O Trecheiro - agosto de 2014 #227

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IMPRESSO

Notícias do Povo da Rua

Ano XXII Agosto de 2014 - Nº 227

Rede Rua de Comunicação - Rua Sampaio Moreira, 110 – Casa 9 – Brás – 03008–010 São Paulo SP – Fone - 3227-8683 - 3311-6642 - rederua@uol.com.br

10 anos,

Fotos: Arquivo/Rede Rua

o massacre que não termina MNPR: 10 anos de luta contra a violência

Apesar da tristeza e a revolta – as quais nos assola por fazer parte do fato ocorrido e que ainda está longe, muito longe de podermos fazer justiça a esses companheiros e a tantos que tiveram suas vidas ceifadas, fruto da ignorância, do descaso e da impunidade –, não podemos nos esquecer que isso foi o estopim que faltava para levantarmos uma bandeira. Maria Lúcia Santos Pereira. MNPR – Salvador. Consideramos um avanço as políticas reconhecidas para a população em situação de rua. Entretanto, para continuar avançando, precisamos de mudanças no comportamento, na forma de como quem está em situação de rua ainda continua sendo visto, discriminado e desrespeitado. O nosso papel como movimento tem sido o de dialogar constantemente, com o governo, a segurança pública, mas mesmo assim, coisas absurdas continuam a ocorrer com nossos companheiros nas ruas da capital. Antonia Cardoso. MNPR – Distrito Federal. No Paraná, vamos realizar, em Londrina e Curitiba, ações voltadas aos dez anos de impunidade dos assassinatos da Praça da Sé e também das violências e assassinatos da população de rua no estado do Paraná, que ainda são ignorados pela Secretaria de Segurança Pública. Leonildo Monteiro. MNPR – Curitiba. São dez anos do Massacre da Praça da Sé, episódio que foi o estopim para o surgimento do MNPR, porém de lá para cá nada aconteceu, muito pelo contrário: os culpados pelo ocorrido não foram responsabilizados e mortes continuam ocorrendo em todo país. Somente em 2013, foram assassinados 30 companheir@s nas ruas de Belo Horizonte, sem falar nos assassinatos em Goiânia, Maceió entre outros. Samuel Rodrigues. MNPR – Belo Horizonte.

Rose Barboza

Há 10 anos ocorria, em São Paulo, o “Massacre da Sé”. Em quatro dias, 15 pessoas foram brutalmente espancadas, sete das quais morreram. Desde então, esse massacre tem estado no centro dos debates das políticas de vida e morte de quem vive nas ruas. A data de início dos ataques – 19 de agosto –, foi escolhida para celebração do Dia Nacional de Luta da População de Rua, que, anualmente, reivindica não só a memória desse episódio brutal, mas continua a exigir que a justiça seja feita e os culpados condenados. A sociedade que testemunhou com horror e indignação a brutalidade de tais crimes se mostra mais intolerante 10 anos depois. Mesmo contabilizando algumas conquistas após muita luta e mobilização, as desigualdades estruturais no Brasil e, no mundo, são cada vez mais profundas e permanentes. De lá para cá É certo que de 2004 para cá, algumas conquistas no enfrentamento à violência contra a população de rua ocorreram, como a organização do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), o Decreto 7.053/2009, que instituiu a Política Nacional para o segmento e a criação de comitês estaduais e muncipais e nacional de acompanhamento e implementação de políticas públicas para a população em situação de rua, em várias cidades do país. Em abril de 2011, foi inaugurado

o Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH), que coleta e acompanha denúncias de violações de direitos. O CNDDH está localizado, em Belo Horizonte, e tem núcleos em sete estados. Higienização e o Mundial de Futebol da FIFA Além dos homicídios com arma de fogo, gasolina e pedradas, chamam a atenção as denúncias sobre o processo de higienização das cidades, processo agravado pelo mundial de futebol da FIFA em 2014: “Um dos casos mais preocupantes foi a denúncia do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, de que a prefeitura da cidade removeu das ruas, compulsoriamente, 669 pessoas, forçando-as a permanecer em um albergue sem as mínimas condições, para ‘limpar a cidade’ durante o Mundial. Além do Rio de Janeiro, Vitória e São Paulo enviaram denúncias da limpeza social que antecedeu a Copa do Mundo no país”, afirma Karina Vieira, coordenadora do CNDDH. Violência estrutural e higienização: duas faces do mesmo massacre Chamamos de violência estrutural aquela que se mistura ao cimento das paredes que colocam em pé nossa sociedade. Para muitas pessoas que vivem em situação de rua até mesmo pequenas escolhas do dia a dia,

como encontrar um lugar para tomar banho, urinar ou comer são limitadas. Quando uma pessoa tem sua liberdade individual e necessidades básicas de sobrevivência reguladas por leis e regras – que se aplicam de forma seletiva, criminalizando alguns segmentos da sociedade e outros não –, estamos diante de casos de violência estrutural, que reduzem a dignidade das pessoas enquanto as submetem à segregação. As ameaças constantes, “sutis ou não tão sutis”, de violência física – que pode partir de agentes públicos e/ou de seguranças privados – formam uma lista interminável e legitimam os processos de limpeza social e de expulsão dos centros da cidade. O ciclo de violência estrutural, colocado em marcha pelas desigualdades econômicas, raciais e de gênero, também escondem as causas reais da situação de rua e, a própria população de rua é julgada culpada pela condição na qual se encontra. O caminho aberto por essa violência é lucrativo para alguns e enche os bolsos de especuladores, que ganham com a chamada “limpeza social” e muitas vezes, triplicam os preços de imóveis em regiões “higienizadas”. Sem Habitação, Trabalho, Saúde e Educação é mais fácil vender para toda a sociedade as remoções e “limpezas urbanas”, como políticas necessárias. É nesse ponto em que a violência estrutural se perpetua em massacres cotidianos, inexplicáveis e brutais.

Desde abril de 2011, o CNDDH registrou 860 homicídios e 1.012 tentativas de homicídio contra a população de rua em todo o país. O CNDDH entretanto assegura que o número é subestimado, uma vez que não existe um método que registre tais crimes e ofereça informação fidedigna a respeito.


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O Trecheiro

Editorial

Os massacres continuam

Se pensarmos em cada pessoa que vai para a rua, ou melhor, se pensarmos em pessoas que perdem o emprego; não podem pagar aluguel; têm problemas de saúde; fazem uso de drogas; não conseguem entrar no mercado urbano de trabalho e acabam sem alternativas, vemos que a situação de rua representa um alerta e uma afirmação de que o massacre continua. Os massacres são também simbólicos, assim como, reais. Começam e continuam nas “veias abertas”, diria Eduardo Galeano, que sangram em um contexto social que apresenta sintomas de política econômica cada vez mais seletiva e excludente. Os massacres continuam nas favelas e são perceptíveis na ausência total de alternativas de vida e de políticas públicas. As mortes de tantas pessoas em situação de rua não significaram e não significam nada para nossa sociedade. A impunidade é tão presente na cidade, como a miséria vista publicamente. Sem falar na quantidade de pessoas que continuam sendo assassinadas, por jovens de classe média e alta, “burguesinhos” que acreditam na impunidade, não, eles têm certeza que nunca serão condenados por matar uma pessoa em situação de rua, a qual eles chamam de “mendigo”. A verdade é essa: as pessoas continuam encontrando, na rua, sua última saída antes do enterro coletivo, sem roupa, sem parentes, sem velas e sem qualquer outro símbolo que possa identificar que ali existia um ser humano. É preciso dizer, que não apenas os jovens são os responsáveis, mas sim todos que permanecem na indiferença, em atitudes preconceituosas e governos, em todas as instâncias, que não promovem a efetividade no atendimento. A selvageria não acontece somente nas mortes violentas, como a do “Massacre da Sé”, em São Paulo (2004); em Maceió (2009); em Goiânia (2012), mas, em outras cidades, todos os dias. A violência não é só dos covardes que sujam as mãos a mando de outros, os quais a polícia nunca consegue encontrar. Havia na época do Massacre da Sé, um sentimento de que com aquele trágico e brutal assassinato, o poder público se voltaria para buscar formas de enfrentar a problemática da rua, como também, os protegeria com ações. Uma pergunta ainda persiste: porque não apurar seriamente? Será por que a apuração revela e denuncia não apenas a morte, mas a prática higienista dirigida aos pobres? Até quando perguntar: “Cadê Amarildo? Cadê Maria? Cadê José? Cadê aquele morador de rua”? O que temos visto de 2004 para cá? Uma polícia truculenta e despreparada para lidar com quem está em situação de rua, pessoas frágeis sujeitas ao mundo da drogadição e ao tráfico. A “política do massacre” imposta sob quem vive na rua, não é apenas a de tirar a vida física, mas, quando os intimidam e os forçam a perambular pelos bairros, exaurindo-os até aceitarem a única resposta: os albergues. O massacre percorre a rua, as favelas, as lideranças de movimentos sociais. Temos que avançar não só na apuração desses fatos violentos contra os mais pobres, aqui incluídas pessoas em situação de rua e nos cárceres, jovens da periferia, líderes da luta pela reforma agrária, mulheres, dentre outras. Quando não se elimina, se encarcera, portanto, eliminar de fato é muito além do que tirar a vida. Para enfrentar a extrema pobreza é essencial um aparato bem mais articulado entre as diversas secretarias e com especializações, em várias áreas da política pública, em todos os níveis de governo. Pensar em intervenções para mudanças dessa realidade é pensar em ações que também venham a transformar as relações da sociedade com aqueles que foram escolhidos como bodes-expiatórios de um sistema o qual nunca deu conta de os acolher dignamente.

APOIO:

O Trecheiro Notícias do Povo da Rua

CONSELHO EDITORIAL: Arlindo Dias EDITORIAL Produção Coletiva

EQUIPE DE REDAÇÃO: Arlindo Dias Cleisa Rosa Davi Amorim Léa Tosold Rose Barboza

REVISÃO Cleisa Rosa FOTOGRAFIA: Alderon Costa

Apoio Andreza do Carmo Ana Clara Fernandes Felipe Moraes João M. de Oliveira

Jornalista Responsável IMPRESSÃO: DIAGRAMAÇÃO: Forma Certa Davi Amorim Fabiano Viana 5 mil exemplares MTB: MTB 48.215/SP Rua Sampaio Moreira,110 - Casa 9 - Brás - 03008-010 - São Paulo - SP - Fone: (11) 3227-8683 3311-6642 - Fax: 3313-5735 - www.rederua.org.br - E-mail: rederua@uol.com.br

Agosto de 2014

ViDA No TReCHo “Quando esquecemos, cometemos o erro de novo” Arquivo pessoal

Davi Amorim

“Corações Ausentes” é o sétimo livro do escritor e fotógrafo Arlindo Gonçalves e marca os 10 anos do massacre da população em situação de rua no centro de São Paulo. O autor é carioca, veio para São Paulo ainda criança, mora no centro da cidade e convive cotidianamente com o tema central de suas obras, sempre focados na realidade urbana. Arlindo é colaborador da revista OCAS”, e conheceu o jornal O Trecheiro, em meados de 2000, do qual se tornou leitor e parceiro. “Quando ocorreu o massacre de 2004, acompanhei os protestos e não preciso dizer o quanto isso chocou todo mundo. Esse massacre me afetou bastante, pessoalmente, de tal forma que eu parei um pouco de escrever na época. Na verdade, parei um pouco com esse tipo de literatura que eu estava acostumado”, conta Arlindo, em entrevista ao jornal, e explica que, entre seus personagens, há um olhar especial às pessoas em situação de rua. “Em 2010, senti vontade de voltar à temática da literatura que eu vinha fazendo. Então, eu escrevi uma pequena novela de ficção baseada no massacre do Centro, o `Corações Suspensos no Vazio´, uma novela, não é um livro jornalístico”, declarou Arlindo. A obra é um ensaio escrito em primeira pessoa sobre acontecimentos do massacre, no Centro, e de momentos posteriores, estilo diferente do livro anterior de ficção, mas com diversas referências a esse trabalho. “Um ano depois de lançar a novela baseada no massacre, fiz uma palestra em um centro de memória da Unesp, bem na Praça da Sé. Essa palestra e o livro [“Corações Suspensos no Vazio” tornaram-se] referências para “Corações Ausentes”. “Este livro está muito ligado ao resgate da memória. É uma reflexão de um cidadão comum a respeito de uma questão que marcou a gente, na época. A memória é algo bem for-

te, nesse ensaio, a gente tem que lembrar, por mais doído que seja, [porque] quando esquecemos, cometemos o erro de novo”, completa Arlindo e cita o escritor Marçal de Aquino, que fez o prefácio do primeiro livro sobre o massacre, alertando para o fato de outros massacres continuarem sendo feitos em todo o Brasil. O “Corações Ausentes” não vai ser comercializado, mas será disponibilizado em versão PDF pela editora e em sites parceiros, bem como, em formato e-book, para leitura em dispositivos móveis. A revista OCAS” e a Rede Rua já têm disponível o livro para download em seus respectivos sites.

Este livro está muito ligado ao resgate da memória. É uma reflexão de um cidadão comum a respeito de uma questão que marcou a gente, na época. Por que o nome “Corações Ausentes? Arlindo: O primeiro chamava-se “Corações Suspensos no Vazio”, e minhas fotos remetem a situações de vazio, são cenas silenciosas da cidade. Os personagens são um casal de velhos e cada capítulo se refere a um deles. No capitulo em que me refiro ao velho, ele comenta algumas situações de vida e a gente vai, por intermédio da reflexão dele, saber o motivo pelo qual ele foi parar na rua. Esse idoso faz referências a um vazio pessoal, por que ele não conseguiu criar laços familiares e afetivos fortes. Ele só resgata esses laços quando vai para a situação de rua, que é quando ele conhece uma senhora que ao fim da vida dele vai preencher esse vazio. Em relação a “Corações Ausen-

tes”, estou me referindo aos personagens que estão suspensos no vazio. O livro faz a trajetória desses dois personagens, um deles morre no massacre, o outro sobrevive, mas vai embora. No “Corações Ausentes”, então 10 anos depois do Massacre, refiro-me a eles, os quais estão ausentes desde então. A intenção é recuperar a memória e não fazer o assunto cair no esquecimento. Como é o processo de criação de suas obras? Arlindo: Fico muito na rua, sou um escritor urbano e quem trata de assuntos urbanos tem que ficar na rua, tem que ir para o bar, o supermercado para se expor às situações. Na época que eu fiz um ensaio fotográfico a intenção não era registrar as pessoas em fragrantes fortuitos e roubar a imagem. A ideia era fazer retratos, então tinha que abordar a pessoa e conversar. Fiquei três meses fazendo esse trabalho e muitas histórias vieram dessa fase. Todos os meus livros são baseados em coisas que eu vivenciei ou verifiquei no dia a dia. No “Corações Ausentes”, falo bastante da origem do livro anterior, portanto, de como eu construí cada personagem. Sou bastante idealista, faço tudo sempre com muito ideal, acho que a vida é mais do que aparências, mais do que observações. A gente capta a realidade com os sentidos que temos que são, muitas vezes, obstruídos e temos que superar essa limitação. A fotografia e a literatura ajudam bastante nisso. Fale sobre seus livros anteriores. Arlindo: Os três primeiros livros: Dores de perdas (2004), Desonrados e outros contos (2005) e Desacelerada mecânica cotidiana (2008) foram escritos como um romance só. Era muito grande para publicar, na época, e a editora se interessou em publicar apenas alguns contos, então, eu reescrevi dois fora do livro original, em forma de novela. Já na editora Horizonte, publiquei a parte final e formei a trilogia, depois e fiz um livro de fotografias e poesias “Carinhas(os) Urbanas(os)” também pela Horizonte em parceria com Luciana Fátima, minha namorada, também fotógrafa e escritora. Depois fizemos um livro de humor, por incrível que pareça, algo bem diferente, além de “Crônicas de viagem” que saiu também pela Horizonte. Mais informações: <http:// editorahorizonte.blogspot. com.br/2010/12/ultimo-lancamento-do-ano-coracoes. html>.


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Agosto de 2014

Trabalho de inclusão de catadores corre risco de acabar Fotos: Arquivo/Rede Rua

Cleisa Rosa e Léa Tosold

Trecheirinhas

O Trecheiro

Aprovação do Plano Diretor Estratégico de São Paulo

Em 31 de julho, foi realizada solenidade, no auditório Oscar Niemeyer do parque do Ibirapuera, com a presença de quase 800 pessoas, além de um telão instalado na marquise do lado de fora que reuniu mais de 200 pessoas para assistir a transmissão ao vivo da sanção da lei nº 16.050, que aprovou a Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo. As estratégias foram pactuadas durante intenso processo participativo, somando-se 114 audiências públicas, 25.692 participantes e um total de 10.147 contribuições, informou o site da Prefeitura de São Paulo

Resta-nos indagar!

O que ficou pactuado para a população de rua tendo em vista as palavras do prefeito de São Paulo, ao afirmar que essa lei é para toda a cidade? “É a primeira vez que São Paulo tem um rumo certo para perseguir até garantir qualidade de vida para todo mundo”, disse Fernando Haddad na solenidade.

Davi Amorim

Há cerca de dois anos, o Mercado Municipal de São Paulo destina corretamente seus resíduos recicláveis com a ajuda de catadores de materiais recicláveis atendidos pela Associação Clube de Mães do Brasil, que desenvolve projeto social de inclusão social e produtiva de pessoas em situação de rua e de dependentes químicos. O projeto tem tirado pessoas da situação de risco, a qual estão expostas, mas está ameaçado de acabar de um dia para o outro. Sem muita explicação e diálogo, a Associação recebeu a notificação de que devem se retirar do espaço onde a coleta seletiva é realizada, dentro do Mercadão, para dar lugar a outra organização que fará, a partir de então, a destinação dos resíduos. “A partir do próximo 1 de agosto, toda coleta de lixo reciclável do mercado paulistano, bem como, seu armazenamento e sua destinação ficarão sob a responsabilidade da Associação da Renovação do Mercado Central Paulistano (Renome)”, aponta

o ofício assinado por Marcelo Mazeta Lucas, supervisor geral de Abastecimento da Prefeitura de São Paulo, órgão ligado à Secretaria Municipal de Trabalho e Emprego. “Estamos realizando um trabalho de inclusão social que beneficia, também, o meio ambiente na cidade de São Paulo, é um trabalho correto que está resgatando vidas e não pode acabar assim”, declarou Eduardo Ferreira de Paula, do Comitê de Catadores da Cidade de São Paulo e diretor da Rede Cata Sampa que desenvolve parceria com a Associação Clube de Mães do Brasil, com suporte logístico para os catadores do Mercadão. Para Eduardo, a mudança coloca em risco todo o trabalho de anos, e pode levar as pessoas de novo à situação de vulnerabilidade social e à dependência química. A presidente da Associação Clube de Mães do Brasil, Claudineia Viana, denuncia que, após receber o ofício para deixarem o espaço, os catadores têm sofrido assédio moral por parte de funcionário da “Renome”, enti-

dade escolhida para administrar os permissionários do Mercado. “Os catadores estão revoltados, pois chega gente tirando fotos e não dá nem bom dia, eles estão sendo tratados como lixo, estão fazendo uma pressão psicológica”, declarou Claudineia. Depois de diversas tentativas de diálogo em que o supervisor Marcelo Mazeta se negou a atendê-los, foi agendada recentemente reunião para a segunda quinzena de agosto, mas quem irá recebê-los é a assessoria de comunicação de Mazeta. No ofício, Marcelo Mazeta alega que o Mercado Municipal está se adequando à Lei nº 12.305, muito embora ela estabeleça que a destinação dos resíduos sólidos deva ser feita em parceria, prioritariamente, com catadores de materiais recicláveis. Outra irregularidade é o fato de a “Renome” não ser associação de catadores fato que não a dispensaria de um processo licitatório, e tampouco trabalha com destinação de resíduos.

Os catadores e o Plano Diretor da cidade de SP Projeto de lei tem ações que atingem organizações de catadores de materiais recicláveis

Davi Amorim

Foi aprovado ontem, dia 30 de junho, na Câmara Municipal, o Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo que regula o planejamento de uso e desenvolvimento da cidade. Diversos movimentos sociais, principalmente, os de moradia, mobilizaram-se para a aprovação desse marco regulatório que interfere na vida de milhares de pessoas e procura tornar a cidade mais justa e acessível aos mais pobres. Mas o que muda, no Plano Diretor, para os catadores de materiais recicláveis e para o trabalho das cooperativas e associações? O Plano Diretor, além de regular os espaços da cidade destinados a determinadas atividades, também tem um olhar para a gestão dos resíduos. O Comitê de Catadores da Cidade de São Paulo enviou, em 2013, sugestões ao vereador Nabil Bouduki e à Secretaria Municipal de Planejamento e participou de audiências públicas. O Plano Diretor aprovado possui uma seção que trata da Gestão Integrada de Resíduos Sólidos, incluindo propostas apresentadas pela população durante a IV Conferência Municipal de Meio Ambiente. Esse trecho do Plano Diretor dá força de lei às reivindicações da sociedade, como a inclusão socioeconômica dos catadores de materiais recicláveis.

Entre as ações prioritárias, estão a universalização da coleta seletiva de resíduos secos e orgânicos com atendimento dos territórios dos distritos da cidade e a implementação da responsabilidade estendida do setor privado, no sentido de “assinar termo de compromisso para a logística reversa junto aos fabricantes, importadores, comerciantes e distribuidores dos materiais previstos na Política Nacional de Resíduos Sólidos”. O Plano Diretor também aprovou em seu texto: “definir estratégia para formalização contratual do trabalho das cooperativas e associações de catadores, para sustentação econômica do seu processo de inclusão social e dos custos da logística reversa de embalagens”.

Além disso, os Planos Regionais das subprefeituras devem ter, entre seus objetivos, a indicação de “áreas para localização de equipamentos necessários à gestão de resíduos sólidos, inclusive para cooperativas de catadores de materiais recicláveis”, aspecto também previsto no planejamento regional do Plano de Desenvolvimento do Bairro no Sistema de Planejamento. O Plano Diretor também menciona o tratamento de resíduos orgânicos, no sistema de coleta seletiva, estabelecendo áreas especificas para equipamentos públicos para essa finalidade. Mais informações: projeto na integra: <http://planodiretor.ca-

mara.sp.gov.br/wp/> e principais propostas do novo Plano Diretor: <http:// goo.gl/XeMXLI>.

Liberdade para Rafael Braga Vieira!

No próximo dia 26 de agosto, às 13 horas, no Rio de Janeiro, será julgada a apelação da defesa de Rafael Braga Vieira. Condenado a cinco anos de prisão em regime fechado por porte de Pinho Sol e água sanitária em meio aos protestos de junho de 2013, sua pena poderá ser finalmente revogada. Apesar de o laudo técnico da polícia civil já haver comprovado que os produtos de limpeza que Rafael portava não podem ser convertidos em coquetel molotov, conforme alega a acusação, Rafael já cumpriu mais de um ano de prisão. Divulgação

Direto da rua Sebastião Nicomedes

Agosto 2014 10 anos do massacre dos moradores de rua de São Paulo E de lá para cá as coisas só pioraram Na matança silenciosa do descaso Das drogas, do crack, que deterioram as pessoas A cidade se encheu de barracas, de barracos Por todas as praças, por todos os espaços Como se isso fosse um modelo de moradia Dignidade é o que não há nisso tudo!


O Trecheiro

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Agosto de 2014

Construindo a Política Pública para a População em Situação de Rua Rogério Sottili*

Agosto de 2004 foi marcado por um inaceitável episódio que ficou conhecido como “Massacre da Sé”, no qual, em três dias, 15 pessoas em situação de rua foram golpeadas na cabeça enquanto dormiam, resultando na morte de sete delas. O inquérito policial apontou seis suspeitos pelos crimes, entre eles cinco policiais, porém, somente dois destes foram condenados por uma das mortes, deixando, inclusive, os outros crimes sem resposta. Desde então, em memória a este Massacre, o dia 19 de agosto tornou-se o Dia Nacional da Luta da População em Situação de Rua. Quase dez anos depois, em 2013, foi criada a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), em São Paulo, com o compromisso de promover a cidadania a diversos grupos vulneráveis, entre eles, a população em situação de rua, fundamentando-se na garantia dos direitos humanos e na participação social, sendo um compromisso do prefeito Haddad trabalhar, de maneira transversal, a atenção a este público.

Arquivo Rede Rua

Desde então, o governo municipal tem construído diversas ações importantes: aderimos à Política Nacional e constituímos o Comitê PopRua para desenhar o Plano Municipal; estamos traba-

lhando a inserção produtiva por meio do Pronatec; a GCM está alterando a forma de abordagem da população em situação de rua; 2.000 unidades habitacionais serão destinadas a este

público; implantamos mais 12 consultórios na rua; e os serviços da Assistência Social estão sendo reestruturados, prevendo a criação de dois restaurantes comunitários, cinco Centros Pop e mais

22 novos Centros de Acolhida, em especial para famílias. Muito está sendo feito, mas temos muito a fazer. As necessidades dessa população são urgentes e ainda falta estrutura para respondermos às demandas de forma adequada. Entretanto, estamos realinhando as prioridades do município para garantir, de forma estruturante, mais qualidade nos serviços e equipamentos, oportunidades de emancipação e autonomia e a proteção dos direitos humanos dessa população. A memória de capítulos tristes da historia, como foi agosto de 2004, é fundamental para construirmos uma mudança da realidade da população em situação de rua, por meio da garantia de direitos e de serviços e da construção de uma cultura de paz, de valorização das diferenças e da ampla participação social na construção das políticas públicas. *Secretário Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo

O mundo das ruas nas ruas do mundo

Notabene, revista de rua na Eslováquia Fotos: Arlindo Dias

Arlindo Pereira Dias (Bratislava – eslováquia)

Eslováquia, ex-país comunista, localizado na Europa Central, possui uma população de mais de 5.000.000 de habitantes, e não é exceção em relação à presença de pessoas em situação de rua. O recém-eleito presidente, Andrej Kiska, em um esforço de chamar a atenção para as desigualdades sociais, convidou algumas pessoas em situação de rua e crianças que vivem em orfanatos para um almoço no jardim do palácio presidencial, em Bratislava, no dia de sua posse. Um dos projetos significativos para a população de rua na capital é a revista mensal Notabene. As instalações ficam no primeiro andar de um edifício, no centro da cidade. Na entrada, encontramos pessoas que, logo pela manhã, procuravam os coordenadores para adquirir exemplares da revista. Não se trata apenas de espaço de trabalho, mas lugar de convivência e de relação. Fomos atendidos por Zuzana Pohánková, a arrecadora de fundos da revista e por Marek Jajkay, um dos coordenadores. “A maioria das pessoas em situação de rua, em Bratislava, dorme em velhos edifícios que funcionam como hotel a baixo custo, outros frequentam os albergues para pessoas de rua e um grupo menor vive na rua”, explica Marek. “Difícil encontrar trabalho para as pessoas que enfrentaram graves problemas na vida”, reitera. Por isso, a associação, que mantém a revista, iniciou um projeto de geração de emprego para carregadores de malas na estação de trens da cidade.

Marek explica que “a ausência de elevadores na estação faz com que viajantes idosos tenham que subir as escadas a pé com suas malas”. Em uma roda de conversa, “um dos frequentadores do projeto da revista propôs criar um serviço de carregadores”. O reconhecimento oficial do trabalho lhes dará direito a contar com seguro social. Eles serão divididos por turno. Muitos estão endividados e com isso poderão saldar suas dividas. Será um projeto para 30 pessoas. Marek aponta o preconceito como um grande desafio para as pessoas em situação de rua. “O maior problema é contar com a confiança da vizinhança. Os preconceitos nascem da insegurança de cada um, e não vêm necessariamente dos políticos, dos escritórios ou, de nós mesmos, mas existem”, comenta. Quem convive de perto com essas pessoas tem

outra visão: “Todos os dias, eles me ensinam muitas coisas sobre a vida e a realidade. Repito isso a eles para que se torne um encorajamento, porque quando estão em busca de trabalho, pensam que lhes oferecemos algo especial. Eu digo que não, que nós precisamos uns dos outros, aprendemos uns com os outros, damos um ao outro o que temos, eu te dou alguma coisa, mas também recebo. Essa é a filosofia da nossa organização”, conclui. Zuzana Pohánková participa do projeto há seis meses. Ao se transferir de Praga, na Republica Checa, para a Eslováquia conheceu Sandra Tordová, editora chefe que a convidou para concretizar um sonho antigo de trabalhar com ONGs. O projeto da revista teve inicio, em 2001, época em que a Eslováquia não oferecia serviços à população em situação de rua. Era praticamente o único projeto com tais objetivos. Notava-se um número significativo de pessoas em situação de rua, muitas que desejavam realizar algo, mas não sabiam como cooperar uns com os outros. Nesse mesmo ano, a International Network of Street Papers (INSP), em português, Rede Internacional dos Jornais de Rua, propôs a criação de uma revista de rua, em Bratislava, aos estudantes universitários de Serviço Social. A primeira edição foi de 2.000 exemplares e, no momento, ela imprime 32.000 por mês. Zuzana nos concedeu breve entrevista. Quais os dados e o perfil das pessoas em situação de rua na Eslováquia? Zuzana: Ainda não realizamos nenhum senso. Nem o governo e nem as ONGs sabem como proceder para contar essa população. Calculamos que existam, aproximadamente, 4.000 pessoas na capital Bratislava. Nosso projeto vai ao encontro das pessoas e estamos em contato com mais ou menos 1.000, mas temos registradas, ao redor de 2.400, desde o ano de 2001, e já tivemos contato

com 3.400 pessoas, nos últimos 10 anos. O perfil das pessoas é muito diferente, com média de idade entre 20 e 60 anos, estão desempregados, muitos tiveram apenas a educação primária e alguns vivem em tendas. Graças a um novo projeto, um tipo de hotel onde podem pagar um aluguel mais baixo, alguns estão tendo acesso à moradia.

Vocês têm algum contato com a revista OCAS”, no Brasil? Zuzana: Tivemos contato com o pessoal da OCAS”, há anos atrás, em Melbourne, na Austrália, durante um seminário sobre jornais de rua, organizado pela INSP. Éramos em torno de 100 entidades de diferentes países.

Histórias que não são novelas* Nascida em 1956, a sra. Alica Ondrejíčková, é uma mulher tímida e feliz, que irradia paz e serenidade. No momento, ela vive só. Qual é a sua história? Alica era a mais velha entre seus irmãos e irmãs. Quando criança, sua mãe a abandonou, passou a morar com avó e não teve mais contato com a mãe. Após terminar os estudos secundários, trabalhou como garçonete. Casou-se aos 19 anos e mudou-se com o marido para outra cidade onde receberam um apartamento da empresa em que trabalhavam. Viviam felizes com uma vida boa, trabalho e três filhos, quando o marido veio a falecer de câncer aos 33 anos. A partir dai, tudo começou a mudar. Ela tinha apenas 29 anos e o filho mais novo, seis. Alica perdeu o emprego e não conseguia dinheiro suficiente para pagar o aluguel, por isso teve que deixar o apartamento. De repente, ficaram sem casa e essa dura experiência a fez se mudar para Bratislava, onde começou a trabalhar, como faxineira para levar sustento aos filhos. Em 2013, perdeu também esse emprego. A venda da revista Notabene passou, portanto, a ser a sua única fonte de renda. Mesmo assim, Alica não se queixa, continua contente e agradecida, pois tem dinheiro para aluguel e alimentação. Ela não bebe e nem fuma. Todas as manhãs, Alica inicia seu dia com uma xícara de café, prepara algo para o almoço e, em seguida, sai para a venda. No retorno a casa, gosta de se distrair assistindo novelas. Em junho de 2013, perdeu seu segundo filho com leucemia. Era um homem bom e trabalhador, e muito jovem – tinha apenas 32 anos. Alica tem muitas lembranças tristes, mas não perdeu o equilíbrio e a serenidade. Os outros dois filhos ainda são solteiros e a visitam regularmente. A venda da revista tem lhe proporcionado boas experiências e ela é muito grata por isso. Embora seja uma mulher solitária, seu grande sonho é ter um pequeno cão que lhe possa fazer companhia. * A historia de Alica foi traduzida por Stanislaw Orečný (revista Notabene, maio de 2014).


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