Em nome de Saramago | 10ºD

Page 1

MICRO CONTOS A partir de excertos de obras de José Saramago

EM NOME DE SARAMAGO

"Sempre chegamos ao sítio onde nos esperam."

10ºD | AEMM


“Que seria de nós se não sonhássemos?” José Saramago

Os micro contos foram redigidos a várias mãos, na oficina de escrita: Em nome de Saramago, realizada na Semana da Leitura, em articulação com a disciplina de Português e a biblioteca escolar, no âmbito do projeto 100 anos, José Saramago. A partir de frases iniciais e outras de obras de José Saramago, os alunos deram asas à sua imaginação e sonharam as suas próprias estórias.


Obsessão “O sol mostra-se num dos cantos superiores do retângulo”, Clara acorda mais um dia fechada na cave de uma fábrica abandonada, onde a sua única visão era uma janela retangular muito pequena, onde só conseguia assistir ao nascer e ao pôr do sol. Tudo começou numa manhã de quarta-feira, parecia mais um dia normal na vida de Clara, até que, o seu admirador, Ruben, a encurralou a caminho da escola. Foi tudo tão rápido, Clara não sabia como reagir. Quando acordou, ficou em pânico, não tinha como contactar ninguém. Ruben não suportava vê-la com outras pessoas, queria-a só para ele. Depois de passarem 24 horas sem sinal de Clara, os seus pais estavam bastante preocupados e chamaram a polícia que não tinha ideia onde ela poderia estar. Mas os seus amigos próximos suspeitavam de Ruben, ele era muito obcecado por ela, tinha uma foto dela no fundo do telemóvel e estava sempre a persegui-la. A aula de educação física era a ocasião perfeita, Rodrigo, amigo de Clara, enquanto estavam todos distraídos na aula, vasculhou a mochila de Ruben, onde encontrou o seu diário, tinha lá as coordenadas da fábrica e a rotina de Clara, o que ela comia, as horas a que acordava, as horas que ia à casa de banho. Rodrigo ficou espantado com tudo que tinha lido, mas esperou até ao fim das aulas. Juntou-se a um grupo de colegas e invadiram a fábrica. Clara estava desnutrida e fraca. Apresentaram queixa de Ruben, que foi diagnosticado com esquizofrenia. Está neste momento hospitalizado. Clara encontra-se viva e a recuperar deste acontecimento traumático.

Joana Moreira & Bianca Ferreira, a partir da obra “O evangelho segundo Jesus Cristo”, de José Saramago


A Chuva "Desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se", realmente nesse dia, no silêncio da noite, os cães começaram a ladrar fortemente. O bairro todo acordou e veio à janela ver o que se estava a passar. Na verdade, não se via nada naquela escuridão, só cães a ladrar e a uivar. Durante a manhã, uma família saiu para levar os filhos à escola, estavam no transito e começaram a ouvir novamente os cães a ladrar. Aí o pai, Mike um cientista de uma empresa de investigação, soube que já não havia mais tempo. Apressou-se na fila, o tempo estava a acabar, deixaram o carro parado na estrada e a família começaram a fugir para a floresta. Ninguém se apercebera do que se estava a passar nem mesmo o resto da família. Na floresta, chegaram os quatro a um bunker, e entretanto começou a chover na cidade. O pai explica à filha mais velha e à mãe o que se estava a passar, uma chuva mortal estava a chegar à cidade, todas as pessoas que estivessem em contacto com a chuva iriam morrer. A família ficou extremamente preocupada, pois enquanto eles estavam naquele bunker, amigos, familiares e centenas de pessoas tinham ficado na rua sem nada saber, e porque é que o pai sabia do que se estava a passar? A verdade é que a lenda dos cães era verdadeira. João Nóbrega & Henrique Gomes, a partir da obra "A Jangada de Pedra", de José Saramago


Foi sem querer que vos quis "Veio andando devagar. Não tem ninguém à sua espera”, ouvindo o som das ondas do mar e enchendo-se de memórias. E, como toda a gente sabe, com as memórias vêm sempre os sentimentos de saudade e confusão. Vou tentar contar a história desde o início. Eu sou a Carol e considero-me uma adolescente "normal". Tudo começou este verão, quando conheci o meu maior pesadelo, também conhecido por Pedro. No início era só uma diversão, mas já não sei explicar o que sinto. Culpo a Margarida por me ter apresentado os dois irmãos, para vocês terem contexto. Um deles, o David, dava-me toda a atenção que eu procurava, mas, o outro, o Pedro, era mais frio, no entanto, mostrou-me um lado que nunca tinha revelado a ninguém e que me fez apaixonar perdidamente por ele. Apesar de preferir o Pedro, eu não queria deixar o David, a Margarida avisou-me sobre o Pedro, mas ela não o conhecia como eu, talvez ela tivesse razão, só que eu estava tão iludida que só conseguia acreditar nele. Neste momento, a única coisa que me vem à cabeça são eles, é como se complementassem, se os dois fossem somente uma pessoa, seriam o ser humano perfeito. Agora finalizando, talvez não queira nenhum. Todas as certezas que tinha foram desaparecendo e encontro-me a caminhar sem rumo, mas com esperança de que no fim desta praia haja alguém à minha espera. Ana Margarida Batista, Catarina Santos & Maria Oliveira, a partir da obra "Memorial do Convento", de José Saramago


A cor do céu Sempre chegamos ao sítio onde nos esperam. Era de madrugada, olhei pela janela e vi uma luz azul. Por algum motivo, senti algo estranho dentro de mim, aquela luz parecia chamar-me. Como ir atrás de uma luz era mais interessante que olhar para as paredes, peguei nas chaves do meu carro e fiz-me à estrada. Eu era novo na cidade, não sabia o destino de cada estrada, apenas confiei na misteriosa luz azul. Passado algum tempo na estrada, passei por um acidente, parecia grave, mas devido ao facto da ambulância ter chegado e sem falar da minha fobia ao sangue, decidi seguir caminho. Quando a luz azul estava a ficar cada vez mais perto, uma ambulância ultrapassa-me a uma velocidade absurda, assustei-me, olhei para cima e finalmente percebi que a luz azul vinha da torre do hospital. Vi uma miúda toda ensanguentada a sair da ambulância, mais uma vez, senti que tinha de ajudar. Descobri que era do acidente pelo qual passara há uns minutos atrás. Ela ficou órfã naquele acidente e precisava urgentemente de uma transfusão de sangue, a sua vida estava virada de pernas para o ar. Eu queria doar-lhe sangue e, mesmo sem saber se iria ser compatível, tentei a minha sorte. Como por milagre, o sangue era compatível e consegui salvar a rapariga. Já de manhã, recebi a notícia de que ela tinha acordado, fui a correr para o quarto e quando lá cheguei só pude reparar nos seus olhos azuis a sorrir para mim. Afonso Teixeira & Ana Vaz, a partir da obra A viagem do elefante, de José Saramago


Sagrados atos de heresia "Não é uma história de fantasmas, mas é uma história de outro mundo", ou talvez seja eu, aquele que não pertence a este mundo, aquele que muito antes de nascer já lhe fora negada a própria humanidade. Viver entre os homens comuns deveria ser pecado, para alguém como eu, um sínico monstro, uma mera praga da sociedade nascido em berço de ouro só para terminar completamente embriagado nas frias ruelas de Lisboa. Tenho um nome, mas ele perdera todo o significado a partir do momento em que te conheci, toda a minha identidade, todo o meu ser, toda a minha vil e pútrida existência tais partes insignificantes de mim mesmo devotei-as eu a ti. Beijei-te minha Olga, pela primeira vez numa cinzenta tarde de janeiro, os teus lábios eram quentes e, convidativos contrastando com o teu estado atual. Estás tão fria minha Olga, as tuas bochechas rosadas nas quais depositava eu todo o meu amar perderam a sua vitalidade, perderam a sua dor. Minha Olga, espero que sejas capaz de perdoar as minhas repugnantes atrocidades, só o fiz porque te amo. Só o fiz porque não te posso ter e uma parte animalesca da minha essência sente a necessidade de te possuir. Agora que olho para ti neste estado tão decadente, vejo o quão frágil realmente és. Ensanguentada e nua repousas nos meus braços como um recém-nascido nos seios de sua mãe. Um grito lânguido solta-se dos meus lábios "Deus, o que fui eu fazer?" Helena Rodrigues & Vítor Martins, a partir do conto “A aparição”, in Deste mundo e do outro, de José Saramago


Caminhos da Bila

- "Vila Real não é uma cidade afortunada" - disse o Manuel para o seu tio Luís. No dia seguinte, Luís para provar o contrário, levou o sobrinho a visitar a cidade. Nesse passeio levou-o até ao centro da cidade, onde comeram covilhetes, um dos petiscos típicos da região. Depois, dirigiram-se até ao Palácio de Mateus que é um monumento muito conhecido em Trás-osMontes e mostrou-lhe a beleza e um pouco da história de Vila Real. Depois disso, o Manuel ainda não se tinha mostrado completamente convencido. Então, Luís decidiu apresentar-lhe o parque Corgo, onde se encontraram com uns amigos e todos fizeram um piquenique. No final do dia, o Manuel agradeceu ao tio Luís por ele lhe ter dado a conhecer um pouco da bela cidade e disse-lhe que estava arrependido por ter dito que Vila Real não era afortunada, uma vez que nunca a tinha visitado. Cristina Penelas & Lara Matos, a partir da obra Viagem a Portugal, de José Saramago


O romance inesperado

"Era uma vez um homem que vivia fora dos muros da cidade." Joaquim era uma pessoa muito fluente, na cidade onde vivia, e com muitas posses. Tinha uma boa e desafogada vida, até que no dia 1 de setembro de 1939, a sua cidade foi invadida. A sua vida passou a ser marcada pelo caos que aterrorizava todos os seus dias. Com medo de morrer e de não ser mais livre, decidiu deixar a sua cidade e todos os seus bens materiais. Precisamente no dia 3, fez-se ao caminho, esperando encontrar uma boleia. Muitos quilómetros depois e já exausto, encontrou um autocarro. Mal entrou, deparou-se com imensos rostos, havendo um que se fez sobressair. Após algumas trocas de olhares, ganhou coragem e dirigiu-se a ela. - Olá, não pude deixar de reparar no teu rosto… tão diferente dos outros! - O meu rosto? Que tem o meu rosto de diferente? - No meio deste caos, o teu rosto tranquiliza-me, faz-me esquecer o mundo lá fora. Passado alguns dias, o autocarro parou, chegando ao destino desconhecido e os recém amigos tiveram de se separar para encontrar estadia. Dias depois, reencontraram-se na mesma aldeia, estes ficaram muito contentes por se voltarem a ver. Com o dinheiro que ainda conseguira trazer, Joaquim comprou uma pequena casa para ele e para a sua amada. E desde então nunca mais se separaram, criando assim uma bela e feliz história de amor. Alexandre Brites & Rafael Santos, a partir do conto "A cidade”, in Deste mundo e do outro, de José Saramago


A nossa história "A história das pessoas é feita de lágrimas, alguns risos, umas tantas pequenas alegrias e uma grande dor final", os sentimentos e as emoções são confusos e, em algumas circunstâncias, não sabemos lidar com eles, nem os demonstrar. O amor é algo bom, mas pode causar feridas e traumas que nem com o tempo curam. Esta é a história de uma rapariga que estava apaixonada por um rapaz e acreditava que o sentimento era recíproco, pois ele próprio dizia que gostava dela. Aliás, dizia que a amava e muitas outras coisas que as raparigas gostam de ouvir. Eles falavam como se algum dia viesse a acontecer alguma coisa mais do que uma simples amizade, mas afinal era só ela que pensava nisso. Um dia, ela veio a descobrir que o que ele lhe dizia, ou seja, que a amava, chamando-a de "amor", ao mesmo tempo também o dizia a outra rapariga. Quando ela viu a rapariga, começou a pensar para ela própria "por razão é que ele haveria de gostar de mim, eu não sou tão bonita como ela", "ela tem um corpo melhor que o meu", "o que é que ela tem que eu não tenho". Começou a ter inseguranças e passou a não conseguir confiar em ninguém, pois quando ela pensava que ele gostava dela, ele só lhe mentia. Ela ficou muito mal, chorava quase todas as noites, mas ao mesmo tempo também se ria quando se lembrava dos momentos bons. Tenta, aos poucos, superá-lo e cada dia que passa vai diminuindo o sentimento. Eles ficaram amigos e agora parece que não aconteceu nada, ela perdoou-o, mas perdoar não quer dizer que se esqueceu de tudo. Ele fez com que ela ficasse com traumas, acabando por já não confiar nas pessoas, ficando com medo de voltar a demonstrar o que sente e de passar por tudo outra vez. Enfim, a vida não é um mar de rosas ou um conto de fadas. Temos de conhecer as pessoas, aprender a gostar delas e conhecê-las melhor para que se possa construir algo que dê para a vida. É certo que o caminho pode, por vezes, ter alguns buracos, mas no final e com persistência as coisas vão aparecer. A nossa cara-metade existe, basta apenas estarmos atentos. Leonor Martins & Mariana Ribeiro, a partir do conto "O sapateiro", in Deste mundo e do outro, de José Saramago


Silvestre "Silvestre abriu a janela e deitou uma vista de olhos para fora", assim começa a nossa história. Era uma vez um menino chamado João Luís, um rapaz introvertido, que se fechava em casa com medo de ser visto. João era um muito inseguro e tinha uma doença rara que lhe causava bolhinhas arroxeadas na face. O menino passava muito tempo a olhar pela janela do seu quarto, gostava de mirar a paisagem e imaginava-se a correr pelos prados verdejantes até se perder. Até que certo dia, ao olhar para esses mesmos campos ouviu várias gargalhadas e ficou curioso, decidiu então olhar para a rua de sua casa e deparou-se com um grupo de amigos a brincar ao jogo da macaca. João observou a brincadeira deles e imaginou como seria ter amigos e entrar naquelas. Semanas se passaram e os meninos iam sempre brincar para a rua de sua casa, e o João ficava sempre a vê-los. Um certo dia, os meninos repararam nele e chamaram-no para brincar. A princípio, João estava receoso, mas o grupo insistiu e ele ganhou coragem para se apresentar, os meninos ficaram fascinados com a sua característica única e decidiram apelidá-lo de "Silvestre" já que este se parecia com uma amora. Os quatro amigos começaram a brincar diariamente e João, agora mais conhecido como Silvestre, percebeu que era perfeito do jeito que ele era. Alex Almeida & Matilde Vaz, a partir da obra Claraboia, de José Saramago


Bruna “Dois dos automóveis da frente aceleraram antes que o sinal vermelho aparecesse.” Vejo uma rapariga distraída, morena, cabelo ondulado, olhos verdes-claros, tinha uma camisola justa e calças largas... Estava a ouvir música, talvez fosse jazz, rock, rap ou até mesmo outro género. Gosto de imaginar as pessoas com base no seu estilo, mas parecia-me misteriosa. De repente, sou atraído pelos barulhos dos dois carros da frente, estavam em despique. A rapariga atravessa a passadeira e estando distraída, não olhou para os lados. Tentei chamar a sua atenção, buzinei por alguns segundos, mas nada. O carro da direita atropela-a. Não tive outra reação a não ser encostar o carro e ajudá-la. Nenhum dos dois desgraçados tinha parado. A rapariga estava inconsciente, abri a sua mochila à procura de documentos, de saber quem era aquela deitada à minha frente. Bruna Sousa era o nome dela. Liguei ao 112 e em menos de 5 minutos Bruna estava dentro da ambulância. Deixei o meu número com o assistente, pedi que me ligassem depois disso. Apesar de tudo, não podia deixar o resto. Abri a porta de casa, e como sempre, a minha cadela recebe-me aos pulos, com alegria e prazer. Tomei um banho, decidi ir dormir a casa dos meus pais, ficava mais perto do hospital. Mal consegui dormir naquela noite, não conseguia parar de pensar no estado dela e no que tinha acontecido. Acordo com a ligação de um número não guardado. Retornei para este, mas era uma velhinha por engano, pensava que era o seu neto. Sem conseguir adormecer, decidi ir dar uma corrida, não podia pensar mais. “-Nem sequer falei com ela, como é que isto não deixa a cabeça?”. Fui direto ao hospital, precisava de respostas. O médico que a estava a acompanhar disse que estava tudo bem, mas sem certezas do estado das duas pernas. Bruna não conseguia andar, iria precisar de vários meses de fisioterapia e recuperação. Sentei-me em tristeza, pensei em ir. Momentos depois, outro médico sai da porta e aproxima-se. “-É o senhor que ligou para a ambulância? A minha paciente quer vê-lo.” Acompanhou-me até ao quarto. Nunca estivera tão nervoso para ver e conviver com uma pessoa. Bruna estava acordada. “-Sei que foi o senhor a ligar para cá. Obrigada, mesmo. Não consegui falar naquele momento, não sei como retribuir isto.” Sentia-me envergonhado, tinha mil perguntas para fazer, mas não tinha respostas para dar. Só queira ouvi-la. Era suave e tranquila. “-Como te chamas?” - perguntou-me sem qualquer tipo de receio. “-Tomás.” Aquela meia hora de conversa pareciam horas. Apesar de nunca a ter visto e ser a primeira vez, não houve um segundo sem assunto. Falámos sobre tudo. Descobri e conheci o mínimo daquela rapariga, tínhamos muito em comum. O médico ainda não lhe tinha dito que precisaria de manter-se por lá por alguns tempos. Comecei a dar-lhe “bom dia” antes mesmo do dia começar,


antes de ir trabalhar. Levei presentes, flores, ... alguns mimos. Prometi passar por lá sempre que pudesse. Ela era diferente. Passaram-se meses e cada vez mais me parecia mais uma cómoda da família, estamos cada vez mais próximos. Todos os dias eram diferentes, todos os dias ela mudava a minha vida. Não consigo pensar nela, sinto as "borboletas” na barriga. Não lhe consigo dizer, não consigo dizer que estou bem, que estou feliz com ela. Hoje em dia só imagino os meus dias com esta rapariga.

Beatriz Assunção, Beatriz Santos, Mariana Lopes & Vanessa Afonso, a partir da obra Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago


Olhar da minha janela

E no dia seguinte ninguém morreu. Quem nos dera que isso acontecesse! A nós humanos, a morte é tão incerta, às vezes bate-nos na parede, mas não nos toca nas costas, outras vezes assistimos à morte à nossa frente e ficamos à espera de que ela nos atinja a seguir. Tudo começará com sofrimento e hoje ele é tão intenso que assisto da minha própria janela ao que a crueldade humana pode levar. Vejo a destruição e fico à mercê da mesma, penso constantemente na minha família e nas pessoas que saem à rua todos os dias e sentem-se num filme de terror e são incapazes de sair do mesmo. Constantemente questiono o porquê de isto acontecer e que deixa as pessoas desoladas, ao perderem a sua família ou a terem de abandonar as suas casas, os seus bens, o seu país na qual não queriam sair do mesmo e a irem ao encontro de um lugar desconhecido com pessoas desconhecidas. Sinto-me um fraco e nem consigo sair da minha própria casa que nem saberei se ela vai estar inteira ou se esta simples carta chegará a alguém, mas eu precisava escrever e se ela não chegar, ao menos saberei que a fiz como uma maneira de espairecer desta escuridão que não desejara. Estou rodeado de dor, de um completo cansaço. Ao olhar para o sofrimento daqueles que lutam, daqueles que fazem de tudo para sobreviver ao caos constante que se tornou este país, que me afeta constantemente. Que pessoa sem coração, sem um pouco de solidariedade para com as crianças que já têm o futuro incerto. Sirenes tocam, enquanto os nossos militares e civis tentam proteger o nosso lar, sinto-me abraçado pelo mundo, pelas pessoas que saem à rua para se manifestarem contra esta situação que me destrói o coração. Já não existe lágrimas para este sofrimento permanente, vejo pessoas todos os dias a morrer, a minha cidade ser destruída em poucos dias, ver a morte a chegar mas que nunca chega até mim… isto é horrível, é algo que não se deseja a ninguém! Penso em motivos, em porquês, em abrigar nos meus braços a minha pobre mãe que já nem se levanta da cama na esperança de que a morte a leve deste instante, pois este sofrimento prende constantemente o seu corpo e mente a este mundo desvairado, a esta luta de poderes que só destrói as nossas vidas. Penso em tantas coisas, mas em não reviver este pesadelo outra vez, peço todos os dias que me acordem, que isto seja unicamente passageiro e que esta solidão, que este caos desapareça e ao olhar da minha janela um novo mundo se rejuvenesça e o cantarolar dos pássaros apareça. Estou a sentir-me num túnel, sem saber quando verei a luz novamente… já não sei como falar à minha mãe que um dia chegaremos ao fim, mas quando chegaremos? Quando é que finalmente os nossos olhos mostrarão apenas uma alegria e não esta tristeza inconsolável e que a luz cresça neste céu nublado de tristeza? Ana Fonte, Diogo Moreira & Daniel Assunção, a partir da obra As intermitências da morte, de José Saramago


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.