A descrição do processo, feita pela própria artista, não deixa de evocar o conceito de “arte mestiça”, proposto por François Laplantine e Alexis Nouss. A reflexão dos autores sobre a colagem como portadora de um duplo objetivo – reflexo da realidade (pelo uso de materiais preexistentes) e criação de uma nova realidade (pelo choque da aproximação) pode ser transposta para o trabalho de Sfoggia. Neste, a imagem fotográfica manipulada e reconfigurada traz a marca da justaposição de fragmentos, que remetem a um processo de livre associação, baseado na contiguidade e na analogia, mas não numa sucessão lógica. Das Fremde in mir é um exercício de justaposição de fragmentos icônicos incongruentes, norteados pela “lógica do absurdo” e pela vontade explícita de propor uma interpretação das fissuras contemporâneas a partir da exploração do “tênue espaço entre o real e o simulado”, para usarmos uma expressão de Martha Rosler. O clima de irrealidade que emana das imagens é reportado por Sfoggia a um quadro de referências preciso, que inclui pesadelos pessoais, a cinematografia de David Linch, as experiências do fotógrafo eslovaco Tono Stano, cuja série White shadow (2008) é apreciada por ela por seus resultados bizarros, e a literatura de Franz Kafka e Sigismund Krzyzanowski. A novela “O quadraturin” (1926),2 na qual o autor russo imagina o crescimento acelerado de um cômodo de 8 m2 graças ao uso de uma substância especial, serve de ponto de partida para duas obras presentes na mostra da Fundação Ecarta. Na montagem fotográfica Sutúlin e o quadraturin (2014), os efeitos do produto milagroso são visíveis nos dois tamanhos apresentados pela figura humana que se destaca numa paisagem urbana. Se os desenhos com linha e as intervenções que evocam a pintura conferem à montagem um caráter estranho, este é realçado ainda mais pela aposição de alfinetes, os quais deveriam conferir à imagem o caráter de um objeto 3D, de acordo com a artista. O aspecto anacrônico de muitas das obras apresentadas na exposição reforça seu elo com o conceito de “estranho”, se for lembrado que Sigmund Freud ressaltava o caso dos artistas que se movem 2 A novela integra o volume O marcador de página, que foi publicado em 1997 pela ed. 34 (São Paulo), com tradução de Maria Aparecida B. Pereira Soares. 134