quais era reverenciado por eles, pareceria, à primeira vista, confirmar a admoestação de Canetti. Os sonhos, no entanto, desempenham um segundo papel determinante na vida do jovem hebreu. Caluniado pela esposa de seu senhor, Putifar, chefe da guarda do faraó, é encarcerado; na prisão, interpreta os sonhos de dois companheiros. Um destes, que era copeiro-mor na corte, recomenda seu nome ao soberano, intrigado com dois sonhos que nenhum sábio do Egito soubera interpretar. José ganha os favores do faraó, ao reconduzir o simbolismo das vacas gordas e das vacas magras e das espigas cheias e das espigas mirradas a um único sonho, que estaria indicando os desígnios de Deus de dar ao país sete anos de fartura seguidos de igual tempo de carestia, a qual faria esquecer a abundância inicial. Outra figura bíblica, Daniel (Bíblia Sagrada, 1967: Daniel 1.17; 2.27-45; 4.16-24),3 é igualmente aquinhoada por Deus com o dom de “entender toda a sorte de visões e de sonhos”. Sua capacidade é demonstrada a Nabucodonosor, rei da Babilônia, que pretendia que os adivinhos expusessem um sonho que ele tivera, antes de solicitar sua interpretação. O jovem, que se apresenta como um intermediário entre um Deus (o de Israel), capaz de revelar “os arcanos”, e os “pensamentos” do coração do rei, é o único a cumprir a tarefa, ganhando, por isso, grandes homenagens. Posteriormente, Daniel interpreta outro sonho – funesto – do rei, que se realiza após um ano com sua humilhação pública e sua conversão num quase animal. O episódio de Daniel e o fato de José afirmar na prisão que as interpretações dos sonhos “pertencem a Deus” e de revelar ao faraó que as imagens das vacas e das espigas eram uma admoestação a respeito dos desígnios divinos possuem um significado preciso no âmbito da cultura da Antiguidade. Nela, a interpretação dos sonhos era uma verdadeira arte, que abarcava simultaneamente os campos da adivinhação e da medicina; em geral, era responsabilidade dos sacerdotes, pois se acreditava que o sonhador era apenas um canal para a manifestação das forças sobrenaturais. 3 Carl Gustav Jung interpreta o segundo sonho de Nabucodonosor como símbolo da degeneração regressiva de um homem que quis ir além de qualquer medida (Jung, 1972, p. 144). 102