que há qualquer coisa”. Pessoa diz:

“Não há; não há nem não há”, o que interpretamos como uma recusa a conceber e dizer algo segundo qualquer modo proposicional, afirmativo ou negativo, numa mais radical transcensão da via catafática e apofática, que visa precisamente preservar a consciência de toda e qualquer determinação na forma de uma tese ou enunciado discursivo (o que recorda as dialéticas radicalmente deconstrutivas de Nāgārjuna e Damáscio como via para libertar a mente de todos os conceitos e pontos de vista que obscurecem a experiência silenciosa do inefável11). Isto aplica-se primeiro que tudo à própria consciência - “não existe, mas é a única verdade” (PESSOA, 1993, v. I, p. 46) – e convida naturalmente ao silêncio, pois a “verdade” em questão não consiste numa fórmula doutrinal, conceptual e verbal, mas antes numa experiência de abertura da consciência para além desse encobrimento da nudez do que é, como o sugere a alétheia grega (des-velamento, des-ocultamento, não-esquecimento). Esta consciência/ experiência, alheia a qualquer estatuto ôntico e sem qualquer determinação, que por isso mesmo é a única instância livre de ilusão e que dela pode libertar, parece-nos afim ao que o Tratado da Negação designa negativamente como “Não-Ser” e positivamente como “Vida”. Apesar da aparente recusa da “espiritualidade”, o Tratado da Negação parece assim oferecer uma via de negação da negação de todas as ilusórias determinações da consciência, a começar por essa em que “Deus” consiste, que no fundo é uma via espiritual alternativa de registo a-teu e a-teológico, mas irredutível ao ateísmo comum, na medida em que assume o infinito que há aquém e além de Deus, encoberto pela ilusão da consciência divina. O além-Deus é, como veremos, um tema recorrente da poesia pessoana, que emerge também num texto muito afim do Tratado da Negação, O Caminho da Serpente, “Livro que o não é”. Nele a serpente figura o movimento do “Spirito que nega, mas nega mais, e mais profundamente, do que em geral se entende ou póde entender”, negando em níveis de crescente profundidade o “bem” (como a “Serpente” que “tenta Eva”), a “verdade”, “o bem e o mal” (como “Satan”) e “a

11 “Abençoada a pacificação de todo o gesto de apropriação, a pacificação da proliferação das palavras e das coisas” (NĀGĀRJUNA, 25, 24, , 2002, p. 334); “Mas o indizível, é por um perfeito silêncio que é necessário honrá-lo, e antes de mais por uma perfeita ignorância, aquela que considera todo o conhecimento como indigno”. (DAMÁSCIO, 1986, p. 11).

verdade o erro” (como “Lucifer” “(ou Venus)”), para negar “a si mesma e a tudo no seu quinto nível, e fuga, em que é SS, a Revelação Suprema”, onde “a si mesma se tenta e se mata”12. Conforme simboliza o “seu feitio de S”, “A Serpente inclue”, “rodeia e transcende” “dois espaços”, sendo o primeiro o “mundo inferior” e o segundo o “mundo superior, num movimento pelo qual se evade “das duas Realidades e desaparece dos Mundos e Universos” (PESSOA, 1985, p. 30). Na verdade ela transcende assim as duas esferas da “ilusão” que, tal como nos textos anteriores, se afirma aqui ser “a substância do mundo”, “tanto no mundo superior como no mundo inferior, no oculto como no patente”. Conforme indica a figura sinuosa do S, a “Serpente” é a única instância que, “contornando os infinitos abertos – ou os círculos “incompletos” – dos dois mundos”, “foge á illusão e conhece o principio da verdade” (PESSOA, 1985, p. 30). Como se figura ainda no S, “o seu movimento, para a direita, na ordem inferior das coisas e dos seres, é-o apenas para que possa ser para a esquerda na ordem superior d’elles”. Assim segue “atravez do mundo, e do espirito, até que sahe do mundo e do espírito” (PESSOA, 1985, p. 33). Transcendendo a tudo e a si mesma, atravessando “todos os mysterios (...) pois lhes conhece a illusão e a lei”, assumindo “formas com que, e em que, se nega”, como “pelles que larga” (como “a Cobra do Eden”, “Saturno e Satan”), a Serpente transcende ainda o que se designa como “Deus”: “E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ella, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou alli de fora” (PESSOA, 1985, p. 29)13. Entendemos isto no sentido de que a “Serpente” é figura do “Spirito” sem determinações que apenas as assume para as / se autonegar, não podendo assim jamais deter-se no que ainda seja alguma coisa, mesmo que seja a Coisa suprema, a Coisa das coisas: “Deus”.

12 Cf. O Caminho da Serpente, in CENTENO, 1985, p. 35. Veja-se uma transcrição mais rigorosa do texto pessoano, que assinala todas as alterações manuscritas, mas que se torna difícil usar para citar: Fernando PESSOA, O Caminho da Serpente. O livro que o não é. Edição fac-símile e transcrição de Luiz Pires dos Reys. [s.l.] Edições Sem Nome, 2014. A obra é dupla, tendo no reverso Gilberto de LASCARIZ, O Verbo do Arcanjo Luciferino em Fernando Pessoa. De notar o Anexo 1, que reproduz um texto pessoano onde se lê: “A figura da ascensão, e pensar o que fazer do caminho da Serpente, agora repudiado” (PESSOA, 2014, p. 26. 13 Cf. também PESSOA, 1985, p. 34: “e quando chega a Deus não para”. Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional 59

A “Serpente” parece na verdade equivaler à “consciência” atrás referida, no texto “O desconhecido”, ou ao “Não-Ser” do Tratado da Negação, na medida em que O Caminho da Serpente afirma que “a consciência transcende a unidade”, sendo o “ponto absoluto” que “só “existe”” como condição de possibilidade de tudo o mais (PESSOA, 1985, p. 29), o que sugere que transcende toda e qualquer forma ou modo de existência. Esta “Serpente”/”consciência”, que se manifesta de modo negativo e libertador, pois negar é negar todos os ilusórios limites e determinações, representa na verdade a “sabedoria” de simultaneamente conhecer e participar intimamente de “todas as coisas” e abandoná-las “como acidentes de uma ilusão irracional”. Tratase de reconhecer, vivenciar e emancipar-se de todos os contrários, integrando e transcendendo o projeto sensacionista de Álvaro Campos: “Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo” (PESSOA, 1985, p. 33). É nisto que “a Serpente está acima das ordens e dos systemas”, bem como das “linhas” e “caminhos” (PESSOA, 1985, p. 29), sendo uma figura de libertação radical que a tudo integra e transcende:

A Serpente é o entendimento de todas as coisas e a comprehensão intellectual da vacuidade d’ellas. Seguindo um caminho que não é o de nenhuma ordem nem destino, ella ergue-se á Altura que é a sua origem e evita os logares por onde os homens passam. O entendimento de tudo, a fusão dos opostos, a sciencia da indifferença do bem e do mal, a sciencia da valia da emoção como emoção e da vontade como vontade, a egual ironia para com os sabios como para com os nescios. (PESSOA, 1985, p. 28).

Neste “caminho da Serpente”, que na verdade “é a evasão dos caminhos”, reconhece-se a “verdade essencial (...) de que Deus é o cadaver de si-mesmo”, o que equivale à “descoberta do Triangulo Mystico em que os trez vertices são o mesmo ponto, o segredo da Trindade e do Deus Vivo, que, em certo modo, é o Homem Morto em e atravez de Deus Morto” (PESSOA, 1985, p. 35). Cremos poder interpretar esta formulação obscura como o reconhecimento de que o que se representa como “Deus” é

na verdade, como em Mestre Eckhart e numa continuidade do diálogo com Nietzsche, a “morte” ou a determinação do infinito impensável e inefável, isso mesmo que se desvela como o “ponto absoluto” e místico da consciência em que os três vértices da Trindade cristã – Pai, Filho e Espírito Santo – ou da trindade metafísica – Deus, homem, mundo – se unem e anulam na experiência do “Deus Vivo”, ou do abismo/ vazio sem nome, desvelado pela transcensão do “Homem” e de “Deus”, como na leitura que fizemos das palavras do “louco” na Gaia Ciência. Este “ponto absoluto” da consciência / experiência nua, livre de palavras, conceitos e imagens, “sendo a negação do espaço” (o espaço do “mundo”, criado pelas forças aparentemente afirmativas mas ilusórias, como diz o Tratado da Negação), é todavia “a vida d’elle”, o que parece mais uma vez desvelar nesta negação do negativo uma impensável e inefável positividade transcendente, afim ao que Raphael Baldaia no mesmo Tratado chama “Vida”. (BALDAIA, 1993 p. 44). Esta “Vida” é o que Fernando Pessoa em muitos passos da sua obra designa como o “além-Deus”, por vezes referindo o estado primordial de si mesmo. É o que acontece de modo implícito num soneto inglês em que o poeta assume haver nascido antes do surgimento do cosmos e do próprio nascimento de Deus, que se diz não haver surgido senão após o advento do mundo14 (porventura como a ideia de Deus com que a razão humana busca explicar o haver alguma coisa em vez de nada). Ainda na poesia inglesa, um poema significativamente intitulado “Anamnesis” recorda a “vida perdida” do sujeito, “antes de Deus”, também designada como uma “infância antes da Noite e do Dia”15. A referência ao além de Deus cruza-se assim com o tema de um si e de uma vida anterior aos presentes16 e com o vislumbre de um “Rei dos Vazios” que é “senhor do que está entre uma coisa e outra” e dos “entre-seres” (“interbeings”), residindo “entre o nosso despertar e o nosso sono, / Entre o nosso silêncio e o nosso discurso, entre / Nós e a consciência de nós”. É o “mistério” sem princípio nem fim

14 “Something in me was born before the stars / And saw the sun begin from far away. (...) It dates remoter than God’s birth can reach, / That had no birth but the world’s coming after” (PESSOA, 2000. v. XXIV, p. 56). 15 Cf. , “Anamnesis”, inPESSOA, 2000. v. XXIV, p. 258 (tradução nossa). 16 “I had a self and life / Before this life and self” “The Foreself” (PESSOA, 2000. v. XXIV, p. 274). Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional 61

de uma “presença vazia” que nada é senão “um abismo no seu próprio ser e do qual se conclui que “todos pensam que ele é Deus, excepto ele próprio”17 . Também num poema intitulado precisamente “Além-Deus”, o “universo” parece ser o “rasto” e “Deus” a “sombra” de um “vácuo sem si-próprio”, designado como “Além-Deus”, que no fundo é a dolorosamente desejada “Pátria anterior / À forma consciente do meu ser” (PESSOA, 1986, v. 1, p. 1091-1094). Veja-se também a referência a uma trans-divina e misteriosa alteridade figurada como “a lua além de Deus, álgida e ignota” (PESSOA, 1986, v. 1, p. 1108), e sobretudo a visão de uma “escondida / Verdade” transcendente do Deus criador, que é apenas “o Homem de outro Deus maior”, tendo também tido uma “Queda” ao criar e sendo por isso criado (como criador), ato pelo qual “a Verdade lhe morreu”. Morto Deus na “geração do mundo”, há que “ir buscar além de Deus / O Segredo do Mestre e o Bem profundo” (PESSOA, 1986, v. 1, p. 1131-1132. O mesmo tema surge no Primeiro Fausto, onde Pessoa escreve que “Deus a si próprio não se compreende. / Sua origem é mais divina que ele”18, tal como no poema de Álvaro de Campos que refere o “ultra-ser” como essa “coisa que está para além dos deuses, de Deus, do destino”19 . Na confluência da visão-experiência eckhartiana, nietzschiana e pessoana, perguntamo-nos se não se entreabre aqui a via de uma experiência espiritual nova – ou o regresso de uma antiquíssima – que consiste precisamente na assunção do vazio desvelado pela morte de Deus, na sua proclamação nietzschiana, sem o pretender ocupar por uma substitutiva determinação da consciência, a do humano ou outra, mas antes desvelando que a natureza primordial da consciência coincide com essa ausência de limites e silêncio sem nome do incriado abissal. Mas perguntamo-nos também se esta via espiritual não esteve desde sempre presente no que se designou como mística da (supra-) essência, no seio das próprias tradições teístas, sempre que nestas se aprofundou a iconoclasta intuição de que a ideia de “Deus” é o supremo ídolo a abater, pois - além de ser aquele que é mais difícil de reconhecer e que mais apego gera na

17 Cf. “The King of Gaps”, in PESSOA, 2000. v. XXIV, p. 280. Sobre esta questão, cf. BORGES, 2008b, p. 73-89. 18 Cf. “Primeiro Fausto”, in PESSOA, 1986, v. XVII, p. 614. 19 Cf, Álvaro de CAMPOS, in PESSOA, 1986, v. XVII, p. 1019.

consciência que nele se fixa -, o abismo infinito que se designa como “Deus” é sem ideia e, em última instância, não é Deus para si mesmo, não havendo Deus em “Deus”, mas antes uma liberdade sem contornos. Foi isso que entre nós viu Pascoaes, ao afirmar Deus como “o único ateu perfeito” (PASCOAES, 1945, p. 246), o que José Marinho integrou no seu pensamento, ao constatar que, “se Deus é o ser da verdade, então a verdade não é para si” (MARINHO, 1961, p. 23), reconhecendo o “incriado” como transcendendo a “relação entre criador e criatura” e apreendendo assim “o profundo sentido e transcendente alcance de todo o autêntico ateísmo iniciático”. (MARINHO, 1961, p. 92). A esta luz a primeira morte de Deus é aquela pela qual se constitui como uma entificação e objetivação da consciência, o que não deixa de ser sugerido pela etimologia da palavra, da raiz indo-europeia – dei, com o sentido do que brilha. (LELOUP, 2014, p. 9-10; VALLET, 2007, p. 63-64), colhido da experiência da irrupção da luz nas trevas. Essa luz, fundo comum do mundo e da consciência, que o imaginário indoeuropeu identificará e figurará como um divino celeste e masculino – por contraste com o anterior imaginário da Deusa-mãe ctónica e obscura -, não pode emergir senão no indiferenciado e indeterminado que apenas por e para ela se configura como treva. Por isso o Pseudo-Dionísio, o Areopagita, na génese da teologia cristã, designou Deus como “treva de silêncio, mais que luminosa”, deixando-nos um caminho da serpente não menos radical do que o pessoano para abandonar tudo, afirmação e negação, sensível e inteligível, na união com isso que nada é senão o “liberto de tudo” (pánton áplõs), incluindo de ser “divindade” (CARVALHO, 1996, v. V, p. 25). Na verdade, nesta perspectiva, “Deus é a morte de Deus”, no duplo sentido de “Deus” ser a conceptualização do inconceptualizável e de a experiência não-conceptual da liberdade infinita que se designa e encobre como “Deus” ser o fim desse conceito e a abertura da consciência / experiência à sua nudez primeira e última. A morte de todas as representações de Deus, metafísicas e morais, mas sempre antropocêntricas, pois movidas pelo desejo de posse inerente à insegurança do intelecto conceptual (conforme as sugestões etimológicas do conceptum latino ou do Begriff alemão, que

remetem para o agarrar), pode ser assim vivida como o apocalipse (desvelamento) ou ressurreição da essência “a-teia” e “a-teológica” de Deus como puro vazio abissal, livre da idolatria da consciência que, presumindo-se distinta dele, o objetiva como distinto de si (a ânsia de um deus-objeto, ob-jectum, ou seja, lançado contra o sujeito, “que vá à nossa frente”, resulta, como sabemos, na construção do “bezerro de ouro” (Êxodo, 32, 1-4))20. Já o “des-encobrimento”, alétheia, de Deus como puro vazio abissal e indeterminado o mostra por isso mesmo igualmente superabundante, sem hierarquia, em todos os seres e formas disso a que Eckhart e Pessoa/Baldaia chamaram a “Vida”, sem porquê nem para quê. E aqui se pode reconhecer a dupla vertente de uma nova e antiquíssima espiritualidade contemplativa e meditativa, que prefira o silêncio à palavra (que nele se renova) e funde uma ética não antropocêntrica, que reconheça, respeite e proteja a maravilha Sem Nome em toda a comunidade cósmica, sua portentosa epifania.

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20 Como sabiamente escreve Jean-Yves Leloup: “Uma vaga não se pode percepcionar fora do oceano que ela é. Se se percepciona como diferente, fora dele, faz do oceano um outro, um ídolo. E é aí que a religião pode tornar-se também uma ‘doença dos olhos’” (como o ateísmo comum, não “iniciático”, no sentido de José Marinho) (LELOUP, 2014, p. 11). 64 Nietzsche, Pessoa, Rosa, Freud: II Colóquio internacional

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