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A importância dos trilhos para as cidades
“O transporte público sobre trilhos é, de fato, o único modo que torna possíveis as grandes cidades.” Vukan R. Vuchic, 1999
ANDREINA NIGRIELLO*, DIONÍSIO MATRIGANI DE SOUZA GUTIERRES**, LEONARDO CLEBER LIMA LISBÔA***, LUIZ ANTONIO CORTEZ FERREIRA****
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I
INTRODUÇÃO
neficiência econômica, deterioração ambiental e qualidade de vida insatisfatória são qualificações facilmente atribuíveis a grandes aglomerações urbanas. Grande parte desses problemas está associada aos impactos e ineficiências de seus sistemas de mobilidade urbana.
Estamos vivendo um período de aceleração de transformações, de inovação constante.
As novas tecnologias que começam a ser implantadas no setor de mobilidade já estão provocando impactos e ainda têm muito para evoluir. As rápidas mudanças e inovações exigem nova visão por parte dos gestores de transporte, muito mais abrangente, que permita integrar todos os modos de forma eficiente, ao mesmo tempo garantindo mais qualidade urbana, em direção aos amplos anseios por cidades mais adequadas para as pessoas. O transporte sobre trilhos, por suas características de eficiência, alta capacidade e baixo consumo do espaço urbano (especialmente nas soluções subterrâneas), tem o papel fundamental de estruturar o sistema de mobilidade. Forma o sistema estrutural, em torno do qual se organizam os demais modos, integrados pelas novas tecnologias, para funcionar como uma grande rede, otimizada para atender as mais diversas necessidades de deslocamentos da população. A essa visão se convencionou chamar de “mobilidade combinada”. É esse conceito, focado em garantir eficiência para a mobilidade e em liberar o espaço urbano para as pessoas, que será a linha mestra para orientar as ações de gestão do transporte nas próximas décadas. As cidades que tiverem sucesso na implantação dessa visão florescerão e desempenharão a liderança na atração de investimentos e talentos.
ESTRUTURAR A REDE DE TRANSPORTE
Cidades de maior porte caracterizam-se pela presença de significativos fluxos de viagens, deslocamentos inerentes ao desenvolvimento econômico que nelas se viabiliza. De fato, toda atividade demanda uma localização, além de interconexões com outras atividades com as quais interage.
Às interconexões entre localizações correspondem estruturas físicas, como vias e ferrovias. Logo, a infraestrutura de transporte é um item estratégico na determinação da eficiência econômica das cidades, condição que resulta da própria eficiência – aferida em tempo ou custo de viagem – da rede de transporte.
O sistema de trilhos de alta capacidade é o modo estruturador da rede de transporte das grandes cidades, além de organizador do espaço urbano. Com efeito, a presença do sistema de trilhos de alta capacidade viabiliza a implantação da mobilidade combinada, sendo os trilhos o modo principal de um sistema de transporte tronco-alimentado, em que os modos de menor capacidade operam espacialmente integrados, de acordo com a especificidade da oferta.
A racionalização da integração entre os modos, em função da capacidade de transporte, é uma estratégia operacional que incide na própria morfologia da rede. Assim, os grandes fluxos de viagens são diretamente atendidos pelo sistema de trilhos de alta capacidade. Os sistemas de média capacidade cruzam áreas intersticiais à rede de trilhos, percorrendo corredores em que se distribuem muitas atividades, e integram-se à rede de trilhos nas estações. Os sistemas de menor capacidade, mais capilares, atuam em determinados perímetros, alimentando os níveis de maior hierarquia de oferta de transporte.
As novas tecnologias e modalidades de transporte, como os carros e táxis chamados por aplicativo, bem como modos ativos, a exemplo de bicicletas e patinetes, e mesmo o deslocamento a pé, incluíram nas viagens da população das grandes cidades novas formas de mobilidade urbana, que combinam deslocamentos entre modos de menor capacidade com os de maior capacidade, possibilitando os serviços de transporte tipo “porta a porta”, mas organizados através de sistema tronco-alimentado, em que se reafirma a importância dos sistemas de alta capacidade.
O sistema de trilhos de alta capacidade é também o modo mais adequado para operar em subterrâneo, propiciando atendimento a áreas centrais e outros espaços densamente edificados, que se caracterizam por altas demandas de transporte, além de facultar reproduzir, com suas linhas, o desenho dos principais fluxos de viagem, sem depender da trama instalada de vias.
Portanto, em um espaço já provido de outros modos de transporte, a implantação de um serviço de trilhos de alta capacidade adensa a trama de linhas existentes e constitui-se numa oportunidade para redesenhar a rede como um todo, estabelecendo as conexões necessárias à realização de deslocamentos viabilizados pela integração física entre diferentes modos de transporte, condição básica da mobilidade combinada.
ESTRUTURAR O ESPAÇO DA CIDADE
A oferta significativa de acessibilidade, que decorre da implantação de linhas de trilhos de alta capacidade, aumenta o interesse de se implantar atividades nas imediações de suas estações. A procura por tais localizações reflete ganhos em tempo de viagem, que, por sua vez, traduzem-se em crescimento da área de mercado acessível a partir de cada estação, mas também em aumento do preço do solo local.
O poder indutor de atrair atividades e, portanto, empregos, associado a linhas de trilhos de alta capacidade, pode ser ampliado se a legislação que regulamenta o uso e a ocupação do solo for favorável ao adensamento nas proximidades das linhas, viabilizando compensar, com expansão dos limites de área edificável, o aumento no preço do solo local. Quando isso ocorre, como é o caso do município de São Paulo, através das leis do Plano Diretor Estratégico e de zoneamento vigentes, pode-se afirmar que
Figura 1 - Exemplificando com tipologias de rede Fonte: Santos e Gutierres, 2014
a implantação de linhas de trilhos de alta capacidade, além de reorganizar a distribuição espacial das atividades, pode promover o adensamento planejado do espaço urbano.
À medida que a rede de alta capacidade sobre trilhos se expande, com a implantação de novas linhas, haverá maior oferta de locais com um bom grau de acessibilidade. Em tais condições, a proximidades às estações continuará sendo fator determinante na localização das atividades, mas a menores custos de implantação. Logo, cidades que possuem rede ampla são economicamente mais eficientes, pois as despesas de localização incidem menos nos custos de produção de mercadorias e serviços.
O desenho da rede também influencia na construção de uma cidade mais sustentável e menos dependente do viário de superfície para se conectar. As conexões criadas nessa rede podem induzir novas centralidades em áreas carentes de empregos; ou ressaltar uma centralidade existente, elevando seu caráter ao de uma centralidade regional; ou mesmo conter seu crescimento, pela conexão facilitada a outras centralidades.
Exemplificando com tipologias de rede, as imagens da figura 1, mostram como isso pode ocorrer.
Na imagem da figura 1 em que aparece uma malha quadrada, todas as conexões apresentam quatro direções possíveis de fluxo, somando-se ao viário de superfície para dotar cada centralidade atingida por esta rede de grande aumento de acessibilidade e, por consequência, na atratividade. Se houver alguma centralidade de maior pujança, no entanto, ela atrairá para si a possibilidade de crescimento daquelas centralidades que compartilhem com ela uma linha. A imagem da figura 1 em que aparece a malha radial exacerba esta questão, pois além de, tradicionalmente, a centralidade convergente ser o centro de negócios da cidade, ela possui tantas conexões quantos forem os raios dessa rede, enquanto todas as demais conexões possuem apenas quatro direções possíveis de fluxo. Nesta configuração, no entanto, os segmentos perimetrais assumem um caráter de maior importância para o fortalecimento dessas centralidades, uma vez que entre as centralidades de uma mesma perimetral ocorre uma equalização, tanto pela distância ao centro polarizador ser similar, quanto pela quantidade de conexões. Desta forma, é importante notar que a importância das centralidades pode ser elevada com a adição de linhas de transporte e, em maior grau, com o cruzamento destas linhas em seu território.
AMPLIAR A ACESSIBILIDADE DO ESPAÇO
A implantação e a ampliação da rede sobre trilhos requerem, portanto, um estudo cuidadoso quanto ao seu desenho, que envolve extensão das linhas, locais a atender, conexões a realizar e diretrizes de desenvolvimento territorial a considerar. Diferentes soluções resultarão em padrões diferentes de atendimento e prioridade, afetando o tempo de viagem e a facilidade de acesso à rede pela população, além do funcionamento da cidade como um organismo único.
Diversas atividades conectadas entre si através de uma rede abrangente e eficiente facilitarão a circulação das pessoas com tempos de viagem em níveis satisfatórios e competitivos com outros modos, tais como o automóvel. Consequentemente, bons níveis de acessibilidade possibilitarão redução de congestionamentos e as mazelas deles decorrentes, tais como poluição, acidentes, tratamentos de doenças relacionadas ao trânsito etc. Em adição, uma cidade com bons níveis de atendimento pela rede sobre trilhos requererá menores áreas para circulação de veículos individuais, liberando espaço para a instalação de usos que agreguem mais qualidade ao ambiente urbano.
Outro importante papel a ser realizado pela rede sobre trilhos é conectar regiões separadas por barreiras urbanas ou que não possuem continuidade de tecido urbano entre si. Em outras palavras, o desenho da rede deve possibilitar a ligação de margens opostas de rios, de regiões separadas por ferrovias e por rodovias, cruzar vales e morros, atravessar bairros que não possuem continuidade viária e ultrapassar grandes glebas, para garantir maior coesão do tecido urbano e tornar a acessibilidade mais equitativa em diversas partes da cidade.
É justamente a acessibilidade, definida classicamente como a facilidade de se atravessar o território, o elemento agregador de qualidade ao espaço urbano atendido pela rede sobre trilhos. Suas características atribuirão a cada região um valor de localização e maior ou menor potencial de competitividade em relação a outras regiões dentro de uma mesma cidade (Villaça, 2012, p. 29). Quanto maior a facilidade de uma região se conectar com outras, maior sua competitividade e seu potencial de desenvolvimento econômico. Se mal distribuída ou mal desenhada, a rede sobre trilhos de alta capacidade causará desequilíbrio nos padrões de oferta de acessibilidade, prejudicando a população e o desenvolvimento urbano e econômico (Deák, 2016, p. 63-64). Por conseguinte, a acessibilidade ofertada em níveis adequados às necessidades da população, ou seja, de forma equitativa na cidade como um todo, aumentará a competitividade desta em relação a outras cidades de mesmo porte.
ORDENAR O USO DO ESPAÇO
Embora o papel de atender os grandes fluxos de deslocamento da população das grandes cidades seja uma característica facilmente atribuída às redes sobre trilhos de alta capacidade, há outras características igualmente importantes que devem ser consideradas durante as fases de planejamento, projeto, implantação e operação das linhas. Ressalte-se que as redes sobre trilhos atraem para si atividades econômicas, possibilitam o adensamento populacional e a transformação das atividades ao seu redor, conforme descreve Meyer, Grostein e Biderman (2004, p. 28). Portanto, a distribuição espacial da rede é determinante na distribuição espacial das atividades no território (Lisbôa, 2019).
Redes mais antigas, mas que permanecem em expansão até a atualidade, demonstram essa relação: com implantação iniciada há mais de um século, as redes de alta capacidade sobre trilhos de Londres e Paris, por exemplo, concentram ao seu redor diversas atividades econômicas e população; áreas centrais destas cidades, servidas por estas redes, sofrem transformações de uso visando sua modernização, como na região da Liverpool Street em Londres. Em alguns locais foram construídas edificações e reconfigurado o espaço urbano sobre o leito ferroviário – como na região da Avenue de France, no 13º Arrondissement de Paris. Outras expansões atualmente em curso

Figura 2 - Áreas de concentração de empregos atendidas pela rede sobre trilhos de Londres Fonte: Lisbôa, 2019
Figura 3 - Áreas de concentração de habitação atendidas pela rede sobre trilhos de Londres Fonte: Lisbôa, 2019 Figura 4 - Rede de centralidades prevista no PDUI para a RMSP Fonte: Emplasa, 2017

trazem consigo projetos de renovação urbana – Battersea e Nine Elms em Londres – e de formação de novas centralidades e polos, a exemplo do projeto do anel metroviário Gran Paris Express. Somam-se a estes, os exemplos dos metrôs de Madri – projeto MetroSur – e de Hong Kong como um todo (figuras 2 e 3).
Considerando a realidade das cidades brasileiras, além de atender os grandes fluxos de viagem já estabelecidos, a expansão da rede sobre trilhos de alta capacidade deve estimular o desenvolvimento econômico, estruturar a expansão e a ocupação dos territórios buscando equilibrar usos, com estímulo à formação de uma rede de centralidades e à renovação de áreas degradadas mais centrais, que aproxime moradia de empregos, reduza a desigualdade e a segregação e colabore para conter o crescimento da área urbanizada, com preservação do meio ambiente. Alterações na distribuição espacial das atividades gerarão novos padrões de deslocamentos, em que se espera tempos menores de viagem e maior utilização dos modos coletivos e ativos de transporte, melhorando a qualidade de vida da população. Os investimentos em transporte devem ser coerentes com as diretrizes de desenvolvimento urbano estabelecidas nas metas dos planos urbanísticos para garantir a superação dos problemas urbanos. O Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI) para a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), atualmente em análise pelo poder legislativo estadual, é um exemplo de plano de desenvolvimento urbano que segue esses preceitos e conta com a estruturação da rede sobre trilhos para concretizar suas metas (figura 4).
CONCLUSÃO
Circular com eficiência em grandes cidades demanda a implantação de redes de trilhos de alta capacidade, garantindo oferta de transporte adequada ao volume de viagens, que ordene a localização das atividades e crie condições físicas e ambientais necessárias ao desenvolvimento econômico desejado.
O desafio atual do planejamento de transporte no Brasil é complementar as redes de trilhos de alta capacidade das grandes cidades que já as possuem e implantá-las nas demais.
De fato, é para as redes de trilhos de alta capacidade que devem convergir os demais modos de transporte, valorizando o tempo de quem por elas circula.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] DEÁK, CSABA - Em busca das categorias da produção do espaço. São Paulo: Annablume Editora, 2016. [2] LISBÔA, LEONARDO CLEBER LIMA - Transporte de Londres, Paris e São Paulo: aspectos fundamentais do planejamento e da expansão das redes de transporte estruturais e sua relação com a organização do tecido urbano (Tese de Doutorado em Planejamento Urbano e Regional). São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2019. [3] LÖSCH, AUGUST - The economics of location. New Haven: Yale University Press, 1954.
[4] MEYER, REGINA MARIA PROSPERI; GROSTEIN, MARTA
DORA; BIDERMAN, CIRO - São Paulo metrópole. São Paulo: Edusp: Imprensa Oficial, 2004. [5] SÃO PAULO (Município) - Lei Municipal 16.050/2014. Plano Diretor Estratégico. São Paulo, 2014.
[6] SANTOS, LEONARDO CLEBER LISBÔA; GUTIERRES, DIO-
NÍSIO MATRIGANI MERCADO - A influência da conectividade na configuração da rede metroferroviária e no desenvolvimento da cidade. In: 20ª Semana de Tecnologia Metroferroviária. São Paulo: Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Metrô – AEAMESP, 2014. Artigo técnico disponível em: <http://www. aeamesp.org.br/blog/2014/12/13/a-influencia-da-conectividade-na-configuracao-da-rede-metroferroviaria-e-no-desenvolvimento-da-cidade/> Acesso 12 nov. 2019. [7] VILLAÇA, FLÁVIO - Reflexões sobre as Cidades Brasileiras. São Paulo: Studio Nobel, 2012. [8] VUCHIC, VUKAN R. – Transportation for livable cities. New Jersey: Center for Urban Policy Research (CUPR Press), 1999.
* Andreina Nigriello é arquiteta, doutora em planejamento urbano e atua na Gerência de Planejamento e Meio Ambiente do Metrô-SP E-mail: imprensa@metrosp.com.br
** Dionísio Matrigani de Souza Gutierres
é engenheiro, mestre em planejamento de transportes e coordenador na Gerência de Planejamento e Meio Ambiente do Metrô-SP E-mail: imprensa@metrosp.com.br *** Leonardo Cleber Lima Lisbôa é arquiteto, doutor em planejamento urbano e supervisor na Gerência de Planejamento e Meio Ambiente do Metrô-SP E-mail: imprensa@metrosp.com.br **** Luiz Antonio Cortez Ferreira é arquiteto e Gerente de Planejamento e Meio Ambiente do Metrô-SP E-mail: imprensa@metrosp.com.br