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1.1. Marketing???

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Bibliografia

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1.1. Marketing???!!!

«Ein Gespenst geht um in Europa.» (Marx, 1848, p. 1). Sim, «anda um espectro pela Europa», o dos mercados. Diz-se que os estados são por ele assombrados. Os governos, de uma forma ou de outra, franzem o sobrolho quando os têm de enfrentar. As mais gravosas medidas políticas, que afectam os povos, são assíduas vezes por ele justificadas. Invariavelmente, quando nele se fala, certas palavras tendem a temer-se, alguns joelhos vergam-se, algumas mentes ajoelham-se. Em nome desse espectro, tem sido esta frase repetida até à exaustão: «É por causa dos mercados!» Ora, este capítulo tem por base, precisamente, uma disciplina que pretende estudar e operar nos mercados –tendo a sua palavra, embora em inglês, por radical: o marketing.

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Quero crer que, aos nossos activistas e estudiosos da economia social, só de ouvirem tal palavra, assomam-se-lhes às cabeças epítetos vários, como manipulação, consumismo, exibicionismo, desperdício, ganância… E tendes, em boa parte, razão. Contudo, quero crer que não é desprezível interrogarmo-nos sobre o que poderá ter isto do marketing a ver com a intervenção social. A verdade é que na base real dos mercados estão, não algo abstracto ou fantasmagórico, mas milhentos anseios, necessidades e capacidades humanas, bem como infinitas relações que as pessoas, com base em tal, estabelecem entre elas, sobretudo num tempo em que o seu número e as suas capacidades produtivas se multiplicaram de forma tão impressionante (figuras 1 e 2, quadro 1). O marketing tem procurado estudar e intervir na enorme complexidade que daí tem decorrido, em que as pessoas trocam os seus bens e capacidades, num processo necessário à sua existência e aos seus interesses, com consequências, para elas, mas também para a sociedade em geral. Assim o diz, aliás, a mais recente definição da American Marketing Association, consagrada como referência neste campo:

«Marketing é a actividade, o conjunto de instituições e processos para criar, comunicar, proporcionar e trocar ofertas que tenham valor para os consumidores, clientes, parceiros e para a sociedade em geral» (AMA, 2013).

Figura 1

População mundial

Figura 2 Produto mundial

Quadro 1 População e Produto (GDP) mundiais desde 1700

Fontes: Kremer (1993), Lucas Jr. (2002), WB (2020), UN (2021)

Contudo, desde que a disciplina foi criada1, como expõe o quadro 2, são inúmeras e diversas as abordagens sobre a sua natureza e propósitos, desde as chamadas escolas iniciais, consagradas à determinação das suas funções primordiais e a um dos seus principais objectos, as mercadorias, bem como às instituições envolvidas e à dimensão geográfica da sua actuação. Porém, com o desenvolvimento das ciências sociais, no decurso do século XX, incorporaram-se no estudo do marketing diversas abordagens, que foram sublinhando a complexidade e diversidade de implicações que aquela disciplina dos mercados ia gerando: o seu enquadramento sistemático, a multiplicidade dos seus processos de gestão e o estudo dos comportamentos de um dos seus intervenientes principais, os consumidores, nomeadamente na maneira como estes intervêm nas trocas elaboradas. Todas estas escolas (sistemas de marketing, gestão de marketing, comportamentos dos consumidores e escola das trocas) foram acentuando a percepção de uma dimensão social do marketing, fundada em pessoas que estabelecem entre si inúmeras relações e vivências. Por seu lado, as escolas do macromarketing e do marketing crítico aprofundaram aquela tendência do estudo das suas várias implicações. Hoje, com a conectividade digital, o marketing está profusamente envolvido com a automação e o big data (ver Moutinho et al., 2014b; Wind, 2014), a par de uma maior e crescentemente complexa relação com os consumidores. O que é sobejamente evidente é que esta disciplina não pode ser reduzida, como acontece assiduamente em muitas das instituições que a leccionam, a uma mera dimensão gestionária, comercialista e mecanicista. Ela e o que envolve são bem mais do que isso e assim tem de ser encarada.

Dois conceitos foram chave para esta perspectiva alargada e social do papel do marketing: o chamado conceito marketing (marketing concept), formulado por Peter Drucker (1954) e reafirmado, nomeadamente, por Robert Keith (1960); e o conceito de troca (exchange), desenvolvido, sobretudo, por Wroe Alderson (1965) e por Bagozzi (1974).

1 Bartels (1976, p. 21) identifica inúmera documentação sobre o início da experiência educativa americana, desde 1902, nas universidades de Michigan, Califórnia e Illinois, em torno do estudo das então denominadas indústrias distributivas. Mas Jones & Monieson (1990, pp. 102-113) contestam Bartels quanto ao local do surgimento dos primeiros cursos de marketing, não nos Estados Unidos, mas na Alemanha, através de autores como Cohn, Grunzel e van der Borgt.

Quadro 2 Escolas de pensamento do marketing

Fontes: Shaw et al. (2010), Jones et al. (2010), Moutinho et al. (2014b)

O primeiro conceito, o conceito marketing, supunha a crescente importância e mesmo soberania de um consumidor capaz de formular, mais ou menos racionalmemte, as suas necessidades, de optar e de, assim, influenciar decisivamente as empresas na sua actividade produtiva e comercial, focando-se o marketing na compreensão desses consumidores e na implementação de estratégias e de produtos que satisfizessem os seus desejos, necessidades, motivações e opções. As empresas, segundo a revolução marketing referida por Keith (1960), não mais produziriam aquilo que entendessem, mas apenas aquilo que satisfizesse as opções dos consumidores. «O consumidor, não a empresa, está no centro das atenções» (p. 35).

A outra ideia, a de troca (exchange), subjaz a este conceito marketing, no sentido em que se baseia em duas ou mais partes, cada uma com algo para trocar, mas fundadas na sua própria identidade e vontade específicas. Se uma das partes, a dos produtores e vendedores, pretende alcançar a outra, os consumidores, terá de a entender e respeitar a sua autonomia de opção e de avaliação do que está a ser trocado, assim como do contexto em que essas decisões e juízos são produzidos.

No final da década de 60, num dos mais famosos textos desta disciplina, influenciado pela evolução dos seus conceitos, mas também pelos profusos movimentos de mudança social e de luta por direitos cívicos, dois académicos, Philip Kotler e Sidney Levy (1969), explicitavam a formulação que, no fundo, se impunha:

«É convicção dos autores de que o marketing é uma ampla actividade social que vai consideravelmente para além de vender pastas de dentes, sabonetes ou aço… Os autores vêem uma grande oportunidade para as pessoas do marketing expandirem o seu pensamento e aplicarem as suas capacidades a domínios cada vez mais interessantes de actividades sociais» (p. 10).

Marketing, para estes autores, era «o conceito de servir e satisfazer, com sensibilidade, as necessidades humanas» (p. 12), quer numa troca comercial, quer numa prestação de apoio social. Pouco depois, num número do Journal of Marketing, todo consagrado a esta abordagem («Marketing's Changing Social/Environmental Role»), o mesmo Philip Kotler, associado a Gerald Zaltman (1971), voltava ao assunto:

«Um crescente número de instituições não comerciais começou a entender a lógica do marketing como um meio para incrementarem os seus objectivos e produtos» (p. 5).

Estava, deste modo, aberto o caminho conceptual e instrumental para o progressivo desenvolvimento de um marketing com uma dimensão social, de um marketing das organizações da economia social.2

2 Esta designação – marketing para as organizações da economia social – agrega os conceitos de marketing de organizações sem fins lucrativos (nonprofit marketing) e o de marketing para o terceiro sector. Não desconhecemos as diferenças conceptuais que existem, por vezes, entre as várias designações, de cultura para cultura, de país para país (ver Franco, 2004), mas, para efeito de uma conceptualização genérica do papel do marketing, elas não são, aqui, consideradas relevantes.

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