O Trecheiro - Setembro de 2012 #210

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“Sou humano”

Recentemente, em um encontro com uma pessoa há muito tempo em situação de rua perguntei seu nome e disse que já o conhecia de outros lugares. Ele me cumprimentou, falou seu nome e disse que estava se organizando para sair da rua e buscava um trabalho. Conversamos apenas um pouco, ele se retirou, pediu desculpas e alegou ter que ir embora. Despedimo-nos e fomos para nossos afazeres de cada dia. Fiquei impressionado com essa pessoa que, aparentemente, muitos poderiam ter medo de se aproximar, mas foi de uma doçura e gentileza raramente encontradas. Chamou-me atenção o fato de ele não ter muito tempo, pois se dependesse de mim, conversaríamos mais longamente. O outro fato, é que ele mostrava já não ter mais condições de trabalhar pela saúde e idade, mas a ideia de que tem que trabalhar para estar presente na sociedade ainda era forte. A justificativa serve para dizer “que sou alguém como você, não tenho tempo e estou à procura de emprego”. Esta fala pode significar que este senhor quis dizer: “Sou gente, sou humano e não bicho como pareço ser para alguns”. Esta mesma explicação, ouvimos várias vezes por ocasião da “Operação Espantalho”. A comparação com cachorro ou cachorro sarnento é muito comum entre as pessoas em situação de rua, pois é assim que eles são tratados. Com isto a violência física também tem aumentado em quantidade e intensidade. Por trás desse quadro, temos um olhar, ou melhor, um não olhar para elas. No caso do Largo São Francisco, um absurdo econômico e social. Econômico porque se está jogando dinheiro do munícipe fora, quando são destinados oito guardas por turno para vigiar as paredes da Faculdade São Francisco. Social, porque as pessoas só passaram para o outro lado da rua. Como na operação delegada da Polícia Militar na Luz, que espalhou as pessoas dependentes do crack para outras regiões da cidade, mas não resolveu o problema. Os traficantes só vão ter que aumentar o seu quadro de recursos humanos e andar um pouco mais. Infelizmente, nesses últimos anos podemos afirmar, sem dúvida de errar, que as ações municipais em várias áreas das políticas públicas em São Paulo serviram apenas para agravar a situação de conflito na cidade e piorar a situação dos pobres que tentam sobreviver. Vejam o que foi feito nas muitas reintegrações de posse e nos vários incêndios das favelas que não tiveram nenhum apoio qualificado da Prefeitura: as famílias foram literalmente jogadas na rua. No máximo, oferece-se uma vaga de pernoite em albergues. Estes, por sua vez, também não oferecem oportunidades e são mais um espaço de confinamento e esconderijo dos pobres. Basta verificar o caso da dona Cida e o relato de nossa repórter. “Os registros da Prefeitura apontaram que a dona Cida permaneceu 10 dias no Albergue São Francisco no Glicério no ano de 2007. A equipe de abordagem nas ruas registrou doze atendimentos nas imediações da Rodoviária da Barra Funda entre os meses de março a junho de 2012. No entanto, os profissionais nada anotaram sobre essas abordagens. No pátio do Boracea, muitos homens (poucas mulheres) soltos em cadeiras de rodas. É de se perguntar para o que servem esses serviços? Que providências o poder público realizou com dona Cida nesse período final de sua vida?” Bom, vamos esperar as eleições e votar para que essa situação mude. Já não conseguimos mais conviver com tanta violência, negligência e aberrações da polícia “social-assistencial-econômica”. Não é política, o que vemos é polícia para resolver os problemas sociais. Bom, tenho que ir, pois também preciso trabalhar!

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Setembro de 2012

VIDA NO TRECHO

Vida curta e difícil

Dona Maria Aparecida Moresco faleceu no Centro de Acolhida Especial Boracea no dia 16 de setembro e foi enterrada no Cemitério de Vila Formosa Fotos: Fabiano Viana/Rede Rua

Editorial

O Trecheiro

Cleisa Rosa

“Em cartaz na Barra Funda: lar, amargo terminal – Solitária e doente, Maria Aparecida Moresco, de 58 anos, viveu durante sete meses no Terminal Rodoviário”. Alguns de seus amigos, que tiveram convivência estreita com ela em anos passados, ficaram surpresos e tristes com essa matéria publicada por Jussara Soares no Diário de S. Paulo (26/08/2012). Dona Cida participou ativamente dos encontros do Fórum de Debates da População de Rua realizados na Pastoral da Moradia na Rua Rodolfo Miranda, ocasião em que a conheci. Nessa época, nos anos de 2004, ela fazia parte do primeiro grupo de 11 agentes comunitários de saúde de rua selecionados entre 260 candidatos ao Programa “A Gente na Rua”, implantado pelo Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto; além de competente esse grupo era comprometido com a defesa dos direitos humanos e do protagonismo da população de rua. Dona Cida tinha um diploma em Ciências Sociais pela PUC-SP, expressava-se muito bem, conversava sobre vários assuntos e levava a sério sua atividade. “Trabalhei com dona Cida, aproximadamente, três anos. Uma mulher inteligente e sedutora com suas sábias palavras. Entretanto, por trás de tanta inteligência, havia um sofrimento psíquico

intenso, o qual dona Cida parecia querer esconder”, disse Rhavana Pilz Canônico, enfermeira e Interlocutora Técnica Bom Parto. Região Sudeste. Foram cinco anos de trabalho como agente comunitária de saúde de rua. Inteligente e atenta aos outros, dona Cida era uma militante da rua, interessada não apenas no trabalho, mas nos cuidados e na vida das pessoas com as quais convivia cotidianamente nas ruas. Desde 2007, começou a ser acompanhada por psicólogo, psiquiatra e assistente social tendo em vista o desempenho do trabalho nas ruas e as providências com sua aposentadoria (ela tinha problema na perna que a impedia de andar). Somente a partir de 2009, dona Cida se aposentou e começou a receber um salário mínimo. Ao tomar conhecimento da matéria do Diário de S. Paulo, procurei saber onde dona Cida se encontrava e fui visitá-la no Boracea. No espaço das mulheres, várias camas e ao lado de uma delas, com um prato na mão dona Cida almoçava. Quando me viu parou de comer e colocou o prato em cima da cama. Nesse encontro, relembramos de experiências comuns que tivemos em fóruns, manifestações e atos nas ruas. Ela falou dos amigos e amigas. Dona Cida estava do mesmo jeito de quando a conheci:

educada e falando muito sobre sua família, o fato de ter sido adotada e a perda dos recursos financeiros. Comentou que jornalistas do Diário estavam procurando por sua família e que integrantes da Escola de Samba Mocidade Alegre iriam levá-la naquela semana para conhecer essa escola de samba porque sabiam o quanto ela gostaria. Ela disse que queria voltar a trabalhar e não gostou de se aposentar. Tínhamos muito a conversar, prometi voltar e avisar seus amigos e amigas. Em menos de 15 dias desse encontro, fui avisada pela assistente social do Boracea que dona Cida havia morrido após um mal-estar e atendimento do SAMU. Foi um prazer reencontrar dona Cida, mas não imaginava que seria pela última vez. Nessa visita me dei conta de maneira ainda mais dramática de como tantos homens e mulheres vivem nas ruas e nos serviços públicos. Muita coisa é feita, muito dinheiro gasto, mas no limite estão abandonados à própria sorte até à morte.

Entretanto, por trás de tanta inteligência, havia um sofrimento psíquico intenso

Comunicado e convite A Associação Rede Rua comunica sua decisão de interromper o convênio 309/SMADS/2008, com a Secretaria da Assistência Social, para o serviço do Centro de Acolhida para Adultos Núcleo de Vivência Santo Dias da Silva. Suas atividades começaram em 27 de dezembro de 2002, com o objetivo de prestar atendimento a 80 homens em situação de rua para possibilitar a saída da situação de rua, por meio da conquista da autonomia. Convidamos todos para marcar a continuidade de nossa luta por uma política diferenciada e qualificada em vista do protagonismo das pessoas em situação de rua. A Luta do Santo Dias continua!

Saídas já! Data e horário: 15 de outubro de 2012 (2ª feira) às 19 horas Local: Pousada da Esperança Rua Ministro Roberto Cardoso Alves, 51 – Santo Amaro Contato: (11) 5548-2672


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