Exposição temática: "Era uma vez... contos tradicionais de todo o mundo"

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Os textos nem sempre respeitam o novo Acordo Ortográfico


Há muitos, muitos anos, no coração de África, a fome instalou-se na savana. A Chuva teimava em não cair e já não enchia a barriga dos herbívoros. Um único local tinha ainda erva verde e tenra, porém era aí, junto ao rio, que vivia o leopardo Nebr. Com medo dele, os animais viam-se obrigados a emigrar para longe em busca de erva mais nutritiva. Com o seu território fora da rota dos outros animais, Nebr, o rei da selva, começo também a sentir os efeitos da crise. Esgotou as reservas da sua despensa bem fornecida e, aos poucos, a fome foi cobrando o seu tributo. O pelo tornou-se áspero e seco e a pele colou-se-lhe aos ossos. Deu volta aos miolos que, encontrou por fim uma solução para o atormentador problema: _ Chabil, meu filho, os tempos vão maus. Se não tomarmos providências sérias, lá se vai a nossa bela linhagem! As zebras e as gazelas andam arredias e ariscas e nem coelho conseguimos filar. _ Que havemos de fazer, meu pai? _ vais espalhar a notícia da minha morte e convidar todos os animais para o velório. Quando cá os pilharmos, vamos fazer um banquete à antiga a armazenar para o futuro. A notícia espalhou-se como fogo na savana. Os animais nem queriam acreditar em tamanha sorte. Iam finalmente poder pastar nas redondezas sem receio de Nebr. O entusiasmo foi tal que correram para casa do leopardo para confirmarem a morte de seu temível rei. Lá chegados, encontraram Chabil, enlutado, à porta. _ Agradeço a vossa presença. Porém, tenho de pedir-lhes que não entrem todos ao mesmo tempo. Embora espaçosa, a casa não permite tal enchente. Os que não couberem agora podem regressar lá mais para o fim da tarde. Assim foi. Um grupo entrou imediatamente e os restantes foram à sua vida até serem horas de regressar ali. Logo que os apanhou lá dentro, Chabil fechou as portas da casa. Nebr levantou-se do leito e matou-os a todos, comendo o que pode e armazenando o que não conseguiu devorar. Ao entardecer, o segundo grupo, de que faziam parte uma gazela e um porco-espinho, pôs-se a caminho do velório.


Enquanto caminhavam, disse a gazela: _ Que será feito dos outros? Já repararam que não mais os vimos? _ Agora que falas, também acho estranho. Já lá estão há tantas horas? _ admirou-se o porco-espinho. _ O seguro morreu de velho _ disse a gazela que era muito cautelosa. _ Vamos tomar precauções. Tu, que és couraçado, entras primeiro, vais até junto do rei e espetas-lhe um espinho. Se as coisas derem para o torto, como és pequeno, hás-de encontrar um buraco onde te escondas. Nós só entraremos depois de teremos a confirmação. Assim foi. O porco-espinho foi adiante. _ Vens sozinho? _ perguntou-lhe Chabil, surpreendido, ao vê-lo chegar sem os companheiros. _ Que queres? Já não há respeito! A gazela e os outros deram com umas ervas menos secas e lá ficaram a retouçar. Se não te importas, vou entrando. Mal posso esperar para prestar os respeitos a sua alteza. Como a preza era pequena e picante, Nebr deixou-se ficar como morto, esperando pelos companheiros do porco-espinho, para proceder à matança. _ O porco-espinho baixou a cabeça e começou a rezar. Depois, receoso, à socapa, espetou um dos seus espinhos nos quartos traseiros do leopardo. Fê-lo a medo e com pouca força. _ “Menos mal” _ pensou o leopardo cheio de coragem. _ “Enquanto for assim, aguento-me no papel de morto. Diacho de animalzinho desconfiado!” A falta de reação convenceu o porco-espinho da morte do seu suserano e, já mais afoito, repetiu a operação com energia duplicada. Junto à casa, a gazela e os outros espreitavam por uma fresta na parede. O espinho era aguçado e a força da espetadela arrancou um urro involuntário ao leopardo, que se levantou de um salto para castigar severamente o atrevimento do seu pequeno súbdito. Seguiu-se uma correria acompanhada de rugidos medonhos que revelavam claramente que ali ninguém estava morto. Enquanto fugiam, a gazela cantarolava: _ O leopardo é o rei da floresta pela força, mas não pela esperteza! MÉSSEDER, João Pedro e outro, Contos e Lendas de Portugal e do Mundo, adaptação e reconto, pág.15, Porto Editora (Texto adaptado Salete Valente


Há muitos e muitos anos, do outro lado do mundo, vivia num pântano um crocodilo. Como era já velho, faltava-lhe velocidade; raramente conseguia apanhar peixes para comer e, por isso, começava a sentir fome, fraqueza e desânimo. Saiu então do pântano e aventurou-se em terra, em busca de algum bicho que lhe matasse a fome. Mas o sol era ardente, o caminho longo e o crocodilo sentia-se sem forças para continuar. Cheio de fome e sozinho, pensou que acabaria ali os seus dias, imóvel como uma pedra. Até que passou um rapaz. Ao ver o pobre animal naquele estado, sentiu pena e resolveu ajudá-lo a arrastar-se até uma ribeira. Aí o crocodilo pode refrescar-se e alimentar-se um pouco. E, ao conversarem, percebeu que o sonho do rapaz era viajar e conhecer o mundo. Tão grato ficou o velho crocodilo que se ofereceu para levar o seu amigo às costas a passear pelas águas do rio e do mar. E assim atravessaram as ondas, dia e noite, noite e dia, rumo às terras onde nasce o sol. Mas um dia, já cansado, o crocodilo percebeu que não podia continuar. E como a fome de novo apertasse, não encontrou solução que não fosse comer o rapaz. Antes, porém, decidiu consultar outros animais, a fim de aliviar a consciência. E todos, da baleia ao macaco, o censuraram, fazendo-lhe ver como seria ingrato para quem o ajudara. Arrependido dos seus pensamentos, o crocodilo seguiu caminho, com o rapaz sempre às costas e sem perder o sol de vista. Quando as forças já o abandonavam, ainda pensou dar meia volta e regressar. Mas de repente, sentiu o corpo aumentar de tamanho e transformar-se em terra e em pedra. Rapidamente se converteu numa ilha verde, cheia de montes, florestas e rios. O rapaz caminhou então por aquela ilha e deu-lhe o nome Timor, que em língua malaia quer dizer Oriente. E é por isso que Timor tem a forma de um crocodilo. MÉSSEDER, João Pedro e outro, Contos e Lendas de Portugal e do Mundo, adaptação e reconto, pág.19, Porto Editora, 2009


Um rei já muito avançado em idade tinha três filhos. Os mais velhos eram maus, violentos, brutais até. Quanto ao mais novo, era bondoso, mas muito simples de espírito. Certo dia, o rei reuniu os três e disse-lhes: _ Garantiram-me que, a cinquenta léguas daqui, há um animal maravilhoso conhecido por melro branco. Este animal tem o poder de rejuvenescer aquele que o possuir. Como vedes, estou muito velho: se algum de vós puder trazer-me tal prodígio, estou disposto a recompensá-lo com a minha coroa. O primogénito pediu ao pai que o deixasse ir em busca do melro branco e declarou que não regressaria sem o ter encontrado. O rei ordenou que lhe dessem armas, um bom cavalo e dinheiro, e deixou-o partir. Após ter andado durante muito tempo, o jovem chegou a uma bela cidade onde reinava um rei bonacheirão e amigo do prazer. Bem acolhido pelos habitantes, ao verem-no possuidor de uma bolsa recheada de ouro, o príncipe não tardou a ser introduzido na corte. De maneira que, um ano depois da partida, não estava ainda de regresso. Vendo isto, o segundo filho do rei partiu à procura do famoso melro branco, levando também um belo cavalo, armas e ouro. Aconteceu-lhe o mesmo que ao irmão, a quem acabou por encontrar despojado de tudo. Apesar deste exemplo, gastou na mesma cidade tudo o que tinha, esquecendo o pai, a coroa e o melro branco. De modo que, um ano após a partida do segundo príncipe, o rei continuava sem notícias. Então, o filho mais novo disse ao pai: _ Senhor, se vós o permitirdes irei em busca do animal maravilhoso e, assim Deus me ajude, conto regressar dentro de três meses. Não tenho necessidade de armas nem de cavalos. Ordenai que me dêem algum dinheiro. À minha boa estrela entrego a incumbência de olhar pelo meu sucesso. Não sem alguma resistência, o rei deixou partir o seu último filho. Cinco dias após ter deixado o palácio do pai, o príncipe atravessava uma floresta, quando ouviu um grito de animal. Correr nessa direção e chegar junto de uma raposa presa numa armadilha foi, para ele, obra de um instante. Com pena do animal, o jovem príncipe libertou a raposa, que lhe agradeceu, dizendo: _ Escuta, salvaste-me a vida. O teu bom coração merece recompensa: colocome à tua disposição. Quando tiveres necessidade da minha assistência, dirás: “Raposa, raposa, salta montes e vales, preciso do teu socorro!” Ouvir-te-ei e nada poderá resistir-me. Sei que planeias apossar-te do melro branco. Ele está a duas léguas daqui, a cem passos da torre grande da cidade, numa gruta guardada por dois dragões. Para adormecer estes monstros, tomarás dezasseis pães de quatro libras e dois gansos. Ensoparás os pães em aguardente e irás junto da gruta lançar estas provisões aos dragões. Uma hora depois, o melro branco estará em teu poder. Corre e não percas tempo. Um último conselho: não prestes serviço a ninguém, antes de eu tornar a ver-te. Adeus! E desapareceu nas profundezas do bosque. Só, o príncipe continuou o seu caminho, e, em breve, chegou às portas da cidade, onde as suas vestes simples fizeram com que ninguém reparasse nele. Tendo ouvido uma trombeta numa rua vizinha, dirigiu-se para lá e deparou com uma multidão rodeando os guardas do rei. Anunciavam a execução, para a manhã seguinte, de dois príncipes estrangeiros, culpados de alta traição. O jovem não duvidou de que se tratava dos seus irmãos. Foi à procura dos pães, dos gansos e da aguardente e partiu em direção à


torre grande da cidade. Quando lá chegou, contou cem passos em frente e deparou com a gruta do melro branco. Um terrível odor a enxofre sufocou-o, mas, mesmo assim, aproximou-se e lanço aos dragões as provisões. Uma hora depois, o famoso melro branco estava na sua posse. Era uma ave gigantesca, cujas asas brilhavam como o sol. _ Que pretendes de mim? _ perguntou o melro. _ Fala, estou às tuas ordens. _ Queria, em primeiro lugar, o teu auxílio para libertar os meus irmãos que se encontram prisioneiros do rei. _ Seja, sobe para o meu pescoço e conduzir-te-ei a eles. Dizendo isto, o melro fez-se tão pequeno que não parecia maior do que um galo. O príncipe montou este corcel e em breve se achou junto dos irmãos, arrebatando-os mesmo debaixo do nariz dos guardas assombrados. Não obstante o bom serviço que o irmão mais novo acabava de lhes prestar, os dois príncipes, assim que se viram em liberdade, não pensaram senão em apoderar-se do animal maravilhoso. _ Viste _ disse um apontando _ o belo veio de ouro lá em baixo, no vale? _ Não, não reparei nele _ respondeu o mais novo. _ Aproximemo-nos então para o vermos. E os três irmãos, montados no melro, abeiraram-se de um buraco. Quando o mais novo se inclinava para observar melhor, foi empurrado pelos irmãos e caiu dentro da mina. Assim que veio a si, lembrou-se da raposa e pôs-se a gritar: _ Raposa, raposa, salta montes e vales, preciso do teu socorro! Mal estas palavras tinham sido pronunciadas, já a raposa estava junto dele e, lambendo-lhe as feridas provocadas pela queda, curou-o por completo. _ Agora que te vejo curado _ disse a raposa _, tens de sair do buraco. Segura-te à cauda e eu elevar-te-ei. Não a largues, agarra-te bem que vou subir. E a raposa subiu, arrastando consigo o príncipe. Estavam prestes a atingir a borda do buraco, quando o príncipe, exausto, se soltou e caiu uma vez mais no fundo da mina. A raposa voltou atrás, reanimou-o e obrigou-o a recomeçar a ascensão do subterrâneo. Desta vez, o rapaz chegou, sem mais incidentes, a terra firme. Depois de agradecer à raposa, o jovem príncipe dirigiu-se para o palácio do pai. Antes de chegar, vestiu a roupa de criado de quinta e pintou a cara. No palácio, ninguém o reconheceu, devido ao disfarce. Foi pedir ao rei que o nomeasse guarda do melro branco, que os irmãos haviam apresentado como conquista sua. E foi aceite. Soube que o melro branco declarara ao rei que o não rejuvenesceria, a menos que lhe trouxessem aquele que o havia conquistado aos dragões. Os dois príncipes, porém, tinham declarado ao pai que eles mesmos se haviam apoderado do animal, e que era apenas para se vingar que o melro branco afirmava não serem eles os autores da proeza. Assim que o príncipe mais novo entrou na sala onde se encontrava o melro branco, reparou que a ave se baixava a fazer-lhe sinal para que montasse no seu pescoço. O jovem obedeceu de imediato. Um segundo depois, estavam ambos no salão do rei, a quem denunciaram as maldades dos dois príncipes. Indignado e dominado pela cólera, o rei expulsou os filhos mais velhos do palácio. Em seguida, tomando a coroa, deu-a ao príncipe mais novo. No instante seguinte, o velho rei tornava-se de novo jovem graças ao famoso melro branco. MÉSSEDER, João Pedro e outro, Contos e Lendas de Portugal e do Mundo, adaptação e reconto, pág.15, Porto Editora (Texto adaptado Salete Valente)


Esta história passou-se há muitos e muitos séculos, muito antes ainda de Portugal existir. Corria o ano de 44 e a Península Ibérica era parte do Império Romano. Uma multidão festejava as bodas do ilustre Caio Carpo, não longe do local onde hoje fica a cidade de Matosinhos. A sua noiva era Cláudia, uma linda rapariga nascida em Gaia, da família de um pretor romano. Gente rica. A música animava, bebia-se, comia-se, bailava-se e alguns cavaleiros exercitava-se com as armas. No calor da festa, Caio Carpo decidiu montar no seu belo cavalo branco e entrar de rompante pelo mar dentro, mostrando a força e destreza de que era capaz. Mas o cavalo não abrandou o galope, cortava as ondas, como que atraído por uma embarcação que passava ao largo. E tão longe se aventurou que o perderam de vista os que na parai admiravam o prodígio. O coração de Cláudia bateu mais rápido, embora soubesse o noivo capaz das maiores façanhas. Cavalgando já por baixo de água, Caio viu-se de repente coberto de vieiras. Mesmo assim conseguiu vir à superfície e aproximou-se da embarcação. _ Quem sois e de onde vindes? _ perguntou em alta voz. Dois homens responderam humildemente: _ Atanásio e Teodoro, meu senhor. Vimos da longínqua cidade de Jaffa. Caio Carpo subira, entretanto, a bordo.

_ E que missão, estrangeiros, vos leva a cruzar estes mares? _ Meu senhor _ respondeu um deles _, transportamos para norte o cadáver do apóstolo Santiago, que na Palestina sofreu os maiores tormentos por amor de Jesus e da nossa santa religião. Milagrosamente, apenas demorámos sete dias a chegar a estas paragens. Assombrado com tal prova de coragem e dedicação ao santo, Caio quis conhecer o Deus que levava aqueles estrangeiros a enfrentar tão dura e perigosa viagem. E, ao escutá-los, logo ali se converteu à fé cristã e recebeu o baptismo. Quanto aos amigos do santo, prosseguiram viagem, levando o cavaleiro na lembrança. Sabiam que, daí em diante, a conha da vieira seria um sinal dos homens que fossem ao encontro de Santiago. Regressado, como por um milagre, à praia de Matosinhos, Caio Carpo contou a aventura á noiva e aos convidados. Tão espantoso foi o caso para todos quantos haviam presenciado a partida e regresso do cavaleiro, e tão abismados ficaram ao escutarem a sua narrativa, que não tardou que a notícia se espalhasse por aquelas terras e que todos quisessem conhecer aquela estranha fé. Ainda hoje, na Galiza, onde muitos vão venerar o apóstolo aí sepultado, a concha da vieira continua a ser o seu símbolo. MÉSSEDER, João Pedro e outro, Contos e Lendas de Portugal e do Mundo, adaptação e reconto, pág.15, Porto Editora (Texto adaptado, Salete Valente)


Dois amigos viajavam pelo deserto, caminhando em amena conversa, apesar do Sol abrasador. Um deles, porém, sentindo-se contrariado pelo outro, encetou uma discussão. Erguia a voz, gesticulava e pouco faltou para insultar o companheiro. Em dado momento da contenda, não resistiu e esbofeteou-o. Admirado e ofendido, mas sem nada dizer, o amigo baixou-se e escreveu na areia: Hoje, o meu amigo bateu-me no rosto. Seguiram viagem, tristes e em silêncio. Absortos nos seus pensamentos, fixavam os olhos num ondulante horizonte de dunas e já caminhavam com dificuldades sob o ardor do sol. Até que avistaram um oásis verde, emergindo da areia escaldante do deserto. Mais aliviados à sombra das tamareiras, resolveram banharse, comer e pernoitar no local. Afastou-se um para recolher galhos com que pretendia acender um pequeno fogo. E o que tinha sido esbofeteado despiu-se, mergulhou na lagoa do oásis e principiou a refrescar-se. Contudo, passados minutos, perdeu o pé. E em breve se afogaria, não fosse a ajuda do amigo que, ao escutar os gritos, largou tudo e acorreu ao chamamento, mergulhando na lagoa e arrastando o companheiro para a margem. Quando, ao fim de algum tempo, este se sentiu recuperado, pegou num estilete, dirigiu-se a uma pedra e nela escreveu: Hoje, o meu melhor amigo salvou-me a vida. Intrigado, o outro perguntou: _ Porque é que, depois de te bater, escreveste na areia, e agora, que te salvei, foste escrever na pedra? A sorrir, o primeiro respondeu: _ quando um grande amigo nos ofende, devemos escrever na areia, onde o vento do esquecimento e do perdão se encarrega de apagar as palavras. Quando, porém, faz por nós alguma coisa de verdadeiramente nobre, ah…aí devemos gravar as palavras que o recordam na pedra da memória e do coração, onde nenhum vento do mundo as poderá apagar. E assim se acharam reconciliados. E comeram, beberam e conversaram alegremente. Depois puseram-se a contemplar a Lua e as estrelas até o cansaço os vencer. E mergulharam, por fim, num sono profundo e retemperador. MÉSSEDER, João Pedro e outro, Contos e Lendas de Portugal e do Mundo, adaptação e reconto, pág.15, Porto Editora.


Numa tarde de Inverno, a mulher do coveiro estava sentada junto da lareira, com Old Tom, o seu grande gato preto, ao lado, à espera, semi-adormecidos, de que o dono da casa regressasse. Por fim, entrou precipitadamente e bradou: - Quem é Tommy Tildrum? Estava tão enervado, que a mulher e o gato o olharam fixamente, empenhados em averiguar o que tinha. - Que te aconteceu? - inquiriu ela. - Porque estás tão interessado nisso? - Devias ter visto o que me sucedeu! Preparava-me para abrir a sepultura do velho Fordyce e creio que adormeci. O caso é que acordei ao ouvir o miar de um gato. - Miau - fez Old Tom. - Sim, exactamente desse modo! Espreitei por cima da sepultura, e que te parece que vi? - Como queres que o saiba? - replicou a esposa. - Imagina nove gatos pretos, todos iguais ao nosso Old Tom, com uma mancha branca no peito. E que achas que transportavam? Uma pequena urna, com uma mortalha de veludo preto por cima, e, sobre ela, uma coroa de ouro, enquanto, a cada passo que davam, gritavam em coro: "Miau!" -Miau! - ecoou Old Tom. - Sim, exactamente desse modo! - afirmou o coveiro. - A medida que se aproximavam, pude vê-los melhor, pois os olhos emitiam um clarão verde e fixavam-se em mim. Oito deles transportavam a urna, precedidos pelo maior, que caminhava com uma dignidade impressionante... Repara como o nosso Old Tom me olha! Até parece que entende tudo o que digo. - Continua, continua - urgiu a mulher. - Não te preocupes com ele. - Como dizia, avançavam com lentidão e aprumo, continuando a gritar "Miau!" a cada passo que davam. - Miau! - tornou a repetir Old Tom. - Sim, exactamente nesse tom, até que chegaram ao local, colocaram-se em volta da sepultura de Fordyce, mesmo diante de mim, e ficaram a olhar-me em silêncio... Mas repara no Old Tom, que não afasta a vista de mim, como eles! - Continua, continua - estimulou a mulher. - Não te preocupes com ele. - Onde é que ia?... Ah, já sei! Olhavam-me todos fixamente. Por fim, o que vinha à frente adiantou-se um passo e, em voz débil, juro-te que isto é verdade, disse-me: "Comunica a Tom Tildrum que Tim Toldrum morreu." Foi por isso que te perguntei se sabias quem era Tom Tildrum. De contrário, como lhe posso comunicar que Tim Toldrum morreu? - Repara no Old Tom! - exclamou a mulher. Ficaram ambos embasbacados, quando o gato arqueou o corpo, eriçou o pelo e bradou: - O velho Tim morreu? Então, passei a ser o rei dos gatos! E escapou-se velozmente pela chaminé, para não tornar a ser visto.


Era uma vez um valoroso cigano chamado Calo Dan que matara um dragão e salvara uma princesa que era sua prisioneira. Como recompensa, o rei dera-lhe uma arca cheia de moedas de ouro, fazendo dele um homem muito rico. Um dia, a mãe chamou-o e disse-lhe: _ Meu filho, tens muito dinheiro, mas um homem só é rico quando tem uma família. Está na hora de procurares uma boa rapariga que queira casar contigo. Se aqui nenhuma te agrada, faz-te ao caminho e procura em todos os acampamentos ciganos. Não precisa de ser rica, assegura-te antes que seja boa rapariga. Calo assim fez. Procurou montes e vales, visitou aldeias e acampamentos, mas não havia meio de encontrar uma rapariga que lhe agradasse. Já cansado daquela vida errante, decidiu que a aldeia seguinte seria a última que visitaria. Perdera a fé, mas não queria desistir antes de ter chegado ao limite das suas forças. Nesse último dia, levantou-se ao raiar da aurora, enrolou a manta que o aquecera durante a noite e avançou na direção de um pequeno povoado que, visto de longe, mais parecia um pontinho perdido no horizonte. À medida que se aproximava, reparou que nunca antes visitara um acampamento tão pobre como aquele. Aproximou-se da tenda e ficou espantado ao ver a delicada beleza de uma rapariga. Era uma linda cigana de olhos negros como o carvão e longos cabelos ondulados que lhe desciam até à cintura. A rapariga estava a pôr a mesa, quando se voltou e viu Calo. Deu meia volta, entrou na tenda e desapareceu na escuridão. Calo chamou-a e foi atrás dela. Nesse momento, saiu de la de dentro uma galinha negra a correr. Calo continuou à procura da rapariga, mas ela desaparecera como por encanto. Passado algum tempo, um homem e uma mulher aproximaram-se da barraca e, ao verem Calo ali especado, saudaram-no e convidaram-no para almoçar. Enquanto comiam o belo cozido que a mulher servira, Calo encheu-se de coragem e perguntou: _A vossa filha não janta connosco? _ Filha? _ espantaram-se eles. _ Não temos filha nenhuma! Calo insistiu: _ Quem era então aquela bela moça que punha a mesa quando cheguei? Responderam-lhe que não sabiam a quem ele se referia e, temendo que pensassem que era maluco, Caio mudou de assunto. A conversa prolongou-se pela tarde fora e, ao entardecer, o casal convidou Calo a passar ali a noite. Este aceitou, por um lado, para agradecer a hospitalidade do casal e, por outro, porque sabia bem o que vira e queria descobrir o mistério que rodeava a bela rapariga. À noite acenderam uma fogueira e ali ficaram contando histórias, tocando e cantando. A certa altura, já cansados, recolheram-se. O casal depressa adormeceu, mas Calo não conseguia dormir. De repente, ouviu um barulho que vinha do exterior. Sem fazer ruído, levantou-se e avançou até à entrada da tenda. Para sua alegria, ali estava de novo a moça, a comer o que sobrara do almoço deles. Cheio de felicidade, Calo acercou-se dela e agarrou-lhe na mão. _ Largue-me _ implorou a rapariga. Porém, sem a largar, Calo pediu-a em casamento. _ Não posso aceitar o seu pedido _ respondeu ela com uma expressão de tristeza nos seus olhos. _ Não podes ou não queres? _ perguntou Calo inconformado com a resposta. A rapariga explicou-lhe que era vítima de uma maldição imposta por um feiticeiro que a pedira em casamento e que ela rejeitara. MÉSSEDER, João Pedro e outro, Contos e Lendas de Portugal e do Mundo, adaptação e reconto, pág.43-47, Porto Editora


_ O feitiço _ explicou ela _ faz com que eu só tenha a forma humana ao meio-dia e à meia-noite e só durante uma hora. O resto do tempo sou uma galinha negra. O feitiço só se quebrará no dia em que um homem bom me levar ao altar na forma de galinha. _ Eu farei isso! _ exclamou Calo enamorado. A noite passou e, na manhã seguinte, Calo comprou a galinha ao casal. De regresso à sua terra, antes mesmo de cumprimentar a mãe, Calo foi à igreja e pediu ao padre que o casasse com a galinha negra. A princípio, o padre pensou que o rapaz estava maluco, mas ao ver a sua insistência, acabou por marcar o casamento para daí a três dias. Quando Calo chegou a casa e apresentou a noiva à mãe, esta começou a chorar e a lamenta-se: _ Ai o meu pobre filho! Para que o mandei partir? Tanto andou que enlouqueceu! Pois não vês tu, meu filho, que a tua noiva é uma galinha? Onde já se viu tal coisa! De nada adiantaram os protestos e rogos da mãe nem a troça dos vizinhos. Calo estava decidido e, nos três dias seguintes, teve o cuidado de nunca perder a noiva de vista, não fosse a mãe cozinhá-la de cabidela. No dia da boda, toda a gente se foi plantar diante da igreja. Ninguém queria perder a cerimónia. À hora marcada, lá veio Calo com a galinha debaixo do braço. O povo tanto ria que o padre teve de intervir para restabelecer o silêncio. A cerimónia começou e, quando o padre perguntou a Calo se este aceitava a galinha como sua esposa e o rapaz respondeu que sim, a galinha transformou-se na bela rapariga. Toda a gente ficou de boca aberta, compreendendo que se tratava de um casamento de amor. Os festejos prolongaram-se por uma semana com cantos, danças, histórias e grandes banquetes. E Calo e a noiva viveram felizes para sempre.

MÉSSEDER, João Pedro e outro, Contos e Lendas de Portugal e do Mundo, adaptação e reconto, pág.43-47, Porto Editora


Conto tradicional da Galiza

Em tempos que já lá vão, havia um homem muito rico que tinha três filhos. Um dia, sentido que a morte se aproximava, chamou-os. _A minha hora está a chegar, meus filhos. Toda a vida trabalhei de sol a sol, ao calor e ao frio, com saúde e doente, com vontade e sem ela. Apesar disso, morro tão pobre como nasci. De mim fica, as lembranças e esta manta pequena e velha. Dividam-na como puderem. Finou-se o pai e os irmãos continuaram a trabalhar e a viver juntos. Até que chegaram os primeiros frios de outono. Certa noite, os rapazes foram-se deitar e cobriram-se os três com a manta. Como esta era pequena e mal chegava para os três, passaram a noite puxa para aqui, puxa para ali. Então o mais velho decidiu enganar o mais novo e, de manhã, foi ter com ele e propôs-lhe que lhe vendesse a sua parte da manta. _ Vendo, sim senhor. Só ponho uma condição. Todos os dias me hei de deitar entre vocês os dois. _ Negócio fechado! _ exclamou o mais velho que só queria, aos poucos tornar-se no único proprietário da herança paterna. E logo ali chegaram a acordo. À noite foram-se deitar e, como combinado, o mais novo deitou-se entre os irmãos. Ao fim de pouco tempo, os das pontas começaram a puxar pela manta. O mais novo, muito encolhido entre os dois, limitava-se a dizer: _ Coitadinho do que vende que não puxa nem estende! Coitadinho do que vende que não puxa nem entende! MÉSSEDER, João Pedro e outro, Contos e Lendas de Portugal e do Mundo, adaptação e reconto, pág.51, Porto Editora


Hans entrou em casa com uma braçada de lenha e foi empilhá-la ao canto da lareira. Estava cheio de frio mas as chamas não o podiam aquecer porque o gelo se acumulara no seu coração. O pai tinha partido para a guerra nessa mesma tarde. Decidira seguir Napoleão, alistar-se no exército francês. Ele bem queria não pensar nisso, mas tudo naquela sala lhe lembrava o pai. Cabisbaixo, foi buscar o banco de madeira onde costumava sentar-se à espera da ceia. A avó interpelou-o num tom bastante ríspido: _ preciso que vás buscar água ao poço. Traz-me o balde maior. _ Ele olhou-a surpreendido. O balde maior era enorme, não tinha forças para o transportar. Como se lhe tivesse lido os pensamentos, a mãe interveio: _ agora és tu o homem da casa… A frase cravara-se-lhe no peito como uma punhalada. “O homem da casa? Mas só tenho oito anos!” No entanto era assim mesmo. Na família só havia mulheres: a avó, a mãe, a irmã. E todas olhavam para ele na esperança que as ajudasse a vencer a miséria. Para ganhar a vida começou por trabalhar numa fábrica de onde foi despedido pouco depois por não ter jeito nenhum. O emprego seguinte também não lhe agradou nada: aprendiz numa loja de alfaiate. A responsabilidade excessiva que pesava nos seus ombros encheu-lhe a alma de melancolia. Nas horas vagas, em vez de brincar com os rapazes da mesma idade, refugiava-se num canto a ler e escrever poemas. Certo dia, porém, teve um encontro muito animador com uma mulher que todos consultavam para saber o futuro porque tinha fama de adivinha. Hans cruzou-se com ela à saída da igreja e, para seu espanto, a feiticeira segurou-lhe por um braço com ar entusiasmadíssimo:


_ Hans, quando fores muito famoso, não te esqueças de mim! _ famoso, eu? _ Sim. Vejo nos teus olhos a glória, a riqueza e a fama. E pegando-lhe nas mãos pôs-se a estudar as linhas que riscam a pele, como se lesse num livro. _ Eh! O que para aqui vai de sucesso! Tanta coisa boa, meu filho. Ele nunca mais sossegou, ansioso por ir em busca do tal destino magnífico que a velha anunciara. E insistira com a mãe: _ Deixe-me ir para a capital. Deixe-me ir para Copenhaga. Para vencer na vida tenho que sair daqui. A mãe hesitava. A avó achava um disparate. A irmã riase. Mas a velha convenceu-as e o rapaz partiu. Nessa altura tinha catorze anos e o coração cheio de ilusões. Talvez julgasse que tudo seria logo fácil e grandioso. Os primeiros tempos em Copenhaga, no entanto, foram difíceis. Só arranjava trabalhos mal pagos, ninguém ligava à sua poesia, chegou mesmo a passar fome. Como fazia pequenos serviços num teatro, convenceu-se que a sua grande oportunidade era no palco. Tanto se esforçou que conseguiu obter um papel secundário. Mas não era esse o seu caminho. Nas vésperas da primeira audição ficou doente e perdeu a voz. Triste e acabrunhado, mergulhou de novo nos poemas. Lindos poemas! Assim que foram publicados num jornal. Dois poetas famosos e um homem importante chamado Jonas Collin interessaram-se por ele e decidiram recomendálo ao rei e pagar-lhes os estudos. Mandaram-no para um dos melhores colégios da Dinamarca. Hans não desiludiu os seus protetores. Pouco depois, escreveu uma história cómica com tanto êxito que nunca mais lhe faltaram editores. Seguiramse livros de poemas, peças de teatro, romances. A feiticeira tinha razão. Hans foi um homem famoso, rico e admirado por todos. MAGALHÃES, Ana Maria e Isabel Alçada, Histórias e Lendas da Europa, pág. 40-42, 3ª ed., Editorial


Dédalo era um homem diferente dos outros. Tinha ideias diferentes. Quando havia um problema complicado para resolver ele pensava, pensava, acabando por descobrir uma solução que a todos parecia única e evidente. As pessoas, admiradas, exclamavam: _ Como é que nunca ninguém se lembrou disto? Afinal era tão simples! Foi por isso que o rei Minos, senhor da ilha de Creta, resolveu chamá-lo para lhe encomendar um serviço especial. A rainha Pasifae, sua mulher, tinha-se apaixonado por um touro. Desses amores nasceu um monstro, que era homem da cintura para baixo e touro da cintura para cima. Deram-lhe o nome de Minotauro. Provavelmente, o rei teria gostado de o matar e esquecer o assunto, mas não teve coragem, pois aquele monstro era seu enteado. Que fazer? Chamou então o famoso Dédalo e pediu-lhe que imaginasse uma prisão onde fosse impossível escapar. Dédalo, homem que não se encantava com soluções fáceis, concebeu, então, um labirinto, ou seja, um mundo de caminhos que se cruzavam e entrecruzavam, de modo que quem lá entrasse nunca mais saía. O Minotauro foi encerrado no labirinto. Mas alimentá-lo é que não foi fácil, posto que exigia muita carne humana. O rei, decidido a não sacrificar os súbditos aos apetites do enteado, exigiu à cidade de Atenas um tributo pavoroso: de nove em nove anos, tinham que enviar sete raparigas e sete rapazes para saciar o Minotauro. Caso falhassem, invadia Atenas, facto que causava tristeza e muito choro para os atenienses. Certo dia, porém, entre os rapazes escolhidos partiu o filho do rei de Atenas, que era belo como um sol. Chama-se Teseu, a quem o povo considerava um herói. Teseu jurara ao pai, em grande segredo, que havia de matar o monstro devorador de gente… E a sorte sorriu a Teseu porque, quando as vítimas desfilavam perante os habitantes de Creta, a filha do rei, Ariadna, apaixonou-se por ele. Desesperada, Ariadna procurou Dédalo e pediu-lhe por tudo que o salvasse. Mais uma vez o arquitecto encontrou uma solução tão simples que Ariadna não resistiu a comentar: _ Como é que ninguém se lembrou disto? De facto, o instrumento que permitia fugir do labirinto não tinha nada de misterioso. Era um simples novelo. Teseu devia atar uma ponta à entrada e ir desenrolando o fio pelo caminho. Quando quisesse voltar para trás, já não se perdia. O rapaz assim fez. Seguro de que não ficaria para sempre naqueles caminhos cruzados, foi em busca do Minotauro. A sorte sorriu-lhe! O monstro estava a dormir. Teseu matou-o, salvou os companheiros, saiu do labirinto e, levando consigo Ariadna, embarcou para Atenas. (…) MAGALHÃES, Ana Maria e Isabel Alçada, Histórias e Lendas da Europa, pág. 66-68, 3ª ed., Editorial Caminho, 1992 (Texto com supressões e adaptado, Salete Valente)


No antigo reino de Qi havia uma vez um homem que tinha uma sede insaciável de ouro. Infelizmente, ele era muito pobre e o seu trabalho não lhe permitia obter grandes riquezas. Ele só contava com o suficiente para sobreviver. Mesmo assim, vivia completamente fascinado pela ideia de obter ouro. Este homem sabia que no mercado havia vários mercadores que colocavam lindas figuras de ouro nas suas bancas de vendas. Tais objetos repousavam num lindo manto de veludo. Os homens ricos da cidade iam ali e pegavam-nos nas suas mãos para observá-los. Às vezes compravam e às vezes não. O homem da nossa história inventou um plano para se apoderar de uma daquelas figuras que brilhavam ao sol. Assim, um dia ele colocou as suas melhores roupas e os seus melhores ornamentos. Então, foi ao mercado e fingiu observar as peças de ouro. Depois, sem pensar duas vezes, pegou uma delas e saiu correndo. Não havia avançado mais de duas ruas quando foi apanhado. Os guardas perguntaram-lhe como ele pensara em roubar o ouro assim, em plena luz do dia e com centenas de testemunhas à sua volta. O homem respondeu que não havia pensado em nada disso. Só pensou no ouro e não viu mais nada. Esta é uma das fábulas chinesas sobre a cegueira que acompanha a ganância. Adaptado de https://amenteemaravilhosa.com.br/3-belas-fabulas-chinesas/


Shakra, rei dos deuses, ergueu-se do seu trono dourado e observou a Terra com atenção. Havia oceanos reluzentes e nuvens como pérolas, montanhas com cumes de neve e continentes de muitas cores. Embora tudo fosse belo, Shakra sentiu uma certa apreensão. Os seus sentidos luminosos expandiram-se pelos céus. Sentiu o calor da guerra. Ouviu o balir dos vitelos, o ladrar dos cães, o grasnar dos corvos. Ouviu crianças a chorarem e vozes a gritarem de raiva. Ouviu o choro dos esfomeados, dos sós, dos pobres. As lágrimas rolaram-lhe pela cara abaixo e caíram sobre a terra como aguaceiros de meteoros. — É preciso fazer alguma coisa! — disse Shakra. Metamorfoseou-se num guarda-florestal e levou consigo um grande arco em osso. A seu lado caminhava um grande cão preto. O pelo do cão era emaranhado, os olhos brilhavam como fogo incandescente, os dentes mais pareciam presas, e a boca e língua pendente eram da cor do sangue. Shakra e o cão deram um salto e mergulharam em direcção à Terra por entre as estrelas brilhantes. Por fim, aterraram mesmo ao lado de uma cidade esplêndida. — Quem és tu, forasteiro? — perguntou, admirado, um soldado, do alto das muralhas da cidade. — Sou estrangeiro nestas paragens e este — disse, apontando o animal com um gesto — é o meu cão. O cão preto abriu as mandíbulas. O soldado que estava de guarda às muralhas ficou aterrado. Foi como se estivesse a olhar para um enorme caldeirão de fogo e de sangue. A garganta do cão emanava fumo. As mandíbulas do cão abriram-se ainda mais e mais… — Fechem os portões! — ordenou o soldado. — Fechem-nos imediatamente! Mas Shakra e o cão conseguiram saltar os portões cerrados. Os habitantes da cidade fugiram em todas as direcções, como se fossem marés a subir ao longo de uma praia. O cão foi no seu encalço, juntando as pessoas como se fossem um rebanho de ovelhas. Homens, mulheres e crianças gritavam, aterrorizados. — Parem! — gritou Shakra. — Não se mexam! As pessoas imobilizaram-se. — O meu cão tem fome. O meu cão tem de ser alimentado. O rei da cidade, a tremer de medo, ordenou: — Rápido! Tragam comida para o cão! Imediatamente! Em breve, carroças chegavam ao mercado carregadas de carne, pão, milho, frutos e cereais. O cão engoliu tudo de uma só vez. — O meu cão precisa de mais comida! — exclamou Shakra. As carroças voltaram de novo, carregadas. E o cão voltou a devorar tudo de uma assentada. Depois soltou um grito de angústia, um grito que parecia emanar das profundezas do Inferno. As pessoas caíram por terra e taparam os ouvidos, aterradas. Shakra, o forasteiro, fez soar a corda do seu arco, que fez um ruído semelhante ao ribombar do trovão numa noite de tempestade. — O meu cão ainda tem fome! — Dêem-lhe de comer! O rei contorceu as mãos e pôs-se a chorar. — Já lhe demos tudo o que tínhamos. Não temos mais! — Sendo assim, o meu cão alimentar-se-á de pastos e montanhas, de pássaros e animais ferozes. Devorará as rochas e mastigará o sol e a lua. O meu cão alimentar-se-á de vós! — Não! — gritaram as pessoas. — Tem misericórdia de nós! Rogamos-te que nos poupes! Poupa o nosso mundo! — Então acabem com a guerra — disse Shakra. Alimentem os pobres. Cuidem dos doentes, dos sem-abrigo, dos órfãos, dos velhos. Ensinem a bondade e a coragem às vossas crianças. Respeitem a terra e todas as suas criaturas. Só assim açaimarei o meu cão. Shakra transformou-se num gigante, resplandecente de luz. Ele e o cão deram um salto e, numa espiral de fumo, subiram cada vez mais alto. Lá em baixo, nas ruas da cidade, homens e mulheres olhavam o céu consternados. Estenderam as mãos uns para os outros e prometeram mudar as suas vidas, fazer o que o forasteiro lhes tinha ordenado que fizessem. Bem lá de cima, Shakra sorriu no seu trono dourado, ao olhar para a terra. Limpou a testa com um braço resplandecente. As inúmeras estrelas cintilavam, fulgentes, e a escuridão dormitava entre elas, tal como um cão junto de uma fogueira. Margaret Read MacDonald Peace Tales Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005


Há muito tempo, quatro seres gigantes chegaram à Austrália, numa área conhecida como Stony Rises, ao sul do Lago Condah. Eles foram enviados por Prenheal (o Grande Espírito Criador, uma espécie de deus supremo) para construir as paisagens do local. Três deles assumiram a forma de humanos e partiram para norte e oeste, tornando-se os primeiros de uma linhagem semidivina que, segundo a lenda, existe até hoje (os Gunditjmara conferem estatuto especial aos descendentes desses primeiros homens). O quarto gigante ficou pelo sul. Lá, ele se agachou e o seu enorme corpo deu origem a dois vulcões: o Tappoc (conhecido pelos ocidentais como Monte Napier) e o Budj Bim (ou Monte Eccles). Segundo a lenda, as rochas vulcânicas e a lava libertadas por esses vulcões seriam os dentes carbonizados do gigante. Lenda aborígene pode ser história mais antiga conhecida pela humanidade https://super.abril.com.br/historia/lenda-aborigene-pode-ser-historia-mais-antigaconhecida-pela-humanidade/ Adaptação _ Anabela Quelhas


Uma história etíope mostra-nos um velho que, na altura de morrer, chama os seus três filhos e lhes diz: – Não posso dividir em três o que possuo. Isso deixaria muito poucos bens a cada um de vós. Decidi dar tudo o que tenho em herança ao que se mostrar o mais hábil, o mais inteligente. Ou seja: ao meu melhor filho. Pousei em cima da mesa uma moeda para cada um de vós. Pegai nelas. Aquele que, com a sua moeda, comprar com que encher o telheiro terá tudo. Partiram. O primeiro filho comprou palha, mas só conseguiu encher o palheiro até meia altura. O segundo filho comprou sacos de penas, mas também não conseguiu encher o telheiro. O terceiro filho – que ficou com a herança – comprou apenas um pequeno objeto. Era uma vela. Aguardou a noite, acendeu a vela e encheu o telheiro de luz. Carrièrre, Jean-Claude – Tertúlia de Mentirosos – Contos filosóficos do Mundo Inteiro. Lisboa: Editorial Teorema, 2000. ISBN: 972-695-389-8.


Um homem de extrema pobreza, que não tinha mais do que uma côdea de pão, aproximou-se da janela de uma cozinha e deixou embeber a sua côdea de pão no aroma requintado que subia dos fornos. Depois comeu-o. O cozinheiro, que o tinha observado, mandou dois ajudantes agarrá-lo e pediu o preço do cheiro. Como o infeliz não podia pagar, os outros preparavam‑se para o maltratar, quando ele pediu: – Algum de vós tem uma moeda? Que ma empreste por um momento. Emprestaram-lhe uma moeda. Ele atirou-a ao chão de mosaico e disse ao cozinheiro. Escuta este barulho. Estás pago. Carrièrre, Jean-Claude – Tertúlia de Mentirosos – Contos filosóficos do Mundo Inteiro. Lisboa: Editorial Teorema, 2000. ISBN: 972-695-389-8.


Um pupilo e o seu guru caminham lado a lado pelo campo. O pupilo aponta com o dedo uma árvore muito grande e pergunta: – Quantas folhas há naquela árvore? – Oitenta mil seiscentas e quarenta e seis – responde o guru sem hesitar. – Tens a certeza? – Se não acreditas, sobe à árvore e conta as folhas. Carrièrre, Jean-Claude – Tertúlia de Mentirosos – Contos filosóficos do Mundo Inteiro. Lisboa: Editorial Teorema, 2000. ISBN: 972-695-389-8.


Uma das mais belas histórias ditas de «loucos» é também uma das mais antigas. A sua origem exata é desconhecida. Contam-na na Índia e na Pérsia. Hoje, longos caminhos percorridos, tornou-se, no Ocidente, um número de palhaços. Passa-se de noite, numa rua, perto de um candeeiro de iluminação pública (no circo, o candeeiro é substituído por um círculo de luz no solo). Está um homem baixado, o nariz perto do chão, e parece procurar qualquer coisa. Passa outro homem que lhe pergunta: – Que procuras? – Procuro a minha chave. – Perdeste a tua chave? – Perdi. – E perdeste-a aqui? – Não. – Então, se a perdeste noutro sítio, porque a procuras aqui? – Porque aqui há luz. Carrièrre, Jean-Claude – Tertúlia de Mentirosos – Contos filosóficos do Mundo Inteiro. Lisboa: Editorial Teorema, 2000. ISBN: 972-695-389-8.


Certo dia, a boca, com ar vaidoso, perguntou: Embora o corpo seja um só, qual é o órgão mais importante? Os olhos responderam: O órgão mais importante somos nós: observamos o que se passa e vemos as coisas. Somos nós, porque ouvimos — disseram os ouvidos.

Estão enganados. Nós é que somos mais importantes porque agarramos as coisas, disseram as mãos. Mas o coração também tomou a palavra: Então e eu? Eu é que sou importante: faço funcionar todo o corpo! E eu trago em mim os alimentos! — interveio a barriga. Olha! Importante é aguentar todo o corpo como nós, as pernas, fazemos. Estavam nisto quando a mulher trouxe a massa, chamando-os para comer. Então os olhos viram a massa, o coração emocionou-se, a barriga esperou ficar farta, os ouvidos escutavam, as mãos podiam tirar bocados, as pernas andaram... mas a boca recusou comer. E continuou a recusar.

Por isso, todos os outros órgãos começaram a ficar sem forças... Então a boca voltou a perguntar: Afinal qual é o órgão mais importante no corpo? És tu boca, responderam todos em coro. Tu és o nosso rei! FONTE: "Eu conto, tu contas, ele conta... Estórias africanas", org. de Aldónio Gomes, 1999 http://www.terravista.pt/Bilene/4619/Conto5.html


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