2 minute read

Entre realidade e ficção

1.

Evidência e mistério: o objeto na fotografia moderna1

Advertisement

Defensor de uma “beleza sem intenção”, que contrapõe ao objeto de arte, Fernand Léger acreditava que o século XX estava assistindo à renascença de “um mundo de artesãos criadores que alegram os nossos olhos e transformam a rua num espetáculo permanente e de infinita variedade”. As criações do artesão, inventor do novo ambiente de vida, deveriam servir de matéria-prima a alguns artistas capazes de ordená-las, absorvê-las e caldeá-las no próprio cérebro “com um perfeito equilíbrio dos dois valores consciente e inconsciente, objetivo e subjetivo”. Essa ressalva não significa que Léger seja partidário de uma concepção hierarquizada do belo. Os “duvidosos” quadros do Louvre e dos salões de arte perdem a batalha estética ao serem confrontados com os objetos industriais, “belos e úteis ao mesmo tempo”. A valorização do objeto industrial, “belo em si”, tem como corolário o elogio da arte das vitrines, que faz da rua um “espetáculo permanente de intensidade crescente”. O encômio da arte das vitrines inclui o vitrinista, um artesão dotado de “um incontestável conceito de arte, estreitamente ligado a fins comerciais”, que cria “um fato plástico de uma ordem nova, mas equivalente das manifestações existentes, quaisquer que elas sejam” (Léger, 1965, p. 53, 57-58, 60).

A reflexão sobre o valor estético do objeto industrial é acompanhada pela prospecção de uma nova ordem artística. Esta deveria surgir do abandono do tema, herança do Renascimento italiano, e da consequente valorização do objeto e dos tons puros, os quais deveriam tornar-se os personagens principais do quadro. Aparatos tecnológicos como o cinema, o microscópio e a fotografia estão na

1 Publicado em versão abreviada em: Costa, Helouise; Fabris, Marcos (org.). Modernismos em diálogo. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2015.

base de uma nova percepção do objeto, graças à qual a figura humana perde a centralidade que tivera no passado, convertendo-se frequentemente em fragmentos dotados de uma realidade surpreendente. O primeiro plano e novas formas de visualização decorrentes do processo de ampliação encantam o artista francês:

Ao projetar fragmentos de figuras – um olho, uma boca, uma narina – [o cinema] desencadeou o interesse plástico e avolumou as possibilidades já existentes. Um pé calçado, debaixo de uma mesa, ampliado dez vezes no écran, torna-se um fato surpreendente, em que nunca antes se reparara. É uma realidade, uma realidade nova, que não existia ainda, quando nos limitávamos a olhar maquinalmente a extremidade da nossa perna, a andar ou sentados (Léger, 1965, p. 70-71, 77-78).

Objetos dotados de um valor intrínseco, o fragmento e os elementos naturais e industriais demonstram ter, em termos plásticos, o mesmo interesse da figura humana. Já que o belo está em todo lugar, Léger acredita no surgimento de uma arte decorativa moderna:

Os comerciantes e os industriais sentiram que esse famoso objeto tinha um valor publicitário. Compuseram vitrines de modo a valorizar os objetos do seu comércio – 5 pares de meias apresentadas sobre um fundo de cor, fazem mais efeito do que 200 amontoados ao lado uns dos outros. Todo o comércio compreendeu e utilizou o advento do objeto (Léger, 1965, p. 79-80).

A publicidade e, particularmente a fotografia publicitária, conferem, de fato, um papel preponderante ao objeto. Em seu livro sobre a fotografia publicitária, Raúl Eguizábal dedica um capítulo à descoberta estética do objeto, no qual salienta a experiência norte-ame-

This article is from: