4 minute read

2. A fotografia como mise en scène

fotografias de grande formato, caracterizadas por um uso cuidadoso de cores e texturas, por uma iluminação teatral e por poses hieráticas e ensimesmadas, que parecem responder de perto a uma pergunta formulada por Victor I. Stoichita em L’instauration du tableau: métapeinture à l’aube des temps modernes (1993): “Como fazer um quadro novo com uma imagem antiga?”.

As mises en scène da série exposta em São Paulo demonstram que Duque não concebe a memória da pintura do passado como um legado a ser respeitado. Ao contrário, esta lhe interessa na medida em que permite elaborar um processo de estranhamento, no qual a história da pintura se confunde com as próprias memórias pessoais; nestas, a imagem da criança como “um conglomerado de ideias e emoções [...] em estado bruto” ocupa um lugar central. Lembrando, a todo o momento, que sua operação é de caráter artístico e não historiográfico, Duque entrega-se a um fluxo livre de imagens e ideias. Com elas, constrói um conjunto de obras marcadas pela irrealidade e pela busca de resultados enigmáticos, fruto, em parte, das diferentes origens de seus ícones.

Advertisement

O olhar fragmentário que a artista lança sobre o passado impõe-se de imediato, já que o espectador se depara com algumas incongruências nas cenas propostas à sua atenção. Alcovas luxuosas têm como pano de fundo cenas de cozinha. Garotas trajando elegantes vestidos do século XVII (todas chamadas Maria) posam atrás de mesas recobertas de veludo vermelho e ocupadas por frutas, hortaliças, figurinhas de porcelana e bules. Se essas infrações a um gênero regido por um código preciso e destinado apenas a crianças de alta linhagem, retratadas de maneira cerimonial e segurando brinquedos, flores, chapéus, pingentes, pássaros, cãezinhos ou cestas de frutas requintadas, já demonstram que Duque deseja lançar um olhar crítico sobre um universo social fechado, há outras que apontam para um viés irônico. As toucas, laços, chapéus, coroas, arranjos florais, que adornavam os retratos de crianças do passado, são substituídas por um estranho artefato dourado, evidentemente falso, que desperta a lembrança dos hodiernos fones de ouvido. Os laços e os ramalhetes de flores, que enfeitavam os vestidos das meninas, cedem lugar a

vistosos broches floridos ou construídos com hortaliças (por vezes fotografados em primeiro plano) ou a uma bijuteria não muito sofisticada. O caráter anacrônico das cenas, que brota de uma memória manipulada, é acentuado pela presença de uma Maria em trajes contemporâneos, inserida num cenário do passado, como que para lembrar que a condição feminina não sofreu ainda todas as mudanças necessárias para uma plena emancipação.

Interrogando ao mesmo tempo pintura e fotografia, Duque faz de suas imagens encenadas o ponto de encontro de duas inquietações contemporâneas. Interroga-se, de um lado, sobre a natureza da pintura nos dias de hoje. Condensa, de outro, o próprio desassossego perante a fotografia numa pergunta bastante complexa: como defender a prática fotográfica na situação presente, na qual a imagem técnica se confronta, mais e mais, com o deslocamento do real para o irreal, com a percepção de que atualidade e inatualidade são percursos paralelos, com a necessidade de testar e contestar os códigos estabelecidos? Anacrônicas e contemporâneas, as “Marias” de Adriana Duque trazem em si a marca do inesperado. Embora mergulhadas num repertório proveniente do passado, não são citações, mas antes, produtos de uma inovação iconográfica, que percorre livremente o universo dos símbolos e das estruturas da arte e de sua história.

3.

Uma arqueologia visual1

Das Fremde in mir [O estrangeiro em mim, 2012], título de uma das séries apresentadas na exposição Jest sztuka absurdu, parece ser uma boa introdução aos objetivos perseguidos por Samy Sfoggia. Ao colocar-se sob o signo da “arte do absurdo”, a artista brasileira dá a ver a intenção de fazer das próprias fotografias e desenhos “‘frames’ de um inconsciente deliberadamente incoerente e ilógico”. A evocação do “estrangeiro” permite aproximar as obras apresentadas na Fundação Ecarta (Porto Alegre, 23 de setembro – 2 de novembro de 2014) do conceito freudiano de “estranho”, ou seja, de “algo que é secretamente familiar, que foi submetido à repressão e depois voltou”. O uso de imagens fotográficas, provenientes do próprio arquivo pessoal ou captadas na internet, é congenial à busca desse “estranho”, pois elas remetem a realidades familiares tornadas inquietantes pelas manipulações a que a artista as submete.

O traço distintivo de Sfoggia é, com efeito, a concepção da fotografia não como tomada, e sim como um longo processo de manipulação, pelo qual a imagem, longe de afirmar-se por si, se configura como uma representação residual, repleta de fantasmas e visões, não raro, traumáticas. Para obter esse efeito de estranhamento, a artista, depois de digitalizar os negativos, manipula as imagens num editor. É nesse momento que ocorre um sem número de intervenções, que vão da distorção de figuras à prática da colagem, da sobreposição de camadas ao uso do desenho e à inversão de cores. Novas intervenções são realizadas depois da impressão da imagem resultante em papel fotográfico. Sfoggia risca o papel com agulhas, fura-o, mancha-o com tinta, faz desenhos com caneta e linha; em seguida, realiza uma nova digitalização, cujo resultado é uma reimpressão da imagem em formato maior.

1 Versão revista do artigo publicado originalmente em Arte & Crítica, n. 32, dez. 2014 (online).

This article is from: