ECOLOGIA DOS SABERES: TECENDO NOVAS RELAÇÕES

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ANAISDASCAP ECOLOGIA DOS SABERES: tecendo novas relações


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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Unidade São Gabriel

V SEMANA DE CIÊNCIA, ARTE E POLÍTICA Belo Horizonte, 16 de setembro de 2013

ANAIS DA SCAP ECOLOGIA DOS SABERES: tecendo novas relações

Belo Horizonte 2013


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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Semana de Ciência, Arte e Política (5. : 2013. : Belo Horizonte, MG) S612a Anais da SCAP: ecologia dos saberes: tecendo novas relações / Organização Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero. Belo Horizonte: PUC Minas, 2013. 119 p.: il. ISSN: 978-85-8239-017-7 1. Ciência e civilização – Congressos. 2. Multiculturalismo. 3. Índios Educação. 4. Quilombos - Usos e costumes. 5. Ciganos - Usos e costumes. I. Quintero, Elisa Cristina de Oliveira Rezende. II. Título.

CDU: 301.175


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EXPEDIENTE

Secretário de Comunicação:

Prof. Mozahir Salomão Bruck

Organização:

Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero

Edição:

Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero

Fotografia:

Fernanda Ferreira Natália Leão Bassi Pedro Rezende Quintero Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Prof.ª Myriam Martins Alvares

Projeto Gráfico e Direção de Arte:

Prof.ª Dulce Albarez

Diagramação:

Prof.ª Dulce Albarez

Revisão:

Prof. Mário Francisco Ianni Viggiano


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Grão-chanceler:

Reitor:

Vice-reitora:

Dom Walmor Oliveira de Azevedo Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães Prof.ª Patrícia Bernardes

Chefia de Gabinete da Reitoria:

Prof. Paulo Roberto de Sousa

Assessor Especial:

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Secretário de Comunicação:

Prof. Mozahir Salomão Bruck

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Secretário de Planejamento e Desenvolvimento Institucional:

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Prof. Alexandre Rezende Guimarães

Diretor Acadêmico da PUC Minas no São Gabriel:

Prof. Cláudio Listher Marques Bahia

Coordenadora de Extensão da PUC Minas no São Gabriel:

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Assessora de Extensão da PUC Minas no São Gabriel:

Prof.ª Luciana Fagundes da Silveira

Coordenadora de Pesquisa e Pós-graduação da PUC Minas no São Gabriel:

Prof.ª Aline Mendes Aguiar Vilela

Coordenador da Pastoral da PUC Minas no São Gabriel:

Frei Mário da Paixão Taurinho

Assessora de Comunicação da PUC Minas no São Gabriel:

Michelle Stammet


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EDITORIAL A Universidade é uma instituição

ou humanístico, que a universidade

social, portanto uma prática social

produz, e saberes leigos, populares,

reconhecida legitimamente pelas

tradicionais, urbanos, camponeses,

suas atribuições e pela busca e

provindos de culturas não ocidentais

conquista da ideia de autonomia

(indígenas, de origem africana,

do conhecimento, além de sua

oriental, etc.) que circulam na

invenção, descoberta e transmissão.

sociedade”.

A Semana de Ciência, Arte e Política (SCAP), realizada anualmente na

Para o sociólogo Edgar Morin,

Unidade São Gabriel da PUC Minas é

a ecologia dos saberes é a

uma iniciativa relevante e inovadora

construção do paradigma da

que envolve toda a comunidade

complexidade. A ecologia dos

acadêmica e valoriza a produção

saberes atua tanto na extensão

de conhecimento da Universidade

como na pesquisa e na formação.

ao dar visibilidade aos trabalhos e

O objetivo é confrontar o saber

permitir o compartilhamento

científico com outros saberes, um

de experiências acadêmicas.

projeto essencialmente político

Como resultado, apresentamos

porque implica colocar no mesmo

hoje, os Anais da V Semana de

campo a universidade, o estado e

Ciência Arte e Política (SCAP 2013)

os atores sociais, já que a injustiça

que teve como tema norteador de

social tem em seu âmago uma

sua programação e discussões a

injustiça cognitiva.

“Ecologia dos Saberes”.

Para Morin, no século XX, o conhecimento esteve dominado

Para o sociólogo, professor e

por uma ideia de unidade.

ativista de movimentos sociais,

Já no século XXI predomina o

Boaventura de Sousa Santos, a

reconhecimento da inesgotável

ecologia dos saberes é “uma forma

diversidade epistemológica

de extensão ao contrário, de fora

do mundo, a existência de

da universidade para dentro da

uma pluralidade de formas

universidade. Consiste na promoção

de conhecimento além do

de diálogos entre o saber científico

conhecimento científico.


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Assim, a tarefa acadêmica da Universidade e a responsabilidade sociocultural da V SCAP ficam documentadas e registradas na publicação dos Anais da V SCAP: Ecologia dos Saberes – tecendo novas relações. Esta publicação levou e leva a Universidade a lugares que ela ainda não esteve, mas deveria. Desta forma, a Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel apresenta uma valiosa reflexão crítica acadêmica contribuindo para o desenvolvimento da sociedade em suas relações sociais, econômicas, políticas, culturais, ambientais e garantindo a todos o direito a uma Universidade democrática de qualidade. Leiam e reflitam – os Anais da V SCAP.

Prof. Cláudio Listher Marques Bahia Diretor Acadêmico da PUC Minas no São Gabriel


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ÍNDICE

INFILTRAÇÕES

José Luiz Quadros de Magalhães 16

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Myriam Martins Alvares 43

QUILOMBOS URBANOS OU URBANIZADOS?

Ricardo Ferreira Ribeiro

59

CIGANOS NO BRASIL: BREVES CONSIDERAÇÕES

Rodrigo Corrêa Teixeira

Vinícius Tavares

73

ÉTICA, COTIDIANO E CORRUPÇÃO

Adriana Maria Brandão Penzim

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O SONHO TRANSDISCIPLINAR

Hilton Ferreira Japiassu

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INFILTRAÇÕES

(Direito à diferença e direito à adversidade) José Luiz Quadros de Magalhães1

A Constituição brasileira anuncia

estado e da economia moderna.

uma nova perspectiva de

Partindo desses pressupostos,

compreensão dos direitos de

vamos desenvolver a ideia de um

igualdade e diferença ao reconhecer

direito à diversidade individual e

o direito à diferença como direito

coletivo como um novo paradigma

individual e coletivo. A modernidade

constitucional que ultrapassa

se funda em um projeto hegemônico

a lógica binária e um direito à

e europeu que para justificar-se

diferença como direito também

estabeleceu e reproduziu a lógica

individual e coletivo.

binária de subalternização do outro diferente: nós versus eles.

Antes de analisarmos a diferença

Assim, o direito e o estado moderno

entre estes direitos de diferença

têm um objetivo essencial que

e diversidade, vamos procurar

persegue nestes duzentos anos de

compreendê-los como infiltrações

modernidade e do qual depende a

modernas. O que seriam

continuidade do poder centralizado,

essas infiltrações? Como elas

hegemônico e hierarquizado deste

ocorrem e quais podem ser suas

estado moderno: a uniformização

consequências?

de valores e comportamentos que passa pela uniformização do

No conceito que brevemente

direito de família e de propriedade,

construímos de modernidade, vimos

o que viabiliza o poder central do

que é europeia.

1 Professor da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8271201946056867


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Não existe para todos, é hegemônica e necessita de uniformizar os menos diferentes, expulsando, excluindo, exterminando, encarcerando os considerados mais diferentes nesses 500 anos de modernidade europeia. Delimitando o conceito de modernidade em sua tarefa hegemônica de criação de uniformidades (padrões), podemos compreender como “infiltrações” os movimentos que contrariam este objetivo. Temos uma hipótese que se abre para comprovações e refutações que muito poderão ajudar na compreensão deste projeto moderno. Em medidas distintas, os movimentos de resistência, e por ruptura, reproduzem os elementos essenciais da modernidade: padronização, uniformização e pensamento binário subalternizado (nós civilizados versus eles incivilizados), que se reproduzem em discursos mitológicos da modernidade como o “universalismo” europeu; a separação do indivíduo da natureza; o desenvolvimento linear que sustenta o discurso civilizatório ocidental. Mais, em medidas distintas, os pensamentos político, econômico e filosófico modernos reproduzem estas hegemonias e mitos, o que pode ser encontrado, por exemplo, em Hegel, Kant, Marx e nas construções políticas, econômicas e filosóficas do


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liberalismo, socialismo, comunismo,

daqueles grupos ou pessoas que

social-democracia e claro, no

resistem ou não se adequam à

conservadorismo de direita, assim

padronização. O padrão moderno

como nas exacerbações modernas

de hegemonia do “homem branco

do fascismo e do nazismo.

europeu” construiu uma sociedade

Há algo de não moderno?

androcêntrica, estabelecendo a

Onde existem as infiltrações e quais

sua primeira “outra” diferente: a

são os movimentos de resistência

mulher. A relação entre homens e

efetiva que escapam do núcleo

mulheres, marido e mulher, explicita

moderno?

o dispositivo “nós” superior e “elas” inferior2. As lutas das mulheres pela

Neste sentido, analisamos o direito

ressignificação de seu sentido social,

à diferença (individual e coletivo) e

pode se apresentar de três formas:

o direito à diversidade (individual e

como resistência; como busca por

coletivo).

ruptura; ou ainda, como infiltração, ao negligenciar o padrão masculino.

DIREITO À DIFERENÇA

Em todos os casos, vemos uma ameaça ao projeto moderno.

Em que medida ou quantas vezes a luta e a conquista de direitos dos

Esta luta por direitos das mulheres

grupos subalternizados não foi

(direito à diferença como um direito

transformada em permissões de

individual) e os seus mais recentes

“jouissance” que enquadraram os

fatos e construções teóricas,

“diferentes” nos padrões modernos?

é importante para exemplificarmos

O direito à diferença pode ser

o que entendemos por resistência;

considerado uma infiltração na

busca de ruptura (confronto);

modernidade que pode destruir

negligência (infiltrações); assim

sua represa de uniformização e

como a transformação desta luta

subalternização?

em assimilações e permissões por contaminações pela modernidade.

O direito à diferença confronta e desafia a tarefa do estado e do

A luta pelo direito à diferença

direito moderno de uniformização

pode ser entendida como uma

de comportamentos e valores,

infiltração no projeto moderno de

e de encobrimento, expulsão,

uniformização e subalternização

encarceramento ou eliminação

do outro (diferente) na medida em

2 O lugar da mulher não é o mesmo nas “outras” culturas que foram subalternizadas na modernidade, embora a subalternidade feminina possa ser encontrada em vários outros tempos históricos.


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que, os movimentos sociais diversos,

do século XX: “Fora a derrota total

que lutam por “reconhecimento”,

do sistema capitalista, não vejo

forçam sua entrada no sistema,

nenhuma solução. Em meu juízo,

criando tensões e contradições que

o pai que vota pela perpetuação

podem levar ao comprometimento,

deste sistema é tão assassino quanto

transformação e até ruptura do

se pegasse um revólver para matar

sistema moderno. Será? Como o

seus próprios filhos.”

sistema reage a essas tensões?

(GORN, 2012, p.19).

Primeiro, ao pedir reconhecimento, este pedido significa entrar

O projeto de mudar todo o sistema

no sistema. O pedido de

é transformado, nas últimas décadas

reconhecimento pelo sistema é um

do século XX, em reivindicações

pedido de acolhimento pelo sistema,

pontuais e fragmentadas, de grupos

o que pode significar que estamos

que passam a atuar individualmente

a um passo da transformação de

e reproduzem a lógica moderna

um direito em uma permissão,

“nós x eles” como por exemplo

assim como a contaminação dessa

“nós” mulheres versus “eles”

luta pela lógica do sistema. Assim,

homens. Judith Butler (2011) nos

essa luta por reconhecimento deixa

chama atenção para muitos casais

de ser contradição em relação

gays femininos que reproduzem

ao sistema (moderno) e passa a

a lógica binária “masculino versus

ser comandada pelos mesmos

feminino” fundado no pensamento

princípios uniformizadores e binários

binário de subalternidade do

subalternizados da modernidade.

outro, em que se vê uma pessoa assumindo o papel masculino de

Um exemplo disso podemos

opressão (com violência física e/

encontrar na história, na luta de

ou moral) sobre a outra pessoa

mulheres revolucionárias, que já

do casal que desempenha o papel

foi por um novo sistema (ainda há

histórico moderno da subalternidade

exceções) que supere as exclusões e

feminina.

passou a ser majoritariamente uma luta pelo reconhecimento de direitos

Butler nos chama a atenção

pelo sistema, o que mantém algum

para a necessidade de superar o

tipo, sempre, de exclusão. A líder

pensamento binário na questão

operária norte-americana “Mother

de gênero (ou mesmo superar

Jones” (Mary Harris, imigrante

o gênero) para evitar reproduzir

pobre irlandesa que participou da

a opressão binária presente no

fundação do partido socialista dos

conceito de sexo (biológico) e de

EUA em 1901) discursou no início

gênero (social cultural naturalizado).


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Citando Judith Butler:

ainda a entender como, mesmo

Aunque algunas lesbianas afirman que la identidad lésbica masculina no tiene nada que ver con “ser hombre”, otras sostienen que dicha identidad no es o no ha sido más que un camino hacia el deseo de ser hombre. Sin duda estas paradojas ha proliferado en los últimos años y proporcionan pruebas de un tipo de disputa sobre el género que el texto mismo no previó. (BUTLER, 2011, p. 13)

Ao se referir ao não previsto no texto, Judith Butler se refere a um texto seu que fundamentou o início

exigindo uma outra sociedade igualitária economicamente (e não só), a esquerda caiu em várias armadilhas modernas: En la noche del 27 de Junio de 1969, la polícia irrumpe en Stonewall Inn, un bar gay de Nueva York frecuentado por travestis afroamericanos y portorrinqueños. Aropellos, redadas, arrestos: el control se excede e degenera. Se suceden tres noches de motines que radicalizan el movimiento homosexual y desenbocan en la creación del Gay Liberation Front (GLF). (BREVILLE, 2012, p.19).

do desenvolvimento da teoria Queer. Na obra “Gay Manifesto” de Carl Vemos aí o exemplo de que,

Wittman (1970) citado por Breville

o que aparece como resistência,

(2012, p.19), o autor assinala

se transforma em luta por ruptura

que é necessário unir a luta dos

e reconstrução de sentidos, e pode

oprimidos associando compromisso

acabar por se transformar em

revolucionário com emancipação

aceitações de “permissões” que

social. Para o autor é necessário

contaminam a luta por direitos de

perceber que os heterossexuais,

diferença, reproduzindo de novo o

assim como os brancos, homens,

padrão moderno “uniformizador” e

anglófonos e capitalistas, só

“binário opressivo” que rebaixa ou

percebem o mundo em um registro

subordina um outro, qualquer outro.

binário hierarquizado onde 1 é inferior a 2 que é inferior a 3 e assim

A história do movimento gay,

por diante. Não há lugar para a

em busca de revolução e construção

igualdade e as oposições binárias

de uma outra sociedade onde

sempre remetem a um inferior:

haja espaço para “todxs” , nos

homem/mulher; heterossexual/

ajuda a compreender as perigosas

homossexual; patrão/empregado;

armadilhas modernas e nos leva

branco/negro; rico/pobre.

3

3 “Todxs” é uma tentativa de comunicar o que os idiomas modernos e sua gramática padronizada não nos permite. Todxs significa incluir para além de homem e mulher, qualquer dos diversos gêneros socialmente construídos e existentes, assim como para além de qualquer gênero ou classificações limitadoras.


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Nos EUA, o movimento

com o capitalismo e o que este

revolucionário gay pretende

sistema econômico traz com ele:

estabelecer uma nova ordem que

a uniformização de costumes

lute por um mundo sem os padrões

e valores, assim como com os

uniformizadores e o padrão binário

registros binários (o dispositivo

de subalternização do outro. Na

moderno nós superiores versus

década de 1960/70 o discurso do

eles inferiores). Tratava-se mais do

GLF seduziu o Black Panther Party

que uma resistência, era a ruptura

(BPP) e os lemas “Black is Beautiful”

e a ressignificação do mundo.

e “Gay is good” foram vistos juntos.

Em que medida esta ruptura

Em 1970, na “Revolutinary People’s

poderia efetivamente romper

Constitutional Convention” defendia-

com os elementos essenciais da

se a união das lutas dos “outros”

modernidade acima mencionados?

subalternizados e excluídos pela

O movimento representava mais do

modernidade: a união de negros,

que uma infiltração nas estruturas

mulheres e gays para a construção

modernas, não se tratava apenas

de um outro mundo.

(o que não é pouco) de pessoas e coletivos fazendo diferente no

Na década de 1970, dezesseis

meio do sistema4, era abertamente

grupos revolucionários como o Gay

contrário, combatia os alicerces

Liberation Front, representando

modernos uniformizadores e

10 países, se reuniram para formar

binários: não apenas negligenciava

uma Internacional Homossexual

(profanava) o sistema mas o

Revolucionária (IHR). Na França,

combatia frontalmente5.

a Frente Homossexual de Ação Revolucionária (FHAR) associava a

Na luta por transformação a FHAR

defesa de mudanças radicais dos

procurou alianças políticas.

costumes e transformação social.

Os militantes atuavam em grupos

Essa história nos é especialmente

de trabalhos temáticos, distribuíam

importante para pensarmos nossa

folhetos e organizavam reuniões

hipótese. A defesa da frente é a

de informação. A aproximação

mudança da sociedade, ruptura

com o Partido Socialista francês

4 A ideia de infiltração como contradição interna no sistema, com a presença de práticas que negam a sua essência e pode, em um momento, comprometer o funcionamento deste, pode ser complementada pela ideia de negligência, profanação do sistema, na ideia desenvolvida por Giorgio Agambém em seu livro Profanações da editora Boitempo. 5 Não quero dizer que negligenciar não tem a força de destruir o sistema. Talvez hoje a negligência em relação ao sistema (a profanação no significado trabalhado por Giorgio Agambem) seja a maneira mais eficaz de construir um outro mundo.


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não funcionou. Bem moderado,

compreender a modernidade para

o partido atuava dentro do jogo

compreender o capitalismo e as

político representativo moderno

possibilidades de sair deste sistema),

e entendendo ser prudente e

o discurso binário de esquerda é

conveniente para seus interesses,

reafirmado: a luta é entre capital

dizia que as preferências sexuais

e trabalho; trabalhadores versus

pertenciam à esfera privada (grave

capitalistas, e não entre normais e

equívoco) e que não mereciam

anormais. Este discurso ignora todos

posições políticas. O Partido

os ataques ao pensamento e à luta

Socialista Unificado é mais simpático

de esquerda que foi criminalizada

às FHAR, mas não compartilha das

e “anormalizada” no decorrer do

propostas revolucionárias da frente.

século XIX e XX, sendo combatida

Diante disso, os olhares se voltam à

com o direito penal, a medicina e a

extrema esquerda.

psiquiatria.

Guy Hocquenghem, comprometido

Esse discurso reproduz o

com a organização maoísta VLR

pensamento binário subalternizado

(Vive la Revolution) sugeriu a

e a uniformização, essenciais à

utilização do periódico “Tout”,

modernidade, e tarefa principal

na época dirigido por Jean Paul

do estado e do direito modernos.

Sartre, que abre as portas à frente.

A esquerda caía na armadilha

Alguns membros das FHAR

moderna, se é que, efetivamente,

redigem as quatro páginas centrais

esteve, de forma majoritária, fora dos

do periódico. Defendem, entre

grilhões da modernidade , em algum

outras coisas, que os homossexuais

momento. A concepção de história,

saiam do gueto mercantil em que

de esquerda, foi, e ainda é, em

a sociedade burguesa os colocou.

muitos casos, uma concepção linear

No dia 1º de maio de 1971 as FHAR

moderna, encontrando, entretanto,

procuram se aproximar ainda mais

importantes críticas em autores

do movimento operário. Alguns

como Walter Benjamin. (BREVILLE,

gays radicais desfilam ao lado dos

2012, p.35).

sindicatos carregando um grande cartaz que diz: “Abaixo a ditadura

O flerte entre o movimento

dos normais”. Entretanto, a aceitação

revolucionário e o projeto

do movimento revolucionário gay

revolucionário operário tem um triste

encontrará muitas dificuldades e

episódio que pode ilustrar como o

será combatido à direita e à esquerda.

Partido Comunista Francês sucumbe à modernidade6, e logo, compromete

De maneira que ilustra bem a

qualquer projeto revolucionário

nossa hipótese (da necessidade de

efetivo7 . Em 1972, Pierre Juquin


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resume a posição do Partido

os grupos oprimidos (“elxs”) e

Comunista Francês afirmando que:

inviabiliza ou dificulta extremamente

“La cobertura de la homossexualidad

qualquer projeto alternativo de

o de la droga nunca tuvo nada

construção de uma sociedade plural,

que ver con el movimiento obrero.

não hierarquizada (entre nós versus

Tanto una como la otra representan

eles) e não excludente. Um ponto

incluso lo contrario del movimiento

para investigação e reflexão pode ser

obrero.”(BREVILLE, 2012, p.19).

realizado a partir destas conclusões: em que medida o movimento

Durante um encontro do Partido,

gay, os movimentos feministas,

Jacques Duclos (que foi candidato

entre outros, de movimentos

à presidência da França pelo PCF),

de resistência, de ruptura ou de

ao ser perguntado por um militante

negligência (profanação) em relação

das FHAR se o Partido Comunista

à modernidade, se transformaram

tinha revisto suas posições sobre

em movimentos reivindicatórios de

supostas perversões sexuais, agride

permissões de “jouissance” por parte

verbalmente de forma violenta todos

do estado. Fica, por enquanto,

os militantes gays com um discurso

a provocação.

muito semelhante a um discurso religioso de direita, ao afirmar que

Ao combater o capitalismo

“as mulheres francesas são sãs; o

moderno, as esquerdas e vários

PCF é são; os homens são feitos

de seus mais importantes

para amar as mulheres”.(BREVILLE,

pensadores (não generalizando,

2012, p.19).

é claro), reproduzem a lógica binária; a linearidade histórica

O que assistimos, desde então, é

e o universalismo “europeu”,

uma cada vez maior fragmentação

estranhando e subalternizando o

das lutas por direitos, o que

diferente. Mais uma vez ocorre a

compromete o seu sucesso,

contaminação pela modernidade

facilita o atendimento de demandas

de lutas de resistência ou de lutas

por meio de permissões, divide

por rupturas. Vislumbramos lutas

6 Para entender o texto é necessário lembrar o sentido de “modernidade” empregado no texto. 7 Na perspectiva de que a modernidade (representada pelo estado e o direito moderno) cria e sustenta o capitalismo e logo, qualquer tentativa de superar este sistema econômico deve implicar na compreensão para superação da modernidade nos seus elementos nucleares: uniformização e logo rejeição da diversidade; falsa universalização; justificativas de poder sustentadas sobre o pensamento binário de subalternização do outro; história linear; separação do indivíduo da natureza e concepção de um indivíduo monolítico, não processual e isolado.


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internas de transformação da

moderna ou sua superação por

modernidade, mas as pretensões

meio de transformações estruturais.

de rupturas revolucionárias não

Um trabalho a ser feito, pode ser o

se mostraram tão profundas,

de identificar as pequenas diárias

pois, ao pretender romper com a

“profanações”.

economia capitalista moderna, esses movimentos não foram capazes

Judith Butler começa a nos falar em

de ver dispositivos modernos

diversidade, para além da diferença.

uniformizadores e excludentes, mantendo-os intactos.

DIREITO À DIVERSIDADE

Pensando dessa forma, a ruptura

Quando falamos em direito a

não era tão grande assim, e talvez

diferença devemos perguntar:

este ponto tenha sido um de seus

diferente de quê?

grandes problemas: a violenta ruptura revolucionária manteve

Se o direito à diferença como

funcionando os dispositivos

direito individual é uma infiltração

e mecanismos modernos

na modernidade, o direito à

mencionados. A revolução deve ser

diferença como direito coletivo

para a superação da modernidade

traz um potencial ainda maior de

(sua essência excludente

comprometimento da uniformização

uniformizadora e binária opressora)

moderna. O estado moderno sempre

e não apenas contra um sistema

reagiu com enorme violência a toda

de produção essencialmente

tentativa de se estabelecer um

excludente, pois binário opressor

sistema alternativo de organização

e uniformizador: o capitalismo.

social que não funcionasse sobre

Acrescentamos neste ponto uma

as bases modernas uniformizadas,

reflexão importante a partir de

hierarquizadas e binárias

Agambem e o seu conceito de

subalternas.

profanação: talvez a revolução não precise e não deva ser contra

No Brasil, apenas no século XXI

a modernidade, mas a revolução

encontramos alguns processos mais

radical ocorrerá com a “profanação”

efetivos de “reconhecimento” de

da modernidade, com a negligência

direito dos povos quilombolas e

diária aos seus mecanismos

sua forma distinta de organização

excludentes e uniformizadores:

de direito propriedade. Entretanto,

a isso chamamos de infiltrações.

se de um lado se ampliam os

Essas infiltrações diárias aumentam

reconhecimentos e aumenta a

constantemente até um ponto de

população quilombola, de outra

possível ruptura da “barragem”

aumentam os ataques no sentido de


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descaracterizar sua cultura e forma

majoritária e a reconstrução

de viver e se organizar.

da relação entre Constituição e Democracia; a superação da

Mas, tudo isso ainda é muito

fórmula “Roma Locuta, Causa

moderno: ao admitirmos um

Finita” que marca o funcionamento

direito à diferença como direito

do Judiciário moderno e da

individual ou coletivo, admitimos

mesma democracia representativa

que o estado (moderno) ainda

majoritária; a superação de um

pode e deve estabelecer padrões

sistema monojurídico com um único

superiores de organização social e

direito de família e de propriedade,

comportamento individual. Quando

por um sistema plurijurídico; uma

falamos em direito à diferença

nova concepção de pessoa singular

devemos nos perguntar: diferente

plural e processual e uma nova

de quê? Respondemos: do padrão

concepção de natureza que inclui

civilizatório, do padrão do bom, do

toda a vida, incluindo da pessoa.

melhor, estabelecido pelo estado e seu direito: “reconheço o outro

O núcleo destas transformações

diferente, na sua diferença, mas

está na construção de um espaço

deixo claro sua diferença como algo

de diversidade, na proteção

estranho, que foge aos padrões

constitucional ao direito à

de civilização moderna masculina,

diversidade como direito individual

branca e europeia”.

e coletivo. O direito à diversidade não se confunde com o direito

As Constituições da Bolívia e

à diferença, que mencionamos

Equador vêm construir um outro

anteriormente. No direito à diferença

direito: o direito à diversidade como

(individual ou coletivo) o estado e o

direito individual e coletivo.

sistema jurídico moderno continuam atuando no sentido de reconhecer,

Como mencionado no início

de incorporar aos seus padrões,

deste texto, vários são os pontos

ainda estabelecendo uma referência

de ruptura com a modernidade

de melhor. O processo pode ser

que podem ser percebidos e

expresso na seguinte equação: o

precisam ser discutidos. Esses

ordenamento reconhece o outro

pontos de ruptura podem significar

diferente (estranho, esquisito, fora

uma reconstrução da Teoria da

dos padrões), enquadra na lei,

Constituição, da Teoria do Estado

protege sua manifestação como

e mesmo da Teoria do Direito

algo fora do padrão, e permite

modernas. Em vários outros textos

a existência e manifestação. Um

trabalhamos alguns destes aspectos,

reconhecimento de existência

como a superação da democracia

(como se para existir fosse preciso


36

o olhar deste grande pai: o estado e seu direito) e uma permissão de “jouissance”. As lutas de diversos grupos “minoritários” por direitos é uma luta por reconhecimento e permissão ou por conquista de direito? É uma luta pela incorporação no sistema ou pela construção de um outro sistema? O direito à diversidade segue outra lógica. Em primeiro lugar não há permissões nem reconhecimentos. Não há inclusão porque não pode haver exclusão. A lógica pode ser resumida nas seguintes frases: “existo e me apresento na minha existência”. “Não dependo do seu olhar ou de seu registro para que eu exista”. Reconhecimento significa conhecer de novo, significa enquadrar no já conhecido. Tratase de uma forma de enquadrar o novo nos padrões existentes ou de simplesmente não conhecer o novo, ou ainda não possibilitar a existência do novo, como tal, de forma autônoma. Reconhecer significa ainda manter a lógica binária incluído/excluído. Se sua existência depende do reconhecimento, ao reconhecê-lo afirmo a possibilidade, também, de não reconhecê-lo. Na lógica da diversidade não há mais reconhecimento, pois não há mais um padrão do melhor: diferente de quê? Não há mais este “que” ou “quem” que se estabelece como referência do bom.


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38

O outro não é mais o inferior,

diálogo obrigatório nos espaços

a ameaça, o medo; o outro se

de diversidade não será uma fusão

transforma na possibilidade do novo.

de argumentos, nem uma soma de

O outro é aquele que tem o que eu

argumentos, muito menos a vitória

não tenho, e eu tenho o que ele não

de um argumento, mas sim um novo

tem. Assim os outros representam

argumento, construído pela postura

uma possibilidade imensa de

de abertura, onde todos devem

crescimento e aprendizado para

abrir mão de alguma coisa para que

todos os outros e para mim.

todos possam ganhar alguma coisa, e tudo pode ser permanentemente

Portanto, um espaço de diversidade

discutido e rediscutido.

é um espaço de existência livre comum. O espaço de diversidade

O direito à diversidade (individual e

é o espaço de diálogo permanente

coletivo) parte do pressuposto da

em busca de consensos sempre

complementaridade. No lugar de

provisórios. O espaço de diversidade

hegemonias, linearidades históricas,

requer uma postura de abertura para

superioridades culturais, missões

com o outro, os outros.

civilizatórias ou proselitismos,

Ouço o outro não para derrotar

a diversidade é convivência

seu argumento, não para vencê-lo,

que tem por base a lógica de

o que impossibilita o diálogo, ouço

complementaridade: os que os

o outro para aprender com ele

outros têm eu não tenho, os que os

assim como o outro me ouve para

outros não têm, eu tenho, somos

aprender comigo. A resultante do

assim complementares.


39

REFERÊNCIAS BREVILLE, Benoît, “Homosexuales e subversivos” in BREVILLE, Benoît et VIDAL, Dominique (compiladores);

BUTLER, Judith. “El genero en disputa - el feminismo y la subsversion de la indentidad”, Paidós, Barcelona, Buenos Aires, México, 4 impression, marzo 2011.

Revoluciones que cambiaran la historia -

BUTLER, Judith. “El genero en disputa

sociales, políticas, nacionales, culturales,

- el feminismo y la subsversion de la

sexuales. 1 ed. Buenos Aires, Capital

indentidad”, Paidós, Barcelona, Buenos

Intelectual, 2012, pagina 19.

Aires, México, 4 impression, marzo 2011,

BREVILLE, Benoît, “Homosexuales e

página 13.

subversivos” in BREVILLE, Benoît et

GORN, Elliot J., “Motehr Jones, la madre

VIDAL, Dominique (compiladores);

del sindicalismo norteamericano” in

Revoluciones que cambiaran la historia -

BREVILLE, Benoît et VIDAL, Dominique

sociales, políticas, nacionales, culturales,

(compiladores); Revoluciones que

sexuales. 1 ed. Buenos Aires, Capital

cambiaran la historia - sociales, políticas,

Intelectual, 2012, pagina 35.

nacionales, culturales, sexuales. 1 ed. Buenos Aires, Capital Intelectual, 2012, página 19.


40


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43

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA uma nova fronteira entre o tradicional e o nacional Myriam Martins Alvares1

O processo de escolarização das

a partir do Império, o Estado aliado à

populações indígenas no Brasil nos

Igreja assume sua realização.

convida a realizar uma reflexão sobre

A educação escolar indígena esteve

as relações entre a Antropologia

sempre definida por um projeto

e a Educação, particularmente, no

claro – catequizar e civilizar os

que se refere à escolarização das

índios – abolir a diferença. Apesar

populações indígenas no Brasil.

dessa longa história de experiências escolares entre os povos indígenas

Embora contemporâneos à

(que apenas recentemente começam

colonização, o ensino escolar e

a se transformar em objeto de

a implantação de escolas nas

estudos antropológicos sob a

sociedades indígenas se tornam

perspectiva da “história indígena”),

objeto de uma reflexão mais

é somente dentro do contexto

sistemática somente nestas últimas

dos movimentos indígenas e

quatro décadas. Fruto do contato,

indigenistas que a educação escolar

a educação escolar indígena esteve

indígena ganhará novos contornos

primeiro a cargo dos Jesuítas e de

e assumirá um novo papel frente

outras ordens religiosas,

às sociedades indígenas, tornando-

1 Professora do Instituto de Ciências Sociais da PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1189207945915564


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se, então, objeto de uma reflexão

nacional de educação escolar

crítica sobre a sua prática e sobre

indígena, com o objetivo de garantir

os processos desencadeados para

a oferta de qualidade aos povos

e pelos próprios grupos indígenas.

indígenas, caracterizada por ser

A educação escolar indígena passa

específica, diferenciada, intercultural

de instrumento de dominação a

e bilíngue.

instrumento de reafirmação étnica e cultural, fonte de conhecimento da lógica da sociedade nacional e veículo para a autodeterminação dos

PANORAMA ATUAL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL

povos indígenas. Em 1999, foi realizado, pelo INEP É, portanto, dentro de um discurso

(Instituto de Pesquisas Educacionais

de resistência político-cultural e

Anísio Teixeira)/MEC, o primeiro

de luta pelos direitos indígenas

censo escolar indígena.

que a questão escolar vai se

Foi o primeiro levantamento

configurar. O contexto de luta

específico, que possibilitou traçar

dos movimentos indígenas por

um panorama da situação escolar

seus direitos, garantidos por lei a

indígena no Brasil, com informações

partir da Constituição de 1988 e da

sobre escolas, professores e

publicação pelo MEC das “Diretrizes

estudantes indígenas de todas as

para a Política Nacional de Educação

regiões do país.

Indígena” em 1993 e, posteriormente, consolidados pela LDB de 1996 e

Mas é somente com o documento

pelo “Referencial Curricular Nacional

“Estatísticas da Educação Escolar

para as Escolas Indígenas” lançados

Indígena”, produzido, em 2007,

em 1998, instituem, oficialmente, as

por INEP/SECAD/MEC que podemos

“Escolas Indígenas Diferenciadas,

traçar um quadro comparativo da

Interculturais, Específicas e

realidade escolar indígena brasileira.

Bilíngues”, que deverão ser levadas

Segundo o documento, os números

a cabo pelo Estado em parceria

levantados pelo Censo Escolar

com os povos indígenas. Toda a

de 2005 indicam um aumento do

legislação brasileira, a partir da

número de escolas indígenas e de

Constituição de 1988, portanto, deu

estudantes indígenas, bem como

base para a construção de um novo

maior progressão em termos das

paradigma em relação à educação

séries frequentadas. O aumento

intercultural, entendendo-a como

do número de escolas indígenas,

um direito constitucional dos povos

que passou de 1.392 em 1999 para

indígenas e abriu caminho para a

2.323 em 2005, explica-se não

implementação de uma política

somente pela criação de novas


45

escolas, fato que certamente

relação ao aumento de estudantes

ocorreu nesse período, mas também

da quinta à oitava série, é um

pela regularização de um grande

dos reflexos dos programas de

número de escolas e salas de aula

formação de professores indígenas,

que antes não eram reconhecidas

que possibilitaram que esses níveis

como indígenas. Em muitos Estados

de ensino começassem a ser

da Federação criou-se a categoria

ministrados em algumas aldeias.

escola indígena como unidades autônomas dentro do sistema de

Chama a atenção também o

ensino, e, com isso, se regularizou

aumento do número de matrículas

a situação de muitas escolas

no ensino médio. Em 1999 elas

localizadas em terras indígenas,

totalizavam 943 e, em 2005,

antes consideradas salas de

passaram para 4.270. Apesar do

extensão de outras escolas.

crescimento evidente, o número de matrículas no ensino médio

O documento também analisa o

nas escolas indígenas é ainda

número de estudantes indígenas:

absolutamente incipiente, revelando

um expressivo aumento desse

a baixa estruturação dos níveis

número, que, em cinco anos,

de ensino nas terras indígenas.

aumentou em quase 50%.

Ao não oferecer esse nível, os

Nesse período, impressiona ainda

alunos indígenas interessados em

o crescimento das matrículas na

prosseguir nos estudos devem

educação infantil e em creches .

sair das terras indígenas e buscar

Em relação aos estudantes, o dado

a continuidade dos estudos em

significativo é que a distribuição

escolas não indígenas, nas zonas

dos alunos pelas diferentes séries

rural e urbana.

do ensino fundamental (antes concentrados na primeira série do

Várias escolas passaram a contar

ensino fundamental) melhora o que

com materiais didáticos específicos.

demonstra maior estruturação e

Produzidos, em sua grande maioria,

organização das escolas indígenas.

em contextos de formação de

A melhor distribuição dos alunos

professores indígenas, esses

indígenas pelas séries do ensino

materiais, editados em português,

fundamental, principalmente em

nas línguas indígenas e em versões

2 Cabe chamar a atenção para o fato que a expansão “para cima”, ou seja, para a conclusão do ensino obrigatório, é quase da mesma ordem de grandeza que a expansão “para baixo”, isto é, na educação infantil que, por lei, não é obrigatória. Esse é um fenômeno que, a nosso ver, merece maior atenção e necessita ainda ser mais bem estudado.


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bilíngues, resultam de uma política

que diz respeito à formação de

de estímulo à produção de materiais

professores indígenas como autores

diferenciados para uso nas escolas

e pesquisadores.

indígenas, que tem recebido recursos e sido priorizada pelo Ministério

Para a elaboração de materiais

da Educação nos últimos anos,

didáticos diferenciados, um

apoiando iniciativas de secretarias

investimento importante não só de

estaduais e municipais de educação,

recursos financeiros, mas também

de universidades e de organizações

humanos, é necessário. É preciso

indígenas e de apoio aos índios.

envolver os professores indígenas

Não obstante esses investimentos,

em atividades de pesquisa,

menos da metade das escolas

sistematização e organização

indígenas do País (41,54%) conta com

de conhecimentos, a partir de

algum tipo de material diferenciado.

propostas de ensino que busquem

Apesar do avanço, sabe-se que este

a integração dos conhecimentos e

percentual é ainda insatisfatório

saberes tradicionais no cotidiano das

para o cotidiano de uma escola

salas de aula.

indígena que tenha entre os objetivos valorizar as línguas indígenas e os conhecimentos tradicionais.

A FORMAÇÃO DOS PROFESSORES INDÍGENAS

Fazendo um balanço final desta análise comparativa, podemos

O que significa, neste contexto da

concluir que: apesar dos avanços

educação intercultural, construir

conquistados nos últimos anos

políticas públicas de formação,

pelos povos indígenas quanto ao

de modo que esses profissionais

direito a uma educação intercultural,

possam exercer uma educação

muito ainda é preciso ser construído

qualificada em benefício das

em termos de prática de sala de

crianças indígenas? Uma das

aula, de formação de professores

primeiras ações para se efetivar

indígenas, de produção de materiais

esse propósito foi a criação, em

para que as escolas em terras

várias regiões do Brasil, de cursos de

indígenas ofereçam uma educação

formação de professores indígenas

diferenciada, de qualidade e que

em nível de magistério – tendo por

valorize a língua e os conhecimentos

princípio básico a construção de

tradicionais desses povos. Para que

uma educação intercultural. Dos

este quadro possa ser revertido, é

quase seis mil professores indígenas

necessária uma política mais incisiva

atuando nas escolas indígenas no

tanto em relação ao financiamento

país, 60% estão cursando ou já

de materiais específicos como no

concluíram cursos de formação em


48

magistério indígena, em nível médio,

pedagógicos, as diferentes formas

que passaram a proliferar por todo

de organização escolar (onde os

Brasil, principalmente nos últimos 20

tempos e espaços correspondem

anos, organizados pela sociedade

à lógica da aldeia e não à da

civil ou pelo Estado.

cidade), o material didático (livros, cartilhas, jogos, vídeos, discos,

Apesar de bastante diversos,

CD-ROM, feitos pelos próprios

os cursos, normalmente, são

professores) e outros instrumentos

organizados em quatro anos,

pedagógicos (constantes reuniões

através de etapas intensivas de

com as respectivas comunidades;

ensino presencial, desenvolvidas,

professores de língua e cultura

normalmente, durante os meses

indígenas contratados para atuar na

de férias e etapas intermediárias.

escola), revelam uma prática que,

Nos intervalos entre as etapas

na realidade, aponta um caminho

intensivas, os estudantes realizam

para uma forma mais democrática

estudos complementares, pesquisas,

de acolher a diversidade no espaço

trabalhos de observação e registro

público.

de prática em sala de aula, produção de material didático. Assim, os

Analisando a política de formação

professores indígenas podem

de professores indígenas no Brasil,

estudar e continuar dando classes

é importante ressaltar a participação

nas escolas, utilizando o espaço

do Movimento Indígena na gestão

de sala de aula para atividades

dos cursos. As organizações

de pesquisa e de reflexão sobre a

indígenas, principalmente as

prática pedagógica. Os currículos,

organizações de professores

pensados na perspectiva da

indígenas têm um papel de destaque

interculturalidade, apresentam

na realização dos cursos, seja como

disciplinas relacionadas aos

professores de algumas áreas,

conhecimentos do mundo não

seja no planejamento e avaliação.

indígena e também disciplinas e

Nesse sentido, um intenso processo

projetos de pesquisa relacionados

de politização e mobilização se

aos “conhecimentos tradicionais”,

desenvolve durante os cursos

que posteriormente são organizados

de formação dos professores.

como livros e outros materiais

Em muitos casos, as etapas de

didáticos.

ensino presencial oferecem a esses novos agentes políticos,

Um dos aspectos mais significativos

oriundos de diferentes contextos

desses projetos de formação é

culturais, a oportunidade de se

garantir a autoria indígena. Os

articularem, organizarem as pautas

programas curriculares, os projetos

de reivindicações, conquistarem


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50

aliados e avanços na luta pelo

e a Universidade Federal de Roraima

fortalecimento de identidades,

(UFRR), as primeiras universidades

línguas e culturas.

brasileiras a criarem estes cursos, seguidas pelas Universidade

É importante ressaltar que

Federal de Minas Gerais (UFMG)

praticamente todos os projetos de

e a Universidade do Estado do

magistério indígena no Brasil foram

Amazonas (UEA). Hoje, inúmeras

construídos numa parceria entre

universidades, por todo o Brasil,

Estado e sociedade civil, criando

têm cursos de licenciatura indígena.

um rico espaço público de debates e negociações na construção de

Seguindo as propostas curriculares

políticas públicas de formação

dos cursos de magistério indígena,

intercultural.

essas licenciaturas se organizam

São alguns exemplos de experiências

através das etapas intensivas,

de magistério intercultural:

geralmente ministradas nas

o Magistério Intercultural da

universidades, e das etapas

Comissão Pró-Índio do Acre

intermediárias, com atividades de

(CPI-AC), o Projeto Tucum do

pesquisa, projetos e produção de

Governo do Mato Grosso, o Projeto

material didático, desenvolvidos no

de Formação de Professores

espaço das aldeias. Esses cursos

Indígenas para o Magistério nos

de formação têm se configurado

Postos Indígenas Diauarum e

como espaços privilegiados de

Pavuru/ Parque Indígena do Xingu, o

desenvolvimento de uma educação

Projeto PIEI da Secretaria de Estado

intercultural, com a formação de

de Minas Gerais em parceria com a

um quadro de intelectuais indígenas

Faculdade de Educação da UFMG,

capaz de pensar e estar à frente da

entre outros.

educação escolar de seu povo. Tem também trazido novos desafios para

Com o fortalecimento e a ampliação

se pensar a educação intercultural

das escolas indígenas de educação

no âmbito das universidades

básica, surge, a partir dos últimos

brasileiras.

anos, a demanda por uma formação em nível superior, qualificando os

No caso específico da Universidade

professores para lecionarem nos

Federal de Minas Gerais, a aprovação

últimos anos do ensino fundamental

e implantação do FIEI/PROLIND,

e no ensino médio nas escolas de

a partir de 2006, foi um marco,

origem. Fruto dessa luta, começam

garantindo a presença de 142

a surgir os cursos de Licenciatura

estudantes indígenas. Em 2009,

Indígena, sendo a Universidade

através do Reuni, este curso se

Estadual do Mato Grosso (UNEMAT)

transforma em curso regular da


51

Faculdade de Educação da UFMG,

Dentro desse panorama

garantindo, assim, o direito à

fortemente marcado por políticas

universidade aos povos indígenas

e noções como “indianidade”,

brasileiros, agora não mais como

“identidade cultural”, “práticas

curso especial de matrícula única,

próprias de aprendizagem”,

como era o FIEI/PROLIND, mas

“bi ou multilinguismo”, agora,

como curso regular, oferecido a

paradoxalmente, estabelecidos

cada ano, resultado da experiência

claramente como norma e projeto

bem-sucedida do FIEI e da luta das

definidos pelo próprio Estado,

lideranças indígenas no sentido

como pensar a construção desta

de ampliar esse direito a todos os

instituição social – a escola

indígenas brasileiros, interessados

(estrangeira, mas só na sua origem,

em formar-se como educadores

visto que nascida na cultura

interculturais. A proposta curricular

ocidental) – entre os próprios

apresentada ao PROLIND, um curso

grupos indígenas? Dito de outra

de turma única, previa a formação

maneira, que formas de apropriações

do professor de primeira a oitava

específicas aos grupos indígenas

série em caráter multidisciplinar e

podem ocorrer desta educação

por área de conhecimento no ensino

escolar oficialmente definida em sua

médio, uma possibilidade inovadora

“diferenciação” e “indianidade”?

que é prevista pela LDB. Já a proposta que foi aprovada dentro do

Os problemas concretos colocados

programa Reuni, e, portanto de um

pelos processos específicos de

curso regular, acabou por ter que se

implantação de escolas indígenas

moldar muito mais às licenciaturas

nas aldeias que devem articular

existentes e que são todas de

as questões de ordem cultural

caráter disciplinar.

às dimensões burocráticas das administrações públicas tanto

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O CONTEXTO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

municipais e estaduais quanto federais levaram à percepção de que é necessário considerar cada situação escolar específica e as particularidades de cada cultura.

Podemos dizer, ancorados em dados

Neste sentido, criou-se um interesse

estatísticos, que, hoje, as escolas

e uma expectativa quanto às

indígenas são uma realidade no

pesquisas antropológicas sobre

Brasil, apesar desta realidade ser

estes povos.

recente e com muitas variáveis, se

Contudo, como coloca Tassinari:

considerarmos as regiões brasileiras.


52

... na relação entre pesquisas acadêmicas e soluções concretas para as escolas indígenas, pode-se entrever um certo descompasso entre a urgência das soluções impostas pelo dia-a-dia da sala de aula, de um lado, e a lentidão e o ritmo próprio da investigação científica séria, que busca compreender a fundo os casos e problemas analisados. (...) Neste quadro, (...) a escola indígena começa a ser vista também como espaço/momento privilegiado para o aprofundamento das próprias pesquisas sobre os etnoconhecimentos, e os professores e alunos indígenas, por sua vez, revelam-se como pesquisadores e pesquisados no contexto local. (TASSINARI, 2001, p. 46)

Portanto, refletir sobre a instituição escolar indígena como agente promotor de novas formas de sociabilidade indígena e de produção simbólica de novos significados culturais se constitui como uma questão de fundo para a compreensão da proposta da educação diferenciada e para melhor assessorar os processos de funcionamento dela – os impasses e as dificuldades que estes apresentam. A Antropologia clássica tomou como objeto privilegiado as formas “tradicionais” da sociabilidade e da cosmologia indígena. Essa vertente teórica geralmente ignorava ou não considerava como relevantes para uma análise mais profunda

a educação escolar, assim como outras instituições localizadas na aldeia: como o posto da Funai, as igrejas localizadas nas aldeias, por serem consideradas instituições “estrangeiras” às culturas indígenas, pois as origens se encontrariam, fora dessas, na sociedade nacional. Geralmente, as instituições eram tratadas a partir da perspectiva dos “estudos do contato”, mas que muitas vezes acabaram, também, por tratar as escolas indígenas como externas às culturas indígenas, buscando compreender as relações com os povos indígenas e o impacto causado nas sociedades, prioritariamente, a partir da dimensão política. Considerar as escolas indígenas como “instituições de fronteiras” como propostas por Tassinari (2001, p. 50) “... considero muito adequado definir as escolas indígenas como espaços de fronteiras, entendidos como espaços de trânsito, articulação e troca de conhecimentos, assim como espaços de incompreensões e de redefinições identitárias dos grupos envolvidos nesse processo, índios e não-índios”, permite a possibilidade de identificar variantes nas formas assumidas pelas novas formas de sociabilidade indígena e de produções simbólicas, considerando-as como precedentes de uma “estrutura cultural” inicial resultantes da reinterpretação indígena das novas situações de


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contato – novas relações e novos

em uma ideologia do individualismo

conhecimentos advindos de outra

e na lógica do trabalho ocidentais,

matriz cultural – como um processo

encontrariam resistências para a

criativo e produtor de significado.

adequação aos contextos próprios das culturas indígenas.

Contudo, é preciso alertar também para as situações de entraves e

Pensar a educação escolar indígena

de impossibilidades de retradução

como uma instituição inserida

de significados entre certas

em um contexto intercultural

situações de contato e algumas

implica em considerar as múltiplas

dimensões tradicionais das

relações entre as várias disciplinas

culturas indígenas. Os limites da

e os problemas abordados por

apropriação totalmente indígena

elas. Questões sobre a cognição,

da instituição escolar. As fronteiras

conhecimento e aprendizado se

como regiões de passagens e

relacionam às questões como

transformações permitem o fluxo

processos próprios de aprendizado,

da retradução entre significados

processos identitários em

distintos culturalmente entre ambos

situações de contato interétnicos,

os lados da fronteira. Ou seja, tanto

apropriação e ressignificação de

para a sociedade nacional na sua

conhecimentos/ideias/valores,

apreensão das culturas indígenas e a

classificação e simbolismo de

sua resignificação dentro do próprio

noções como cosmo, sociedade, ser

referencial ocidental, quanto do

humano etc. Refletir sobre a relação

seu inverso. Haveria, porém, “zonas

entre as definições e projetos

incomunicáveis” que permaneceriam

governamentais homogeinizantes

fora desse fluxo por não permitirem

sobre a educação escolar indígena

uma reapropriação significativa e

e a extrema diversidade das várias

possível entre ambas as matrizes

realidades concretas dos processos

culturais.

de implantação das escolas entre os diferentes povos indígenas,

Situações como os entraves

se impõem como premissa

burocráticos e legais impostos pelo

fundamental para melhor adequação

Estado para a implantação das

das práticas e políticas educacionais

escolas indígenas, que se enraízam

indígenas (ARACY, 2001).


55

REFERÊNCIAS ALVARES, Myriam M. 1999 “A Educação Indígena na Escola e a Domesticação Indígena da Escola”. Belém, Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Série Antropologia vol.15(2). __________________. 2004 “Kitoko Maxakali: a criança indígena e os processos de formação, aprendizagem e escolarização”. In: Revista Antropológicas, Ano 8, volume 15 (1). Recife, ______________. 2009 Crianças, Espíritos e Brancos. Mediação e transformação. In: Anais do 53º. ICA – Congresso Internacional de Americanistas. México. 2009. ALVARES, Myriam M. & outros. 2003. “Krenak, Maxakali, Pataxó e Xacriabá: a formação de professores indígenas em Minas Gerais” Em Aberto. Volume 20 n. 76. ALVARES, Myriam M., GOMES, Ana M. R. e GERKEN, C. H. 2004. Sujeitos Socioculturais na Educação Indígena: uma abordagem interdisciplinar Relatório Técnico Final. Projeto Integrado de Pesquisa FAPEMIG/SHA 668/01. CAPACLA, Marta Valéria. O debate sobre a educação indígena no Brasil (1975-1995) resenha de teses e livros. Brasília/São Paulo: MEC/MARI-USP, 1995. GRUPIONI, Luis Donisete Benzi (organizador). Índios no Brasil. Brasília: MEC, 1994. SILVA, Aracy Lopes da. 2001a. “A educação indígena entre diálogos interculturais e multidisciplinares:introdução.” In: Antropologia História e Educação. A questão indígena e a escola. São Paulo: Fapesp/Editora Global/MARI. ________________ 2001b. Práticas Pedagógicas na Escola Indígena. São Paulo, FAPESP/MARI/Editora Global. SILVA, Aracy Lopes da, NUNES, Ângela e MACEDO, Ana V. L. da S. (orgs.). 2002. Crianças Indígenas Ensaios antropológicos. São Paulo, FAPESP/MARI/Editora Global. SILVA, Aracy Lopes da & GRUPIONI, Luis Donisete. A Temática Indígena na Escola: novos subsídios para professores de 1 e 2 graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1997. TASSINARI, Antonella Maria Imperatiz. “Escolas indígenas; novos horizontes teóricos, novas fronteiras de educação.” In: Antropologia História e Educação. A questão indígena e a escola. São Paulo: FAPESP/editora Global/MARI, 2001.


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QUILOMBOS URBANOS ou URBANIZADOS? Ricardo Ferreira Ribeiro1

Já faz alguns bons anos que

preconceitos que carregavam.

pesquiso e trabalho com comunidades quilombolas em Minas Gerais, em especial desde

Sempre que uma nova turma se

2006, quando criamos o Projeto de

preparava para ir a campo, fazíamos

Extensão Lições da Terra, que busca

várias reuniões para, de certa forma,

aproximar estudantes e professores

“antecipar” um pouco do que iriam

de diversos cursos e unidades da

ali viver e para afastar certas ilusões

PUC Minas não só da realidade

sobre o que esperavam poder

dessas comunidades, como também

encontrar.

dos povos indígenas, assentamentos

Em 2009, fizemos um pequeno

de reforma agrária e vários outros

cordel intitulado “A peleja do

movimentos sociais do campo.

estudante para aprender as lições da

Creio que temos obtido sucesso

nossa terra”, em que destacávamos

neste objetivo, pois muitos

o processo de aprendizado do

estudantes revelam que conviver,

projeto, através dos seguintes

por alguns dias, durante o período

versos:

de férias, com as famílias de tais comunidades, experimentando as dificuldades e alegrias dessa gente, marcou a vida acadêmica deles e contribuiu para modificar vários

Mas também ensina, Realiza muita troca, Descobre que índio Já não vive em oca, Nem imagina o Seu mundo como toca.

1 Professor do Instituto de Ciências Sociais da PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8265879063684745


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Já usa sua internet Pra ouvir boa fofoca, Tem celular de moda Toma muita coca, E fica tanto plástico Que de lixo se sufoca. Aprende que ser índio, Não é andar pelado, Coberto de pena, mas Guardar de antepassado, Aquilo tudo que merece Ser por ele conservado. O camponês e o quilombola Não querem viver no passado, Desejam melhoria na casa, E no trabalho do roçado, Sofrer na enxada, no escuro Vai ficando desusado.

Como antropólogo, procurei, assim, na Roda de Conversa com a Comunidade Quilombola de Mangueiras, realizada na V SCAP, mostrar que, quando falamos de comunidades quilombolas, em pleno século XXI, não devemos ter em mente a imagem nem de Palmares, nem dos guerreiros de Zumbi, fugitivos da escravidão do período colonial, que perdurou até pouco mais de cem anos. É certo que também tivemos, em Minas, dezenas, podemos mesmo falar em algumas centenas de quilombos ao longo dos séculos XVIII e XIX, espalhados por várias partes do território, onde muitos africanos e descendentes resistiram ao cativeiro. Porém, na contemporaneidade, o conceito de quilombo ganha novas dimensões e amplia a perspectiva dessa resistência. Sabemos, hoje,


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que muitas foram as estratégias

menos o seguinte: “Esse negócio de

para buscar a liberdade e para

quilombo urbano, eu não sei, não...

manter as identidades em meio a

Não fomos nós que viemos para

uma sociedade racista e autoritária.

a cidade, é a cidade que está nos

As comunidades de “pretos”,

engolindo! ”

como eram chamadas, buscavam ocupar ou adquirir as terras

Em um primeiro momento, pode-

marginais às grandes fazendas,

se pensar que, na prática, dá no

onde continuavam, muitas vezes,

mesmo, ou seja, a comunidade está,

trabalhando mesmo após a alforria

cada vez mais, inserida no contexto

ou a abolição. Ali resistiram, através

urbano de periferia e vivenciando

da solidariedade interna, procurando

todos os problemas daí advindos.

manter as tradições e absorvendo as

Essa realidade é muito diferente

novidades que vinham da sociedade

daquela experimentada pela maioria

mais ampla.

das comunidades quilombolas, localizadas em áreas rurais, cuja

Dentre essas transformações,

vida está assentada nas atividades

continuando minha exposição

agropecuárias, no extrativismo e no

na V SCAP, apresentei como

artesanato. As principais ameaças

exemplo o fato de existirem o que

ao território vêm dos conflitos com

a literatura vem consagrando como

os fazendeiros vizinhos, da chegada

“quilombos urbanos”, apontando

de grandes empresas mineradoras

entre eles, o caso de Mangueiras.

ou da criação de unidades de

Localizado às margens da rodovia

conservação, como parques e

MG-20, que liga Belo Horizonte a

reservas biológicas.

Santa Luzia, e em meio a bairros regulares e ocupações populares,

As comunidades quilombolas

esse quilombo está em área de

inseridas no contexto urbano, em

grande concentração urbana. E

grande parte, têm dificuldades de

não se trata de um caso isolado.

desenvolver aquelas atividades

Existem outras comunidades

econômicas e dependem do

quilombolas em situação semelhante

trabalho assalariado e informal,

na Região Metropolitana de Belo

pois não contam mais com

Horizonte e de outras cidades pelo

uma abundância de terras que

país afora. No entanto, logo em

permitam manter várias daquelas

seguida a esses meus comentários,

práticas tradicionais. A expansão

o presidente da Associação

urbana vem, ao longo de décadas,

Quilombola da Comunidade de

“comendo pelas beiradas” o

Mangueiras, Maurício Moreira dos

território, “regularizando” o que

Santos, corrigiu-me, dizendo mais ou

antes lhes pertencia por tradição e


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uso. Assim, se a luta por território é

Os quilombolas de Mangueiras

um elemento comum a comunidades

ressentem-se com o fato do esgoto

quilombolas rurais e urbanas, cada

das vizinhanças poluir o principal

realidade possui modos de vida

córrego do território deles, que

específicos e adversários diferentes

atravessa vários dos quintais.

nesses confrontos.

Embora não utilizem essa água para consumo doméstico, ela era

Para entender, no entanto, o ponto

empregada para o lazer e para os

de vista de Maurício dos Santos,

rituais de fé.

creio que partilhado pelos vizinhos, é preciso ir ao Quilombo de

Sem estarem cercados, os limites

Mangueiras, observá-lo de fora,

do território estão ameaçados

de certa distância e depois entrar

pelas ocupações vizinhas e pelo

com calma e muito respeito,

livre trânsito para uso de eventuais

indo além mesmo das casas dos

recursos naturais: as dificuldades

moradores. O que salta aos olhos de

socioeconômicas colocam em

qualquer um é que a área ocupada

disputa comunidades que possuem

pelo quilombo é uma “ilha verde” em

níveis de renda semelhantes. No

meio a um “oceano” de urbanização.

entanto, a principal ameaça à

As casas das famílias ocupam cerca

comunidade está associada aos

de dois hectares, com quintais de

impactos socioambientais da

hortas e várias árvores frutíferas,

expansão do chamado Vetor Norte,

mas que representam pouco menos

com o revigoramento do Aeroporto

de 10% do total do território atual,

de Confins e a implantação da Linha

dominado por uma pequena mata

Verde, da Cidade Administrativa e

com expressiva biodiversidade.

de vários novos projetos naquela

Os quilombolas não só conhecem

região. Tal expansão contribuiu

como utilizam essa vegetação

para um maior interesse imobiliário

para fins medicinais, alimentares,

e para a elaboração de projetos

religiosos e outros. Eles valorizam

viários correspondentes, como é o

o ambiente natural não apenas por

caso da Via 540 e o entroncamento

esses usos, mas pelos significados

com a MG-20, que atingiriam

simbólicos associados às crenças de

parte do território do Quilombo de

matriz africana. Alguns moradores

Mangueiras.

são carroceiros e dependem também desse ambiente para criar

Muitos são os problemas dessa

os animais, mostrando que um

comunidade e constituem-se em

pouco de rural sobrevive no modo

desafios para a atuação de extensão

cada vez mais urbano de viver.

da PUC Minas que, por meio da


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Coordenação de Extensão da Unidade São Gabriel, foi contatada pela comunidade para contribuir neste processo, assessorando os moradores e a associação na busca de soluções sustentáveis. Se a cidade vem “engolindo” o quilombo, ela vai ter que “digerir” também os problemas advindos da fome de espaço, sabendo respeitar as diferenças socioculturais e ambientais próprias dessa comunidade.


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CIGANOS no BRASIL:

breves considerações Rodrigo Corrêa Teixeira 1 Vinícius Tavares 2

Entre as inúmeras hipóteses acerca

Como a experiência de desrespeito

das origens das populações ciganas,

está ancorada nas vivências dos

as mais consistentes são aquelas

ciganos, de modo que possa dar

que os situam no nordeste da Índia,

motivação para a resistência social,

baseando-se em estudos linguísticos

para o conflito e, sobretudo, para a

do romani. Desconhecem-se as

luta por reconhecimento?

causas que motivaram a diáspora dos ciganos, nem em quais datas

A luta por reconhecimento é um

precisas se iniciaram diversas

aspecto central na formação das

informações sobre a presença em

identidades pessoais e coletivas,

distintos países europeus.

como elemento no qual se movem e se constituem as subjetividades

Quais são as características dos

cotidianas. Ao longo do processo

chamados “ciganos”? Será o termo

de construção da identidade, em

“cigano” um identificador de uma

seus diferentes estágios, ocorrem

tradição cultural homogênea ou,

interiorizações de esquemas

antes, a unidade cultural de um

padronizados de reconhecimento

conjunto de minorias heterogêneas

social. Nesse processo, o indivíduo

e autônomas? Ou, mais, será

aprende gradativamente a

este apenas um estereótipo, uma

perceber-se como membro de um

categoria social imposta a grupos

grupo social, com necessidades

sociais minoritários dominados?

e capacidades peculiares à sua

1 Professor do Departamento de Relações Internacionais na PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5175996400497848 2 Vinicius Tavares é bacharel e mestrando em Relações Internacionais pela PUC Minas.


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personalidade, através da reação positiva de seus parceiros de interação. Em seu processo de socialização, cada sujeito interioriza formas de reconhecimento social inerentes ao seu grupo sociocultural (HONNETH, 2003). As interações sociais de reconhecimento mútuo favorecem a construção de uma identidade do “eu” autônoma e, ao mesmo tempo, socialmente integrada. A supressão dessas relações produz experiências de frustração, vergonha e humilhação, trazendo consequências nefastas ao processo de construção da identidade (HONNETH, 2003). Os conflitos gerados por ataques à identidade pessoal ou coletiva e as ações que neles se originam têm em seu cerne a busca pela restauração de relações de reconhecimento mútuo. O nexo existente entre a experiência de reconhecimento e a relação consigo próprio resulta da estrutura intersubjetiva da identidade pessoal: os indivíduos se constituem como pessoas unicamente porque, da perspectiva dos outros que assentem ou encorajam, aprendem a se referir a si mesmos como seres a que cabem determinadas propriedades e capacidades. A extensão dessas propriedades e, por conseguinte, o grau da autorrealização positiva crescem com cada nova forma de reconhecimento, a qual o indivíduo pode referir a si mesmo

como sujeito: desse modo, está inscrita na experiência do amor a possibilidade da autoconfiança, na experiência do reconhecimento jurídico, a do autorrespeito e, por fim, na experiência da solidariedade, a da autoestima (HONNETH, 2003, p. 272).

Ao tentar compreender perspectivas ciganas (“vozes ciganas”) e discutilas no contexto da sociedade civil no Brasil, torna-se necessário colocar a luta pelo reconhecimento dos ciganos no Brasil no contexto da interpretação de suas ações. Significa compreendê-los em suas possibilidades de desenvolver, nas interações sociais, os componentes de reconhecimento num dado contexto sociocultural, promovendo a autoconfiança, o autorrespeito e a autoestima. Desde o século XV a palavra “cigano” é utilizada como um insulto (FRASER, 1992. p. 48). De fato, o termo aparece registrado pela primeira vez em português em Farsa das ciganas, de Gil Vicente, provavelmente em 1521. Nessa peça teatral, os ciganos são considerados como originários da Grécia (VICENTE, s.d., p.319-329). No século XIX, no Brasil, não se fala nem que são originários da Grécia nem da Índia, apesar de ganhar cada vez mais força, na Europa, a explicação de que os ciganos teriam vindo do subcontinente indiano. No entanto, há menções


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sobre ciganos, no Brasil, em que

kalderash, autoproclamada a mais

eles se diziam descendentes de

“autêntica” e “nobre” entre as

antigos egípcios. Além disso, muitas

comunidades ciganas. A segunda

vezes foram chamados de “turcos”,

é a do grupo linguístico vlax

talvez pela associação ao Império

romani, considerado, por muitos

Turco-Otomano mencionada nos

pesquisadores, como portador da

passaportes.

“verdadeira língua cigana”.

Nas últimas décadas, pesquisadores,

Os sinti, também chamados

ciganos ou não, consagraram

manouch, falam a língua sintó e

a distinção dos ciganos, no

são numericamente expressivos na

Ocidente, em três grandes grupos.

Alemanha, Itália e França.

O grupo rom , demograficamente

No Brasil, nunca foi feita uma

majoritário, é o que está distribuído

pesquisa apurada sobre sua

por um número maior de países.

presença. Provavelmente, os

É dividido em vários subgrupos

primeiros sinti chegaram ao país

(natsia, literalmente, nação ou

também durante o século XIX,

povo), com denominações próprias,

vindos dos mesmos países europeus

como os kalderash, matchuara,

já mencionados.

3

lovara e tchurara. Teve a história profundamente vinculada à Europa

Os calon, cuja língua é o caló,

Central e aos Bálcãs, de onde

são ciganos que se diferenciaram

migraram a partir do século XIX

culturalmente após um prolongado

para a Europa Ocidental e para

contato com os povos ibéricos.

as Américas. Muitas organizações

Da Península Ibérica, onde ainda são

ciganas e vários ciganólogos têm

numerosos, migraram para outros

tentado substituir, no léxico, ciganos

países europeus e da América.

por roma. A esse processo tem-se

Foi de Portugal que vieram para o

denominado romanização, e tem a

Brasil, onde são aparentemente o

intenção de conferir legitimidade

grupo mais numeroso. Embora os

a estes grupos como sendo o dos

calon tenham sido pouco estudados,

“verdadeiros ciganos”. Há ainda,

acredita-se que não haja entre eles

pelo menos, duas derivações dessa

algo que se assemelhe à complexa

política. A primeira, a do subgrupo

subdivisão étnica dos rom.

3 Rom, substantivo singular masculino, significa homem e, em determinados contextos, marido; plural roma; feminino romni e romnia. O adjetivo romani é empregado tanto para a língua quanto para a cultura. Apesar disso, como fazem muitos ciganólogos, a seguir sempre escreveremos “os rom” e não “os roma”, da mesma forma “os calon”, “os sinti” etc.


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Apesar dos inúmeros trabalhos nas

desejar o centro que está fora.

últimas décadas sobre os ciganos no Brasil, o conhecimento objetivo

No transcurso da história,

da população cigana ainda é

os ciganos souberam subverter

bastante precário, pois raríssimos

quase todas as situações que o

estudos produziram informações

contexto desfavorável lhes oferecia.

demográficas de qualidade que

Adaptaram-se, penetrando nas

pudessem nos orientar quanto à

lacunas que as dinâmicas econômica

produção de estimativas sérias.

e social criavam. A adaptação para a

A maior parte das estimativas sobre

sobrevivência foi o grande trunfo da

ciganos no Brasil se baseia em

condição cigana. Mesmo tendo uma

vagas impressões mais ou menos

identidade aparentemente frágil,

qualificadas, mas sempre imprecisas.

eles a recriaram frente às mais

Encontramos estimativas que vão

díspares circunstâncias.

dos 100 mil até 1 milhão de ciganos

A sobrevivência foi a realização mais

espalhados no território nacional

duradoura, o grande evento,

(MOONEN, 2011a, p.115-117),

da história cigana.

mas nenhuma representa números

Por isso Angus Fraser, autor do

embasados demograficamente.

melhor trabalho historiográfico sobre ciganos, escreve na primeira página

Os ciganos constituem-se em uma “cultura de fronteira”. A característica de cultura de fronteira é a vocação para práticas cartográficas: desenham mapas que definem a parte de dentro e os que habitam como mais significativas do que tudo o que se encontra do lado de fora e em situação de desconforto. É em função de tal

de seu livro: Quando se consideram as vicissitudes que eles encontraram – porque a história a ser relatada agora será antes de tudo uma história daquilo que foi feito por outros para destruir a sua diversidade – deve-se concluir que a sua principal façanha foi a de ter sobrevivido (FRASER, 1992, p.1).

mapeamento que as culturas de

Na perspectiva de longa duração,

fronteira olham para elas mesmas

a história dos ciganos na América

em autocontemplação. As culturas

Portuguesa e no Brasil, Império e

na fronteira, por outro lado,

República, é um conjunto de

contemplam o que está fora mais

práticas de resistência às políticas

do que está dentro, porque, não

anti-ciganas.

tendo o poder de exercitar práticas

Em vivências bastante diversificadas

cartográficas centralizantes e tendo

econômica e culturalmente, os

as fronteiras definidas pelas culturas

ciganos produziram formas de

centrais, devem necessariamente

sociabilidades que permitiram as


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comunidades sobreviverem no

Os ciganos do Brasil são uma

transcurso dos séculos, apesar

cultura singular no mundo, diferente

da discriminação generalizada da

de qualquer outra, e, entretanto,

sociedade nacional e das políticas

dividem com aqueles que os

anti-ciganas do Estado Português e,

acolhem um grande número de seus

a posteriori, do Estado Brasileiro.

aspectos culturais. No encontro

Na curta duração, novas

das culturas. Em tempos de

perspectivas para os direitos das

globalização, é preciso conceber

comunidades ciganas são delineadas

todas as culturas como agentes de

no século XXI.

unidade e de diversidade, recriando

No entanto, neste caso, são enormes

o sentido de humanidade.

os desafios para construção da justiça social.

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ÉTICA, COTIDIANO E CORRUPÇÃO1 Adriana Maria Brandão Penzim2

Discussões sobre ética têm-se

por exemplo, é bem claro que se

popularizado nos últimos anos

está a suscitar uma reflexão ética.

ultrapassando os limites acadêmicos

Tudo isso é muito interessante,

e passando a integrar de modo

uma vez que faz com que se

recorrente nossas conversas

ampliem as possibilidades de

cotidianas: fala-se em ética na

transformação social e política.

política, discute-se a ética no futebol, nos negócios...

Contudo, lamentavelmente, noto

O assunto circula em sites e blogs.

que a palavra “ética” cada vez mais

Além disso, quando se discutem,

parece ligar-se ao individualismo

como neste evento, temas relevantes

contemporâneo, popularizando-se

e complexos como a ecologia,

a ideia de que cada situação e cada

a fome no mundo, a violência,

indivíduo devem ser portadores de

a saúde, a cidade e suas vicissitudes,

uma ética particular. É por isso que

1 Trata-se da fala de abertura da mesa-redonda “Ética, Cotidiano e Corrupção”, promovida pelo Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp) em parceria com o Curso de Psicologia da PUC Minas São Gabriel, realizada em 20 de setembro de 2013, integrando a V Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel. Na ocasião deu-se o lançamento do segundo volume da série “Cadernos do Nesp”, intitulado “Ética, Política e Corrupção”. Como forma de provocação ao debate, faz-se uma breve reflexão sobre ética, moral e modos de existência no mundo contemporâneo, com destaque para a participação do sujeito na construção da sociedade. 2 Psicóloga, Mestre em Ciências Sociais, Doutora em Psicologia Social. Professora da Faculdade de Psicologia e membro do Grupo Gestor do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5267024290997213


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se diz, volta e meia, da ética (que é

leis e lógicas de condutas que se

um substantivo, isto é, substância)

constituem em modo de viver.

como um adjetivo personalizado.

No êthos, habita o ser.

Dizemos, por exemplo, fulano é um político ético...

Ética difere de moral. Ainda que não haja um consenso

A título introdutório, proponho uma

entre os pensadores sobre o que

breve reflexão sobre o tema. Fique

pertence ao domínio da moral e ao

claro que a minha contribuição

domínio da ética, tomo aqui Deleuze

restringe-se à proposição de alguns

(em entrevista a Didier Eribon),

pontos que podem vir a instigar o

para quem

debate. E este é o convite que faço a vocês, para que algo de novo possa surgir desta introdução que se constitui simplesmente em uma provocação, em que trago mais dificuldades que afirmações, e mais questões que soluções. Ética é uma palavra que se origina do grego êthos: modo de ser, caráter. Liga-se à ideia de costumes e disposições afetivas, intelectivas,

a moral se apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que consiste em julgar ações e intenções referindoas a valores transcendentes (é certo, é errado...); a ética, entretanto, faz-se como um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função de modos de ser e de existir que disso resultam. Dizemos isso, fazemos aquilo: que modo de existência isso implica? (DELEUZE, 1998, p.125)

libidinais, comportamentais que sustentam uma determinada

Tem-se aí a pergunta central que

coletividade e orientam a ação

nos cabe, a cada um e a todos,

humana em sua existência social.

fazer: — que modos de existência

Ou seja, quando falamos em ética,

se conectam e se produzem (ou se

estamos falando de estilos de

reproduzem) no meu agir, no meu

vida, da permanente invenção de

fazer, no que digo?

possibilidades de vida e de modos de existência. Uma existência

Vejam que assim pensando ética

compartilhada, coletiva.

diria respeito a algo imanente e moral a algo transcendente.

Não sem razão, êthos liga-se,

Qual o significado desses termos?

também, desde os gregos, à ideia de

De modo bem simples, podemos

morada do ser; isto é, o ser humano

dizer que é imanente àquilo que

promove uma maneira própria de

está inseparavelmente contido ou

existir, não sujeita à mera regulação

implicado na natureza de um ser e

da natureza, mas, dando-se normas,

que produz efeito em si.


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E é transcendente aquilo que o

O sujeito poderá atuar apenas de

excede, ou seja, coloca-se em um

modo moralista; porém, à ética não

plano exterior ao ser.

basta o conhecimento do código e a ele obedecer. São necessários

A moral transcende o sujeito

a assimilação e o amadurecimento

constituindo-se como um conjunto

de si como ser humano, para que a

de códigos, de proibições e

pessoa se humanize como produtor

permissões, ligados a valores

de uma conduta ética. Assim, se a

assumidos em um período histórico

conduta meramente moral é lugar

determinado e em dado contexto

de obediência, a conduta ética é

social; conjunto esse que já está

exercício de potência, pois a ética

posto de antemão, constituído por

é o ponto de partida da atuação

preceitos de teor regulatório.

humana em direção à realização da

Ou seja, a moral impõe-se ao sujeito

vida.

e sua desobediência pode resultar em medidas repressivas e castigos.

Nessa linha de pensamento,

Vale lembrar que a moral é proposta

podemos entender que o

aos indivíduos e grupos por meio de

ser humano constitui-se

aparatos institucionais (a família,

processualmente ao longo de sua

a escola, a justiça, as igrejas,

existência e sua ação no mundo

o Estado, etc.).

implica um trabalho do sujeito sobre si mesmo, tendo como pressuposto

Mas, não é a existência de um

a liberdade e a autonomia nas

código moral, ou as penalidades

escolhas que empreende em seu

e medidas repressivas aplicadas

percurso de vida.

a quem infringe esses códigos, que modificará o sujeito e o

Não nascemos prontos, somos à

transformará em sua dimensão

medida que nos constituímos.

ética. Provavelmente ele não voltará

Em permanente mutação, ser

a transgredir o código por temor,

humano é ser em construção: nunca

não se tratando de experiência

está feito de uma vez por todas;

de um aprendizado ético, mas,

configuração provisória é ser sempre

de mera submissão. “É por medo

aberto ao novo, ao devir, à invenção.

dos castigos e esperança das

Ser humano é tornar-se humano.

recompensas que o indivíduo

E é esse o nosso grande desafio,

submete-se a um poder que o

a nossa consigna permanente,

separa da sua própria capacidade de

que nos acompanha por toda a

agir e pensar livremente, desejando

vida. E é também a nossa fortuna.

sua própria servidão. ”

Podemos sempre mudar, inventar,

(FUGANTI, s/d)

caminhar no sentido de transformar


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a existência, promover novos

Sobre isso, em um belo texto,

modos de ser e de existir. A ética é

Castoriadis afirma que

imanente aos modos de existência que inventamos, que produzimos como seres do devir no exercício da liberdade. Contudo, a invenção exige um sujeito consciente da potência do existir. Um sujeito capaz de distinguir entre o que produz vida e o que produz morte. Esse sujeito tem consciência de si e do outro, tomando-o como semelhante (tem-se aí a questão da alteridade). É também um sujeito que se reconhece como autônomo, capaz de agir, seja individual ou coletivamente, em conformidade com suas próprias normas e leis, e de deliberar e de decidir, responsabilizando-se por suas ações e suas consequências para si e para os outros. É um sujeito que se reconhece produtor da vida e age como cidadão, ou seja, sujeito da pólis, sujeito político. É o sujeito político aquele que institui a sociedade. Mas, para isso, é preciso ultrapassar uma visão da realidade existente como natural e absoluta, para que possamos pensar e agir em direção a uma outra realidade, diferente e melhor, que

A história é criação: criação de formas totais da vida humana. As formas sócio-históricas não são ‘determinadas’ por ‘leis’ naturais ou históricas. A sociedade é autocriação. ‘Quem’ cria a sociedade e a história é a sociedade instituinte, em oposição à sociedade instituída [...]. A auto-instituição da sociedade é a criação de um mundo humano: de ‘coisas’, de ‘realidade’, de linguagem, de normas, valores, modos de viver e de morrer [...] acima de tudo, ela é a criação do indivíduo humano no qual a instituição da sociedade está solidamente incorporada.” (CASTORIADIS, 1987, p.280).

Construtor da sociedade, o ser autônomo está em permanente repensar sobre a sua obra — o seu fazer humano sobre o mundo. A relação com o social e com a história — que é o desenvolvimento do social no tempo —, é inerente ao ser humano (Castoriadis, 1982). A auto-transformação da sociedade diz respeito ao fazer social — e, portanto, também político no sentido profundo do termo — dos homens na sociedade e nada mais. O fazer pensante e o pensar político — o pensar da sociedade como se fazendo — é um componente essencial disso (CASTORIADIS, 1982, p. 418).

se coloca como utopia ativa, como horizonte a alcançar. Trata-se de

Em permanente questionamento,

fazer uma experiência de liberdade

há que se escolher entre ser

em direção à vida.

produtor do novo ou mero reprodutor do mesmo, de ser sujeito


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ou ser assujeitado. Se abrimos

a grande fortuna que temos como

mão da autonomia, aceitamos a

seres instituintes da sociedade

heteronomia. Se não inventarmos

implicará sempre em “um bom

a própria vida viveremos uma vida

caminho”. A história é farta ao nos

inventada por outros.

mostrar o quanto e com que força as civilizações têm sido capazes de

Mas isso não é simples. A liberdade

promover situações de exploração,

está inserida em jogos de poder e

dominação e mistificação que

nos pode parecer muito assustadora.

impedem a vida em plenitude.

Provocando em nós insegurança,

A nossa capacidade de instituir

somos tentados a escolher aceitar as

não somente criou a democracia,

coisas como estão. Entre as muitas

a justiça, a liberdade, a beleza.

forças em jogo, regulados em nossa

Criou também monstruosidades

liberdade, vivemos, cada vez mais,

(CASTORIADIS, 1987).

uma naturalização da vida e isso nos acua, nos impele a não desejarmos a

O exercício da liberdade em busca

novidade, a transformação. Mais que

da novidade exige que submetamos

isso, os conduz para que desejemos

nossos modos de vida a permanente

a manutenção do instituído.

questionamento e constante reformulação.

A auto-instituição da sociedade requer sujeitos capazes de, em

Vale lembrar, retomando o tema

conjunto e em mútua cooperação

em destaque neste debate, que a

com os demais, intervirem na

palavra “corrupção” vem do latim

realidade de modo inventivo e

corruptus, referindo-se àquilo que é

autônomo, persistindo na construção

quebrado em pedaços, apodrecido,

de uma ordem social e política

tornado podre. O que se quebra,

democrática, justa e solidária.

o que apodrece em uma situação de corrupção? Eu diria que a nossa

Livre para produzir sua percepção

casa, o nosso êthos.

do mundo, suas formas de socialização, suas instituições,

E diante da realidade, perguntamo-

suas relações, seus amores, seu

nos: – como engendrar

estilo de vida, etc., o ser humano

acontecimentos transformadores, o

pode inventar o mundo, inventar a

que fazer em nosso cotidiano?

vida. Inventar seus modos de ser e de existir, ou seja, seu ethos, sua

Não há como pretender que existam

morada.

caminhos dados, receitas prontas. Mas, certamente, há uma infinidade

Todavia, ingênuo seria pensar que

de possíveis a esperar que sejam


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realizados, mas que exigem que

por exemplo, o que entendemos

nos esquivemos do conformismo

por “crimes contra a humanidade”,

individualista em que nos temos

ou, “porque há fome no mundo”,

colocado. Isso demanda de nós a

ou sobre “a escalada do poder e

disposição para um desenvolvimento

a globalização econômica”, etc.

contínuo das nossas competências

Neste momento específico, passa

de resistência social, não somente

por nos debruçarmos sobre o tema

na dimensão do pensamento, mas,

da corrupção. Vale dizer: — Porque

sobretudo, na prática.

há corrupção no Brasil? O que eu tenho com isso? A que (e a quem)

É necessário conseguir expressar a

estamos servindo quando assistimos

ética em exercícios cotidianos.

passivos ao avanço da corrupção?

O que eu quero dizer é que

Que modos de existência estão aí

princípios éticos só adquirem

implicados?

significado efetivo quando confrontados com a realidade vivida. E para que possamos fazêlo, a compreensão do que acontece requer a sua localização no tecido da sociedade, como sustentáculo da ação. Sabendo-se da gravidade das tragédias e contradições sociais e políticas presentes no mundo contemporâneo — guerras, xenofobia, terrorismo, racismo,

Acreditar no mundo é o que mais nos falta [...] Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapam ao controle, ou engendram novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo. (DELEUZE, 1998, p. 218 – grifo do autor)

desarranjos ecológicos e tantos mais —, e na sociedade brasileira, cujos problemas vão da corrupção à fome, da desigualdade social à violência cotidiana, dentre muitos outros, é preciso procurar respostas para essas e outras questões. E isso passa por nos determos na reflexão séria e paciente, em contraposição ao “fast thinking” (BORDIEU, 1997) cotidiano que banaliza a tragédia e a morte. Trata-se de refletir sobre,

O novo se instala no mundo dos grandes agenciamentos sociais e institucionais ao mesmo tempo em que nas mais íntimas esferas de indivíduos. “Toda a catálise da retomada de confiança da humanidade em si mesma está para ser forjada passo a passo e, às vezes, a partir dos meios mais minúsculos”. (Guattari, 1997, p.56)


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REFERÊNCIAS BAPTISTA, Isabel. Razão, sensibilidade e bom senso. Jornal “a Página da Educação”, n. 106. Ano 10. Out 2001. Porto (PT). BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. CASTORIADIS, C. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. CASTORIADIS, C. A Polis Grega e a Criação da Democracia. In: CASTORIADIS, Cornelius. As Encruzilhadas do Labirinto II, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 277323. DELEUZE, Gilles. A vida como obra de arte. Le Nouvel Observateur, 23 de agosto de 1986, entrevista a Didier Eribon. In: Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1998. p. 118-126. DEMO, Pedro. Educar pela Pesquisa. 4.ed. Campinas: Autores Associados, 2000. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia; saberes necessários à prática educativa. 21.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

FUGANTI, Luiz. A ética como potência e a moral como servidão. s/d. Disponível em: <http://www.luizfuganti.com.br/>. GUATTARI, Félix. As três ecologias. 6.ed. São Paulo: Papirus, 1997. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e Sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993. SAVATER, Fernando. Ética para meu filho. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. SUNG, Jung Mo e SILVA, Josué Cândido. Conversando sobre ética e sociedade. 9.ed. Petrópolis: Vozes, 2001.


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O SONHO TRANSDISCIPLINAR1 Hilton Ferreira Japiassu2

O grande desafio lançado ao

que pretende ser, mas como

pensamento e à educação neste

abordagem cultural e social que

início de século e milênio é a

é, o transdisciplinar diz respeito

contradição entre, de um lado,

ao que está entre as disciplinas,

os problemas cada vez mais globais,

através delas e além de cada uma.

interdependentes e planetários e,

Seu projeto utópico? Contextualizar

do outro, a persistência de um modo

e globalizar, isto é, ver e avaliar um

de conhecimento ainda privilegiando

problema sob todos os seus ângulos

os saberes fragmentados,

e em todas as suas dimensões,

parcelados e compartimentados.

implicando a construção de uma

Daí a necessidade e a urgência,

visão ao mesmo tempo transcultural

para uma reforma do pensamento

e transhistórica permitindo-nos

e da educação, de valorizarmos os

compreender o mundo atual em sua

conhecimentos interdisciplinares e

complexidade e o ser humano em

promovermos o desenvolvimento,

suas ambiguidades e contradições.

no ensino e na pesquisa, de um espírito propriamente

Creio que pode ser aplicado ao

transdisciplinar.

pensamento o que Péguy dizia da poesia: “quando a poesia está em

Como abordagem “científica”

crise, a solução não consiste em

1 Conferência apresentada em 19 de setembro de 2013 na V Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas no São Gabriel. Texto revisado por Antônio Cota Marçal. 2 Licenciado em Filosofia na PUC do Rio de Janeiro (1969). Pós-Graduação em Filosofia (Epistemologia e História das Ciências) na Université des Sciences Sociales de Grenoble (França). Pós-doutorado em Filosofia na Université des Sciences Humaines de Strasbourg (França) (1985).


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decapitar os poetas, mas em renovar

distintas”, obrigando-nos a reduzir

as fontes de inspiração”. Porque

o complexo ao simples, a separar

a reforma do pensamento, longe

o que é unido, unificar o que é

de constituir um luxo intelectual,

múltiplo, eliminar tudo o que fornece

responde a uma necessidade vital:

desordens e contradições em nosso

constitui um dos componentes

entendimento. Ora, como nos vem

fundamentais para “salvarmos” a

alertando Edgar Morin, o problema

humanidade face às forças terríveis

crucial em nosso tempo é o da

que ela desencadeou sem ter

necessidade de um pensamento

condições de controlá-las.

capaz de enfrentar o desafio da complexidade do real, quer dizer,

O que podemos fazer quando

de apreender as ligações, interações

tomamos consciência de que nossos

e implicações mútuas, os fenômenos

conhecimentos atuais revelam

multidimensionais, as realidades ao

uma tremenda incapacidade de

mesmo tempo solidárias e conflitivas

pensar o mundo globalmente e em

(a democracia é um sistema que

suas partes? O que devemos fazer

alimenta antagonismos e ao mesmo

quando, diante da extraordinária

tempo os regula).

complexidade do mundo atual, constatamos que nosso pensamento

Já no século XVII, Pascal,

se encontra preso às cegueiras

ao formular este imperativo de

e miopias que caracterizam

pensamento que precisamos

nossas universidades divididas em

introduzir em todo o nosso ensino

departamentos sem comunicação?

dava-nos a seguinte orientação:

Se nossos espíritos permanecem

“considero impossível conhecer as

dominados por um modo mutilado

partes se não conheço o todo e é

e abstrato de conhecer, pela

impossível conhecer o todo se não

incapacidade de apreender as

conhecer particularmente as partes”.

realidades em sua complexidade

E acrescenta: “é mais belo saber

e em sua globalidade; e se o

algo de tudo do que saber tudo

pensamento filosófico continuar

de alguma coisa. Eis a verdadeira

se desviando do mundo em vez de

universalidade”. Queria dizer: se

enfrentá-lo para compreendê-lo,

quisermos dominar um objeto,

então, nossa inteligência passa a

não podemos confiar no

viver na miopia ou na cegueira.

conhecimento fragmentado nem apenas na apreensão holística.

Uma tradição de pensamento bastante enraizada em nossa cultura

Precisamos romper com o velho

tem nos ensinado a conhecer

dogma reducionista de explicação

o mundo por “ideias claras e

pelo elementar e considerar os


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sistemas complexos, onde as

que perdemos no conhecimento?

partes e o todo se interfecundam

E onde está o conhecimento que

e se interorganizam. Porque o

perdemos na informação? ”.

conhecimento deve efetuar, não só

E eu afirmo: o excesso de

um movimento dialético entre o nível

informação não só desinforma,

local e o global, mas de retroação do

mas deforma.

global sobre o particular. Ao mesmo tempo em que precisa contextualizar

O risco que correm as novas

o singular, o pensamento deve

gerações? Tornarem-se obesas

concretizar o global, quer dizer,

de informação e anoréxicas de

relacioná-lo com suas partes.

conhecimento. A este respeito,

Não nos esqueçamos: “a

Einstein já profetizava: “Temo o

simplificação é a barbárie do

dia em que a tecnologia venha

pensamento; complexidade,

se sobrepor à interação humana;

a civilização das Ideias”.

teremos uma geração de idiotas”. Dizia também: “Duas coisas são

Tem-se tornado preocupante o

infinitas: o Universo e a imbecilidade

estado lamentável de esfacelamento

humana. Da primeira tenho dúvidas”.

do saber. Surge por toda parte a exigência de se instaurar pelo menos

Ora, um saber em migalhas revela

um diálogo ecumênico entre as

uma inteligência esfacelada.

disciplinas científicas.

O desenvolvimento da

Porque ninguém mais parece

especialização, com todos os

entender ninguém. Mas essa

seus inegáveis méritos, dividiu

exigência apenas revela a situação

ao infinito o território do saber.

patológica em que se encontra

Cada especialista ocupou, como

nosso saber. A especialização sem

proprietário privado, seu minifúndio

limites culminou numa fragmentação

de saber onde passou a exercer,

crescente do horizonte

ciumenta e autoritariamente, seu

epistemológico. Chegamos a um

minipoder. Ao destruir a cegueira

ponto em que o especialista se

do especialista, o conhecimento

reduziu ao indivíduo que, à custa

interdisciplinar recusa o caráter

de saber cada vez mais sobre cada

territorial do poder pelo saber.

vez menos, terminou por saber

Substitui a concepção do poder

tudo (ou quase tudo) sobre o nada,

mesquinho e ciumento do

em reação ao generalista que sabe

especialista pela concepção de

quase nada sobre tudo. Ele é alguém

um poder partilhado. O espírito

que possui grandes lacunas em sua

interdisciplinar pressupõe que

ignorância. Em 1934, o poeta T. S.

reconheçamos: “o coração tem

Eliot já dizia: “Onde está a sabedoria

razões que a Razão desconhece”.


111

Possuímos qualidades de coração,

ter fome. Este saber mofado,

entusiasmo e maravilhamento

armazenado nessas “penitenciárias

que representam as raízes da

centrais” da cultura (as instituições

inteligência. E devemos renunciar, se

de ensino), além de ser indigesto

não ao desejo de dominação pelo

e nocivo à saúde espiritual, passa

saber, pelo menos à manipulação

a ser propriedade de pequenos

totalitária do discurso da disciplina.

mandarinos dominados pelo espírito

Não podemos dialogar com quem

de concorrência e carreirismo.

erige em absoluto a verdade que defende. O especialista tenta impor

É por isso que o interdisciplinar

a causa de sua especialidade como

provoca atitudes de medo e

se fosse a resposta a todo por quê;

recusa. Porque constitui uma

ou identificar seu discurso com

inovação. Como todo novo,

a origem de tudo. Este instinto

incomoda. Porque questiona o já

teológico é muito celebrado nas

adquirido, o instituído, o fixado

capelas da ciência: colóquios,

e o aceito. Se não questionar,

simpósios ou congressos.

não é novo, mas novidade. O conservadorismo acadêmico tem

De um modo geral, repete-se que

um medo pânico do novo que

o futuro pertence às pesquisas

põe em questão as estruturas

interdisciplinares. De fato, são muito

mentais, as representações coletivas

difíceis de ser organizadas. Por

estabelecidas, as ideias sobre o

causa de ignorâncias recíprocas

mundo, a educação e a boa ordem

por vezes sistemáticas. Em nosso

das coisas. O que se encontra em

sistema escolar, encontram-se

jogo, no fundo, é certa concepção

ainda relegadas ao ostracismo. Os

do saber: o modo de se conceber

arraigados preconceitos positivistas

sua repartição e o processo de seu

cultivam uma epistemologia da

ensino. Porque o interdisciplinar

dissociação do saber. Sob esse

aparece como um princípio novo

aspecto, ensina-se um saber

no processo de reformulação e

bastante alienado e em processo

racionalização, não só das disciplinas

de cancerização galopante. Seus

científicas, mas das estruturas

horizontes epistemológicos são

pedagógicas de seu ensino.

demasiado reduzidos. Ensina-se um saber fragmentado que constitui

Lamentamos que em nosso

um fator de cegueira intelectual. As

atual sistema educacional seja

escolas estão mais preocupadas

praticamente inexistente a prática

com a distribuição de suas fatias

interdisciplinar. O que existe são

de saber (ração intelectual) a

encontros multidisciplinares: frutos

alunos que nem mesmo parecem

mais da imaginação criadora e


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combinatória de alguns sabendo

obstáculo entre outros. A famosa

manejar conceitos e métodos

cabeça bem feita, arrumada,

diversos do que algo propriamente

estruturada, organizada e objetiva,

instituído e institucionalizado.

não passa de uma cabeça mal

Mesmo assim realizam-se como

feita, fechada, produto de escola,

práticas de indivíduos abertos e

modelagem e manipulação. Trata-

curiosos, com o sentido da aventura

se de uma cabeça que precisa

e sem medo de errar; de indivíduos

urgentemente ser re-feita. O espírito

que não buscam nenhum porto

interdisciplinar ajuda a refazer essas

seguro, mas se afirmam e se definem

cabeças mal-feitas, pois cultiva

por um solene antiautoritarismo e

o desejo do enriquecimento por

um contundente antidogmatismo.

enfoques novos e o gosto pela

Vejo no dogmatismo de um

combinação das perspectivas;

saber definitivo, acobertado pela

ademais, alimenta a vontade de

etiqueta “objetivo” ou pelo rótulo

ultrapassar os caminhos batidos e os

“verdadeiro”, o sintoma de uma

saberes adquiridos. Não nascemos

ciência agônica. A este respeito,

com cabeças “desocupadas”, mas

faço minhas as palavras de F.

inacabadas. A escola e a sociedade

Jacob: “Não é somente o interesse

pretendem ocupá-las pela instrução

que leva os homens a se matarem.

e pela linguagem, pela pedagogia

Também é o dogmatismo. Nada é

entupitiva. Donde a necessidade

tão perigoso quanto a certeza de ter

de se psicanalisar os educadores a

razão. Nada causa tanta destruição

fim de que se tornem agentes que

quanto a obsessão de uma verdade

despertem, provoquem, questionem

considerada como absoluta.

e se questionem, e não se reduzam

Todos os crimes da história são

ao papel ridículo de disciplinadores

consequência de algum fanatismo.

intelectuais, capatazes da

Todos os massacres foram realizados

inteligência ou revendedores de

por virtude: em nome da religião

um saber-mercadoria sem as

verdadeira, do acionalismo legítimo,

técnicas do marketing, sendo pagos,

da política idônea, da ideologia justa;

e mal pagos, para responder a

em suma, em nome do combate

questões que ninguém lhes coloca.

contra a verdade do outro, do

O professor que não cresce, não

combate contra Satã”.

estuda, não se questiona e não pesquisa deveria ter a dignidade

Ora, um saber que não se questiona

de se aposentar, mesmo no início

constitui um obstáculo ao avanço

da carreira: já é portador de uma

dos saberes. A pretensa maturidade

paralisia intelectual ou esclerose

intelectual, orgulho de tantos

precoce. Max Weber nos lembrava:

sistemas de ensino, constitui um

assim como o sacerdote rotiniza a


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mensagem do profeta, o professor

catalisadores e núcleos de inovação.

rotiniza o discurso do pesquisador,

Mas como o interdisciplinar

dele fazendo desaparecer o

constitui um fator de transformação

fundamental: o problema, tal como

capaz de restituir vida às nossas

foi posto pelo criador. Deveria

esclerosadas instituições de ensino,

também aposentar-se o que

alguns obstáculos precisam ser

prefere as respostas às questões ou

superados: a situação adquirida

ensinar a pesquisar. Tinham razão

dos “mandarinatos” no ensino

os estudantes quando escreveram

e na pesquisa (inclusive na

nos muros de Paris (maio de 68):

administração; cargos ocupados

“pesquisadores que pesquisam,

pelos medíocres); o peso da rotina

encontramos; pesquisadores que

e a rigidez das estruturas mentais;

encontram, procuramos”. Balzac já

a inveja dos conformismos e

havia profetizado: “Crie e invente,

conservadorismos em relação às

e morrerás perseguido como

ideias novas que seduzem (ódio

criminoso; copie e imite, e viverás

fraterno); o positivismo anacrônico

feliz como um idiota”.

que, preso a um ensino bastante dogmático, encontra-se à míngua

Mas é ilusório pensar que uma lei

de fundamentação teórica; a

ou medidas administrativas possam

mentalidade esclerosada de um

colocar um paradeiro a hábitos tão

aprendizado por acumulação; o

arraigados e a estruturas mentais

enfeudamento das instituições

solidamente estabelecidas. Donde a

(“departamentalização”); o

necessidade de se criar instituições

carreirismo buscado sem

dotadas de estruturas flexíveis,

competência; a ausência de crítica

capazes de absorver conteúdos

aos saberes adquiridos, etc.

novos e integrar-se em função dos verdadeiros problemas. E de adotar

Todavia, o interdisciplinar não pode

métodos fundados, não em táticas

ser praticado sem o cumprimento de

e estratégias de distribuição dos

certas exigências: a criação de uma

conhecimentos estocados, mas no

nova inteligência e de uma razão

exercício de aptidões intelectuais e

aberta capazes de formar uma nova

de faculdades psicológicas voltadas

espécie de cientistas e educadores

para a busca do Novo.

utilizando uma nova pedagogia e ousando pensar de outra forma.

Mas nada será feito de durável

Por isso, o candidato a ingressar

se não estiver fundado na

nessa aventura deveria preencher

adesão apaixonada de alguns

os seguintes pré-requisitos: ter a

e em experiências inovadoras

coragem de fazer a seguinte prece

desempenhando o papel de

ao Pai, “Fome nossa de cada dia nos


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daí hoje”; ter a coragem de devolver

um eclipse quase total, em grande

à razão sua função turbulenta e

parte, causado pela onda crescente

agressiva; ter a coragem de, no

das privatizações, da despolitização

domínio do pensamento, fazer da

e do individualismo avassalador.

imprudência um método; saber

Um sintoma concomitante: a

colocar questões (não só buscar

atrofia da imaginação política e

respostas) e não ousar “pensar

o empobrecimento intelectual de

antes de estudar”; estar consciente

nossas lideranças.

de que ninguém se educa com ideias alheias; ter a coragem de

Sócrates dizia: não posso deixar

sempre fornecer à sua razão

de filosofar, pois uma vida sem

razões para mudar; não cultivar o

exame não merece ser vivida.

gosto pelo “porto seguro” ou pela

Donde a necessidade de aceitarmos

certeza do sistema, porque nosso

uma razão aberta, o que implica

conhecimento nasce da dúvida e

admitirmos, como racionalmente

se alimenta de incertezas; não fazer

necessária, sua “desdivinização”.

concessões ao Saber, etc.

Só uma razão absoluta, fechada e autossuficiente é tão intolerante

Numa época de conservadorismo

que não consegue dialogar com o

como a nossa, precisamos ter a

irracional e o suprarracional. Por

coragem de: opor-nos a ela; ter

isso, a transformação de nossa

uma visão crítica do neoliberalismo;

sociedade é inseparável do “auto-

não ter medo de organizar nossa

ultrapassamento” da Razão. O que

esperança e de resgatar as utopias.

estou querendo dizer é que o sonho

Porque nosso conhecimento deve

transdisciplinar não somente nos

aparecer como a reforma de uma

ajuda a desmontar metodicamente

ilusão e uma retificação continuada.

o velho edifício da razão fechada,

Claro que navegar é preciso. E viver,

fonte de “verdades” acabadas e

muito mais preciso ainda. Mas se

absolutas, de visões dogmáticas e

não navegarmos com uma bússola

moralistas do mundo que alimentam

na mão e um sonho na cabeça,

os renascentes integrismos e

ficaremos condenados à rotina do

fundamentalismos, mas a nos

sexo, da droga e do credit card. E o

libertarmos do medo, inclusive do

ideal de vida proposto à juventude

medo de nossos próprios desejos.

(viciada em divertimento, ou melhor, em infotenimento) passará

Claro que o verdadeiro Topos

a ser apresentado como o mais

(lugar) do transdisciplinar ainda

compulsivo consumismo e vivido

não existe em nenhum mapa-múndi

no mais vazio niilismo. Os projetos

do saber. É um lugar inteiramente

de autonomia individual sofrem

u-tópico: transcende nossos


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conhecimentos. Por vezes aparece

para responder, racional e

como o resultado de um desejo

objetivamente, as questões

de tipo sentimental ou filosófico,

colocadas por essas três instâncias.

ideológico ou social, poético

Piaget já dizia nos anos 70, ao

ou espiritual. Tendo como fonte

reconhecer a importância da

paradoxal o sonho de compreensão

Filosofia para os cientistas:

dos resultados gerais das ciências,

o cientista que não tiver uma

aparece como a exigência de uma

sólida cultura filosófica tem um

necessidade histórica: não só de

câncer incurável. E acredito que

uma reconciliação entre o Sujeito e

seria correto dizer: nos dias de

o Objeto, entre o homem exterior

hoje, o Filósofo, o Teólogo ou

e o interior, mas de uma tentativa

qualquer outro Intelectual que

de recomposição dos diferentes

não tiver uma sólida cultura

segmentos de nossos atuais

científica, também tem um câncer

conhecimentos.

incurável! Por isso, não devemos nos esquecer da importância das

Mas, atenção! Sem os filósofos,

três características fundamentais

os expertocratas, por mais

da visão transdisciplinar: a do rigor

competentes que sejam, ficariam

na argumentação nos alerta para a

embaraçados para responder a

proteção que precisamos sempre

questão do programa kantiano:

ter contra os eventuais desvios;

“o que devo fazer? ” Se o Cosmos

a da abertura nos impulsiona a

grego foi liquidado pela ciência

estarmos sempre dispostos a aceitar

moderna, e se a Natureza não pode

o desconhecido, o inesperado e

mais ser considerada como um

o imprevisível; a da tolerância nos

modelo harmonioso permitindo-

permite sempre reconhecer as ideias

nos decifrar as finalidades morais,

e verdades contrárias às nossas.

compete à filosofia moral, política e social responder a essa questão:

Porque, como já dizia Heráclito

como devo me comportar com

(séc. VI a.C.), “a mais bela harmonia

justiça em relação aos outros?

nasce das diferenças”.

Não nos esqueçamos de que os saberes filosóficos, artísticos e religiosos constituem os melhores laboratórios a partir dos quais podemos contemplar a experiência humana em sua totalidade. Porque a Filosofia, as Artes e a Religião são as três antenas do Saber. A ciência chega sempre atrasada


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AGRADECIMENTOS Comunidade de Ciganos Guiemos Kalons - MG Comunidade Quilombola de Mangueiras - MG Comunidade Quilombola de Monte Alegre - BA Comunidade Velha Boipeba - BA Kรกtia de Alexandria


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ISBN:

978-85-8239-017-7


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