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ENTREVISTA

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ESTRATÉGIA

ESTRATÉGIA

Quando o administrador Caio Marini começa a falar, todos se calam. Não. Ele não coloca medo em ninguém. Pelo contrário. A voz é suave e o jeito, tranquilo. O que faz o ambiente emudecer é o histórico de mais de 30 anos desse carioca de 58 anos, que hoje se divide entre Brasília e Belo Horizonte, onde acumula as funções de diretor do Instituto Publix e de professor da Fundação Dom Cabral. Caio Marini é referência nos setores de gestão governamental e empresarial. E defende que as reformas burocrática, gerencial e de governança da gestão podem, sim, ser aplicadas em conjunto. Para ele, a gestão moderna é a que agrega o que cada uma tem de melhor, com foco na parceria entre Estado e sociedade. “Na visão tradicional em que o Estado protagonizava a cena do desenvolvimento, bastava desenvolver a gestão pública. Nessa nova perspectiva do Estado com a sociedade, não é mais gestão pública. É um Estado em rede, uma gestão em rede”, destaca Caio Marini, que é consultor junto a organismos internacionais (BID, Banco Mundial e Nações Unidas) em projetos de cooperação técnica e também presta consultoria junto a organizações federais, estaduais e municipais. Nesta entrevista, ele fala sobre o cenário atual e rumos da gestão pública no Brasil.

O especialista e a pergunta que vale um milhão de dólares

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O que difere a gestão pública praticada hoje com a de décadas atrás? Se a gente tentar fazer um corte dos principais marcos de reforma da gestão pública, há três grandes movimentos. Nos anos 1930, veio a reforma burocrática, que tinha como agenda fundamental a pro fissionalização da gestão pública, o enfrentamento da cultura patrimo nialista de gestão, que não distinguia o público do privado. No final dos anos 1970, início dos anos 1980, essa agenda assume outro caráter, que é a reforma gerencial. Ela colo ca a temática das novas tecnologias de gestão, orientando mais a ges tão para o cidadão, para resultados. A anterior era muito voltada para o estabelecimento das regras, crité rios, hierarquia. A agenda da reforma gerencial começa a colocar o foco no cidadão. Há a orientação para resultados, que é uma temá tica ainda muito atual. Tem muito do uso de ferramentas de gestão empresarial na gestão pública, ob viamente respeitando as peculiaridades da administração pública. Mais recentemente estamos vi vendo uma nova onda de reforma. É uma agenda dos anos 2000, que dá a dimensão da governança. A burocrática olhava menos a dimen são do cidadão. Estava mais focada para dentro. A reforma gerencial começa a olhar o cidadão como um destinatário da política pública. De destinatário, o cidadão passa a ser protagonista. Deixa de ser o gover no que governa para a sociedade para ser o governo que governa com a sociedade.

Elas são antagônicas? Isso aconteceu na primeira vez. A reforma burocrática realmente veio substituir a patrimonialista. Mas as demais não, elas são complemenÉ o melhor dos três mundos? tares. A reforma gerencial foi venImagino que, quando se fez a refor dida equivocadamente como subsma burocrática nos anos 1930, pentitutiva da burocracia, o que é uma sou-se que era o melhor dos munbobagem. Hoje estamos vivendo dos. Era o que precisava ser feito. um cenário em que há uma agenda Depois quando se fez a reforma ge burocrática. Falta profissionalizar a rencial, o melhor dos mundos era a gestão pública ainda. Faltam carrei Nova Gestão Pública. Acho que es ras, mais concursos. Falta gerensas visões muito apaixonadas acaciamento também. Não completabam criando mais resistência do mos essa segunda reforma. Faltam que ajudando. O melhor dos mun instrumentos de gestão e inovação. dos é a combinação. Não é “ou”. É E falta a terceira porque ela está co “e”. Agora a sutileza desse movi meçando. Falta a dimensão da gesmento é que não é a Nova Gestão “ O verdadeiro papel do Estado é de garantir que o conjunto das demandas seja atendido. Quando a gente fala que o cidadão é protagonista, ele não quer saber se o Estado faz direta ou indiretamente, ele quer saber que seja garantido” tão para a cidadania. Mas o cidadão ainda tem uma vi são ruim da administração pública nem a Novíssima, porque vai além da gestão. Na visão tradicional em que o Estado protagonizava a cena burocrática, da burocracia no mau do desenvolvimento, bastava de sentido. senvolver a gestão pública. Nessa Realmente, a burocracia acaba sen nova perspectiva do Estado com a do conhecida pelo lado vulgar, pela sociedade, não é mais gestão pú papelada. Mas a burocracia tem blica. É um Estado em rede, uma um propósito absolutamente nobre. gestão em rede. É preciso desen Quando se instaura uma burocracia, volver a capacidade de rede entre estamos enfrentando as mazelas Estado e sociedade para construir do modelo patrimonialista, estabe uma nova agenda, implementar lecendo regras para que a adminisessa nova agenda e fazer o controle tração funcione bem. O problema social dessa agenda. central é que tanto a ausência é dis funcional quanto o excesso. Se é um modelo com dois prota gonistas, como fazer para inserir Se o Governo agora governa com o mais a sociedade nesse novo con cidadão, podemos falar de uma no texto? víssima gestão pública? Essa é a pergunta de um milhão A Nova Gestão Pública ficou muito de dólares. Há vários aspectos que associada ao segundo movimento, temos que considerar para desen o da reforma gerencial. É diferente volver isso. Um é o próprio Estado agora. entender que é assim, que ele não

é suficiente. O grande desafio que está por trás disso é legitimar isso e, quiçá, institucionalizar esse novo padrão da gestão pública, o da go de Pernambuco. Estamos falando de uma concepção completamente di ferente. A capacidade de relacionamento é fundamental. usando essa perspectiva mais mo derna da governança. Qual o verdadeiro papel do Estado, “ A gente era famoso pelas meias pontes. Entrava um governo e fazia meia ponte. Entrava outro e largava aquela ponte e fazia outra meia ponte. Ninguém concluía. Esse ainda é um mal brasileiro, que é o das incompletudes” vernança. Quanto mais o cidadão então? percebe e adquire confiança nes A teoria é ótima, mas ainda é preci O verdadeiro papel do Estado é o de sa relação com o Estado, maior é so colocar essa mudança na cabeça garantir que o conjunto das deman essa capacidade. O Estado precisa de quem faz o Estado, não? das seja atendido. Quando a gente ter uma estratégia. Por exemplo: o A cultura ainda é da burocra fala que o cidadão é o protagonista, estado de Pernambuco tem uma es cia ortodoxa. E estamos falando ele não quer saber se o Estado faz tratégia, um conjunto de intenções, de um modelo que não é antibu direta ou indiretamente, ele quer objetivos, visão de longo prazo, os rocrático, mas pós-burocrático. saber que seja garantido. Quando o pactos. Nessa nova concepção não Ele incorpora elementos. Eu não Estado começa a celebrar parcerias, basta gestão pública. O resultado vou abrir mão de elementos que precisa desenvolver uma nova capa que se pretende nesse conjunto de são fundamentais da burocracia. cidade de regulação, promoção. É o iniciativas não depende só do gover Mas ela não é suficiente. É preci grande desafio. no, mas depende da capacidade dele se articular com outros segmentos da sociedade para que os resultados aconteçam. Precisa se articular com o setor privado, com o terceiro setor, so complementar. Ao se construir uma agenda de governo, se ela é feita dentro de gabinetes e depois disseminada na máquina pública, o governo está usando uma abor A Lei de Responsabilidade Fiscal “pegou” no Brasil. Isso mostra que, independentemente do con teúdo ideológico de um governo, é importante estabelecer metas e se com a academia, com organismos dagem muito tradicional. Mas se comprometer com o cumprimento internacionais, com outros estados. na hora em que vai conceber essa delas? Olha que coisa paradoxal. O resulta agenda abre um espaço de diálogo A gente teve um ganho muito im do de Pernambuco não depende só com a sociedade, o governo está portante com a LRF. É você tentar

fazer no governo aquilo que você faz em casa, que é gastar de acordo com o que você ganha. Mas não é suficiente. É preciso responsabi lidade gerencial. A plataforma de governo tem de ser estabelecida em metas. É preciso se comprome ter com os resultados. O objetivo é o desenvolvimento. E para isso é que existem os governos. Na res ponsabilidade gerencial, os governantes, em qualquer nível, seriam cobrados pelo alcance dos resulta dos prometidos durante a campanha. Depois de eleito, o governante assumiria publicamente determi nados compromissos de elevação do padrão de desenvolvimento eco nômico social sustentável, incluindo a manutenção do equilíbrio das contas públicas, a partir de metas baseadas em indicadores objetivos. E, periodicamente, haveria um pro cesso de prestação de contas.

Ainda é um desafio no Brasil avançar com as políticas públicas em meio a trocas de governo? A gente era famoso pelas meias pontes. Entrava um governo e fazia meia ponte. Entrava outro e largava aquela ponte e fazia outra meia ponte. E ninguém concluía. Esse ainda é um mal muito brasileiro, que é o das incompletudes. A gente confunde, às vezes, continuidade com continu ísmo. Acho que cabe essa perspectiva de que a gente precisa fazer com que os projetos transcendam governos e sejam projetos de Estado.

Mas teria de ter uma lei para isso, uma “Lei de Responsabilidade Ge rencial”? Pois é. Isso é decorrente da cultu ra burocrática. A gente quase que pressupõe que é preciso transfor mar em lei para alguma coisa acontecer. Às vezes, sim. Às vezes, não. Eu não sei se a LRF vingou porque ela é lei ou porque houve uma nova consciência. Acho que a sociedade não aceita mais um governo irres ponsável fiscalmente. A lei ajuda ainda, é importante. Pelo menos dá mais trabalho se o outro quiser mu dar. Mas ainda governamos muito por decreto.

Como isso funciona em outros países? Varia muito. Há países que são mui to regulamentados. Em outros, vale mais o princípio, a prática, os valores. O Reino Unido, por exemplo, tem pouco grau de normatização.

Qual a importância da transpa rência para a gestão pública? Ela é uma das bases para que o Es tado cumpra efetivamente a sua função? É fundamental, mas não basta. A transparência, a prestação de contas é absolutamente funda mental porque você está abrindo o diálogo com a sociedade. Isso per mite o fortalecimento desse canal, permite o exercício da cobrança, da indignação. Se eu não sei de nada, como é que vou cobrar? Mas é preciso ter mais do que a pres tação de contas. O ideal é a construção coletiva. Quanto mais a reforma do Estado aproxima Estado e cidadão no processo de constru ção da agenda, de implementação da agenda, do controle social, isso desenvolve a capacidade de exer cer a cidadania.

Então não é só mostrar... É fazer junto. O Estado tem de estar aberto a receber críticas e fazer as mudanças necessárias.

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