Enfim, dignidade

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Enfim, dignidade Após uma década de invasão, famílias passam a viver em apartamentos. Panorama atual de ocupações irregulares ainda tem números elevados no Distrito Federal e Entorno

Apartamentos entregues para os ex-ocupantes do Noroeste.

Victor Gammaro Texto e fotos

Responder à simples pergunta como “qual é o seu endereço?” era um momento difícil na vida de Maria Silvana Rodrigues Maranhão. Há dez anos em Brasília, ela conseguiu um apartamento no Paranoá há apenas dez meses. As diferenças entre viver em um barraco e em uma casa, além das que parecem ser óbvias, passam pela alegria de ter um chaveiro e o conforto de não precisar se levantar para tapar os buracos das goteiras quando cai uma chuva forte. O caso dela não é isolado. Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Distrito Federal tem 18 ocupações de baixa renda por todo o território. Somadas, as populações destes locais chegam a mais de 2 mil pessoas. Maria Silvana, mãe de dois filhos, tem 42 anos, sendo 10 só de vivência em Brasília - uma década de invasão. Natural de Iguatu, interior do Ceará, 380 quilômetros da capital Fortaleza, desde que desembarcou na capital, só morou “dentro do mato”, como ela mesmo definiu a época de ocupações. Quase 900 famílias ainda vivem em situação de ocupação. Dentre essas, 40% só na região central do DF. “Agora eu tenho um endereço, ninguém pode dizer mais que a minha casa não tem um endereço. A carta que eu não recebia antes, vai chegar pelos Correios, eu tenho uma chave para abrir e fechar a minha casa”, comemora a catadora de materiais recicláveis.

Há 10 anos, uma invasão no Noroeste, bairro nobre do Plano Piloto, chamava a atenção pelo tamanho e proximidade dos prédios mais modernos da cidade. A proximidade com a ocupação incomodou os moradores do bairro, que pediam a retirada dos invasores quase que todos os dias. “Foi ótimo eles pedirem que nós saíssemos, só assim fomos vistos, lembrados, quando os ricos se incomodaram, deram um jeito de arrumar casa para nós”, relembra Silvana, que agora vive em um apartamento do Paranoá, conquistado em um programa habitacional do Governo do Distrito Federal (GDF). Somente no “Cerrado” - nome que foi batizada a ocupação do Noroeste pelos ocupantes - 41 famílias, totalizando mais de 200 pessoas, sendo 62 crianças entre 0 e 10 anos, viviam em condições subumanas. A menina Vitória Pereira, uma delas, teve, aos cinco anos, o primeiro contato com a escola. “É tudo diferente, no colégio novo tem muitas crianças e ainda ganhamos lanche no recreio”, disse, sorridente, a garota, que foi pré-alfabetizada ainda na invasão, quando professoras iam, voluntariamente, ensinar português e matemática aos mais jovens.

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Com luz e sem chuva Uma das grandes preocupações de Aparecida Correia, de 48 anos, era com os dias chuvosos no Noroeste. Tampa o buraco no teto, busca o balde para não molhar o chão e muda a cama de lugar. Muitas vezes o marido, Ivonaldo Batista, tinha que subir nas telhas improvisadas para sanar os problemas causados pelas chuvas. Agora protegida da chuva, Cida, como prefere ser chamada, até curte os dias com tempo ruim. “Quando estou em casa, olho pela janela e até coloco a mão para fora, para sentir os pingos”. Sem ter que correr para impedir que a casa seja encharcada, sobra tempo até para conscientização de problemas maiores. “Gosto também quando chove pois estamos ficando sem água, né? Tem que chover é lá no reservatório”, diz em meio a sorrisos fáceis. Outra alegria de Maria Silvana Rodrigues Maranhão é poder usar energia elétrica durante todo o dia. Em tempos de invasão, a única fonte de luz eram os postes próximos à invasão, que, por meio de ligações ilegais, abasteciam o Cerrado. “Antes só funcionava de noite, já que a iluminação da rua não funciona de dia”, relembra a catadora, que atualmente não paga mais de R$ 10 pela conta de energia.

Silvana em frente ao novo lar: dignidade.

Porém, apesar de baratas, as contas de luz, água e condomínio apertam a catadora de material reciclável, que ainda não começou a trabalhar na cooperativa organizada pelos ex-moradores do Cerrado. “Faço um bico de faxineira aqui e outro ali, mas o que tenho de fixo, todo mês, são os R$ 70 do Bolsa Família”, afirmou. O valor que ela recebe do benefício do governo não chega a metade dos gastos com as taxas do condomínio, por exemplo.

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Moradores que ainda vivem em situação irregular. Alguns foram retirados e voltaram para o Noroeste.

Panorama atual No entanto, não foram todas as famílias do Noroeste que conquistaram o direito da casa própria. A Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (Codhab) informa que sete famílias ainda estão em avaliação para entrar no plano habitacional. Outras não conseguiram entrar no programa, pois já foram contempladas com moradia em outras oportunidades e venderam a propriedade. “Acontece muito, o cidadão conquista um benefício e joga fora, passa para frente por um preço, muitas vezes, muito abaixo do que vale o imóvel”, disse Glauco Gonçalves, gerente do Centro de Referência de Assistência Social do Distrito Federal (Cras-DF). Além dessas, quatro famílias desistiram de viver na capital do país e receberam passagens para retornar às terras natais. O Cras tem a missão de fortalecer os vínculos familiares e acompanhar os grupos de baixa renda. Cabe ao órgão assistir no desenvolvimento social da população pobre e executar programas para garantir o fortalecimento do vínculo entre essas famílias. Uma das medidas do Cras, por exemplo, é ajudar na retirada de documentos de moradores de ocupações. “Nós centralizamos as ações, encaminhamos para os órgãos responsáveis e até emitimos segunda via de carteira de identidade, por exemplo”, explicou Glauco. O mato, o lixo e restos de materiais de construção tomam conta do local onde havia a invasão no Noroeste. Apesar disso, algumas famílias ainda vivem lá, mesmo


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“Foi ótimo eles pedirem que nós saíssemos, só assim fomos vistos, lembrados, quando os ricos se incomodaram, deram um jeito de arrumar casa para nós”.

após terem sido retiradas de forma pacífica, no último mês de outubro. “Aqui é a minha casa, construí o meu barraco logo depois que fomos retirados”.

casa própria por falta de documentos, o jeito foi arrumar outra invasão. Eu não quero voltar para Iguatu (CE)”, disse a catadora, que é conterrânea de Silvana.

“Se me mandarem embora, eu volto para cá no dia seguinte”, disse um catador de material reciclável que se identificou como “Juca”, que aparenta ter entre 20 e 30 anos. Glauco Gonçalves diz que o Governo do Distrito Federal desconhece as novas ocupações. “Não temos conhecimento sobre essa informação, para nós essa invasão acabou”, afirmou, mesmo após ter sido informado pela reportagem da existência de algumas famílias na região.

Na opinião de Silvana, as famílias que não conquistaram as moradias “não foram atrás dos seus direitos”. Para ela, toda a estrutura foi dada para que os moradores do Cerrado conseguissem os apartamentos no Paranoá. “Eu batalhei para que vários amigos conseguissem, mas tem gente que não corre atrás, não posso fazer nada”, lamenta.

Além dos que retornaram para o Cerrado, algumas famílias foram buscar refúgio em outra invasão. É o caso da Dona Marciana, de 37 anos, esposa de Nilton Gomes e mãe de três filhos. “Não conseguimos o benefício da

Vale ressaltar que existem ocupações recentes de áreas públicas no Distrito Federal, posteriores a julho de 2014, mas essas são tratadas diretamente pela Agência de Fiscalização (Agefis), e os moradores não têm direito a benefício.

Moradores da invasão foram cadastrados nos programas habitacionais do GDF.

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