Contra olhares e silêncios

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Contra olhares e silêncios Conheça histórias e batalhas de brasilienses em processo de transição de gênero

Ana Carolina Alves

“Às vezes sinto como se eu visse meu passado em terceira pessoa, como se tudo que eu vivi não fosse comigo. Às vezes, lembramos de pessoas que morreram e guardamos as lembranças”. É assim que o brasiliense Daniel Adorno, hoje com 20 anos, lembra de Carolina, que de alguma forma “morreu” em 2015. Durante a infância e adolescência, ele atendia pelo nome de Carolina. Dan, que existia em silêncio, nasceu em seguida para o mundo. Nascido em Brasília mas atualmente morando no Rio de Janeiro, todo dia Dan acorda, vai para a faculdade, almoça no “bandejão” da instituição, deixa a namorada no ponto de ônibus, vai à academia e estuda a matéria do dia seguinte. Uma rotina relativamente normal, se não fossem os olhares e as atitudes julgadoras das pessoas. Mudam os nomes. Daniel e tantos outros transexuais brasilienses residem no país que mais se notificam assassinatos de transexuais no mundo, de acordo com a pesquisa realizada pela organização não governamental Transfender Europe (Tgeu). Não existem pesquisas oficiais que indiquem o número de transexuais residentes no Brasil ou mesmo em Brasília. A integrante da Associação do Núcleo de Apoio e Valorização à Vida de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Distrito Federal e Entorno (ANAVTrans), Ludmylla Anderson Santiago Carlos, 34 anos, afirma que uma pessoa declaradamente travesti ou transexual sem documentos ratificados será entendido como gay ou lésbica. Por isso, é tão difícil conseguir esses números. Além disso, muitas organizações não-governamentais (ONGs) do DF ditas LGBT não têm travestis e transexuais com poder de voz, portanto muitos homossexuais acabavam representando essa população. Esse

foi um dos principais motivos para a criação da ANAVTrans, em setembro de 2009. “O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo e isso acontece porque essas pessoas não possuem seus direitos garantidos”, desabafa Ludmylla, que também é transexual. Os crimes, segundo especialistas entrevistados, são reflexos da cultura transfóbica brasileira, que não entende a complexidade que é enfrentar a dúvida de identidade de gênero. Identidade de gênero? Outra questão polêmica e desconhecida. “Trata-se de uma identidade ampla, para identificar o grupo diversificado de pessoas que não se reconhecem, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado quando seu nascimento”, explica o coordenador da comissão especial LGBT do Conselho Regional de Psicologia do DF, Thiago Magalhães.

Barreiras No caso do estudante transexual Daniel, ele sempre soube que era “diferente” de pessoas que convivia, mas tentava se acostumar com o estereótipo de ser mulher. “Eu passei minha vida tentando ser uma coisa que eu não era, e em decorrência disso eu fiquei muito deprimido e ansioso, e não sabia o porquê”. Quando finalmente se reconheceu, resolveu contar para os pais em 2015, que não aceitaram “muito bem”. Depois das reações da família veio outra dificuldade: as barreiras do dia a dia. “Eu não conseguia ir ao banheiro porque não me sentia bem no feminino e tinha medo de ser barrado no masculino. Hoje já superei isso, mas sempre aparecem outros obstáculos, como por exemplo, quando uma festa vende ingressos masculino e feminino por preços diferentes. É

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COMPORTAMENTO complicado porque não mudei minha identidade ainda”, conta o jovem, que tenta evitar essas situações.

Identidade O Vice-Presidente da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados Seccional do DF (OAB), Ricardo Sakamoto de Abreu, explica que para que seja realizada a troca do prenome nos documentos civis é necessário que se ingresse judicialmente requerendo a troca, por meio de uma ação de alteração de prenome e gênero do registro civil. Ele alerta que não é necessária a realização de cirurgia de redesignação sexual para que haja a alteração do nome e gênero nos documentos civis da pessoa transexual. Porém, o advogado alerta que o país carece de legislação específica que trate sobre os transexualidade. “O que existe são os princípios constitucionais em que se baseiam esses princípios, como o princípio da autodeterminação, direito à saúde, e principalmente o princípio da dignidade da pessoa humana”, afirma. Constrangimento em mostrar documentos é só um exemplo das situações desconfortáveis que transexuais enfrentam no dia-a-dia. Ludmylla Anderson conta que já foi confrontada muitas vezes, principalmente por mulheres. Lugares como banheiros e vagões especiais para mulheres já foram o palco de preconceito. Ela avalia que o DF está bem longe de uma situação aceitável.

“A todo instante” Ludymilla, além de ser representante da ANAVTrans, também é gestora pública, e conta que já foi excluída de seleções de emprego por ser uma mulher transexual.

“Esses preconceitos acontecem a todo instante. Parece que estamos pedindo favores e não requerendo direitos”, desabafa. Segundo a gestora pública, Brasília é uma cidade preconceituosa, mas é difícil saber o nível de intolerância, já que faltam números e dados oficiais sobre o tema. O problema, no entanto, não é exclusivo da capital. A intolerância está presente no país inteiro. Dan relata que, logo quando se mudou de Brasília para o Rio de Janeiro, sofreu preconceito no trote da faculdade. Quando entrou na instituição ninguém sabia que ele era um homem transexual, apenas acreditavam que era um garoto mais jovem que entrou na faculdade. “Na hora do trote, tentaram tirar sarro pelo fato de eu parecer com Thammy Gretchen, e foi aí que eu resolvi defender ‘a causa’ e me assumir na sala. Afinal, por que seria engraçado eu ser trans?”. O estudante lembra que o pior episódio de preconceito aconteceu recentemente, quando ele e a namorada resolveram contar para a família da garota que Daniel era transexual. A mãe reagiu bem à notícia, mas o pai da menina proibiu os dois de se relacionarem. O casal passou mais de dois meses sem se ver. “Não foi só eu que sofri o preconceito, foi ela também”, reflete. O sogro de Daniel cometeu outro erro comum na sociedade. Ele acreditava que, pela filha se relacionar com um homem transexual, ela era bissexual. Muitas pessoas pensam assim, devido principalmente à falta de conhecimento. Aliás, se um homem transexual se relacionar com mulheres, ele se identifica como heterossexual. Se o mesmo se relacionasse com homens, poderia ser um homem trans homossexual. Caso se relacione com os dois, é bissexual. A mesma coisa vale para homens e mulheres cis. “É um relacionamento heterossexual independente do que eu tenho entre as minhas pernas”, reforça Dan.

“É preciso ter preparo” Ela tem o espelho diante de si o dia inteiro. A cabeleireira transexual Camila Almeida Carvalho, 32 anos, afirma que nunca sofreu preconceito a ponto de se sentir constrangida. Apesar disso, ela alega que transexuais atraem olhares. “É preciso ter um preparo psicológico para isso. As pessoas não estão acostumadas a lidar com pessoas trans”, ressalta a cabeleireira. Ela conta que desde criança não se sentia confortável usando roupas masculinas. Resolveu adotar a postura feminina aos 14 anos, e sempre teve o apoio da família, principalmente da mãe. A cabeleireira admite que já fez tratamento hormonal, inclusive sem acompanhamento médico. Fotos: Arquivo Pessoal. Ludymilla coordena entidade de luta por direitos de transexuais.

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COMPORTAMENTO O psicólogo Thiago Magalhães alerta que os pais devem buscar a orientação de profissionais especialistas na temática, para ajudá-los a lidar com uma criança ou jovem transgênero. “Embora não seja nada fácil em um primeiro momento, é fundamental o suporte familiar, acolhimento, amor e respeito para o desenvolvimento da criança trans, pois é no contexto familiar que ela consegue transferir segurança para a sociedade, refletindo na sua vida emocional, psicológica, estudantil e, futuramente, profissional”.

Para entender mais: As pessoas podem ser identificadas como “cisgênero” ou “transgênero”. Pessoas cisgênero, ou “cis” são aquelas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento. Já as pessoas transgênero, ou trans, são aquelas que não se identificam com o gênero que lhes foi determinado ao nascer. Dito isso, é importante ressaltar a diferença entre transexuais e transgêneros: As pessoas transgêneros são aquelas que não se identificam com o gênero que lhes foi determinado ao nascimento. As transexuais são aquelas que se identificam com o gênero oposto ao que lhes foi determinado ao nascer.

O que diz a lei:

O Decreto n. 8.727/2016 assegura a utilização de nome social no âmbito dos órgãos da administração pública, e corre no Supremo Tribunal Federal (STF), uma RE - recurso de caráter excepcional para o STF contra decisões de outros tribunais, em única ou última instância, quando houver ofensa a norma da Constituição Federal - em que discute a possibilidade de uma pessoa transexual retificar o gênero em seus documentos sem a necessidade de realização de cirurgia de redesignação de sexo. “Com o STF se posicionando, poderão os demais juízos aplicar o entendimento da Corte Suprema”, avalia o advogado Ricardo Sakamoto de Abreu.

O estudante Daniel Adorno: Carolina “morreu” há dois anos.

“Não era uma doença, mas quem eu sou” Sobre o tratamento hormonal, o psicólogo Thiago Magalhães explica que também é necessário o acompanhamento de especialistas. O melhor momento para iniciar o tratamento deve ser avaliado em conjunto com profissionais qualificados. Jamais se deve fazer o processo sem acompanhamento médico, como Camila fez. Hoje ela reconhece o erro, mas afirma que muitas mulheres transexuais optam por se automedicar por acreditarem que a dose de hormônio é a mesma para todas. O estudante Daniel lembra das dificuldades que enfrentou no processo hormonal, principalmente nas consultas com especialistas. “A sensação é de que toda vez que eu entrava em um consultório eu tinha que convencê-los de que eu não estava inventando nada, que não era uma doença, mas quem eu realmente sou”, afirma. Depois de conseguir a autorização médica para começar o tratamento, a ansiedade se tornou a grande vilã para o estudante. Ele diz que teve dificuldade para ver o corpo mudar, e isso gerava frustração e baixa autoestima. “Eu percebi que eu tinha que registrar a transição para ver claramente as mudanças no futuro, porque a ansiedade era tanta que eu não dava crédito ao tempo para fazer efeito no meu corpo a longo prazo”, conta ele, que hoje registra a transição através de fotografias. Já tem mais de um ano que Daniel começou a injetar hormônios, e com o tempo seu corpo adquiriu cada vez mais características masculinas. Apesar disso, ele conta que os colegas de faculdade têm dificuldade em vê-lo como um homem comum. “Me tratam com uma certa distância, quase como uma garota. Não apertam a minha mão para me cumprimentar, não me veem como um deles. Eu acabo sendo o esquisitão excluído do grupo”, desabafa. A situação só começou a melhorar nos jogos universitários, quando o estudante participou com os garotos. “Pelo fato de estarmos jogando juntos eles perceberam que eu sou um deles”. Porém, apesar de tudo que enfrentou e ainda enfrenta em seu cotidiano, Daniel se considera “sortudo”. Segundo ele, são as mulheres transexuais que mais enfrentam o preconceito, pois muitas vezes sofrem misoginia por parte de mulheres e homens. “Elas são deixadas de lado até em movimentos feministas radicais. As pessoas vinculam muito a prostituição com trans, tendo a concepção de que uma mulher transexual é uma prostituta”, afirma Daniel.

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COMPORTAMENTO No processo de redesignação sexual masculina é realizada a histerectomia (retirada de útero, ovários) e mamoplastia masculinizadora (retirada das mamas). Após o início do tratamento hormonal, o clitóris pode crescer a ponto de adquirir o tamanho de um pênis pequeno. Quando esse crescimento é insuficiente, pode ser realizada a metoidioplastia, cirurgia na qual o clitóris é alongado e reconstruído como um neopênis de modo a preservar a ereção e conferir a habilidade de urinar em pé, ou de introduzir próteses rígidas ou infláveis. A bolsa escrotal é reconstruída com os grandes lábios e próteses de testículos.

A escritora Maria Léo Araruna chegou a ser expulsa de uma escola.

Intolerância A estudante de direito e militante LGBT da coletiva Corpolítica, Maria Léo Araruna, de 22 anos, sabe bem como é lidar com esse preconceito. Ela, que também é escritora, se define como travesti. Maria conta que já foi expulsa de uma escola que oferecia oficinas de direitos humanos, por usar roupas femininas. Além disso, ela admite que já foi hostilizada por homens, principalmente em aplicativos de relacionamentos. Chamada de “demônio” e “farsa”, a estudante já escutou que “não é mulher de verdade, só servia para fazer gozar”. Segundo Maria, ela enfrenta menos repressão no centro de Brasília, apesar de notar os olhares julgadores das pessoas. “Na ‘periferia’ o risco de ser agredida é maior. Eu tenho sorte de ter carro e de viver próximo ao Plano Piloto”, diz. A estudante conta que começou a fazer tratamento hormonal há pouco mais de dois meses, e por enquanto não tem planos em fazer a cirurgia de redesignação sexual.

Cirurgias Mais avançado no tratamento hormonal, Dan realizou a cirurgia de mamoplastia masculinizadora no final de janeiro deste ano. O estudante conta que decidiu realizar o procedimento porque nunca se sentiu confortável com os seios. Quanto à cirurgia de redesignação sexual, o jovem espera um dia poder realizá-la, mas não no Brasil. “Eu não conheço muitos resultados do procedimento no nosso país. Então vou deixar para o futuro, agora estou mais interessado em retirar meu útero e ovários”, afirma.

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Já a redesignação sexual feminina consiste na retirada dos testículos e na construção de uma neovagina, que é construída a partir da pele do pênis ou de um retalho de mucosa do intestino grosso. A redesignação sexual feminina pode envolver, ainda, cirurgia de feminização


COMPORTAMENTO facial e o aumento de seios. O psicólogo Thiago Magalhães ressalta que “o importante na determinação da identidade de gênero transexual é a forma como as pessoas se identificam e não um procedimento cirúrgico”. A cabeleireira transexual Camila Almeida conta que já colocou próteses nas nádegas e nos seios, aos 17 e 22 anos, respectivamente. Segundo ela, a decisão pelos procedimentos foi por uma questão de estética, para se sentir feminina. Quanto à cirurgia de redesignação sexual, Camila não tem planos para realizá-la, ainda. Mesmo assim, já se sente renascida.

Travesti? Transexual? Transgênero?

Entenda as classificações: O coordenador da comissão especial LGBT do Conselho Regional de Psicologia do DF, Thiago Magalhães explica que a definição desses conceitos não é consenso na literatura e no movimento LGBT. Ele apresenta e explica esses conceitos de maneira didática, baseados na literatura que já teve acesso, na militância do movimento LGBT, no diálogo constante e no atendimento de pessoas que vivenciam essas realidades, pessoas que estão diretamente implicadas nessas questões. As pessoas transgênero são aquelas que não são identificam com o gênero que lhes foi determinado ao nascimento. As pessoas transexuais são aquelas que se identificam com o gênero oposto ao que lhes foi determinado ao nascimento. As travestis são pessoas que vivenciam papéis de gênero feminino. Elas não se identificam como homens ou como mulheres, mas como pertencentes a um terceiro gênero ou um não-gênero. Crossdresser é um termo utilizado para homens cisgênero heterossexuais que buscam vivenciar papéis de gênero feminino. Eles têm satisfação emocional ou sexual momentânea em se vestirem como mulheres, mas identificam-se como pertencentes ao gênero que lhes foi atribuído ao nascimento. Drag Queens são homens que se fantasiam como mulheres para o entretenimento. São artistas que fazem uso de feminilidade caricata e estereotipada. Drag Kings são mulheres que se fantasiam como homens para o entretenimento. São artistas que fazem uso de masculinidade caricata e estereotipada. Crédito: Redcup Films

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