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Carga de Riso

Crónicas de um comboio escalfado III

Na Estação de Alvito, que mais parece um apeadeiro onde o tempo está tão parado que até os pássaros se esqueceram de voar, só o apitar da automotora causa algum incómodo àquele silêncio dolente. A vila está situada a três quilómetros. Pouca gente para entrar e sair. A maior parte das vezes, ninguém! É um chegar e partir para nada. Apesar de tudo, é o lagar, situado por trás do edifício da estação, que ainda empresta algum movimento ao lugarejo. Fumega vinte e quatro horas por dia. Um odor nauseabundo, inconfundível, invade o local e os arredores até muitas léguas de distância. Há dias em que deviam proibir o vento de soprar. Aniceto Abanico era a única figura que se apresentava com alguma regularidade na estação, ou melhor, naquela espécie de plataforma parada, localizada no meio de nenhures. Apelidado de Abanico, porque tinha um par de orelhas de dimensões tão acentuadas que quando tinha de puxar lume ao carvão para assar sardinhas, inclinava um pouco a cabeça e abanava as ditas de tal forma que, ao invés de acender o lume, incendiava os grelhados. Nem as almas das sardinhas tinham ordem de se apresentarem às portas do altíssimo. Pois o quão desagradável seria procurar entrada no paraíso celestial em preparos esturricados. O que indiciaria, erradamente, aos santos, anjos e querubins que os peixes já teriam realizado estágio profissional nos confins do inferno. Desde aquele fatídico dia, que engendrava um plano que realizasse as suas ansiedades vingativas. A verdade é que nunca viu com bons olhos a chegada do progresso aos campos do Alentejo. Ele, pastor hereditário de terceira geração, habituado desde os tempos de menino a acompanhar o seu avô no pastoreio do gado ovino, só concluía inconvenientes. Aquele apitar estridente, agudo e demorado da automotora a partir e a chegar aos destinos, desconcertava a tranquilidade das ovelhas, ao ponto de estas fugirem desvairadas em todas as direções. Acontecia que havia sempre duas ou três, mais parvas que um balde de azeitonas, que se iam meter à frente do comboio, causando consideráveis prejuízos ovinos ao pastor. Na sua memória, desde tenra idade até à sua reforma, contabilizava vinte três ovelhas falecidas. E se nunca tiveram direito a qualquer espécie de indemnização por parte dos agressores das tradições idiossincráticas rurais, foi porque os sucessivos protestos junto das autoridades competentes, o presidente da junta de freguesia, o pároco da vila e sua amante, o cabo da guarda nacional republicana e o chefe da estação, caíram constantemente em saco roto. Depois de analisadas as circunstâncias e avaliadas as infrações, ainda recebiam de resposta: Quantas morreram hoje? Ai foram duas? Afinal, tiveram sorte, se a automotora viesse de atravessado tinha-lhes apanhado o rebanho todo! Uma vida inteira a conviver com o prejuízo causado pelo desenvolvimento ferroviário, merecia vingança. Aniceto Abanico apreciava, e de que maneira, o fumegar constante oriundo da alta chaminé do lagar. Reparou que naquele fumegar saía também uma espécie de gordura que se espalhava pelos campos ao redor. Incluindo que, com o passar do tempo, se acumulava sobre os carris. Pensava: “Sendo gordura, diminui a aderência, logo, será mais difícil a travagem! Se não travar, há-de a automotora circular descontrolada linha abaixo até Vila Real de Santo António e emborcar nas profundezas do Guadiana.” Todos os dias, mesmo depois de reformado, lá se deslocava na sua bicicleta à estação, nos horários estipulados de chegada e partida, para assistir à derrapagem triunfal da composição. Fazia-o em memória das suas falecidas amigas ovinas e também em homenagem aos seus derivados (queijos de ovelha de meia cura, blusões e respetivos pulôveres de boa lã). Petisco e agasalho de mãos dadas até na hora da morte. A sua bicicleta, veículo que conduzia da vila até à estação, tinha um contratempo deveras desagradável, o selim. Duro que nem cornos! Com o passar da idade e o emagrecer das carnes, as nádegas pediam outros aconchegos que não estes. O de fazer diariamente, quatro vezes ao dia, uma remessa de quilómetros, para supostamente ver uma mata-ovelhas escorregar nos campos do Alentejo. Havia dias em que tinha de se untar com pelo menos duzentas e cinquenta gramas de creme gordo em cada “nalgazinha” a fim de amenizar as dores e os ardores que sentia. Mas naquele dia, às seis e quarenta e quatro da manhã, no comboio que vinha de Beja para o Pinhal Novo, sentia que as condições lhe eram favoráveis: a gordurinha sobre o carril acumulava alguns milímetros, o céu estava azul, as andorinhas anunciavam o regresso da primavera, a mulher não ressonou a noite toda e uma abençoada fralda para idosos aconchegava-lhe as nádegas. O comboio a aproximar-se da estação e Aniceto Abanico também... Mas é sabido nos compêndios da vingança que a gordura não escolhe as vítimas. Quando o homem tentou travar a bicicleta, esta, num chão extraordinariamente derrapante, foi deslizando até se enfiar nos cornos do progresso! Nem a alma se lhe escapou...

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Jorge Serafim Humorista

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