O Trecheiro - setembro e outubro de 2014 #228

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IMPRESSO

Notícias do Povo da Rua

Ano XXII Setembro e Outubro de 2014 - Nº 228

Rede Rua de Comunicação - Rua Sampaio Moreira, 110 – Casa 9 – Brás – 03008–010 São Paulo SP – Fone - 3227-8683 - 3311-6642 - rederua@uol.com.br

Em meio a disputa...

Foto: Luciney Martins

Aconteceu no domingo, dia 5 de outubro, mais uma etapa das eleições nacionais que escolheu os deputados federais e estaduais, senadores e os aspirantes às vagas de governadores e Presidência da República. No Estado de São Paulo, a direita saiu vitoriosa, frente aos partidos de esquerda. A chamada “bancada da bala”, formada por policiais militares e simpatizantes de linha autoritária, elegeram 5 representantes. Os candi-

datos ligados as causas populares e Direitos Humanos somaram apenas 4 vagas. O número de deputados eleitos que apoiam o governador releito, Geraldo Alckmin e fazem coro com a tendência de criminalizar os pobres, são mais do que o dobro daqueles da chamada oposição. Já entre os deputados federais eleitos pelo Estado de São Paulo a maioria é filiada ao PSDB. Para a Câmara de Deputados a “bancada da bala” também garantiu espaço. Foi perceptível nos debates e programas de gover-

nos que as pautas e reivindicações da população em situação de rua ficou fora dos planos pré-eleitorais e o resultado do pleito foi ainda mais desanimador para os pobres do Estado. Significa mais quatro anos de militarismo e ausência de políticas públicas, como foi visto no último mandato. A população em situação de rua é também eleitora, mas, ficou a mercê da promessas eleitoreiras. Independente da linha política, os governantes eleitos têm obrigações frente às demandas sociais urgente, como é o núme-

ro sempre crescente de pessoas em situação de rua no país. É preciso implementar políticas públicas para diminuição das desigualdades sociais. Cabe a sociedade sensível a esta realidade, cobrar a realização dessas demandas. Neste momento, mais implacavelmente. As eleições mostraram-se ineficazes em certa medida para fazer avançar a luta social, pois, estão entregues a uma

competição desleal contra aqueles que detêm o poder e, principalmente, o capital. Mas, ainda há uma segunda chance para pensar bem no voto! No último domingo do outubro (26) acontecerá o segundo turno das eleições para presidente e, em alguns Estados para governador. É preciso observar entre os candidatos quais apresentam propostas concretas de atendimento, atenção e mudanças a população mais vulneráveis, maioria neste pais.

Desde meados dos anos de 1990, diversos Movimentos de Luta pela Moradia, a População em Situação de Rua e os Trabalhadores Informais, vêm realizando uma luta sem tréguas contra a especulação imobiliária e a higienização no centro de São Paulo. Nesta guerra contra os pobres, no território do centro da cidade, a especulação imobiliária se aliou ao poder judiciário, ao poder publico e a policia militar, com a finalidade de criminalizar os movimentos populares, agredindo e tentando expulsar os Sem Teto, os Trabalhadores Informais, a População de Rua e todos os excluídos/ as da região. As vítimas do modelo excludente de cidade passaram a ser tratadas como responsáveis pelo caos urbano que tem origem na falta de democratização do acesso à cidade. As elites querem um centro

higienizado e sem pobres, que satisfaça exclusivamente seus direitos individuais. Assim, vêm utilizando todas as formas de violência para atingir o seu objetivo. O que ocorreu no dia 16 de setembro de 2014, no centro de São Paulo, no despejo violento do hotel Aquarius, se sucedendo aos ataques da GCM e da PM na região da “Cracolândia”, contra os usuários de drogas e a população em situação de rua, somados ao assassinato de um trabalhador ambulante por um PM na região da Lapa, é apenas mais alguns dos tristes e perversos capítulos desta agenda de higienização e massacre da população pobre. Portanto, não são fatos isolados, fazem parte da mesma matriz higienista de violência. A REINTEGRAÇÃO DE POSSE DO HOTEL AQUARIUS retrata a violência institucional e a supressão de todos os direitos constitucionais da

população pobre. Uma propriedade abandonada há dez anos foi protegida pelo Poder Judiciário e pela Polícia Militar em detrimento ao direito das famílias, é o direito individual se sobrepondo ao direito coletivo, mesmo que a Constituição Federal determine o contrário. Mas não foi apenas isso: a reintegração de posse foi executada MESMO SEM OS MEIOS NECESSÁRIOS, com o uso abusivo da força policial – muitas pessoas foram agredidas, crianças e mulheres foram atingidas por bombas dentro do prédio, pelo menos dois jovens tiveram os seus braços quebrados pela PM, diversas pessoas foram alvejadas e atingidas por balas de borracha, bombas de efeito moral e gás lacrimogênio e, ao final, os despejados ainda foram submetidos a tratamento desumano, com detenção sem acusação formal, sem que pudessem ir ao banheiro, beber água ou se alimentar. A porta da ocupação, num ato de violência sem tamanho, foi arrombada pelo caminhão do choque.

Homens, mulheres e crianças relataram que a PM, num “corredor polonês” os agrediu dentro da ocupação. Crianças de colo - bebês, inclusive uma criança cadeirante - foram detidas e conduzidas com seus pais e avós ao 3º Distrito Policial, ficando expostos por horas, no chão do posto de gasolina na esquina da Rua Aurora com a Avenida Rio Branco. Assim, Manifestamos aqui toda nossa solidariedade à FLM – Frente de Luta Por Moradia – pela resistência. Repudiamos todos os atos de violência militar nesta desocupação, repudiamos também, os atos violentos da GCM e da PM contra os usuários de drogas na Região da Cracolândia, no dia 18/09/14, repudiamos a morte de um trabalhador informal assassinado por um PM, na re-

gião da Lapa na mesma quinta feira, dia 18/09/14. Exigimos a apuração de todos os atos de violência da PM, com punição para os culpados. Pelo fim das ações violentas da GCM. Pelo fim da criminalização dos movimentos populares e dos defensores/as de direitos humanos. Abaixo a especulação imobiliária. Exigimos um judiciário que defenda a população e não a especulação. Pela desmilitarização da PM.

Redação

Nota de Repúdio

LUTAREMOS PELA JUSTIÇA SOCIAL COM TODAS AS NOSSAS FORÇAS E ELES NUNCA ATINGIRÃO SEUS OBJETIVOS. PODEM NOS AGREDIR, MAS CONTINUAREMOS A RESISTIR! PELO DIREITO À CIDADE, LUTA CONTINUA! Frente de Luta Pela Moradia (FLM); Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos; Central de Movimentos Populares (CMP); União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM); Movimento Sem Teto do Centro – MSTC; Movimento Moradia Para Todos; Fórum dos Trabalhadores Informais; Movimento de Moradia da Região Centro; Unificação das Lutas de Cortiços; Ouvidoria da Defensoria Publica do Estado de São Paulo; Comitê Popular da Copa; Escritório Modelo da PUC; Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico; Núcleo Direito à Cidade da USP; Movimento Nacional da População de Rua; Pastoral do Povo da Rua; Movimento Nacional dos Direitos Humanos; Serviço Pastoral dos Migrantes; Consulta Popular;


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Editorial

O Trecheiro

Pobreza é crime?

Vivemos um momento de intenso conflito na cidade de São Paulo. Em setembro, a questão da moradia ganhou destaque na imprensa nacional após um conflito durante uma reintegração de posse em uma ocupação da Frente de Luta por Moradia (FLM). Os despejos são constantes na cidade. Após descumprimento de acordos entre o Movimento que solicitava o número suficiente de caminhões para a retirada dos pertences dos sem-tetos e da abordagem violenta da Polícia Militar, nitidamente despreparada e desproporcional, a revolta tomou conta dos ocupantes que se viram em meio às bombas de gás lacrimogêneos despejadas dentro do prédio. Em meio a esta guerra encontravam-se desesperadas dezenas de criança, idosos e pessoas com deficiência.

Estas cenas de horror não chegaram aos olhos do telespectador. A TV mostrou apenas o caos que tomou conta por algumas horas das ruas do centro da capital paulistana resultado da revolta dos moradores diante da violência do Estado sem poder fazer nada. A violência do Estado não se resumiu apenas com bombas de efeito moral, mas também de “efeito mortal” com o episódio da morte de um vendedor ambulante por um policial militar. Ele apenas tentava ajudar um companheiro humilhado e agredido. Foi uma cena de extrema covardia que chocou a todos. Dias depois o policial foi posto em liberdade. Trabalhar e morar têm sido tratados como crime pelo Estado. Criminalizar a pobreza tem tornado-se prioridade das autoridades e a complacência com quem comete desvios (a polícia) deixando-os impune só reforça esse tipo de política. É possível observar essa guerra não declarada aos pobres no atendimento à população em situação de rua, seja por força da repressão policial, seja pelo sucateamento e marginalização do atendimento na rede pública. Disputa por espaço, falta de vagas e política de planejamento são armar para esmorecer nosso povo. Também, é válido ressaltar uma tendência crescente na cidade, de resistência. Os movimentos organizados têm demonstrado cada qual a sua maneira, uma lição de como acumular forças fazendo-se ouvir, ganhando terreno para o estabelecimento de direitos. Assim como, estão aprendendo com as derrotas a não baixar a cabeça e continuar a luta. A população em situação de rua é uma demanda social que continuamente cresce aos olhos nus da sociedade e mesmo assim não entram como pauta nos planos de governo dos candidatos as eleições Foto: Alderon Costa/Rede Rua

APOIO:

Setembro e outubro de 2014

VIDA NO TRECHO João, o Trecheiro que alerta para a prevenção

Fotos: Fabiano Viana

Davi Amorim e Fabiano Viana

Esta é a história do Trecheiro, João Batista Alicílio, que corre o trecho desde 1996 quando se separou da família, mulher e filhos, no Estado do Rio de Janeiro. “Ai eu falei, vou correr o mundo, andar pelo mundo igual barata tonta, sem paradeiro”, contou João. Ele é natural de Recife, PE, mas viveu com a família no Rio de Janeiro. Depois da separação, ele foi para Salvador, Bahia, onde viveu muitos anos fazendo boas amizades e trabalhando como catador de materiais recicláveis e de ajudante de pedreiro. João sempre batalhou para conseguir um trocadinho para viver. Mas, o trecho não terminou ali. Anos depois colocou o pé na estrada e foi viver em Maceió, Alagoas e se enturmou com os pescadores de Pajucara, na Região Central de Maceió. “Naquelas praias bonitas levava os turistas na jangada. Morava na rua, debaixo dos coqueiros, das canoas, dos bancos... Fiquei um tempo lá em Maceió, depois pensei 'agora não dá mais. Caí no mundo e voltei para Recife. Fiquei um período muito grande lá. Eu reciclava pra vender e comprar cachaça, foi então que a menina enfermeira falou: 'você não quer fazer o exame de HIV?'”, lembrou João que através deste exame teve o diagnóstico, no ano 2000, de que era portador do vírus do HIV. “Eu sabia que existia o preservativo, mas, as namoradas que eu tive diziam 'vamos, vamos, vamos' e... ia sem”, lamentou. “Foi um choque e eu falei: “é rapaz, eu estou com o bicho da goiaba, vou morrer', já que vou morrer, vou matar muita gente também', porém, parei e pensei: ' não! Não é assim que a banda toca, não! Comecei no Recife o tratamento do HIV e até hoje não parei de tomar”. João Batista não parou de correr o mundo. Depois de “enjoar de Recife”, como disse, foi conhecer

a cidade de Fortaleza, “Ô cidade bonita, ô cidade maravilhosa, fiquei lá um período reciclando com a carroça e me enturmei com os pescadores. Muita cachaça, muito peixe, muita rapariga, mas agora com preservativo! Isso foi fundamental!” Há 14 anos vivendo com HIV, João, mesmo de trecho em trecho, nunca deixou o tratamento e anda sempre com preservativos na bolsa. Cheio de orgulho, relatou que ajudou a criar o Movimento Nacional da População de Rua quando ainda morava em Fortaleza. Nesta cidade, ele também fez bons amigos como o casal Pedro e Janaína, dos quais foi padrinho de casamento. “Foi um casamento de morador de rua de uma casa de apoio da Igreja Católica que tem lá. O Padre Lino fez este casamento. A Igreja bonita que só fazia casamento de rico fez o casamento de rua. Fizeram aquela festa para os moradores em situação de rua de Fortaleza”, recordou João com alegria.

Naquelas praias bonitas levava os turistas na jangada. Morava na rua, debaixo dos coqueiros, das canoas, dos bancos...

RUAGENDA O Trecheiro Notícias do Povo da Rua

CONSELHO EDITORIAL: Arlindo Dias EDITORIAL Produção Coletiva

EQUIPE DE REDAÇÃO: Davi Amorim Fabiano Viana Léa Tosold Rose Barboza

FOTOGRAFIA: Alderon Costa Luciney Martins DIAGRAMAÇÃO: Fabiano Viana

Apoio Andreza do Carmo Felipe Moraes João M. de Oliveira

IMPRESSÃO: Jornalista Responsável Forma Certa 5 mil exemplares Davi Amorim MTB: MTB 48.215/SP Rua Sampaio Moreira,110 - Casa 9 - Brás - 03008-010 - São Paulo - SP - Fone: (11) 3227-8683 3311-6642 - Fax: 3313-5735 - www.rederua.org.br - E-mail: rederua@uol.com.br REVISÃO Coletiva

Depois de algum tempo, João Batista seguiu o trecho para o Rio Grande do Norte. Nesta época, ano 2012, ficou mais fácil se deslocar, pois ele conseguiu o benefício social disponibilizado para o soropositivo, que garante transporte e um salário mínimo. No entanto, João narrou a dificuldade de uma pessoa em situação de rua para conseguir acesso aos remédios disponibilizados pela saúde pública. “Cheguei em Natal e tive uma barreira por que eu não tinha comprovante de residência. Pensei: 'como vou pegar meu remédio?'. Fui para o Ministério Público e quando cheguei lá contei minha situação para a assistente social e para a advogada. Ela fez uma declaração de morador de rua. Abri firma e reconheci no cartório o documento. Quando voltei no posto de saúde, me deram até dinheiro pra tirar xerox da declaração” contou. O Trecheiro seguiu se virando entre diferentes Estados. Há um ano veio viver em São Paulo, que já havia visitado em outras ocasiões. Atualmente, participa do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) na cidade de São Paulo e mora em um albergue. Continua batalhando para ganhar um trocado ajudando os sapateiros no Centro da cidade. João sonha sair da situação de rua. “Penso nisso agora porque eu participo do Movimento que luta fazendo passeata na Secretaria de Habitação”, lembrou dizendo que foi um dos contemplados no programa:“Minha Casa, Minha Vida”, destinado também para a população de rua por meio do MNPR. Há 14 anos vivendo com HIV, nem imaginava que viveria tanto tempo, ainda mais em situação de rua. Ao lembrar-se do descuido que teve no passado, faz questão de deixar um alerta. “Eu digo para o jovens de hoje, não façam isso não, que é loucura. Tem o remédio, mas, tem que se prevenir porque essa luta tá grande”, alertou.


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10 anos do massacre do povo em situação de rua

Martin Islas

E nada mudou! O pessoal foi chegando devagar, trazendo as tendas, porém veio a polícia e o representante do Masp, dizendo aos coordenadores que não era para dormir no vão, pois o patrimônio do museu devia ser preservado e que não era permitido permanecer no local. Repete-se o mesmo discurso e justificação da polícia e da administração do museu que é o mesmo discurso do sistema: importa assegurar e proteger os bens e protegê-los é mais importante que as pessoas. É o mesmo discurso que resulta no massacre ou genocídio da juventude preta da periferia. Esta é a nossa Gaza! Continuamos até agora querendo saber quem foi o mandante ou os mandantes do massacre do povo da rua e da juventude pobre da periferia!

Andreza do Carmo/Rede Rua

Fotos: Alderon Costa/Rede Rua

Manifesto sobre um Não

Setembro e Outubro de 2014 Léa Tosold e Davi Amorim

Rafael Braga Vieira, negro em situação de rua, segue preso!

Trecheirinhas

O Trecheiro

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no último dia 26, rejeitou o pedido de absolvição de Rafael Braga Vieira, mantendo-o preso injustamente por porte de Pinho Sol e água sanitária em meio às jornadas de junho de 2013. A defesa de Rafael havia feito apelação após laudo técnico da polícia civil comprovar que os produtos de limpeza não poderiam ser convertidos em coquetel molotov, conforme alega a acusação. Em vez de ser anulada, a pena passou de cinco anos para quatro anos e oito meses de prisão, ou seja, foi reduzida em apenas quatro meses. Enquanto isso, Rafael já se encontra há mais de um ano na prisão. Único preso e condenado durante as manifestações de junho de 2013, o caso de Rafael mostra a forma arbitrária e violenta com que a suposta “Justiça” brasileira trata quem é negro, pobre e vive em situação de rua.

Catadores da cidade reanimando

Paulo Fernandes Costa*

São Paulo, 17h30, véspera de feriado. As horas vão passando, o povo continua chegando, as vagas... encolhendo. A matemática vira minha aliada. Misturo gente com os números na tentativa de acomodá-los, o resultado x vira y. Conto, reconto e desconto para chegar num resultado, é muita gente e poucas vagas para o atendimento espontâneo. A matemática no começo é minha aliada, mas logo se torna a rival mais feroz. Olho o portão, apinhado de homens. Todos reclamam, querem jantar, dormir, ter atenção. Nesse momento penso: uma pessoa nessa situação tende cada vez mais a gritar por seus direitos e me pergunto onde estão as respostas? Saio ao encontro deles, e com muito esforço, procuro um jeito mais convincente de dizer não para quem, ao mesmo tempo, não me faça sofrer com as respostas que serão acionadas, tornando o entendimento mais

difícil nessa hora. Vou anunciando a demanda solicitada, mas minha fala é abafada pelas diversas formas implorativas que um cidadão em situação vulnerável pode ser capaz de verbalizar. Perturbado, escuto em um só grito: “Seu Paulo, seu Paulo! E ai seu Paulo, não vai atender a gente? O senhor já me conhece, sabe que eu não dou problema na casinha (albergue)”. Sem esgotar a insistência, vão mudando de comportamento passam a gritar mais forte, Nazareth, Dona Luana, Dona Cristina, Ana Paula, Leandro, Carlos, Alexandre, Neto, Cida e Fátima... E o clima vai esquentando. Logo, os gritos dão lugar a batidas mais agressivas no portão. Lá vou eu de novo tentar repetir o mesmo discurso, no entanto, percebo que estão alterados e já não querem mais me escutar. Nessa hora, já não sou mais seu Paulo; para muitos, o dono da pousada, o carrasco de

Santo Amaro. Mas não posso deixar que as palavras me derrubem, pois outros que foram acolhidos esperam por minhas ações. Para quem está separado por um portão, o relógio vira o inimigo número 1, sou eu dentro, e eles fora. Parecem presos em plena liberdade, mas uma liberdade sem conforto. Para muitos, uma cama, um prato de comida, um sim de acolhida é, por um momento, uma grande fortuna conquistada num piscar de olhos. A noite acabou. Parece que eu acabei de correr 1.000 quilômetros sem parar. E ao chegar a casa e, por direito, escolhi o melhor lugar para relaxar a vontade e ter a chance de sonhar, que todos esses problemas ficaram no passado. Mas agora são 17h30, e o que achei que era passado acaba de se tornar presente novamente.

Rose Barboza

Chumbo grosso É de se perguntar por que, justamente ao cumprir 10 anos do Massacre da Praça da Sé, ao invés de uma conclusão e/ou federalização da investigação desses crimes e de outros semelhantes ocorridos em Maceió (2010) e Goiânia (2012/2013), o Ministério da Justiça ofereça chumbo grosso como a única resposta às demandas sociais. Conhecedor das suspeitas de que policiais militares e até mesmo integrantes da GCM tenham participado dos crimes, através de grupos de extermínio e, da atuação oficial e extra-ofi-

DIRETO DA RUA Sebastião Nicomedes

Alderon Costa/Rede Rua

Campings de Rua

* Paulo é educador do Pousada da Esperança (São Paulo).

E ruas… cada vez mais militarizadas

Na contramão de todas as reivindicações pela desmilitarização da polícia e da política, a presidenta da República, Dilma Rousseff, sancionou o Estatuto Geral das Guardas Municipais (Lei 13.022/2014). O novo “Estatuto”, publicado no Diário Oficial em 11 de agosto de 2014, garante aos guardas municipais o porte de arma de fogo e o poder de polícia. As funções, também se renovam, além da proteção ao patrimônio, a partir de agora guardas municipais terão funções semelhantes às dos policiais militares, atuando coordenadamente como órgão da segurança pública. Se toda a sociedade arcará com o preço elevado dos novos tentáculos do “Estado penal” brasileiro, que oferece mais polícia enquanto continua a reduzir e sucatear o arremedo que temos de “Estado de bem-estar social” é a população em situação de rua quem, mais uma vez, pagará o preço desproporcional pela militarização de nossas cidades. Com a borracha do cassetete sendo substituída pelo cano do 38, e as políticas de emprego e habitação sendo solenemente ignoradas, não é difícil imaginar que continuaremos a falar em massacres por muito tempo.

Catadores de materiais recicláveis organizados no Comitê Regional de Catadores da Cidade de São Paulo se reuniram dia 01 de outubro para discutir proposta de Acordo Setorial de Embalagens que irá regulamentar a responsabilização dos produtores e distribuidores da indústria sobre o destino das embalagens pós-consumo, previsto na lei 12.305/2010. Eles buscam que as cooperativas de catadores possam prestar serviço de coleta e receber da indústria pelo serviço de retorno das embalagens para a cadeia produtiva. Os catadores também estão em fase de rearticulação das atividades do Comitê da Cidade, instância ligada do Movimento Nacional de Catadores, e convidam outros catadores à começar a participar das reuniões que acontecem periodicamente. Para saber a agenda ligue para o movimento: (11) 3341-0964

cial dessas polícias como o braço repressivo da higienização das cidades, o governo federal continua agindo como “biruta” de posto de gasolina, conforme sopra o vento: se de um lado no vento sul, a Secretaria de Direitos Humanos do Paraná atua na proteção dos direitos humanos de quem está em situação de rua, o Ministério da Justiça, no vento norte, continua se militarizando como se não houvesse amanhã e, fazendo valer, no braço e no cano, um estado de exceção permanente.

Depois de expulsos da Praça da Sé, da Cracolândia, até os que perderam barracos em incêndio nas favelas, involuntariamente e gradativamente foram surgindo. Surgiu um novo fenômeno, os Campings de Rua. Os novos sem-teto de rua passaram a viver em barracas, acampados, solitários em pequenas malocas ou até em grandes assentamentos, a exemplo do que ocorreu na área do Parque Dom Pedro, região central de São Paulo. O espaço onde era pra ser criado um CREAS deu lugar a uma grande lona de circo.Embaixo, passou a funcionar a chamada tenda, dirigida por uma ONG conveniada.Claro, esse tipo de política paliativa baixa não podia dar certo. A tenda virou a casa da mãe Joana! Ali, todo mundo e, ao mesmo tempo, ninguém mandava nada. A prefeitura puxou fora, as ONGs deram no pé, os funcionários picaram a mula e os moradores de rua foram chegando com os galos nas costas e criaram uma gigantesca maloca. A ascensão social da pessoa em situação de rua, visivelmente, se deu quando ela conseguia uma dessas barracas de camping que passava a ser sua moradia provisória. De posse da barraca, o novo sem-teto de rua passava a sonhar com moradia: um prédio, um apartamento, a casa própria. É certo que a tenda Dom Pedro teve os dias contados.O poder público quiz de volta a lona de circo e removeu tudo e todos de lá. E pra onde foram essas pessoas? Boa parte cadastrada foi para dois prédios de tal projeto “Autonomia” em Foco menos os que vieram para tenda depois dos cadastros já terem sido feitos. Ocorre que a demanda da rua aumenta a cada dia, todo dia têm expulsões.Só as secretarias não sabem disso ou fingem não saber. Enfim, e quem não foi pros prédios ou não quis albergue viu o trator passar por cima do seu barraco, da sua barraca? E fugir pra onde, se tudo vai estar cercado de polícia numa verdadeira operação de guerra? O mundo mudou e tá na hora de repensar modos de vida, porque moradia tem que ter quintal, escritura, parede de alvenaria, laje e telhados. No futuro, haverá grandes áreas de camping, onde os moradores de rua e os sem-teto poderão montar suas barracas e viver em paz...


O Trecheiro

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Setembro e Outubro de 2014

Desigualdade globalizada: a situação da pop rua no Japão

Fotos: Higor Carvalho

Márcia Hirata e Higor Carvalho

Na mídia brasileira, o Japão tem se destacado pela rápida reconstrução do país após o tsunami, em março de 2011, e pela recente imagem de torcedores japoneses, recolhendo o lixo espalhado no estádio ao fim de um jogo durante a Copa no Brasil. Mas pouco se ouviu falar daquilo que, tal como aqui, expressa o avesso do que se esperaria de uma sociedade tida como modelo de civilidade: a existência de pessoas vivendo nas ruas. Talvez seja de pasmar, mas o fenômeno global do morar na rua também acontece no "país do sol nascente". Como parte da globalização, há pontos em comum com o que acontece no mundo, mas também situações específicas locais. Ao mesmo tempo em que estabelecem políticas públicas locais que visam enfrentar um problema social grave, deparam-se com o limite de estratégias de negócios globais em que "o social" só é incorporado como estratégia de marketing.

Mudanças no trabalho e políticas sociais O trabalho para os japoneses tem um significado moral estruturante. Para além de uma renda para manter a família, é motivo de orgulho pessoal e parte fundamental da sociabilidade. Até os anos 1990, quando um jovem era admitido em uma empresa significava um emprego estável até a aposentadoria. Isso começou a mudar radicalmente com a crise econômica, no final da década de 1980, e a entrada do neoliberalismo no país. A intensa atividade imobiliária que até então desenhou a paisagem de importantes cidades, como Tóquio e Osaka, com seus prédios modernos, passa então a conviver com acampamentos de plástico azul nos parques públicos e às margens de rios ou em casas de papelão nas estações de metrô. Seus ocupantes são, em geral, homens sozinhos em torno de 50 anos. Entre os inúmeros pesquisadores sobre a situação dos moradores de rua no país, é consenso que políticas sociais do governo federal promoveram, efetivamente, o decréscimo de sua presença nas ruas. Kiener é um dos que nos elucida a respeito do que aconteceu, apontando um aumento considerável de pessoas morando nas ruas de 1992 a 2000, momento em

Acampamento de moradores de rua em tendas de lona, que antes ocupavam o Parque Miyashita, em Tóquio

que o número passa a decrescer continuamente. Em 2003, a contagem do governo japonês apontou um total de 25.296 moradores de rua no país, número que, em 2013, abaixou para 8.265 pessoas. Promulgada em 2002, ganhou destaque a "Lei Especial de Medidas Temporárias de Suporte e Autossuficiência de Pessoas Moradoras de Rua", que estabelece o que, no Brasil, seria básico para uma política pública, a diversidade de medidas para a reconstrução das diversas esferas da vida, como trabalho, moradia e saúde. Kiener conta que isso se dá em torno de "Centros de apoio à autossuficiência do morador de rua”. Trata-se de equipamentos públicos com assistência para o trabalho e amplo suporte para uma estadia provisória, além de atendimento básico à saúde e acompanhamento de profissional. Kiener aponta a especificidade local e o limite de tal política, que resultam de um histórico de políticas sociais definidas pelo governo japonês, desde o fim da II Guerra Mundial, quando inúmeras pessoas ficaram sem suas casas. Com a crise mundial do petróleo, tal como no mundo todo, a visão de bem-estar social foi alterada de um direito que deve ser garantido pelo Estado para soluções menos onerosas, como ajuda mútua e atividades relacionadas a soluções de mercado. E mesmo assim essa política pública está focada no núcleo familiar e nos mais idosos, afinal, como esclarece Kiener, a situação de rua é vista como de responsabilidade do próprio indivíduo, uma espécie de punição para aquele que historicamente é considerado "vagabundo".

É aqui que o neoliberalismo globalizado entra em choque com a cultura nipônica da moral do trabalho. A flexibilização das relações trabalhistas e a competitividade das empresas que passa a desempregar – principalmente homens, em torno de 50 anos –, desintegram o papel social tradicional do homem japonês de provedor da família. Toda sua sociabilidade é assim rompida, a do trabalho e a familiar, cuja solidão é marcada pelo sentimento de "vergonha". Os pesquisadores relataram que, diante das crises e reestruturações econômicas do país, um tipo de trabalhador se mostrou, em especial, mais vulnerável, os trabalhadores diaristas da construção civil. Eles que trabalharam durante o boom imobiliário, da década de 1980, mas com a crise dos anos 1990 passaram a compor cerca de 40 a 60% da população de rua, participação que decresceu, nas décadas seguintes, à medida que o neoliberalismo lançou às ruas desempregados de outros setores produtivos. No entanto, nas áreas conhecidas como yosebas onde se concentrava esse tipo de trabalhador, hoje também há presença significativa da população pobre. Isso provavelmente relaciona-se à política social do governo, uma vez que, nessas áreas, a própria dinâmica de mercado fez com que ali se concentrassem uma série de serviços voltados para o período em que o trabalhador fica sem trabalhar, além de um mercado barato de hotéis e todas as facilidades cotidianas, como

Moradia improvisada por pessoa em situação de rua em jardim que ladeia a avenida de acesso ao parque Yoyogi, em Tóquio.

restaurantes, lavanderias, supermercados, e até armários para pequenos volumes. Com a crise, parte desses trabalhadores passou a fazer uso da política de assistência social, que não só criou ali os centros de apoio para o desempregado, mas também incluiu auxílio para atendimento à saúde e subsídios para moradia. Com tais subsídios, muitos dos hotéis baratos adaptaram-se para receber esse tipo de moradia, afinal, há garantia mensal de um recurso público. Assim, é nessas áreas que os demais beneficiários da política social também encontraram moradia e condições de sobrevivência cotidiana. Daí a concentração da população de mais baixa renda do país. Mas se há mérito no fato de que em certo momento as políticas sociais efetivamente diminuíram o número de pessoas nas ruas, nota-se que elas vêm acompanhadas de dificuldades as quais parecem ter chegado ao limite. Muitos moradores de rua não se adéquam a tais políticas sociais, porque já não têm a perspectiva de um trabalho estável e por terem já passado por uma série desses serviços. Procurar soluções próprias e fazer uso daqueles ligados às entidades assistenciais e religiosas são alternativas mais estáveis, inclusive para o restabelecimento de laços sociais, diferentemente do trabalho temporário em que não há possibilidade de aprofundar relações pessoais e afetivas, segundo Kiener. O visitante atento verá que, também ali, há quem sobreviva da venda de latas de alumínio e encontrará, em alguns cantos de espaços públicos, malas junto a caixas de papelão bem-dobrados, além dos tradicionais acampamentos de tendas azuis. E talvez nem tão difícil, perceberá ilegalidades e violência. Esperar alguma reformulação da política social também parece distante, pois o governo sob o argumento econômico vem crescentemente reduzindo o papel do Estado quanto aos direitos sociais, especialmente para os idosos e na área da Saúde. Moradores de rua com capacidade de trabalho há muito convivem com isso devido ao preconceito. Pelo contrário, mesmo as poucas estratégias de sobrevivência cotidiana, nos últimos anos, estão em risco,

pois as áreas menos valorizadas em que se encontram estão na mira dos rentáveis negócios imobiliários, como os projetos de renovação urbana que visam inserir as cidades na competitividade econômica global.

Pontos comuns entre países As dificuldades enfrentadas pela população em situação de rua, ao contrário do que se pode imaginar num primeiro momento, não são tão distintas em países chamados desenvolvidos ou naqueles em desenvolvimento. A desigualdade torna-se global, e os processos aos quais a população está sujeita ganham essa dimensão com o avanço das políticas neoliberais pelo mundo. No Japão, o estabelecimento de uma política diversificada para a população de rua parece ter contribuído para a melhoria do quadro ao longo da década passada; contudo, por não abarcar a todos os moradores, apresenta limites. Aqueles não contemplados nos critérios delimitados e os que optam por permanecer nas ruas são constantemente submetidos a diversos tipos de violência vindas inclusive do poder público. No Japão, a associação entre corporações privadas e agentes públicos para a gestão do espaço urbano, sem contar com instâncias de participação popular vem colocando os moradores de rua em situações de grande vulnerabilidade. Talvez por um traço da cultura nipônica, percebemos falta de articulação política entre moradores de rua para agir coletivamente e resistir às diversas formas de remoções às quais estão sujeitos, dentre as quais os projetos de renovação urbana. No entanto, aqueles que se mobilizam parecem possuir um horizonte de garantia de direitos e melhorias, mas, até lá, o processo é de luta cotidiana. Por fim, queremos deixar aqui registrados nossos agradecimentos aos professores Mizuuchi e Yamaguchi e aos pesquisadores Kiener e Murota, que nos apresentaram a questão social e urbana das cidades de Osaka e Tóquio, em julho de 2014.

Neoliberalismo é um conjunto de ideias políticas e econômicas capitalistas que defende a diminuição do papel do Estado na economia, com o princípio de total liberdade de comércio que deve garantir crescimento econômico e desenvolvimento social de um país. A crítica fundamental é que a economia neoliberal só beneficia as grandes potências econômicas e as empresas multinacionais. Os países pobres ou em processo de desenvolvimento, como o Brasil, sofrem com os resultados dessa política neoliberal, como desemprego, baixos salários, aumento das diferenças sociais e dependência do capital internacional.


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