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INCLUSÃO
MARIA DA SILVA Da rudeza do trabalho da cana à sensibilidade das orquídeas
Solidariedade e determinação transformando vidas
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POR CATARINA LUCRÉCIA
E TATIANA NASCIMENTO
Maria Jorge Santino da Silva vive, aos 50 anos, o momento mais tranquilo e feliz da vida. Ela foi tocada pela economia solidária. Hoje olha para o passado sem saudades. Tro cou a rudeza do trabalho na palha da cana-de-açúcar, em Lagoa de Itaen ga, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, pela delicadeza do cultivo de orquídeas. Com um rendimento mensal de R$ 500, os filhos criados e encaminhados na vida, Maria garante que está muito bem, obrigada. O faturamento está crescendo e ela agora só pensa no futuro.
Mas nem sempre foi assim. A história de Maria é igual a de milha res de brasileiras pobres abandonadas pelo companheiros que assumiram o papel de chefe de família. Ficou sozinha, aos 20, com dois fi lhos menores – o menino com dois anos, a menina com 30 dias de nas cida. Não teve alternativa: foi para luta. Ganhava R$ 50 por semana em um trabalho exaustivo. Saia de madrugada de casa e só voltava lá para o final da tarde. Até que decidiu sair daquela rotina pesada. Organizou - -se e fez a capacitação oferecida pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).
Hoje Maria da Silva integra a Associação dos Pequenos Produto res Rurais e Moradores das Comunidades do Imbé, Marrecos e Sítios Vizinhos (ASSIM), lá mesmo em La goa de Itaenga. Produz e vende suas orquídeas em feirinhas de produtos
orgânicos. Um dos pontos é a feirinha que acontece todas as quartas- -feiras pela manhã no campus da Universidade Federal de Pernambu co. Aos sábados, o destino é no bairro de Boa Viagem. A ASSIM é um dos mais de 22 mil empreendimentos de economia solidária mapeados no Atlas da Economia Solidária.
Quase a metade desses em preendimentos está localizada no Nordeste. Apesar de o modelo de cooperativa ser a forma clássica de economia solidária, que existe há 200 anos, no Brasil ela ainda é difícil de ser implantada, como costuma lembrar o economista e secretário nacional de Economia Solidária, Paul Singer. Segundo ele, é difícil registrar cooperativa de gente pobre. Por isso, apenas 10% são cooperativas registradas nas Juntas Comerciais. A maioria dos arranjos produtivos é de coo perativas informais (associações ou agrupamentos).
Não que isso realmente importe para Arnaldo Sebastião de Freitas, 59, vizinho de Maria da Silva na fei rinha da UFPE e também integrante da ASSIM. A mudança de vida, no en tanto, não partiu dele, mas da mulher, Maria Ferreira de Freitas, 50. Foi ela quem aceitou fazer parte da capacitação no projeto de horta fa miliar para trabalhar com produtos orgânicos. Ela tinha a técnica, ele a experiência de lidar com a terra. Juntos, mudaram de vida. O trabalho no corte da cana é coisa do passado e não deixou saudade.
O sítio de 2,4 hectares, herdado do avô, agora produz colorau, jabu ticaba, fruta-pão, coco. Galinhas e cabras são criadas. Mas são as hor taliças as responsáveis pela maior parte da renda da família (R$ 200 por dia nas feiras). As três filhas de

MUDANÇA Arnaldo, 59, seguiu o conselho da esposa e investiu em uma nova profissão
Arnaldo dão “expediente” no sítio aos sábados e domingos. Durante a semana, a obrigação é outra. Ru benice, a mais nova, estuda em um colégio técnico. A mais velha, Silvâ nia, faz um curso de agroindústria. Maria José, a do meio, é técnica agrícola e passou no vestibular para agronomia.
As três são o reflexo de uma mudança nos próprios jovens da co munidade. Uma conquista feita com os ajustes administrativos feitos na associação. O acompanhamento da gestão – na sede e nas feiras – é fei to pelo agrônomo Guilherme Soares e estudantes da UFRPE. É nas uni versidades que há grande apoio para a economia solidária, que tem como objetivo a valorização do ser humano e não do capital, uma base associa tivista e cooperativista, e é voltada para a produção, o consumo e a co Existem mais de 100 incubadoras espalhadas em universidades. O apoio governamental ficou mais forte em 1999 e em 2003 foi criada a Secretaria Nacional de Economia Solidária
mercialização de bens e serviços de modo autogerido.
De acordo com a Secretaria Na cional de Economia Solidária, há mais de 100 incubadoras em uni versidades. O apoio governamental ficou mais forte a partir de 1999. Em 2003 foi criada a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes). Mas ainda falta bastante chão a ser per corrido, acredita Graciete Santos, coordenadora geral da Casa da Mulher do Nordeste e integrante do Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES). Para ela, a Senaes (vinculada ao Ministério de Trabalho e Emprego) funciona mais no trabalho de articu lação com outros ministérios.
“Falar em economia solidária não é falar em empreendedoris mo. Não conseguimos avançar no governo Dilma ainda. Estamos em fase de construção. O próprio mo vimento organizado através do fórum ainda está vendo essa luta de afirmar a economia solidária como um modelo de desenvolvimento”, comenta Graciete. Em alguns es tados, os trabalhos parecem mais avançados, como no Mato Grosso do Sul. Em 2005, com a criação da Fundação do Trabalho (Funtrab) foi instituído também o Programa Es tadual de Fomento à Economia Solidária.
Um dos destaques do progra ma é a Central de Comercialização de Economia Solidária (CCES/MS), inaugurada em novembro de 2006, em Campo Grande. O objetivo ini cial era atender a maior demanda apresentada pelos trabalhadores do setor, que era um espaço para a comercialização dos seus produtos. No início, eram 26 empreendimen tos produtivos. Hoje já são 74. “São de 39 municípios do estado e têm aproximadamente 3 mil pessoas en volvidas”, comemora Larissa Orro, coordenadora estadual de Trabalho e Renda.
Tem quilombola que atua na produção de rapaduras, melados e queijos. Tem índio oferecendo cerâ mica, biojoias e cestarias. Tem assentado vendendo doces, manteiga e hortaliça. E há espaço para empre endimentos urbanos e de agricultura familiar. De acordo com Larissa, o crescimento do CCES estimulou a criação de um conselho gestor, formado exclusivamente pelos em preendedores. Existem também os núcleos de base, organizados onde
Divulgação Mesmo que a economia solidária não tenha como centro a lucratividade, “ é um setor viável.
É uma alternativa econômica, social e cultural”

CENTRO resolveu falta de espaço para venda de produtos
os empreendedores moram. Eles promovem reuniões mensais nas comunidades.
Para Larissa Orro, a economia solidária não deve ser relegada às políticas de corte assistencial ou compensatório. “Ela tem potencial emancipatório para os beneficiá rios.” Segundo a coordenadora, a experiência do Mato Grosso do Sul Larissa Orro vem sendo compartilhada com ou tros estados. E sempre há ONGs interessadas em conhecer o CCES. “Mesmo que a economia solidária não tenha por aspecto central a lu cratividade, é um setor viável. É uma alternativa econômica, social e cul tural e que já é realidade em muitos municípios do nosso país. Mas ainda temos muito a construir.”

SUCESSO Núcleo de Articulação e Fomento Sustentável da Mata Sul é referência
Não dá o peixe, ensina a pescar
Era uma vez um agricultor. Um dia ele vendeu o próprio carro e decidiu pedir ajuda para fazer um tanque e começar a criar tilápias em plena Zona da Mata Sul de Pernam buco, dominada pelas plantações de cana-de-açúcar. Ele conseguiu a ajuda, escavou o tanque e criou os peixes. Vendeu tudo na beira do tanque, antes mesmo de chegar à feira. Os vizinhos, que antes desde nhavam, quiseram imitar. A história é real e um dos resultados mais expressivos do Projeto Núcleo de Articulação e Fomento para o De senvolvimento Sustentável da Mata Sul Pernambucana (NAF Mata Sul). O projeto existe há cinco anos e promove ações para o desenvol vimento sustentável em 24 municípios da região. Identifica demandas e busca parcerias para levar pro jetos adiante. Mais de 6 mil visitas técnicas já foram feitas aos agricul tores familiares. Além da implan
OUSADIA DE UM PROJETO ESTIMULA INICIATIVAS DE GRANDE SUCESSO
tação do projeto de policultivo de peixe e camarão foram realizados trabalhos de reflorestamento da mata ciliar, oficinas de treinamento, projetos de apicultura. “Trabalha mos com ONGs também. Há muita gente envolvida”, destaca Yara Machado, coordenadora da articulação do NAF.
Um curso de filetagem de pei xes que reuniu homens e mulheres da região mostrou o significado no bolso da expressão valor agrega do. Ao invés de vender só a tilápia viva por R$ 5, o quilo, dá para ga nhar quase R$ 30 vendendo os filés. Apontada como “excelente” pelo programa Agrofuturo, financiado pelo BID, a experiência do NAF será recomendada para o Programa Bra sil sem Miséria do Governo Federal como um arranjo que permite a su peração da pobreza. “Agora o trabalhador enxerga uma perspectiva de diversificar a sua economia”, afirma Yara Machado.