4 minute read

3. Uma arqueologia visual

A descrição do processo, feita pela própria artista, não deixa de evocar o conceito de “arte mestiça”, proposto por François Laplantine e Alexis Nouss. A reflexão dos autores sobre a colagem como portadora de um duplo objetivo – reflexo da realidade (pelo uso de materiais preexistentes) e criação de uma nova realidade (pelo choque da aproximação) pode ser transposta para o trabalho de Sfoggia. Neste, a imagem fotográfica manipulada e reconfigurada traz a marca da justaposição de fragmentos, que remetem a um processo de livre associação, baseado na contiguidade e na analogia, mas não numa sucessão lógica. Das Fremde in mir é um exercício de justaposição de fragmentos icônicos incongruentes, norteados pela “lógica do absurdo” e pela vontade explícita de propor uma interpretação das fissuras contemporâneas a partir da exploração do “tênue espaço entre o real e o simulado”, para usarmos uma expressão de Martha Rosler.

O clima de irrealidade que emana das imagens é reportado por Sfoggia a um quadro de referências preciso, que inclui pesadelos pessoais, a cinematografia de David Linch, as experiências do fotógrafo eslovaco Tono Stano, cuja série White shadow (2008) é apreciada por ela por seus resultados bizarros, e a literatura de Franz Kafka e Sigismund Krzyzanowski. A novela “O quadraturin” (1926),2 na qual o autor russo imagina o crescimento acelerado de um cômodo de 8 m2 graças ao uso de uma substância especial, serve de ponto de partida para duas obras presentes na mostra da Fundação Ecarta. Na montagem fotográfica Sutúlin e o quadraturin (2014), os efeitos do produto milagroso são visíveis nos dois tamanhos apresentados pela figura humana que se destaca numa paisagem urbana. Se os desenhos com linha e as intervenções que evocam a pintura conferem à montagem um caráter estranho, este é realçado ainda mais pela aposição de alfinetes, os quais deveriam conferir à imagem o caráter de um objeto 3D, de acordo com a artista.

Advertisement

O aspecto anacrônico de muitas das obras apresentadas na exposição reforça seu elo com o conceito de “estranho”, se for lembrado que Sigmund Freud ressaltava o caso dos artistas que se movem

2 A novela integra o volume O marcador de página, que foi publicado em 1997 pela ed. 34 (São Paulo), com tradução de Maria Aparecida B. Pereira Soares.

no mundo da realidade comum para produzir sentimentos insólitos, cujos efeitos podem ser aumentados ou multiplicados, de maneira a produzir eventos “que nunca ou muito raramente, acontecem de fato” na vida cotidiana. Nem mesmo uma obra como a montagem fotográfica #3945# (2012), que rememora a Segunda Guerra Mundial, escapa desse quadro de referências. A presença de rostos borrados ou lembrando máscaras, associada a imagens de campos de extermínio, remete a um quadro traumático que, ao atualizar uma realidade (aparentemente) obsoleta, gera uma espécie de arqueologia visual.

Uma das obras mais inquietantes de Sfoggia é o desenho com colagem fotográfica Doppelgänger (2014), ao qual pode ser aplicado outro conceito freudiano: o do duplo como outro aspecto do ser, que se comporta de modo diferente do original. Atuando entre desenho e fotografia – e, logo, mobilizando outra possibilidade da “arte mestiça” assinalada por Icleia Borsa Cattani –, a artista transforma a justaposição de meios e imagens numa representação estranha, em que o recalque – do qual a figura do duplo é portador – assume um aspecto fantasmático.

O mal-estar visual e psíquico, que impregna a mostra da Fundação Ecarta, é um convite a detectar naquele conjunto de imagens sombrias e alógicas uma ideia dicotômica de realidade, feita de claros e escuros, pesadelos e visões rotineiras, recalques e epifanias. O real e o simulado que se confrontam e se fundem num movimento contínuo podem ser vistos como elementos de uma narrativa para a qual são igualmente determinantes os eventos exteriores e os fantasmas do inconsciente. Dessa tensão contínua brota a singular arqueologia de Sfoggia, artista a ser seguida com atenção, já que seus signos “estranhos” apontam para uma estratégia de resistência à banalização da visualidade contemporânea.

4.

Helena Martins-Costa ou das escritas do tempo1

No ensaio “Ontologia da imagem fotográfica” (1945), André Bazin relaciona o surgimento das artes visuais com o “complexo da múmia”, tendo como ponto de referência a perenidade material do corpo apregoada pela religião egípcia. A necessidade de fixar artificialmente as aparências carnais do ser deita raízes na vontade de opor-se ao tempo e, logo, à morte e à “correnteza da duração”. Se a primeira estátua egípcia é a múmia, o temor da violação do sepulcro faz surgir, como medida de precaução, estatuetas de terracota, “espécies de múmias de reposição capazes de substituir o corpo caso este fosse destruído”. Estabelece-se, assim, a função primordial da estatuária: salvar o ser pela aparência. Com o passar do tempo, as artes plásticas são destituídas de suas funções mágicas, sublimando com o pensamento lógico “esta necessidade incoercível de exorcizar o tempo” (Bazin, 1983, p. 121-122).

Concebendo a história das artes visuais como a “história da semelhança”, Bazin localiza o compromisso ontológico da imagem técnica na presença do real, isto é, na satisfação do “afã de ilusão por uma reprodução mecânica da qual o homem se achava excluído”. Se a gênese automática da imagem confere primazia à fotografia em relação à pintura, há outra diferença fundamental entre as duas manifestações visuais: enquanto a arte cria eternidade, a fotografia “embalsama o tempo”, subtraindo-o “à sua própria corrupção” (Bazin, 1983, p. 124, 126).

Mesmo que a “presença do real”, tal como concebida pelo crítico francês, possa ser problematizada nos dias de hoje, é inegável que a fotografia, em seus primórdios, demonstrou um interesse acentuado pela escultura justamente em virtude do “complexo da múmia”, ou seja, da imobilidade exibida pelas estátuas, congenial aos longos tem-

1 Redigido em 2013, o artigo foi publicado originalmente em Fotografía y artes visuales. México: Ediciones Ve, 2017.

This article is from: