As marcas da dor: a violência contra mulher no DF

Page 1

Cidadania

As marcas da dor:

a violência contra mulheres no DF Agressões físicas e psicológicas marcam o relacionamento de muitas mulheres em Brasília. Só no ano passado foram registradas 13.212 ocorrências com base na Lei Maria da Penha

Diego Schueng e Luísa Ervilha Foi com um tapa no rosto que Carla*, de 28 anos, acordou de um sonho. Dona de casa, casada e mãe de duas meninas, ela acreditava que aquele seria mais um dia comum na vida da família, mas foi o começo do fim. “Eu trabalhava na Igreja. O quarto do padre que estava em reforma ficou pronto. Saímos para comemorar e eu levei minhas filhas. Meu celular estava descarregado, então o deixei em casa. Quando cheguei, me deitei e acordei sem saber o que estava acontecendo. Foi um susto”. Já passava da 1h30 da manhã. O marido, que vamos chamar de João, abriu a porta da residência. Ele entrou em casa sem que Carla despertasse. Ele a surpreendeu com um tapa e uma pergunta: “Com quem você está me traindo?”. Carla permaneceu sem reação e muito assustada. Os gritos acordaram a vizinha que perguntou se estava tudo bem e ofereceu ajuda, que foi recusada por ela. “Assim que ele percebeu que a vizinha estava no portão, ele saiu de casa. Eu aproveitei, fui para rua e encontrei, por sorte, uma viatura da polícia e expliquei o

que havia ocorrido. Eles me levaram para fazer um Boletim de Ocorrência”. Chegando na delegacia, Carla conta que foi atendida por um policial homem e afirma que “Ele foi muito atencioso comigo. Registrei uma medida protetiva para manter João distante”. Quatro dias se passaram. Um oficial de justiça bateu na porta. Não havia ninguém em casa para atender. A segunda opção foi ir ao trabalho de Carla. Lá ela recebeu um documento. “Era uma intimação marcando uma audiência”. João foi julgado. A pena? “Ele tinha que cumprir trabalhos sociais, e se não fizesse, poderia ser preso”.

Pesadelo sem fim Carla não havia se livrado de João. Mesmo com a determinação da justiça ele passou a segui-la, ou melhor, persegui-la. “Ele tentou me atropelar, me vigiava, me seguia, era desesperador!”. E completa: “Ele subia em cima de árvores pra me vigiar”.

REVISTA ESQUINA

33


Cidadania Infelizmente essa história de agressão não se limita a vida de Carla. Bem distante dali, Mariana*, 23 anos, foi vítima de violência doméstica aos 21. Ela voltava de um aniversário com o marido e a filha, que na época tinha apenas 2 anos. Já se aproximava das 21h30. Ele estava alcoolizado. “Eu estava preparando o jantar e aí tivemos uma discussão: ele me deu um soco na nuca muito forte, fiquei muito tonta, gritei, falei ‘você está louco? O que é isso? Por que você está fazendo isso?’”, relembra a secretária.

“Tem partes do meu dente que (após a agressão) eu não tenho mais”. Não se espante, essa não era a primeira agressão que Mariana recebia. “Daquele jeito, daquela forma que foi, que ele me machucou fisicamente. Eu fiquei desesperada porque eu pensei ‘ele vai me matar’”. Ela gritava por socorro, na esperança dos vizinhos escutarem e chamarem a polícia, mas não adiantou. “Ele continuou me batendo, me deu mais três tapas na cara. Inclusive tem uma parte do meu dente que eu não tenho mais, porque foi muito forte. Ele me batia muito, me chutava e eu pedia para parar e ele não parava, gritava comigo, dizia que só ia parar quando me matasse, e começou a tentar me enforcar”. A filha presenciou tudo. Mariana conseguiu empurrá-lo e fugir. Com o rosto ensanguentado, foi até a casa dos familiares do rapaz, que moravam próximo dali, para pedir ajuda. Poanka Faleiro, de 21 anos, também se livrou de uma relação destrutiva que culminou em agressão física. O namorado, com quem mantinha um relacionamento difícil, foi o causador de tudo. Era noite de domingo e o casal acabava de chegar na festa de uma amiga de Poanka. “Ele não gostava dela e nem foi convidado, mesmo

“Ele pegou meu cabelo e arrastou minha cara no chão”, diz Poanka Faleiro.

Estudante postou nas redes sociais essa foto após a agressão. Foto: Arquivo pessoal

34

REVISTA ESQUINA

assim ele foi comigo”. conta. As duas eram muito próximas, e a amiga aniversariante sempre a alertava sobre o comportamento do namorado. Mas ninguém imaginava o que viria a acontecer horas depois. O namorado estava com fome. Decidiu comer em um fastfood próximo ao local da festa e foi sozinho. Ele tomou essa decisão após ver um antigo amigo com quem teve uma discussão, a qual terminou em briga. Os dois não se falavam mais, porém esse amigo ainda mantinha uma amizade com Poanka. “Pensei: não vou nem falar com ele pra não causar briga, continuei no aniversário tranquila”. Mas quando o namorado foi até o restaurante, Poanka optou por cumprimentá-lo, afinal ela não estava fazendo nada de errado. O namorado chegou nesse exato momento, e nisso a situação tomou outro rumo. “Ele já foi partindo pra agressão verbal, me xingando. Nessa hora eu estava procurando a chave do carro e ele pegou a minha bolsa e tacou tudo no chão. O porteiro viu tudo. Eu sentei na calçada. Nesse momento, ele pegou meu cabelo e arrastou minha cara no chão. E eu fiquei muito machucada. O porteiro ligou pra polícia e tinha um casal de amigo nosso entrando na festa, que viu tudo e me ajudaram”, ela relata. O casal foi levado à delegacia em carros separados, para depor. Ao chegar lá, a família do agressor imediatamente se aproximou dela e a mãe do jovem fez um pedido inusitado: “Você não vai fazer isso com nosso menino, vai?”, fazendo menção direta à denúncia de agressão. Poanka conta que ficou impressionada com a ousadia da então sogra: “Eu nem acreditei no que ela estava me perguntando naquele momento. É inacreditável. Eu fui agredida pelo filho dela, e ela estava se


Cidadania preocupando apenas com o que poderia acontecer com ele”. Como foi preso em flagrante, o agora ex-namorado responde por lesão corporal e injúria, com agravante da Lei Maria da Penha. O caso de Poanka viralizou na internet. A jovem postou em uma rede social a foto da agressão. A publicação já passa de 325 mil reações, e 62 mil compartilhamentos. Ela tomou essa decisão para encorajar outras mulheres a denunciar e não permitir que esse tipo de agressão seja naturalizada.

“Ele subia em cima de árvores para me vigiar!”. A reportagem ouviu uma advogada para entender como esses casos são tratados pela polícia. Especializada em Direitos de Gênero pela Universidade de Brasília (UnB), a advogada Aline Hack explica que muitas vezes é difícil identificar a violência cometida contra as mulheres: “Nem toda violência é explícita e por muitas vezes é até naturalizada”. Segundo art. 5o da Lei Maria da Penha, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero, independente de orientação sexual, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico. A socióloga Kamila Figueira, conta que o machismo ideia de superioridade do homem em relação às mulheres - surge a partir do sistema que define que os homens teriam um lugar primário e essencial enquanto a mulher teria um lugar secundário na ordem da cultura. “O patriarcado justifica as desigualdades entre homens e mulheres nas diferenças biológicas entre os sexos. Assim, as mulheres são vistas pela sua “natureza” intrínseca, como a ideia de que as mulheres seriam frágeis, sensíveis e maternais na maioria das vezes”, explica. A Lei Maria da Penha classifica e define as formas de violência doméstica contra a mulher como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. É preciso ressaltar que a violência doméstica não acontece apenas entre mulheres e seus parceiros conjugais, mas também pode acontecer com os demais homens da família. “Sobretudo contra aqueles que ‘fogem’ do modelo ideal do feminino, da boa moça, da mulher de família, podemos pensar em outros tipos de violência que ocorrem com mulheres - pelo fato de serem mulheres - cometidas por pais, padrastos, irmãos, etc”, explica a socióloga. Essa noção de violência como um fenômeno que não se restringe apenas a agressões físicas, incorporada no escopo da Lei é, para as feministas, uma vitória no que tange a consolidação de políticas públicas de gênero no Brasil.

Carla era vigiada no trabalho. O marido subia em cima de árvores para vê-la. Fotos: Diego Schueng

Perfil do agressor A psicóloga Carlene Dias explica que o agressor normalmente tem um perfil. “São homens ciumentos, possessivos, e que no fundo tem uma insegurança em relação à mulher”. Eles têm uma necessidade de controlar a mulher, e as tratam como um objeto deles. “Às vezes eles não deixam nem a mulher trabalhar fora, por conta do ciúmes”, exemplifica. Além disso, ela comenta sobre o “ciclo de violência”. O relacionamento abusivo começa desde o namoro: primeiro ele enche a mulher de elogio - ela se sente amada. Em nome desse amor, ela acha que deve se submeter ao que ele quer. O agressor então comete violência e logo em seguida apresenta o sentimento de culpa. E quando vem a culpa, vem com ela a “lua de mel”. Nessa etapa, o casal novamente se apaixona e revive os momentos do início do relacionamento. O agressor diminui a autoestima e amor próprio da vítima. A mulher fica com o sentimento de desvalorização e menos valia. “As vítimas normalmente sentem pena, são cuidadosas e protegem o agressor. Essa mulher fica refém do homem”, completa Carlene. A psicologia tem o papel de empoderar essa mulher, fazer com que ela mude essa percepção de si mesma e tenha consciência de como que essa relação doentia e violenta fez ela se tornar essa pessoa tão impotente. Segundo a psicóloga, “muitas delas não querem se livrar deles, elas querem que eles mudem. Que eles se tornem aqueles homens que eram no início do relacionamento”. As vítimas normalmente tem uma capacidade enorme de tolerância. Muitas delas aceitam as violências para

REVISTA ESQUINA

35


Cidadania Regiões administrativas que mais registraram ocorrências em 2016:

Policiais estimulam que denúncias também cheguem pelo 180./ Imagem: Reprodução/ Cartilha Violência contra a mulher do GDF.

que os filhos ‘não fiquem sem pai’. “A maioria delas só sai da relação quando eles começam a agredir psicologicamente os filhos”, finaliza Carlene.

Números que assustam A Secretaria da Segurança Pública e da Paz Social do Distrito Federal (SSP-DF) informa que, em todo o ano de 2016, foram registradas 13.212 ocorrências de violência doméstica, com base na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340 de 2006). O número é 4,2% menor se comparado com 2015, quando foram registradas 13.798 casos. Entre as regiões administrativas que mais registraram ocorrências em 2016 estão Ceilândia, com 16,7% dos casos; Planaltina, com 8,1%, e Samambaia, com 7,5%. É importante ressaltar que esses números indicam as mulheres que de fato realizam as denúncias. A Polícia Civil do Distrito Federal informa, por sua vez, que atualmente existe uma Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM). A assessoria de comunicação do órgão informa que em todas as delegacias circunscricionais (que corresponde por regiões do DF), existe uma Seção de Atendimento à Mulher. Ao todo, são 34 unidades. O que todas as mulheres ouvidas pela reportagem disseram em comum é que a denúncia foi o melhor caminho encontrado. “Depois da postagem que fiz no Facebook, uma mulher me mandou uma mensagem. Ela tinha filhos e apanhava do marido. Disse que tomou coragem e denunciou depois que viu a minha publicação”., conta Ponka.

36

REVISTA ESQUINA

Samambaia

7,5%

Planaltina

8,1%

16,7%

Ceilândia

Em 2016 foram registradas ocorrências violência 13.212 de doméstica número 4,2% menor comparado ao ano anterior

com

13.798 casos. Dados: (SSP-DF)


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.