CARTOGRAFIA DAS URGÊNCIAS

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ANAISDASCAP CARTOGRAFIA DAS URGÊNCIAS





Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero (ORG)

XI SEMANA DE CIÊNCIA, ARTE E POLÍTICA DA PUC MINAS SÃO GABRIEL

ANAIS DA SCAP Cartografia das Urgências

PUC-MG Belo Horizonte 2019


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EXPEDIENTE

Organização e Edição:

Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero

Projeto Gráfico, Direção de Arte e Diagramação:

Prof.ª Dulce Maria de Oliveira Albarez

Mário Francisco Ianni Viggiano

Revisão:

Fotografias:

Affonso Uchôa e Desali, Guima Romeiro, Priscila Musa, Rafael Barros e Simone Cortezão.


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Grão-chanceler:

Reitor:

Dom Walmor Oliveira de Azevedo Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães

Chefia de Gabinete da Reitoria:

Prof. Paulo Roberto de Sousa

Prof. José Tarcísio Amorim

Assessor Especial: Pró-reitores:

Prof.ª Maria Inês Martins (Graduação)

Prof. Wanderley Chieppe Felippe (Extensão)

Prof. Sérgio de Morais Hanriot (Pesquisa e de Pós-graduação)

Prof. Paulo Sérgio Gontijo do Carmo (Gestão Financeira)

Prof. Rômulo Albertini Rigueira (Logística e de Infraestrutura)

Prof. Sérgio Silveira Martins (Recursos Humanos)

Prof. Mozahir Salomão Bruck

Secretário de Comunicação:

Secretária de Cultura

e Assuntos Comunitários:

Secretário Geral:

Secretário de Planejamento

e Desenvolvimento Institucional:

Prof.ª Maria Beatriz Rocha Cardoso Prof. Ronaldo Rajão Santiago

Prof. Carlos Barreto Ribas

Pró-reitor Adjunto

da PUC Minas São Gabriel:

Prof. Alexandre Rezende Guimarães

Diretor Acadêmico:

Prof. Cláudio Listher Marques Bahia

Coordenadora de Extensão:

Coordenador de Pesquisa:

Coordenadora da

Pastoral Universitária:

Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Prof. José Wanderley Novato Silva

Prof.ª Rosélia Junqueira Carvalho Rodrigues


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ÍNDICE

EDITORIAL

Cláudio Listher Marques Bahia Elisa C. O. Rezende Quintero 12

DIANTE DA MAIS RADICAL Sérgio de Castro 18 ALTERIDADE

PLANTAR CIDADES E CONSTRUIR FLORESTAS

CAVA FUNDA

SALVE RAINHAS DE NGOMA: Contramestiçagem, etnografia e cinema no Reino Treze de Maio

SANGUE DE BAIRRO

Wellington Cançado 31

Simone Cortezão

54

Junia Torres 73

Affonso Uchôa e Desali 99


12

EDITORIAL A Semana de Ciência, Arte e Política

Quatro ensaístas e cinco fotógrafos

da PUC Minas São Gabriel, em 2019,

participam destes Anais. O texto que

escolheu o cinema como ponto

abre a publicação é do psicanalista

de partida para uma cartografia

Sergio de Castro.

das urgências, de forma a

Diante da mais radical alteridade,

indagarmos sobre as narrativas que

Castro comenta o filme Piripkura,

o transcendem, as formas de vida,

sobre a história de Packyî e

as relações subjetivas, o Brasil e o

Tamandúa, dois índios nômades que

mundo. O evento apresentou quatro

vivem nus com um facão,

filmes na programação: Piripkura ,

um machado cego e uma tocha

A Rainha Nzinga Chegou2, Navios de

no meio de uma área protegida

1

Terra e Retratos de Identificação .

da Floresta Amazônica, cercada

E elegeu como o centro da reflexão

por madeireiros, garimpeiros e

as garantias de vida,

fazendeiros. Eles são sobreviventes

e a sobrevivência de outras formas

do Povo Piripkura – povo borboleta.

de vida, a partir de quatro eixos

O autor chama a atenção para a

norteadores: a sociedade,

riqueza e sofisticação simbólica das

os saberes, o lugar e a vida.

culturas indígenas que têm sido

Os eixos foram delineados do

exterminadas em nome de uma

ponto de vista do humano,

política que visa o “progresso” sob

reconhecendo ainda que todos os

um único ponto de vista, onde o

seres vivos devam ser considerados

outro, o diferente, não é tolerado.

3

4

em uma reflexão sobre a vida e a sobrevivência. O cinema abriu uma passagem nesta reflexão. Ao pensar com os filmes, exercitamos um deslocamento de nosso olhar, sensibilizando nossos corpos de espectadores para outras possibilidades. Um devir-outro.

No ensaio Plantar Cidades e Construir Florestas, Wellington Cançado traz uma reflexão acerca do projeto nacional de modelo “urbano-rodoviarista, financistaimobiliária, neoextrativista e antiindustrial” que ao mesmo tempo em que nos revela sobre o passado

1

Filme de Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge. Brasil, 2017, cor, 82 minutos.

2

Filme de Júnia Torres e Isabel Casimira Gasparino. Brasil/Angola, 2018, cor, 73 minutos.

3

Filme de Simone Cortezão. Brasil, 2017, cor, 70 minutos.

4

Filme de Anita Leandro. Brasil, 2014, cor, 71 minutos.


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deste país, impede “um outro devir-

planeta. Da janela de sua casa,

Brasil”.

Guima Romeiro observa a grande

Simone Cortezão relata em Cava Funda uma travessia na paisagem distópica das terras devastadas pela mineração, resultado do modelo neoextrativista. “E é na dinâmica do mercado de ações, planilhas, abstrações e das ficções econômicas que o mundo fóssil que está abaixo de nossos pés é especulado, com o uso intensivo dos combustíveis fósseis e da mineração, colocado à venda e em negociação.” Júnia Torres apresenta em Salve Rainhas de ngoma: contramestiçagem, etnografia e cinema no Reino Treze de Maio a sociocosmologia singular nas “formas complexas de organização majoritariamente negras” dos reinados que “seguem povoando, ressoando e colorindo o asfalto cinza da metrópole, com seus fardamentos, indumentárias rituais, cantos, danças, rezas, promovendo uma musicalidade dissonante e polifônica”.

metrópole. Em seu confinamento involuntário, ele produziu de seu celular o ensaio fotográfico P&B destes Anais. A pandemia, assim como as outras crises enfrentadas, é resultado da ação humana regida pela lógica da aceleração e do consumo. A paisagem sem vida da mineração, capturada pelas lentes de Simone Cortezão, é um testemunho de que precisamos parar de agredir o planeta. E, por fim, devemos nos inspirar na vitalidade das resistências presentes nos povos sobreviventes como nos mostra as fotografias de Priscila Musa e Rafael Barros do Reinado Treze de Maio. Os Anais da SCAP: Cartografia das Urgências é um convite a pensarmos criticamente sobre nossos modos de vida e buscarmos outros modos de ser e estar no mundo que garantam a continuidade da vida humana neste planeta. Leiam e reflitam.

Encerrando estes Anais, Affonso Uchôa e Desali retratam o bairro Conjunto Nacional, em Contagem. Um olhar aproximado da periferia que revela outras subjetividades. Durante o processo de produção desta publicação, fomos atropelados

Prof. Cláudio Listher Marques Bahia Diretor Acadêmico da PUC Minas São Gabriel

pela pandemia de Covid-19,

Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero

transmitida pelo novo coronavírus

Coordenadora de Extensão

(SARS-CoV-2), que parou o

da PUC Minas São Gabriel


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DIANTE DA MAIS RADICAL ALTERIDADE Sérgio de Castro1

O belíssimo documentário Piripkura

em nosso país – uma miríade

nos coloca, abruptamente, diante da

de etnias, de línguas – mais de

mais radical alteridade. De imediato,

duzentas, só em território brasileiro

o que me veio à cabeça na primeira

–, que até o século XVI não teve

vez que o assisti foi uma observação

nenhum contato com os povos e,

feita pelo antropólogo Eduardo

especialmente, com a civilização

Viveiros de Castro, numa entrevista

europeia. Mais de 15.000 anos

concedida a mim e a uma colega

de isolamento radical com relação

do Rio de Janeiro, em março de

à civilização à qual pertencemos,

2016. Disse então Viveiros de Castro:

a saber, a europeia. Para esse

“Um europeu da Escandinávia é

mesmo antropólogo (mas não só

muito mais parecido e próximo

para ele), somos – os brasileiros que

de um nativo da África Central do

chegaram ao Brasil após a chamada

que um indígena da Amazônia de

descoberta – europeus. Quer dizer,

um brasileiro de um grande centro

nós nos situamos – e a grande

urbano do Brasil”. Em seguida, ele

maioria da população mundial –

esclareceu a afirmação: há milênios,

no esteio cultural de um processo

entre Europa e África, há toda sorte

que se inicia muito remotamente

de trocas e influências mútuas.

na história – ou pré-história da

De trocas comerciais ao

humanidade –, mas que ganha

colonialismo, são populações que

a orientação e a força atuais da

convivem, com maior ou menor

Europa renascentista. A famosa

distância, desde eras muito remotas.

frase de Galileu Galilei, o célebre

No caso da população indígena

astrônomo e matemático florentino,

americana, tal afirmação não pode

“A natureza está escrita em

ser feita. Há ali – ou temos aqui,

linguagem matemática”, marco

1

Psicanalista. Diretor Geral da Escola Brasileira de Psicanálise.


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20

do que chamamos na psicanálise

que podemos localizar e, até certo

de discurso da ciência, poderá ser

ponto, entender. Um primeiro ponto

tomada aqui como uma referência

apresentado pelo antropólogo:

para nós. Os povos europeus,

vários povos pré-históricos que

como disse aquele dia Viveiros de

não aderiram à chamada revolução

Castro, serão os que tomaram tal

agrícola, no entanto, a conheceram.

perspectiva como uma espécie

Muitos mantinham relações de troca

de filtro, ou de óculos através dos

e escambo com culturas que a

quais enxergamos e pensamos o

praticavam. Mesmo na América do

mundo e a vida. Não importa onde

Sul, povos como os Incas e alguns

eles estejam. Claramente – e daí

ainda mais antigos desenvolveram

nossa enorme estranheza –, esse

sofisticados sistemas de agricultura

não é o caminho seguido pelos

com complexos sistemas de irrigação

simpaticíssimos Tamandúa e seu tio

que dominavam com mestria.

Pacúi, nem por seu povo, nem por

Outros povos amazônicos nunca

inúmeros – ainda que francamente

escolheram a agricultura, ainda que

minoritários – outros povos e etnias

a conhecessem. Esse é um ponto

presentes ainda hoje no mundo.

muito importante para nós hoje aqui, porque ele põe em questão a ideia

O que podemos pensar sobre isso?

muito difundida de que somente

Claude Lévi-Strauss, o grande

haveria um ideal social, do qual

antropólogo franco-belga que

todos os povos comungariam ou

desenvolveu, nos anos 1930,

desejariam comungar. Nele, o ideal

boa parte de sua pesquisa de campo

do progresso, quer dizer, um tipo

no Brasil, indica origens muito mais

de desenvolvimento que conduziria

antigas – pré-históricas –, quando

todos mais ou menos no mesmo

certas escolhas teriam sido feitas.

sentido ou direção, parece ser seu

“Escolhas” é o termo usado pelo

elemento principal. Isso nos levaria a

antropólogo então, quando certos

pensar que o povo de Tamandúa

povos pré-históricos, os nômades,

e Pacúi, com o passar do tempo –

por exemplo, preferiram prosseguir

mil anos que fossem –, faria

como coletores/caçadores,

descobertas parecidas com as que

ao invés de optarem pela agricultura.

outras culturas fizeram há milhares

Tais escolhas, que certamente

de anos, promoveria sua pequena

comportam algo de insondável para

revolução agrícola e abandonaria

nós e mesmo para os povos que a

seus atrasados hábitos de povo

fizeram, seguiram também critérios

coletor e caçador.

2

2

LÉVI-STRAUSS, C. N’existe-t-il qu’un type de développement? In: ___. Nous sommes tous des cannibales. Paris: Seuil, 2013. p. 163.


21


22

4

https://www.indiosonline.net/ e http://www.webindigena.org/ Acesso em 19/05/2019.


23

Ora, é também Lévi-Strauss quem

um equilíbrio populacional e uma

afirmará que há diversos tipos de

relação com o trabalho que sequer

evolução. A dos povos caçadores e

concebemos. Por exemplo, o tempo

coletores, ele chamará de evolução

dedicado à caça e à coleta de outros

regressiva. Ela teria uma direção

alimentos, numa dieta extremamente

inteiramente diferente das que

diversificada e rica em proteínas

conhecemos em nosso hegemônico

e vitaminas, além de muito menos

padrão cultural. A ideia de progresso

calórica do que a dos povos que

será inteiramente alheia a essas

se dedicaram à agricultura, somado

outras escolhas feitas por tais povos.

ao tempo dedicado a cozinhá-los e

O erro que se comete aqui é então

à fabricação de utensílios utilizados

supor que tal ideal, o de progresso,

– cestas, equipamento de caça

repito, seja universal ou desejável

e outros – não ultrapassa nunca

para e por todos. Ou mesmo, o que

quatro horas de trabalho diárias.

seria um equívoco ainda maior, que

O restante do tempo é dedicado a

certas escolhas sejam superiores

rituais e festas, ou simplesmente ao

a outras. Claro que não estou

que chamamos de lazer.

sugerindo aqui que tentemos viver

Ou ainda, questões que nos afligem

como Tamandúa e seu tio.

diariamente – por exemplo, como

É verdadeiramente impossível para

orientar um filho ou uma filha

nós, além de, por certo, não parecer

adolescente até a idade adulta,

desejável a quase ninguém.

como se conduzir como pai ou mãe,

Mas essas outras vias, consequências

como tratar o tio ou o cunhado,

de escolhas remotas e que se

enfim, uma série de questões

mantêm, preservam em si alguns

sobre as quais se recorre em nossa

tipos de saber que só recentemente

modernidade, entre outros,

nossa civilização europeia conseguiu

ao analista – são ali tratadas a partir

vislumbrar. Por exemplo, tais

de referências simbólicas estáveis

sociedades e grupos sabem manter

que aquelas culturas oferecem.

com seu entorno, com o chamado

Por isso, podemos falar de culturas

meio ambiente, uma relação de

simbolicamente complexas e

equilíbrio e estabilidade da qual

sofisticadas, em muitos aspectos

nós nunca sequer chegamos perto.

mais do que a nossa inclusive.

Se nossas sociedades vivem de

Claro também que não é o que

crise em crise, de desigualdade

vemos na situação de Tamandúa e

em desigualdade, elas souberam,

seu tio Pacúi. Eles são sobreviventes

através de suas regras sociais e

de uma tentativa de extermínio,

sistemas metafísicos complexos (que

durante a qual perderam quase tudo,

só no século passado começamos

inclusive seus hábitos e recursos

a entender um pouco mais), manter

culturais.


24

O que é que a psicanálise tem a ver

tentamos manter distante Freud

com isso tudo? Ora, a psicanálise

chamará de inconsciente!

surge no mundo, há mais de cem

Mais ainda: em seus fundamentos,

anos, a partir de uma constatação

ele abrigará algo de estranho e

muito estranha e que podemos,

mesmo abjeto para cada um de

em muitos aspectos, aproximar

nós, um resto que não será nunca

do que acabei de falar. Qual é a

erradicado inteiramente,

descoberta fundamental de Freud,

nem inteiramente significado.

seu fundador? A de que não somos senhores absolutos de nós mesmos. Quer dizer, a descoberta de que trazemos em nós elementos, posições, preferências, prazeres e desprazeres que desconhecemos inteiramente. E, atenção, preferências, afetos e tendências que nos são desconhecidas exatamente por não serem propriamente admiráveis ou modelos de virtudes. Um ato falho, por exemplo. Foi Freud quem, nos primórdios da psicanálise, nos chamou a atenção para eles. De repente, numa situação pública, um orador que queria elogiar alguémcomete essa falha de dirigir àquele que ele tinha a intenção de

A psicanálise nos permite, portanto, constatar que habita em nós a mais radical alteridade e que há várias maneiras de se lidar com ela. Claro que a que nos permite a experiência de uma análise pessoal será a de sabermos algo dessa abjeção que nos habita. Ela, até certo ponto, perde seu ímpeto, uma vez que, pela via da palavra, a frequentemos. E as várias maneiras de lidar com isso, que chamamos a partir do psicanalista francês Jacques Lacan de real, vão definir as várias patologias psíquicas, que irão das neuroses às psicoses.

elogiar, um adjetivo inteiramente

Não estamos, porém, impedidos,

desqualificativo.

como Freud o fez em alguns de seus trabalhos, de localizar, em um

Todo mundo ri porque todo mundo

plano político e social mais amplo,

hoje, a partir das descobertas de

maneiras distintas de se lidar com

Freud, sabe que um ato falho revela

esse resto abjeto presente em cada

algo de uma verdade para aquele

um de nós. As políticas chamadas,

que o comete que nem mesmo a

por exemplo, de higienistas partirão

pessoa que o cometeu sabia!

sempre da pressuposição de que a

Ou seja, a psicanálise nos ensina que

sujeira do mundo está nos outros –

temos um Outro em nós mesmos

em um determinado grupo social,

que desconhecemos e queremos,

em uma determinada religião,

inclusive, manter distante.

em determinados costumes,

A esse Outro em nós mesmos que

em determinados cheiros – e que


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caberia aos detentores do poder

políticas, ainda que não declaradas,

político promover operações de

de extermínio, pode ser um passo.

limpeza e assepsia. Estará aí, por

Ou passo algum, como assistimos

exemplo, um fundamento do

e ouvimos no testemunho de Rita,

racismo: situo em um outro –

irmã de Pacúi, sobre o que se passou

um negro, um judeu, um índio,

com seu pequeno e frágil grupo

mas também, de certa forma,

étnico. Tudo isso movido por uma

um homossexual, uma mulher –

ganância que o Estado brasileiro

todas as imundícies que, na verdade,

atual parece só fazer por estimular,

estão na base e nos fundamentos

encontrando sempre justificativas

– que desconheço e quero continuar

na superioridade de suas crenças,

desconhecendo – que constituem

no progresso a que, enfim, vai ser

minha própria subjetividade.

levado aos índios, nas facilidades que

Percebem que pode haver aí,

a vida civilizada ofereceria... Motivos

em políticas que pretendam levar o

para perpetrar nos diferentes,

progresso e valores universais (quer

nos grupos que de alguma forma

dizer, os mesmos valores, os mesmos

encarnam uma alteridade mais

ideais, que seriam, em tese, aplicáveis

radical, motivos para oferecer a eles

a todos os seres humanos),

a possibilidade de aderirem ao nosso

um entendimento e uma maneira

caótico modelo civilizacional ou se

de fazer política que pode ser

exporem a um furor dedicado hoje

extremamente perigosa? E perigosa,

em dia aos diferentes, nesse mundo

exatamente, para os que não se

onde a extrema-direita continua

encaixarem em tais ideais. A partir

ganhando espaço, quando a morte

daí (de convicções que se pretendam

e o extermínio aparecem como

universais, por exemplo), algumas

possibilidades reais.

pessoas, eventualmente detentores do poder com uma mentalidade

A recusa radical, reafirmada após

tacanha, se permitirão afirmar que

cada tentativa de aproximação e

sua religião é a melhor, que sua cor é

que repercute uma recusa ancestral,

superior e, às vezes, como há tantos

milenar, que nos levaria a misteriosos

exemplos na história, que o que não

recônditos do Neolítico, e que

anda bem no mundo, o que não anda

Tamandúa, seu tio Pacúi, seu povo

bem no país, o que não anda bem

e tantos outros povos praticam ou

em tal atividade econômica se deve...

tentam praticar, quando não resulta, portanto, em seu extermínio, deveria

Bem, retomemos o belo

nos levar a refletir um pouquinho que

documentário... se deve ao índio,

fosse sobre a possibilidade de tornar

que, além de indolente, atravanca

digna a alteridade que cada um de

o progresso do país... Daí para

nós, antes de mais nada, porta em si.


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PLANTAR CIDADES, CONSTRUIR FLORESTAS Wellington Cançado1

Enquanto milhares de pessoas saíam às

Às margens do rio Xingu, em plena

ruas nas principais capitais brasileiras

floresta, os munduruku exigiam a

em junho de 2013, naquela que se

suspensão da construção de Belo

tornaria uma das maiores manifestações

Monte e de todos os empreendimentos

populares da história do país, a 55

na Amazônia até que o processo de

quilômetros da cidade de Altamira,

consulta prévia aos povos tradicionais,

no Pará, 140 indígenas munduruku

previsto na Convenção 169 da

ocupavam, na madrugada do dia 28 do

Organização Internacional do Trabalho

mesmo mês, o canteiro de obras da Usina

(OIT) em vigor no Brasil na forma do

Hidrelétrica de Belo Monte.

Decreto n.º 143 desde 2004, fosse posto em prática.

Nas capitais, os protestos iniciados pelo Movimento Passe Livre (MPL) contra o

Na Avenida Paulista, eixo simbólico da

aumento da tarifa do transporte público

pujança econômica e da urbanidade

teriam as pautas ampliadas rapidamente

cosmopolita brasileira, a forte repressão

– contra a “cura gay” e desapropriações

aos protestos desencadearia uma

de vilas e favelas para os projetos de

cascata de manifestações Brasil afora

infraestrutura da Copa de 2014, pelo fim

como reação à violência policial, mas

da corrupção, pela desmilitarização da

também aos impactos do Programa

polícia, pela saúde e educação públicas

de Aceleração do Crescimento (PAC)

“padrão FIFA”, entre tantas outras.

do Governo Federal, que fizeram as já

1

Arquiteto, professor da Escola de Arquitetura e Design da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG e editor da revista PISEAGRAMA (piseagrama.org).


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poluídas, violentas, congestionadas e

incompletos ou nem mesmo iniciados.

segregadas cidades, ainda mais inóspitas. O desabafo do anônimo operário de Belo Monte, a terceira maior hidrelétrica

Belo Monte durante a espera de 12 horas

do mundo, a “menina dos olhos” da

na fila para receber o salário mensal

então presidenta Dilma Roussef,

na cidade de Altamira, a mais impactada

apesar dos impactos socioambientais

pela construção da usina e hoje a mais

devastadores para beiradeiros, indígenas

violenta do Brasil, bem poderia ter sido

e pescadores da Amazônia e de sua

proferido em tantas outras cidades

contestada eficácia na geração da

do país: “aqui não é cidade…

energia projetada, seguiria sendo

é matadouro!”

2

autoritariamente construída, mesmo com percalços, interrupções e ocupações. “Uma operação de guerra”, como bem definiria Marcos Sordi, diretor do Consórcio Construtor de Belo Monte.

Como catalisador da insurgência indígena no coração da floresta e do altermundismo espontâneo no centro das cidades, subjaz um modelo de desenvolvimento predatório e

Enquanto nas cidades outra operação

excludente que desde os primórdios

de guerra era planejada às pressas

da modernização do país engendra

nos gabinetes oficiais para conter os

uma espécie singular de modernidade

protestos, os 25 mil trabalhadores

periférica. A persistência de tal projeto

lotados nos quatro canteiros de obras

nacional desenvolvimentista,

de Belo Monte ficariam sob a guarda

agora em sua versão urbano-rodoviarista,

ostensiva da Força Nacional durante

financista-imobiliária, neoextrativista

todo o período de construção. Passados

e anti-industrial, nos diz muito sobre o

cinco anos das manifestações de

nosso passado, ao mesmo tempo em

junho, a urbanidade incipiente segue

que reiteradamente interdita um outro

degradando-se nas cidades e, dois anos

devir-Brasil.

após a inauguração da usina, a paisagem arruinada às margens do Xingu compõese de restos de materiais, sucatas e

A ode ao pioneirismo, ao bandeirantismo,

equipamentos abandonados enquanto

ao desbravamento, à marcha para o

ações mitigadoras, compensatórias

Oeste e à “tomada de posse do território

e reflorestamentos previstos no

nos moldes da tradição colonial”3

licenciamento ambiental seguem

reafirmaria o caráter (auto) colonial4 do

2

A batalha de Belo Monte: Parte II – Altamira. TV Folha #97, 2014. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=oNU0s-DK2Tw.

3

Lucio Costa (1995), Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das artes, p. 285.


33


34

6

Cf. CHAUÍ, M., 2012.


35

projeto moderno brasileiro. Mas uma vez

positivista que floresce no Brasil com a

rediagramados o autoritarismo,

incumbência de uma ampla e disciplinada

o antropocentrismo e também sua

“reconstrução geográfica”.

face etno-ecocida, tal projeto ganharia o mundo e seria exaustivamente

Afinal, plantar, nesses termos,

reproduzido localmente ao nível local sob

é primordialmente um gesto humanista e

a forma de uma inteligência cartesiana

uma convicção antinatural que emana do

genuinamente brasileira5.

“plano”, e seu sentido de “cultivo de viveiro” se faz necessário dada nossa vocação

Pouco antes da inauguração de Brasília,

como “civilização-oásis”8 com cidades-

expressão máxima dessa utopia do

incubadoras plantadas sobre o território.

superprogresso, Mário Pedrosa viria a

O descolamento deliberado de tais cidades

escrever que na falta de um país “nascido

projetadas em relação ao contexto de (im)

naturalmente” e diante de uma “terra

plantação, nos remete imediatamente aos motivos edênicos, aos mitos da natureza

virgem esparsamente povoada por selvagens nômades na Idade da Pedra” ,

virgem e do infinito território vazio,

era inexorável a intervenção humana contra

fundantes do Brasil. Mas também ao ímpeto

a natureza. E “é por isso que somos um

purificador9 dos modernos e aos dualismos

país que começou por plantar cidades”7,

estruturantes da suposta singularidade

concluiria. A ambiguidade desconcertante

qualitativa de sua antropologia assimétrica:

do paradoxo aparente, na qual plantar

natural-artificial, sujeito-objeto, humano-

cidades e ser contra o natural coexistem

não humano, primitivo-civilizado,

pacificamente, revela particularidades

espontâneo-projetado, cidade-floresta.

6

importantes do mononaturalismo

Nesse contexto, a sanha antropocêntrica

4

Para o historiador norte-americano e biógrafo da escritora Clarisse Lispector, Benjamim Moser, a construção do Brasil moderno é regida por um “autoimperialismo”. “O Brasil sempre foi um lugar a ser conquistado. O que era realmente estranho era que o Brasil não estava destinado a ser conquistado por forasteiros, mas pelos próprios brasileiros”. (Benjamim Moser [2016], Autoimperialismo: três ensaios sobre o Brasil. São Paulo: Planeta, p.100.). Adotamos a noção de “autocolonização” em lugar de “autoimperialismo” em consonância com os autores e o pensamento ligado ao “giro decolonial”.

5

Max Bense (2009), Inteligência Brasileira. Uma reflexão cartesiana. São Paulo: Cosac Naify.

6

Mário Pedrosa, “A cidade nova” (1959), in Maria da Silveira Lobo e Roberto Segre (orgs) (2009), Cidade Nova: Síntese da Artes/ Congresso Internacional Extraordinário de Críticos de Arte. Rio de Janeiro: UFRJ/FAU, p. 29.

7 Idem. 8 Mário Pedrosa (2015), Arquitetura: ensaios críticos. Organização, prefácio e notas de Guilherme Wisnik. São Paulo: Cosac Naify, p. 132. 9 Bruno Latour (1994), Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34.


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e tecnofílica manifestada pelos designers,

epicentro de uma região de monocultivo

arquitetos e urbanistas modernos de

de algodão e da pecuária extensiva para

expurgar todos os aspectos orgânicos e

a Companhia Colonizadora e Imobiliária

espontâneos da vida, vai desenvolver em

Dourados; da Vila Serra do Navio de

solo brasileiro um repertório realmente

Oswaldo Bratke (1956-61), construída

original de novas formas de colonização

no Amapá como núcleo urbano anexo

das forças naturais – humanas e não

à empresa mineradora de manganês

humanas –, encontrando na grande

Icomi; do canteiro de Jupiá e do núcleo

demanda por cidades construídas

habitacional para técnicos e engenheiros

“do nada”, possibilidades exploratórias

de Ilha Solteira coordenados por Ernest

e radicais de planejamento, ordenação

Mange (1957-60) às margens da Usina

e racionalização. Ao longo do século

de Urubupungá no Rio Paraná em São

XX foram inúmeras as cidades novas

Paulo; e de Caraíba, projetada por

que pulularam nos sertões e florestas,

Joaquim Guedes (1976-82) no interior da

deixando rastros importantes para uma

Bahia para uma empresa de extração de

espécie de arqueologia da irradiação do

minérios de cobre.

desenvolvimento econômico-territorial através do urbanismo no Brasil, nas suas

Mas apesar do otimismo “operativo”

vertentes de “síntese das artes” e “design

da historiografia moderna em considerar

total”. Surgidas principalmente a partir

tais projetos urbanos como verdadeiras

de demandas privadas de empresas

cidades funcionalistas nos trópicos, as

extrativistas-exportadoras – mineração,

designações comuns de cidade-operária,

pecuária, monocultivo intensivo – ou

cidade-empresa, cidade-mineradora e

em momentos de intensa participação

cidade-barrageira ocultam o “impasse

estatal na economia, como os núcleos

de atribuir o estatuto de cidade a um

urbanos e canteiros de obras para

lugar privado, destituído das condições e

hidrelétricas e siderurgias, tais cidades

atributos indispensáveis a uma verdadeira

são depositárias de importantes estratos

vida urbana”.10 Afinal, se as cidades

da geo-lógica moderna – ainda por

estiveram historicamente implicadas com

serem criticamente escavados –, com

a vida pública, em tais núcleos a tarefa

marcações cruciais das relações entre o

primeira “seria educar o trabalhador,

planejamento, a vida pública e os bens

até então rural, às peculiaridades da

comuns na modernização do país.

produção em série”, enquanto o exercício

É o caso das cidades de Angélica,

da democracia e da cidadania, na prática,

projetada por Jorge Wilheim (1954-61)

era delimitado e cerceado pelas regras

no Mato Grosso do Sul e construída no

empresariais. Daí seu caráter iminente de

10 Telma de B. Correia, “Da vila operária a cidade companhia: as aglomerações criadas por empresas no vocabulário especializado e vernacular” (2001), Revista brasileira de estudos urbanos e regionais. São Paulo, n.º 4, pp. 83-98, 91.


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41

“reformatório social”.11

clássico das possibilidades de design total levado a cabo no coração da

Entretanto, a recorrência do repertório

floresta tropical e reverenciado pelas

arquitetônico e urbanístico moderno em

adaptações climáticas e por uma certa

consonância com o purismo corbusiano

regionalização extemporânea do design,

e o consequente aspecto alienígena

formas de domesticidade e intimidade

dos núcleos em relação ao ambiente

tradicionais (como dormir em redes)

nativo, acabariam, com raras exceções ,

seriam substituídas por hábitos urbanos,

por dissimular a reprodução direta

da mesma forma que o novo mobiliário,

da segregação histórica dos centros

mesmo tendo sido produzido in loco

urbanos, além da rígida hierarquização

especialmente para a vila, imporia

social por classes praticada no interior

arranjos de relações familiares e de

das empresas.

vizinhança completamente estranhos aos

12

habitantes. Com o cotidiano ditado pelo trabalho, pela uniformização dos costumes,

Nesses paradigmáticos “urbanismos sem

por toques de recolher e pela

cidade”, plantados como colônias de

penalização do dissenso sob normas

exploração avançadas, o desimpedimento

de convívio restritivas, a vida coletiva

da terra com a derrubada da floresta

se desenrolaria prioritariamente nos

seria impreterivelmente o marco zero,

interiores planejados – clubes, refeitórios,

não somente do início da ocupação,

cinemas e igrejas –, uma vez que os

mas logo, das formas de monocultivo

espaços públicos seriam marcados pelo

intensivo13, dos jardins exóticos semeados

controle das mantenedoras,

sobre as roças caboclas e dos novos

pela vigilância mútua e pela dispersão

hábitos de alimentação, descarte, uso de

programada. A privatização dos espaços,

recursos e lógicas de consumo a serem

dos gestos e desejos dos habitantes se

importados dos centros urbanos.

estenderia, ainda, ao cerceamento do contato com extracomunitários. Na Vila Serra do Navio, um exemplar

É contra o amplo espectro de

11 Mônica J. de Camargo (1997), Company Town: núcleos urbanísticos do Amapá. Trabalho Programado (Mestrado em História da Arquitetura) – FAU/USP, São Paulo, p. 79. 12 Em Caraíba, Joaquim Guedes, diante de tal impasse, mas entendendo que não seria possível resolvê-lo de dentro da arquitetura, optaria por um desenho em que as diversas hierarquias – operários, técnicos e engenheiros – estariam misturadas ao longo de toda a cidade, ao invés de circunscritas a zonas específicas (Rogério Penna Quintanilha [2016], As cidades que criamos: a arquitetura de cidades novas a partir da experiência da caraíba de Joaquim Guedes. Tese de Doutorado. São Paulo: FAU-USP). 13 Luis Arnaldo Porto (2013), Notas de terras disciplinadas. Manuscrito.


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hibridismos, vernáculos, organicidades e

desenvolvida e deformada, produto

vitalidades que escapam ao dogmático

de um crescimento caótico e não

grid normativo e que contracolonizam14

planejado”16. E para essa selva, ambiente

o mundo como indesejadas “ervas

completamente artificializado e urbano,

daninhas”, que seria travada a luta dos

os designers conceberiam uma estratégia

modernos: os índios, os quilombolas, os

de reorganização exaustiva dos signos

favelados, os ambulantes, os mendigos,

e artefatos, eliminando os vestígios de

mas também os animais, as plantas e

espontaneidade, falta de planejamento

toda a intrincada rede simbiótica de

e desordem: letreiros, placas, postes,

humanos e não humanos que pulsa à

setas, cartazes, sinais de trânsito e os

margem do plano civilizatório.

demais elementos gráficos e mobiliários acumulados sem qualquer projeto ou

Não é por acaso que, para a construção

intencionalidade integradora.

dos mais emblemáticos espaços da nossa

No projeto de Cauduro Martino,

pertinaz modernidade, o expediente da

a obsessão sistêmica com o controle

tabula rasa é reiteradamente acionado:

e com a racionalização completa do

dos núcleos urbanos na floresta a Belo

cotidiano se revelaria um último suspiro

Monte, da capital no Planalto Central

do potencial totalizante do design

às mini-Brasílias por toda a parte, do

moderno no Brasil e da intransigente

Aterro-Parque do Flamengo no Rio de

inteligência projetual que o sustentava.

Janeiro e respectivo desmonte do Morro de Santo Antônio ao Parque Olímpico

Já a selva, mais do que uma metáfora

com a destruição da Vila Autódromo.

da negatividade ontológica do selvagem

Do redesenho viário da Nova Paulista

em relação à civilização urbana, tão

na década de 1970 ao recentíssimo

recorrente quanto a vontade de

marketing rodoviarista do “Acelera, SP”.15

exterminá-la, se revelaria um sintoma dos dualismos estruturais modernos – e

Sobre a cumeeira paulistana, João

ainda bastante atuantes –, derivados em

Carlos Cauduro e Ludovico Martino

grande medida não somente da ideia de

escreveriam em 1973, ocasião do projeto

uma terra vasta a ser colonizada e de

de comunicação visual e mobiliário

um desprezo estrutural pela vida, mas

para a Avenida Paulista: “a cena urbana

também da profunda hierarquização

que nos envolve é uma selva super

dessa sociedade escravocrata e etnocida.

14 Antônio Bispo dos Santos (2015), Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: INCT/ UNB/CNPq/MCTI. 15 O slogan “Acelera, SP” foi utilizado durante a campanha eleitoral pelo então candidato do PSDB João Doria à Prefeitura Municipal de São Paulo. Doria foi eleito em 2016 e após 15 meses no cargo renunciou, para disputar a vaga de Governador do Estado de São Paulo, contrariando a promessa de campanha de que seria Prefeito da cidade até o último dia do mandato. 16 Celso Longo (2014), Design Total – Cauduro Martino. São Paulo: Cosac Naify, p. 5.


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Sociedade cujo desígnio parece ser

e aumentemos sem pudor as cifras de

inequivocamente avançar sobre a

removidos e lucros, e a história

natureza e para a qual as relações de

será atualíssima!

dominação são absolutamente naturais. A construção do Aterro-Parque no É nesse sentido que a erradicação

Flamengo19, propiciada pelo monte

de uma das primeiras favelas do Rio

desterritorializado, seria oportunidade única no contexto brasileiro de

de Janeiro caracterizada “como um ‘desmonte’ ao invés de uma ‘remoção’”

manipulação radical da natureza

é bastante reveladora do pacote de

em escala geográfica numa cidade

apagamentos e substituições implicado

historicamente consolidada: para cada

no processo de modernização das

metro cúbico de terra arrasada no morro,

cidades e do país – revolucionário

um volume igual de terra criada na orla.

tecnicamente, inventivo formalmente e

E seria nessa paisagem erigida sobre

brutalmente arcaico em termos sociais.

o mar, com 1,2 milhões de quilômetros

Os 7.500 habitantes expulsos e os

quadrados e quase 20 mil árvores

1.500 barracos demolidos pela icônica

plantadas20, que os sentidos “clássicos”

escavadeira, “monstro moderno” que ao

de plantar cidades e da reconstrução

fim derrotaria o “gigante de terra”, seriam

geográfica acabariam por ganhar

meros danos colaterais de um progresso

conotações mais complexas –

que prometia “três mil veículos por hora

e promissoras.

17

em pista de alta velocidade”18 no aterro da zona sul. Os efeitos “benignos” da

Se o urbanismo do Aterro-Parque não

remoção dos moradores e da abertura do

deixa de ser uma ferramenta a serviço

centro da cidade pelo aplainamento da

do rentismo da terra, da exclusão

montanha seriam medidos pelos enormes

planejada e do elitismo disfarçado de

ganhos imobiliários da operação.

técnica neutra e positiva, a intrusão

Avancemos 60 anos, ampliemos o mapa

entrópica trazida pela instabilidade e

17 Mauro Amoroso (2009), “A favela faltou na foto: a cobertura do desmonte do Santo Antônio pelas lentes do Correio da Manhã”, Revista Cantareira – Revista Discente do Departamento de História da UFF, Niterói, 1(1), p. 3. Disponível em http://www.historia.uff.br/cantareira/v3/wpcontent/uploads/2013/05/e14a01.pdf 18 Como na manchete do Correio da Manhã de 6 de dezembro de 1958 (ibidem, p. 18). 19 Idealizado por Lota de Macedo Soares, coordenado pelo arquiteto Affonso Eduardo Reidy, com projeto paisagístico de Roberto Burle Marx, e realizado durante a gestão do então Governador da Guanabara Carlos Lacerda, foi inaugurado em 1965. 20 O segundo maior plantio da história da cidade depois da Floresta da Tijuca, hoje Parque Nacional da Tijuca, na qual foram plantadas 100 mil árvores no período de 1861 a 1874, altura em que o Major Gomes Archer foi incumbido pelo Imperador D. Pedro II do replantio das inúmeras chácaras devastadas pelo monocultivo do café e cujo assoreamento ameaçava o abastecimento de água da cidade.


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imprevisibilidade da natureza recriada

“Sugerindo uma imagem do design que

no Flamengo desloca, mesmo que só

é menos sobre planning e mais sobre

potencialmente, a dialética construção-

planting”25, poderíamos dizer, tomando

destruição que lhe é intrínseca.

emprestada a assertiva de Paulo

A natureza da nova orla insinua um

Tavares no contexto das “ruínas vivas da

redirecionamento, também potencial,

Amazônia”. Amazônia, lugar de onde,

dos aspectos construtivos do urbanismo

aliás, emergiria nas últimas décadas uma

em direção à criação das condições

concepção de floresta diametralmente

de possibilidade de um sistema de

oposta à natureza a-histórica, edênica e

existência . Pela via do paisagismo

selvagem dos modernos. Uma floresta

pictórico de Roberto Burle Marx –

que “deixa de ser uma desordem

mesmo que ainda nos termos naturalistas

terrestre” para ser “um novo mundo

– a monológica do plantation, típica

planetário, tão rico quanto o nosso e que

do urbanismo brasileiro, vislumbra

o teria substituído”, como disse um dia

timidamente se ecologizar.

Lévi-Strauss, em passagem pelos Tristes

21

trópicos26. E uma vez estabelecidas relações ecológicas inéditas22 no cerne da

Mas enquanto para os profetas da

modernização, linhas de fuga para

modernidade bandeirante construir

uma modernidade alternativa, prenhe

florestas no Brasil segue sendo um

de possibilidades de “retificação de

projeto de “minorias com projetos

um destino de destruição” e de

ideológicos irreais”27, para os tantos

“renaturalização extensiva do território”24,

indígenas que sempre resistiram à

são insinuadas através de um outro

violência colonial-modernizadora,

acordo entre a arquitetura, o urbanismo e

para quem tudo sempre foi fabricado,

a natureza.

plantado e cuidado”28, a ideia da floresta

23

21 Vera Beatriz Siqueira (2001), Burle Marx. São Paulo: Cosac Naify, p.37. 22 Ibidem, p. 38. 23 Ibidem, p. 23. 24 Roberto Monte-Mór, “Urbanização, sustentabilidade, desenvolvimento: complexidades e diversidades contemporâneas na produção do espaço urbano” (2015), in Geraldo Magela Costa, Heloísa Soares de Moura Costa e Roberto Luís de Melo Monte-Mór (orgs.), Teorias e Práticas Urbanas – Condições para a sociedade urbana. Belo Horizonte/MG: C/Arte, pp. 55-69. 25 Paulo Tavares, In the forest ruins. Disponível em www.e-flux.com/architecture/superhumanity/ 68688/in-the-forest-ruins. 26 Claude Lévi-Strauss (1996), Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, p. 323. 27 Frase pronunciada por Gleisi Hoffman em 2015, então Ministra da Casa Civil do Governo Dilma Roussef, durante audiência na Comissão da Agricultura da Câmara dos Deputados, em referência a grupos críticos ao modelo de implementação da usina de Belo Monte.


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construída não é nada extraordinária.

analogias com as modelares Cidades-

Pesquisas recentes

Jardim de Ebenezer Howard.

29

a partir de ruínas,

geoglifos e análise de estratificação da floresta no Xingu – não muito distante

Se as ideias e os lugares estiveram em

da desolação de Belo Monte – viriam

constante desacordo no Brasil, com os

a mostrar que a floresta não é passiva

lugares invariavelmente subjugados às

e muito menos “natural”, mas sim uma

ideias, uma das possibilidades que 2013

forma de urbanização de outra natureza,

nos lega, na efetiva confluência entre

“um artefato extensivo projetado em

a insurgência urbana cosmopolita e as

reciprocidade pelos indígenas juntamente

cosmopolíticas afroindígenas contra o

com os seus coinquilinos não humanos”30.

desenvolvimentismo autocolonizador, é exatamente a potência latescente33

E, no intento claro de estabelecer

– como das plantas tropicais

uma simetria entre extramodernos e

simultaneamente exuberantes e

modernos articulando novas “ideias

camufladas na mata – do reenvolvimento

sobre o lugar”31, a essa paisagem

entre as ideias e os lugares: em um

multiespécie extensa e complexa, os

“fazer mundo” no qual plantar cidades

pesquisadores não hesitaram em chamar

e construir florestas seja um projeto

de urbanismo , valendo-se inclusive de

comum.

32

28 Els. Lagrou (2007), A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks. 29 Anna Roosevelt (2013), The Amazon and the Anthropocene: 13,000 years of human influence in a tropical rainforest. Elsevier: Anthropocene 4, pp. 69-87. Disponível em http://dx.doi.org/10.1016/j. ancene.2014.05.001. 30 Wellington Cançado (2017), O que diriam as árvores? Belo Horizonte: Piseagrama, n.º 11, pp. 118125. 31 Em 1992, Eduardo Viveiros de Castro escreveria: “A ‘ecologia’, é certo é um discurso importado – como, de resto, o resto. Esqueça-se o clichê marxista sobre as ideias fora do lugar, em si mesmo um pouco deslocado e anacrônico. O próprio discurso ambientalista, sua novidade específica, está em ser uma ideia sobre o lugar. (Ricardo Azambuja Arnt [1992], Um artificio orgânico: transição na Amazônia e ambientalismo (1985-1990). Rio de Janeiro: Rocco, p. 16). Em 2015, o autor retomaria o debate sobre “as ideias fora do lugar”, como no já clássico ensaio de Roberto Schwarz de 1992: “Davi Kopenawa ajuda-nos a pôr no devido lugar as famosas ‘ideias fora do lugar, porque o seu é um discurso sobre o lugar, e porque o seu enunciador sabe qual é, onde é, o que é o seu lugar”. Ou, ele continua: “uma teoria sobre o que é estar em seu lugar, no mundo como casa, abrigo e ambiente”. (Davi Kopenawa; Bruce Albert [2015], A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 15-16). 32 Michael Heckenberger; Afukaka Kuikuro (2003), “Amazonia 1492: Pristine Forest or Cultural Parkland?”, Science Magazine, 301(5640), pp. 1710-1714. Disponível em www.sciencemag.org/ cgi/content/full/301/5640/1710/DC1. 33 Pietro Maria Bardi (1964), The Tropical Gardens of Roberto Burle Marx. Amsterdam: Colibris, pp. 14-15.


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CAVA FUNDA1 Simone Cortezão2

A TERRA

acompanhássemos a traseira de grandes caminhões carregados de material estéril por longas distâncias.

Estava na estrada havia menos de

Quando vazios, os caminhões

um mês. Passava por cidades onde

corriam e a carroceria fazia um

a feiura é coberta com uma espessa

barulho agudo e ensurdecedor.

camada de poeira e as árvores que

Quando os caminhões estavam

encobrem a grande cava já estão

carregados, uma lentidão pairava

amarronzadas. Ao longe, durante

sob as estradas. As sobras ditas

toda a tarde, seguiam com barulhos

estéreis, que são a terra em si,

de escavadeiras, caminhões, alarmes

e por vezes ainda mais lentos,

e buzinas. Na rodovia, uma nuvem

se carregavam de minério de ferro.

de poeira fica suspensa a pelo menos cinquenta centímetros de

Ao longo da rodovia dezenas de

altura. Os caminhões com as mais

caminhões ficam à espera das

diversas localidades. Durante a

cargas. Pequenos bares definhados

viagem, tudo ficava completamente

e sujos que servem como ponto

embaçado pela poeira, junto com

de apoio aos caminhoneiros são

o sol a pino, o dia seco e o calor

a pausa comum nessas paisagens

escaldante. Formava-se aquela

econômicas, normalmente

paisagem econômica em trânsito.

desencapadas e velozes. Lugares onde as estradas são feitas e

O carro só funcionava com duas

desfeitas pelo trânsito contínuo.

marchas, o que fazia com que

Assim, foram longos meses como

1

O ensaio Cava Funda apresentado nestes Anais é um fragmento do capítulo Cava Funda da tese defendida por Simone Cortezão intitulada Terras Remotas: as zonas de ressaca e as ficções econômicas (UERJ- Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

2

Simone Cortezão é cineasta, artista visual, pesquisadora e professora do IFMG.


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viajante, onde as matérias, o subsolo

acontecer. Era perto das 17 horas,

vendido circula das mais diversas

e o calor de 40 graus de muitos

maneiras: por canos, caminhões,

dias seguidos sem chuva. Ao ligar

esteiras, trens, até chegar nos

a TV, imagens da cidade mineira

grandes navios.

de Bento Rodrigues soterrada pela lama. Naquela tarde, uma avalanche

Naquele ponto, os mapas

de lama ainda continuava a tomar

geográficos e geológicos se fundiam

cada canto de vale por onde

e se desfaziam. Ali, a referência

pudesse passar. Com o sol a pico e

geológica solta sob a superfície

sem nuvens de chuva, as imagens

em deslocalização constante pelos

pareciam saídas de algum filme com

fluxos das matérias para a venda

distopias futuras como Mad Max.

e as sobras que conformam novas

A terrível realidade que o filme Mad

montanhas chamadas de pilhas.

Max apresenta em seu off inicial nos

As estradas formadas a cada dia

conta sobre os rios contaminados,

são desses lugares que mesmo com

os ossos contaminados, a falta de

mapa não se sabe onde estão.

água; e toda a realidade descrita

Os bares e pequenas vendas

pelo narrador é muito próxima das

definhadas como referências

imagens da montanha que escorria

genéricas são as pausas no fluxo

como lama podre naquela tarde.

contínuo das carretas. Cobertas pela poeira, apagavam ainda

Não havia nenhum repórter em solo,

mais os lugares ou referências

pois tudo era uma grande areia

do mapa. Como uma espécie

movediça. Quilômetros de lama

de temporalidade em crise, de

escorriam por toda a parte. Com as

paisagens e movimentos nevoados

imagens turbulentas e rápidas feitas

que se fazem e desfazem ao

pelo helicóptero, alguns pontos

longo do dia. Como lugares que

brancos que aos poucos apareciam

mesmo abertos e desencapados

davam a escala do desastre. Eram

carregam um sigilo, demarcando e

os caminhões gigantescos de

desmarcando suas fronteiras.

mineração como pequenos pontos brancos em meio à lama.

O HOMEM GEOLÓGICO Algumas horas depois, a agência Quando preparava esse capítulo da

de monitoramento sismológico

pesquisa, já imersa entre os subsolos

anunciava um abalo sísmico no

remexidos e os desertos criados, a

local. Não se sabia se os pequenos

urgência do contexto chegava com

tremores cotidianos das constantes

mais rapidez. O ano de 2015 foi

implosões trincavam aquela lagoa

daqueles anos em que tudo parece

de rejeitos, se foi algum abalo


59

sísmico de terras ainda mais

A espera pela passagem da lama

remotas, se a empresa manipulou

se transformou em um evento.

as informações, ou ainda, se foi

Alguns pela curiosidade, outros

simplesmente o peso de 924 metros

pela preocupação e outros por um

de profundidade de lama, cerca de

evento nunca visto. A lama viscosa,

60 milhões de m3 retidos em uma

após cinco dias, descia mais lenta

lagoa que rompeu a contenção .

que as águas de um rio, com uma

Mas seja qual for tecnicamente o

melancolia do tempo lento, trazendo

motivo, há um impressionante poder

as camadas de uma montanha

da mineração em incidir sobre as

derretida.

3

forças geológicas. No fim da noite, as imagens daquela lama viscosa

A dimensão da natureza transborda

coberta de arsênio, zinco e metais

a escala urbana. Vistas à distância,

pesados percorriam os jornais,

as lagoas de rejeito parecem

TVs e redes sociais. Tão logo, por

pinturas. As cavas como vertigem

sua quantidade, chegaria a outras

pelo buraco aberto são a segunda

cidades e ao Rio Doce, engolindo o

paisagem alterada pelo homem.

que estivesse pela frente.

O que parece feio, por vezes é belo ou até mesmo assustador.

Os dias foram passando e a cada

No entanto, sua dimensão só vem

dia uma nova cidade esperava a

com o acidente. Quando a camada

chegada do mar de lama químico

geológica deixada a céu aberto vem

e fétido que um dia foi montanha.

como lama ou poeira cotidiana, ora

Numa segunda-feira, na cidade

transformada como nuvem, passa a

de Baixo-Guandu, que fica mais

circular todos os dias entre as casas

próxima ao mar, havia uma multidão.

como ar denso de poeira quente no

Poderia ser à espera de um pôr do

tempo seco.

sol, mas sob uma ponte da cidade as pessoas esperavam a chegada da

Plaatjies, morador de Johanesburgo,

lama. Como um evento, a montanha

diz que “os moradores aqui temem o

derretida chegava depois de

vento. Quando ele sopra, partículas

percorrer cerca de 500 km ao longo

finas a partir dos depósitos feitos

do rio.

pela mineração são levadas para o

3

“A comunidade de geólogos que estuda o rompimento está apostando que os abalos sísmicos foram uma consequência do desabamento, e não o contrário”, aponta Pereira. Segundo ele, o excesso de peso sobre o solo provocado pela quantidade da água armazenada nas barragens pode ter provocado uma movimentação de fendas no solo que levaram aos abalos sísmicos. A diretoria da Samarco informou que após o primeiro abalo, às 14h12, a empresa fez uma checagem de segurança, mas nenhum dano foi detectado.

http://www.otempo.com.br/cidades/soma-de-erros-causou-trag%C3%A9dia-1.1160759


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ar e depositadas sobre as casas dos

que não possuímos”. Assim, reforça

moradores. Não é nenhuma poeira

o contrato natural como um estado

comum, é o resíduo de décadas de

tácito de relações.

mineração, ele pode conter vestígios de tudo, desde cobre e chumbo ao

Serres reivindica um contrato

cianeto e arsênio. Durante agosto e

com o natural não somente entre

setembro, a poeira é terrível(...). Você

os homens, mas que conceda à

para de limpar o chão depois de um

natureza direitos similares. Ele narra

tempo. Porque é apenas inútil“.

que a dinâmica planetária se tornou

4

violenta e acelerada, desenvolvendo Em 1991, no livro O Contrato Natural,

uma “força geológica”. Então,

Michel Serres diz que a terra nos fala

poderia completar aqui como

em termos de forças, de ligações e

imagem do nosso tempo a formação

alterações, e como uma espécie de

do “homem geológico”. É sobre

Manifesto Serres requer o direito

essa transformação que Dipesh

de um contrato igual a todos5 – o

Chakrabarty, no artigo The Climate

contrato natural. “O estar no mundo

of History, descreve a passagem

transformado em ser equipotente ao

do homem de agente biológico a

mundo. E esta equipotência torna o

força geológica. Assim, o termo

combate duvidoso.” Para Serres, “no

“Antropoceno”, cunhado por Paul

fundo, um contrato é uma tradução

Crutzen7, aponta para uma discussão

jurídica da realidade biológica

geológica. Tal termo começa a

da simbiose. Quem não está na

tomar os textos e artigos, mas,

simbiose é um ser abusivo. [...] um

sobretudo, o interesse crescente

parasita” . Ainda segundo ele, o

no entendimento da violência

reino do ser vivo é um equilíbrio

dessa força geológica. Afinal, é na

movediço, entre o parasitismo e

dinâmica do mercado de ações,

a simbiose. Afinal, “nós estamos

planilhas, abstrações e das ficções

sempre em busca de um equilíbrio

econômicas que o mundo fóssil

6

4

“Residents here fear the wind most. When it blows, fine particles from these man-made dumps are carried up into the air and deposited on to residents’ homes. It is no ordinary dust, either: the residue of decades of mining, it can contain traces of everything from copper and lead to cyanide and arsenic.

5

“During August and September, the dust is terrible. You stop cleaning the floor after a while. It’s just useless,” says Plaatjies.”<http://www.theguardian.com/cities/2015/jul/06/radioactive-cityhow-johannesburgs-townships-are-paying-for-its-mining-past. > Acessado em junho de 2015.

6

“A Terra, na verdade, nos fala em termos de forças, de ligações e de alterações, o que basta para fazer um contrato. Cada um dos parceiros em simbiose deve, de direito, a vida ao outro, sob pena de morte.” (O contrato natural, Michael Serres.)

7 Entrevista dada por Michel Serres no Programa Roda Viva. < https://www.youtube.com/ watch?v=YEPpkGeMuAY> Acessado em novembro de 2016.


63

que está abaixo de nossos pés é

do mundo, a entropia, que em

especulado, com o uso intensivo dos

alguns momentos Robert Smithson

combustíveis fósseis e da mineração,

chama de ruínas do futuro, é para

colocado à venda e em negociação.

ele ficcional. O “panorama zero” ou o momento, ponto entrópico da

Os contextos urbanos

natureza que orientou sua produção,

desconstruídos como instituições

e a ficção, possui o caráter literal que

científicas, zonas francas, plantações

é assimilado pelo artista a partir de

de eucaliptos, prédios abandonados,

uma desintegração de linguagens.

territórios pós-industriais, ruínas,

Smithson nos diz que “busca a

vazios urbanos, áreas mineradas,

ficção que a realidade imitará cedo

áreas de escória, agroindústria,

ou tarde”.

fazem parte de zonas de ressaca de muitas vizinhanças. Não mais as periferias como bordas, mas periferias situadas entre as coisas, numa indefinição de invisibilidades políticas e ambientais. De alguma forma, já vimos essas paisagens produtivas gigantescas como cenários devastados nas distopias projetadas pelo cinema. Por outro lado, elas são reais e presentes, parte de outra ficção: a ficção da economia e dos delírios do sistema onde estamos inseridos, da venda da natureza como produto. A natureza alterada está ali, exatamente fora do centro,

Ouvia o som de pessoas jogando futebol. Hoje a paisagem não é paisagem, mas um tipo de mundo de cartão-postal se autodestruindo por imortalidade falida e grandiosidade opressiva. Pareciam ruínas ao reverso. É o contrário das ruínas românticas, porque as construções não decaem, arruinadas, depois de algum tempo, mas já são ruínas antes de serem construídas. Isso reverte a noção de tempo. Os subúrbios existem mesmo sem passado e sem os grandes eventos da história. Não há passado, apenas o que passa para o futuro. Passaic parece cheia de buracos. Esses buracos são os monumentos, os vácuos, que de certo modo definem os traços de memória de um futuro abandonado. (SMITHSON, 1996: 71-72 (tradução minha))

tanto do centro “mundial” como do centro econômico e na microescala

O DESASTRE

do próprio centro das cidades -, estão e são as zonas de ressaca8.

A tarde está quente, o sol estourado e o ar seco. A pele queima mesmo

Assim, nesse estado sedimentar

com pouco tempo ao sol. A estrada

7

O termo Antropoceno ainda é analisado pela comunidade científica.

8

Zonas de Ressaca é um conceito desenvolvido na tese Terras Remotas: as zonas de ressaca e a ficções econômicas (UERJ- Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Simone Cortezão.


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de chão é longa, com caminhões por

improvável, da grandeza, daquilo

toda parte. Num confim distante

ainda não visto. À medida que

que poderia parecer tranquilo,

caminhava, o sol começava a

as caminhonetes e caminhões

esquentar e aquela imensidão de

circulam por todo lado.

água vermelha e barrenta dava mais sede. A praia totalmente vazia e a

Do alto do morro, Bento Rodrigues

cidade quase fantasma. As poucas

parece um cenário de guerra, ou,

pessoas que circulavam por lá eram

para melhor dizer, de uma ruína

alguns funcionários desinteressados

imediata do futuro. Todas as

da Samarco que durante um longo

imagens vistas durante semanas

tempo permaneciam no restaurante

na TV agora estavam bem perto.

próximo a um posto de gasolina.

Tudo com mais profundidade e,

Alguns ambientalistas, também bem

sobretudo, o que nenhum jornal

poucos, estavam por lá. O tempo do

disse: tinha cheiro. O cheiro de

desastre congelou o lugar em um

morte e de coisa podre em cada

tempo perdido, num esvaziamento

canto daquele lugar desmoronado

e monotonia que apagavam a ação

e arrombado pela lama, que já em

daqueles que por ali circulavam.

excesso começava a aparecer. Do mesmo modo que cada alimento,

Ali ficamos por um dia inteiro para

animal, corpo soterrado e tudo

gravar algumas imagens para o novo

restava do desastre já putrefavam,

filme que estava fazendo. A jornada

o cheiro ardido da lama química

dos poucos ambientalistas parecia

apodrecida sob uma barragem que

longa, como nos diz Smithson.

agora se transformava.

Era como procurar agulha no palheiro. Afinal, a cada trecho

A lama que primeiro abateu o vilarejo de Bento Rodrigues chegaria em Regência. As duas cidades são daqueles lugares distantes, fora do eixo e dos fluxos de circulação. Assim, seguimos até o mar. Não via o mar fazia alguns dias, o último era

percorrido da praia havia dezenas de animais mortos e objetos trazidos pelo rio, no movimento constante da água barrenta. No chão de areia o minério brilhava e cobria como uma primeira camada já espessa se misturando com a areia. Em 1967,

azul e transparente.

em Monuments of Passaic, Robert

A paisagem era apocalíptica.

exemplo do estado entrópico.

De alguma forma, a distância e o incomum da paisagem pareciam conter uma beleza própria, talvez do espanto e da violência do

Smithson encerra o artigo dando o

Gostaria agora de provar a irreversibilidade da eternidade usando uma experiência simples para provar a ideia de entropia: Imaginem uma


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“sand box” dividida metade com areia preta e a outra metade com areia branca. Leve para uma criança brincar no seu interior pedindo-lhe para remexer a areia no sentido dos ponteiros de um relógio até esta se tornar cinzenta. Em seguida peça à criança para remexê-la no sentido inverso. Nunca se conseguirá restaurar a divisão original, mas antes a areia transforma-se num cinzento mais carregado numa maior entropia. (SMITHSON, 2006).

catastrófico entre terra-lama e mar, na irreversibilidade do retorno à uma natureza anterior. Como ele afirma, temos a paisagem entrópica. O vento quente que soprava naquela tarde com o reflexo do minério metal que cobria o chão, não era o resultado de um fracasso, era o previsível daquilo que já está sobre as mesas de cálculos econômicos a grande zona de

A alegoria distópica criada por

ressaca, para onde parte do estouro,

Robert Smithson estava ali em

o excesso da matéria econômica

quilômetros e mais quilômetros

havia escoado.

daquela faixa de areia no encontro

REFERÊNCIAS SMITHSON, R.; FLAM, J. Robert Smithson: the collected writings. Berkeley: University of California Press, 1996. SMITHSON, R. Recorrido por los monumentos de Passaic, Nueva Jersey. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2006. SERRES, Michel. O contrato Natural. Tradução de Beatriz Sidoux. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1991. RAJCHMAN, John. Existe uma inteligência do virtual? In: ALLIEZ, Éric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000. SITES THE GUARDIAN. Radioactive city Disponível em:<http://www.theguardian.com/ cities/2015/jul/06/radioactive-city-how-johannesburgs-townships-are-paying-for-itsmining-past. > Acessado em abril de 2020. RODA VIVA. Entrevista dada por Michel Serres no Programa Roda Viva. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=YEPpkGeMuAY> Acessado em abril de 2020.


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SALVE RAINHAS DE NGOMA:

contramestiçagem, etnografia e cinema no Reino Treze de Maio Júnia Torres1

“Antigamente não existia o reinado de Nossa Senhora do Rosário. A gente fala reinado, a gente não fala congado, porque o branco que entrou no nosso meio e tirou nosso nome e chamou de congado, porque o certo mesmo é reinado. Reinado de Nossa Senhora do Rosário. Antigamente os escravos não tinham o direito de fazer nada, só trabalhar e ficar ali como se fosse animal, não tinha direito a nada. Então o que eles fizeram, criaram o candombe, é só nêgo véio que toca candombe, ainda hoje. O filho de um desses escravos ficava naquela praia, na Luanda, ele viu aquela luzinha lá no fundo, aquela luzinha foi aumentando e formou a imagem. Ele viu aquilo e falou: ‘Ô papai, eu vi uma santinha ali, naquele lugar. Quê isso, meu filho?

1

Eu vi sim, vamo lá pro senhor ver’. O velho viu aquela luzinha lá no fundo, dava a impressão de que ela vinha caminhando pro lado deles, então ele falou pro senhor: ‘O meu filho viu aquela luzinha lá na frente. Que isso?’ Duvidou o Senhor daquela palavra do menino e do pai do menino, que era o nêgo véio. Mas o senhor foi pra ver e viu também e interessou em levar a santinha pro palácio dele. Criou um grupo de gente pra manifestar e a santa vir acompanhando. Levaram banda de música, levaram padre, levaram todo tipo de coisa pra santa vir e a santa não aluiu do lugar onde ela estava. E esse nêgo véio, falou assim: ‘Ô senhor, dá licença? Nós vamos ver se nós traz a nossa santinha’.

Pesquisadora em antropologia e cinema da Instituição Associação Filmes de Quintal, co-diretora do filme A Rainha Nzinga Chegou.


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Aí os nêgo véio fez os candombe, os tamborzinhos deles e vieram cantando pra ela, andando de fasto, sempre olhando pra ela, ela veio acompanhando. Quando chegou lá no palácio, eles colocaram onde o senhor tinha feito e ela não ficou. Ela não ficou. Voltou pro mesmo lugar de antes. Aí o negro já apanhou fé, a fé de Nossa Senhora e teve aquela intuição e foi buscar a santinha, arranjou lá perto deles um quartinho arrumadinho e foi buscar. Ela aceitou e ficou. E veio vindo, veio vindo, veio vindo, ela é a Nossa Senhora do Rosário que nós adoramos até hoje, ela não quis ficar com os senhores. E aí que criou o moçambique, o congo, lá na cidade de Luanda, lugar de marujo. E os brancos criaram o catopê, vilão, cacunda, tudo tem dos brancos pra poder combater os negros, mas não conseguiram. Os negos são vitoriosos, a fé é muito longa e a tradição também é. Aí o Galanga, o Chico Rei veio de lá, da África, veio como escravo para Ouro Preto e criou a festa do Reinado de Ouro Preto. Depois quando os negros vieram, nos tempos da fundação da nova capital, veio junto pra cá os reinados de Nossa Senhora do Rosário, com coroa, capa e bandeira de guia. Veio as espada, os guarda-coroa, rei e rainha que é majestade, vestidos de dignidade” Capitão Hélio (Guarda de Moçambique Nossa Senhora do Rosário da Vila São Jorge).

Moçambiques ou congos é como se definem a maior parte dos grupos relacionados à tradição dos reinados nesta região da mineração do ouro e do ferro, região central do Estado de Minas Gerais. Ao lado de outros menos numerosos, como os caboclinhos e marujos, compõem

as guardas ou ternos que têm por função proteger, acompanhar, enfeitar, anunciar, reverenciar, guardar e abrir os caminhos para os tronos coroados e suas cortes nas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário, documentadas desde o século XVII em Minas. Em Belo Horizonte, expressivo número de reinos e guardas são atuantes em diversas regiões da cidade. Muitas vezes tornados invisíveis, folclorizados e localizados no passado estariam, nessa perspectiva um tanto funesta, fadados a desaparecer. Indiferentes a essa futurologia, os reinados seguem povoando, ressoando e colorindo o asfalto cinza da metrópole, com seus fardamentos, indumentárias rituais, cantos, danças, rezas, promovendo uma musicalidade dissonante e polifônica, executada por instrumentos especiais (gungas, patangomes, caixas). São formas complexas de organização majoritariamente negras que constituem uma sociocosmologia singular. Termos popularizados sobre os reinados desde 1940, tais como congado ou congadas, são recusados por mestres desta tradição por subsumirem diferenciações importantes, recusando tanto uma fusão interna entre as diferenças constitutivas desse universo quanto a fusão externa que lhes é imputada


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ao catolicismo popular, ambas

Estamos face a uma experiência

imprecisões imbuídas e cristalizadas

muito peculiar com o “sagrado”,

em tais denominações que recusam.

a uma memória performada a seu

Os reinados estabelecem, desde

modo, uma constituição de mundo

sua fundação em África (Souza,

singular elaborada pelos reinados.

2002 e Capitão Hélio em relato

Se a história escrita comumente nos

acima reproduzido) relações de

remete aos africanos como povos

proximidade e hibridação e nunca

escravizados, os reinados celebram

apenas de fusão com a religião

- e vivem - tempos de reis, rainhas,

“dominante”, o catolicismo.

guerreiros e chefes de exércitos.

Estabelecem também cruzamentos

Tornam presença os antepassados

com práticas de matrizes africanas

que viveram “o tempo do cativeiro”.

e afro-brasileiras, encontradas

Dançam junto a eles reverenciados

sobretudo na umbanda, posto que

e presentificados em formas de

participam, digamos assim, de um

incorporação sutis e peculiares.

mesmo universo banto, resiliente.

Os de que pertenceram às guardas de antes, em tempos antepassados

Nesse intenso universo de presenças

e que formam a guarda do astral,

cósmicas (Anjos e Oro, 2009),

como diria Rainha Isabel da Guarda

aproximam-se homens e deuses,

Treze de Maio, se tornam presença

vivos e mortos, objetos especiais,

nos corpos dos moçambiqueiros.

plantas, animais: toda uma sorte

“Moçambiqueiro, oi de terra boa,

de seres humanos e não humanos

moçambiqueiro, oi de terra boa,

em estreita convivência. Uma

leva a bandeira e ainda puxa a

situação de mise en présence, ou de

coroa”: como ouvimos no canto

assemblage, se podemos assim dizer,

(ou na toada) dentro das divisões

aos moldes propostos por Stengers

que organizam os cortejos do

(2004). Modos de experimentar,

reinado, os moçambiques são os

constituir, conceber o mundo que

responsáveis por puxar as coroas,

dotam de sentido e significado a

ou seja, conduzir o trono coroado.

vida de seus participantes para

Os congos vêm antes, abrindo,

muito além da visão corrente, da

enfeitando e limpando os caminhos.

história oficial, do estrito mundo do trabalho e da lógica (podemos dizer,

As palavras que ressoam dos cantos

do mito) da mestiçagem, perpetuada

e “embaixadas2” não nos deixam

nos livros didáticos e celebrada por

esquecer: tempos de cativeiro e

nossa indústria cultural.

tempos de reinos distantes.

2 Embaixadas são improvisações cantadas entre capitães de diferentes guardas quando se encontram nos cortejos. Performatizam simbolicamente disputas entre diferentes grupos ou guardas.


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Esse empreendimento que chamamos de um processo de antimestiçagem singular ativado pelos reinados. “Oi no tempo do cativeiro, quando o senhor me batia, eu chamava por Nossa Senhora, aiaiai e as pancada não doía, eu chamava por Nossa Senhora e as pancada não doía”. Pelo intercurso mágico de Manganá, nome também conferido à Senhora do Rosário, elidiam-se as dores das chibatas, quando era convocada, como continua sendo ainda hoje. Durante o ciclo do rosário organizam-se em homenagem a ela, festas e banquetes rituais seguindo a lógica de visitações mútuas, da reciprocidade e da dádiva, que promovem forte circulação de pessoas, elementos, signos, por diferentes regiões e espaços da cidade.

mas a adição de uma socialidade diferente (napë), que permite que os Yanomami do Orinoco se diferenciem dos Yanomami do montante do rio e dos napë da jusante para diferentes efeitos políticos. (...) já a relação yanomami com a cultura criolla envolve uma incorporação da diferença que busca transformar o eu em Outro. Sobre estas bases, podemos, então, chamar apropriadamente essa hibridação de “antimestiçagem”. (Kelly, 2016: 52)

A ideia tal como proposta pelo autor, de mistura não-fusional (Kelly, 2016) nos parece poder oferecer rendimento no contexto dos reinados ao menos em duas “dimensões”: a primeira se relaciona ao exterior e refere-se à não fusão em relação à sociedade includente, negação em se incorporar a uma cultura “mestiça” geral e a fazer parte de um nós indiscernível, de uma espécie de catolicismo negro;

Acreditamos que noções propostas

a segunda observa-se na relação

por José Kelly (2016), embora

que o reinado estabelece com outra

elaboradas a partir de contexto

forma afro-brasileira, a umbanda.

etnográfico bastante diferenciado

A exemplo do Reino Treze de Maio

(entre os Yanomami do Orinoco)

que mantém na mesma sede um

ajudam a pensar processos de

dos mais antigos centros de Belo

sincretismo em novas bases,

Horizonte, o Centro Espírita São

hibridação não fusional que, como

Sebastião, dedicado a Oxossi e que

acreditamos, são experimentadas

possui o registro, alvará fornecido

também em nosso contexto.

pelo Departamento de Polícia à

É preciso já estar claro que a hibridação yanomami é tudo menos mes-tiçagem. Ela não envolve uma fusão consumptiva da diferença, 3

época, mais antigo da cidade3. As atividades do centro têm sessões públicas realizadas semanalmente, com as presenças das entidades

Documento publicado em: MORAIS, Mariana R. “Nas teias do sagrado – Registros da religiosidade afro-brasileira em Belo Horizonte”, Ed. Ampliar, BH, 2010.


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dos pretos e pretas velhas, além da

guardas; ora orixás, pretos-velhos,

realização das tradicionais festas

exus, boiadeiros, caboclos, que as

regulares da casa, celebradas para

rainhas evitam frontalmente misturar

Oxossi e Senhor Ogum e festa de

em sua festa e devoção à Senhora

Cosme e Damião com seus erês.

Manganá (embora procedimentos de

Não cabe fazer aqui uma etnografia

tradição umbandista para proteção

mais detalhada da umbanda da casa,

antecedam a festa do reinado) e se

mas trazemos essa breve descrição

proíbam cantigas que atravessem

para nosso argumento de que a

de um universo a outro de forma

antimestiçagem seja pertinente para

veemente, como pude testemunhar.

pensarmos relações não só externas, digamos, com o catolicismo, mas

Tal dimensão interna da

também as que se estabelecem

relação propomos denominar

internamente com demais formas

como antimestiçagem e, de

de religiosidade de matriz africana.

contramestiçagem, apenas para fins

A casa da rainha da Treze de Maio

de diferenciação de dois processos

e rainha conga do Estado de Minas

simultâneos aqui observados,

Gerais é a mesma dos santos ou das

propomos chamar a dimensão

espiritualidades amigas herdadas

externa relativa ao catolicismo.

de Dona Cassemira, fundadora do

Importante é que ambas se

reino e benzedeira de grande fama,

configuram como contraposições à

conhecida como Preta Velha, que

visão que insiste em professar um

atuava como parteira incorporada

sincretismo fusional aos reinados

em suas entidades espirituais.

pelos não iniciados, subsumidos

Assim, tanto as celebrações do

muitas vezes a uma espécie singular

reinado quanto as práticas da

de catolicismo negro. Até mesmo

umbanda, mas cada qual a seu

potenciais aliados têm muitas

tempo, sem misturar as coisas,

vezes se recusado a reconhecer

encontraram e continuam a

os reinados como religião de

encontrar, abrigo neste reino que

matriz africana, o que tem deixado

também pode ser terreiro, basta

tais grupos alijados de políticas

saber a hora e as funções corretas,

públicas direcionadas aos povos e

tarefa para as especialistas,

comunidades de terreiro. Pudemos

mormente as rainhas, ensinarem.

verificar isso em pesquisa que visou

É notável como o mesmo espaço

o mapeamento por parte de órgãos

se transforma quando investido

governamentais federais (Secretaria

das diferentes presenças: ora os

Especial de Promoção de Políticas

cortejos do reinado, com seus

de Igualdade Racial e Ministério do

tronos coroados representando

Desenvolvimento Social) na Região

santos populares hibridizados e suas

Metropolitana de Belo Horizonte,


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tendo os reinados negros ficado

ouvida. Mas, por que razão Senhora

“de fora”. E qual a argumentação?

do Rosário não teria ficado com os

Não foram considerados religiões de

brancos? Eles trouxeram banda de

matriz africana. Demasiadamente

música (instrumentos melódicos

sincretizados ao catolicismo. Essa

sofisticados versus instrumentos

visão tão amplamente difundida é

percussivos dos negros),

reducionista e redutora e deixa de

construíram palácios de ouro (tais

lado a complexidade dos fenômenos

como as igrejas barrocas), mas ela

de hibridação e resistência, podemos

não ficou. Mudando a perspectiva,

dizer, de anti e contramestiçagem

mudamos a pergunta: teria a santa

sofisticadas envolvidas nessa criação

escolhido ir com os primeiros

e recriação da afirmação negra dos

negros do rosário? Quem vive com

reinados. Visão simplista cristalizada

o povo reinadeiro sabe que nesse

nos textos dos folcloristas e que a

universo de presença de intensas

academia em alguns estudos

forças cósmicas, sempre a nos impor

perpetua.

desígnios bem acima de nós, a ideia de escolhas e decisões individuais

Gostaria de desenvolver, em

que orientam as ações pode ser

contraposição, uma intuição que

praticamente impensável, ou no

aponta para a afirmação de formas

mínimo relativizada. Na narrativa,

de antimestiçagem particulares dos

a Virgem veio pelos tambores,

reinados, a partir, digamos,

ela veio pelo poder do tambor do

de seus próprios termos. Voltemos à

candombe. Ela sorriu de dentro das

narrativa fundadora, ou à história do

águas ao ver os negros dançarem

tempo do cativeiro, como preferem

para ela na beira da praia, como

dizer seus componentes: Senhora

nos ensina Capitã Pedrina,

do Rosário, Mãe dos pretinhos

do Moçambique de Oliveira.

do rosário (autodenominação

Nas palavras da rainha Isabel:

presente em inúmeras cantigas e

ela aceitou ficar com eles. A santa

evidentemente “contramestiça”

(sua imagem, força cósmica) saiu

posto a afirmação étnico-racial

das águas por meio de gestos

do termo) também chamada

específicos, de um grupo específico.

Manganá ou Ndamba Berê Berê

Foram os moçambiqueiros, pretos-

(termos igualmente “não mestiços”,

velhos, que lograram tirá-la do

denominações em línguas banto

mar. Em uma ação que inverte a

guardadas para serem “ativadas”

relação de poder vigente, pois são

em ocasiões especiais) ficou com

os escravos e não os senhores que

os negros, na senzala. Manganá não

logram tirar a Virgem das águas.

foi para a igreja de ouro construída

Os antigos escravos o fizeram

pelos brancos, história tantas vezes

entoando palavras e sons proferidos


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por instrumentos especiais tocados

humana, que agem ou funcionam

por pessoas especiais (no sentido

como pessoas ao ativarem relações

também de sua localização em

sociais (Mauss, 2003). Mediador

um grupo específico dentro do

entre relações e mundos, ngoma,

universo mais amplo dos reinados).

mana ou axé específico dos reinados

Os tambores ou tambus (tambores)

é o que emana dos tambores

do candombe são três (como na

sagrados, dos bastões dos capitães,

formação de outras práticas de

das coroas e espadas das rainhas.

religiões de matrizes afro): Santana,

É também a força que faz com

Santaninha e Jeremias. Sentada

que os velhos moçambiqueiros

no Santana, segundo versão muito

possam cantar, dançar durante dias

difundida, a imagem saiu do mar

consecutivos, percorrendo grandes

indo com os negros para a senzala,

distâncias em honra à Senhora do

tornando-se sua protetora perpétua,

Rosário, como ouvimos. É uma

em uma reversibilidade inegável da

energia que anima presenças.

ordem vigente.

Como mana, hau, axé, proponho que a noção de ngoma também

Assim, a Virgem teria saído

seja intraduzível e conceitual na

das águas uma vez encantada

medida em que condensa ideias,

(enfeitiçada) pelo poder do

ações, relações entre ideias e ações.

ngoma dos tambores sagrados do

Essa relação, passagem do objeto

candombe (diferentes dos tambores

ao que não é da ordem do real, pois

comuns tais objetos rituais ainda

que conceito, nos parece caber

hoje são tratados como se tratam

aqui inteiramente para noção de

entidades espirituais com oferendas,

ngoma, assim como cabe o trecho

café, bebida, velas). “Ei chora ngoma!

de Mauss: “A noção de mana não é

Ei ngoma chora”, ouvimos no canto.

da ordem do real, mas da ordem do

Ngoma, para os não iniciados quer

pensamento que, mesmo quando

dizer instrumento percussivo como

se pensa ele próprio, nunca pensa

encontramos em dicionários de

senão um objeto” (Mauss, 2003:41).

termos banto. Porém, depois de vivenciar, filmar, participar de várias

Assim, concebemos a narrativa do

atualizações rituais, de ganhar um

mito fundador como narração de um

cargo na guarda, pude perceber que

empreendimento de incorporação

ngoma é também tambor, mas em

de Nossa Senhora, símbolo máximo

torno ao termo circulam significados

do catolicismo branco pelo universo

muito mais complexos. No (ou na)

simbólico e ritual negro, africano,

ngoma está envolvida a agência

banto. O reinado pode ser vivido

de objetos e forças especiais, que

e pensado, ao contrário do que diz

atuam como mediadores de agência

o senso comum, não apenas


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como adesão ou sincretismo ao catolicismo, mas como fonte de afirmação de uma ontologia negra, de grande eficácia pela proximidade estabelecida com a religião dominante, o catolicismo, operando um encantamento ou enfeitiçamento em seu campo. Eficácia por acontecer de certa forma no interior de supostos veículos da purificação moderna (Latour) acionando uma cosmologia específica ou uma cosmopolítica especial entre diferentes seres. Neste, o intercurso metamorfoseante entre mulheres/homens, deuses, espíritos, envolve além de objetos especiais, como tambores, também forças da natureza, elementos como tempestades, raios e trovões, manifestados na coroação de uma rainha, como veremos. Quando a minha mãe fundou essa guarda, tinha uma polêmica. Eles não aceitavam de mulher ter uma guarda. O nome dela lá no Diretório Central, que foi formado antes da Federação dos Congados, era Bárbara Heliodora, porque ela foi a única heroína que conseguiu fundar uma guarda sendo mulher, pelo esforço que ela fez, que ela quis fazer. Eu acompanhei ela em todos os lugares que ela ia, ou como princesa, ou como mucama, dama de companhia (...) Ela era rainha da cidade de Belo Horizonte e, depois disso, foi eleita Rainha Conga do Estado de Minas Gerais, o que ela foi até os últimos dias da sua existência. Daí pra frente, eu tive que assumir o cargo, como eu era filha única, a obrigação era minha, assumir aquilo que ela tanto quis fazer. Todo 13 de maio tem festa de Nossa Senhora do

Rosário. Uma Guarda com sessenta e sete anos e nunca parou um ano. A minha mãe iniciou com seis meses de idade, ela foi princesa e o lugar da festa se chamava Angola, tem essa região até hoje, lá pros lados de Betim. Depois ela teve uma visão que era pra formar a guarda e então ela formou. Ela contou que estava na nossa casa, uma casa pequena, com muito mato muito morro, ela morava aqui praticamente sozinha. Ela contava que um dia, ela estava precisando das coisas, porque dois filhos pra criar sozinha, não é fácil. Então ela tava sentada na porta da sala e que de repente, apareceu uma guarda de congo e uma de moçambique conversando com ela, falaram que tinha a missão de ser rainha e que era pra formar uma guarda que falasse sobre a escravidão, provavelmente eram os antepassados dela, que sem dúvida foram muitos escravos e índios pegos a laço. Era assim que ela contava. Eles coroaram ela, os antepassados, coroaram ela e a mim. E ao Ephigênio, meu irmão, deram um bastão de capitão. Mas então ela falou: como eu vou fazer isso, fundar uma guarda? Então, ela fez com a ajuda deles, dos antepassados, e ela conseguiu tudo o que ela precisava. Isso foi em 1944” (Rainha Isabel Cassimira das Dôres Gasparino).

A Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio fundada e até hoje sediada no bairro Concórdia em Belo Horizonte, há mais de 70 anos é chefiada por mulheres, mesmo tendo em vista as interdições de gênero que caracterizam os moçambiques. Fundada, como ouvimos acima, no intercurso com os antepassados. É esta comunidade que pertenceu


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e pertence à Rainha Conga do

ficamos alguns poucos a comentar

estado, uma das mais reconhecidas

os acontecimentos. Era Isabel

autoridades na tradição dos reinados

mãe abrindo o novo reinado que

negros de Nossa Senhora do Rosário

se iniciava, lavando, abençoando,

e no campo afro-descendente

celebrando como Iansã, senhora dos

em Minas. A Rainha Conga é a

raios e trovões, o reinado de sua

autoridade máxima no reinado e

filha que, por meio dessa agência

representante - como dizia a própria

simbólica e particular, ela havia

rainha, ou presentificação de Nossa

iniciado.

Senhora do Rosário e de rainhas míticas de outrora, como a Rainha

Como nos ensina a nova rainha,

Nzinga, personagem emblemática

Belinha, recusando uma concepção

das histórias de resistência ao

linear de tempo, aqui não caberia

domínio colonial português em

falar em regresso, mas em raízes

África (no antigo Reino do Congo,

ativadas, fundamentos: “fortalecer

que hoje engloba Angola). Histórias

raízes profundas que são minha avó,

e memórias que chegam até nossos

das quais sua mãe era o tronco e

dias pela tradição oral e musical

sua geração a semente” (palavras

dos que se denominam como

proferidas em seu discurso de

seus descendentes, ritualizadas,

coroação). A analogia pode guardar

atualizadas e celebradas nas

relações mais sutis que não se dão

festividades do Rosário.

somente no campo da metáfora, mas da metamorfose. Havia uma

Na coroação da nova rainha da

gameleira no terreiro associada à

Guarda Treze de Maio, a tempestade

fundadora, Dona Cassimira, assim

se anunciou e por fim caiu na exata

como se percebe um complexo de

hora do subimento do mastro,

agências específicas das plantas

às seis da tarde, momento

que cercam toda a casa, a cozinha,

condensado do rito, quando

e assentamentos, enfim, todas as

os elementos cósmicos se

edificações que compõem o terreiro-

manifestaram. Nos olhares e na

reino que fazem parte deste mundo

energia que circulava, soubemos que

próprio constituído. Nossos tátas,

a tempestade era a manifestação da

nossos ancestrais estão conosco.

antepassada,

Podemos fazer confluir a essa

a rainha-mãe que agora, habitante

afirmação a expressão de I. Stengers

do reino de Aruanda onde vivem os

em Reclaiming Animism (2012),

mortos, seria substituída pela filha

citando uma moral imperativa:

primogênita no cargo.

“thou shalt not regress”, a qual

A tempestade era mesmo ela, como

responde: não se trata de regresso,

pudemos ouvir ao final, quando

de ressurreição do passado, mas de


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afetação do presente, de reativação,

fizemos a trajetória completa:

de tornar ativa uma força.

de uma certa recusa à câmera no princípio, passando à solicitação

Nessa dialética entre o mundo

para que eu filmasse ocasiões

do “desenvolvimento” e o dos

especiais (notava-se uma direção

antepassados ou da “tradição”,

da Rainha Isabel Casimira, sempre

os desafios do reinado são imensos.

mais interessada na participação dos

Estamos tratando de reelaborações

reinos e guardas visitantes, focada

contínuas, hibridações que recusam

na alteridade). Seguiram-se depois

fusões, empreendimentos complexos

trocas de projetos fílmicos com

de manutenção de alteridades e

integrantes do reino, montagens

coletividades, de fontes de memória,

compartilhadas e experiências de

subjetivação, afirmação negra e

realização conjuntas, como a do

outros processos.

filme A Rainha Nzinga Chegou,

Formas de expressão, conhecimento,

finalizado em 2019 e cuja direção

de constituição do mundo.

é assinada por Isabel Casimira

As origens remontam há séculos

Gasparino, a rainha Belinha e por

passados, onde encontramos as

mim. (Este foi o documentário

primeiras descrições de cortejos de

apresentado e comentado pelas

reis e rainhas, com suas guardas,

diretoras na Semana de Ciência, Arte

séquitos e cortes em adoração a

e Política da PUC Minas São Gabriel,

uma santa católica introduzida em

em 2019).

Angola pela devoção de uma rainha portuguesa. Hoje, em Angola, país

A Rainha Nzinga Chegou, inclui

da África Central, não encontramos

uma viagem a diversas regiões de

mais as manifestações dos reinados

Angola, com Isabel Casimira filha

negros. Tambus, gungas e demais

(a rainha Belinha, atual Rainha

instrumentos sagrados vimos apenas

Conga do Estado de Minas Gerais) e

nos museus. Tal Angola “mítica”

o capitão da Guarda de Moçambique

(r)existe no mundo constituído pelos

Treze de Maio, Antônio Cassimiro,

reinados, em Minas, onde devoção,

seu irmão. Dona Isabel, sua mãe

adoração e encantamento puderam

“tinha ido na frente, nos esperar em

ser faces da mesma moeda.

Angola”, como me disse Margarida, sua segunda filha. Ela partiu

A partir de 2004 iniciei a

pouco mais de um mês antes de

documentação, por meio fílmico,

nossa programada viagem e esse

de festividades, visitas, rituais

filme tornou-se, também, nossa

e editamos junto a integrantes

homenagem a esta inesquecível

do Reino Treze de Maio três

rainha.

documentários. Com o audiovisual,


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Valer-nos dos recursos audiovisuais

Partimos do rastro deixado pela

nos permitiu experimentar a

proposição enunciada por Isabelle

construção de uma etnografia

Stengers (2007): “a obrigação

e de seus resultados de forma

de se tomar o cosmos alheio em

efetivamente mais simétrica com

toda sua aspereza e singularidade

os componentes do Reino Treze de

e de se tirar as consequências –

Maio e me fez estar presente em

políticas, teóricas, existenciais – dos

diferentes ocasiões no tempo.

efeitos imprevisíveis desta dupla

Toda essa preocupação

entre-captura”. Proposição por

epistemológica, estética e,

nós experimentada sobretudo pela

sobretudo ética, ancorada em uma

intermediação do cinema nessa

revisão da oposição hierárquica

etnografia e cientes, de saída,

clássica entre sujeito e objeto do

de uma irredutível assimetria

conhecimento é a base da longa

também dupla, entre saberes

e profícua trajetória e legado de

e cosmos, os da pesquisa e da

Jean Rouch, para quem o cinema

antropologia, e os do reinado

deixaria de ser um conhecimento de

que sempre guardarão para nós

poucos, para se tornar um veículo

opacidade, na medida em que

de comunicação passível de ser

vislumbram o que não totalmente

apropriado pelas comunidades

alcançamos. Assimetria, portanto,

filmadas (Sztutman, 2009).

de parte a parte, se assim pode-

O que, felizmente, tem acontecido

se pensar. Porém, tenho buscado

cada vez mais radicalmente no

durante esse longo tempo, ainda que

sentido da autorrepresentação.

tateante, construir conexões entre

Os ventos da história estão

formas diversas de pensamento:

fazendo virar as folhas, como

o que podemos chamar do regime

diria Dona Isabel. Percebo hoje

de saberes específicos mobilizado

que a introdução das filmagens e

pelos reinados e o produzido

posteriores processos colaborativos

pela etnografia (e pelo cinema),

de edição e autoria tornaram-se

por tentativas de acoplamentos,

menos a descrição de uma dada

simbioses e construção de

realidade social ou a documentação

proximidades possíveis.

de formas de expressão a qual se poderia posteriormente recorrer como um caderno de campo filmado e, mais, a possibilidade de criação de um diálogo e de realizações comuns com componentes do reino, potencializados pelo documentário.


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REFERÊNCIAS

ANJOS, José Carlos e ORO, Pedro. Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre - Sincretismo entre Maria e Iemanjá, 2009. CASSIMIRO, Margarida Gasparino. Louvação à Nossa Senhora do Rosário. In CAIXETA R. e TUGNY, R. (orgs.) Músicas Africanas e Indígenas no Brasil, Ed UFMG, 2006. KELLY, José. Sobre a Antimestiçagem, Ed. Cultura e Barbárie, Desterro, 2016. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos, ensaio de antropologia simétrica, ed. 34, Rio de Janeiro,1991. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In: Mauss, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003 [1925]. STENGERS, Isabelle. The Cosmopolitical Proposal, _ FR_CUT_üa, 1.10.2004 __________________. Reclaim Animism, 2012, http://www.e-flux.com/journal/ reclaiming-animism/ SOUZA, Marina de Mello. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. SZTUTMAN, Renato. “A utopia reversa de Jean Rouch: de ‘Os mestres loucos’ a ‘Pouco a pouco’”. Devires (UFMG), v. 6, p. 108-125, 2009.


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SANGUE DE BAIRRO Affonso Uchôa e Desali


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SANGUE DE BAIRRO1 Affonso Uchôa e Desali2

Sangue de Bairro é a série

apresenta alguma dignidade

fotográfica que nós, Affonso Uchôa

ou potência fora do discurso que

e Desali, realizamos no lugar onde

o fotógrafo deseja construir.

crescemos e moramos: o Bairro Nacional, em Contagem –

Em Sangue de Bairro retratamos a

Minas Gerais.

realidade periférica desde um olhar mais aproximado.

O Bairro Nacional é uma “quebrada”,

Em nossa experiência, percebemos

um bairro de periferia.

que a vida na quebrada é complexa

Na história das imagens brasileiras,

e diversa: mais mosaico do que

os espaços pobres sempre sofreram

plano. A série se dedicou a registrar

com uma representação que

a amplitude dos sentimentos do

oscilava entre o “charme exótico”

Bairro Nacional.

e o paternalismo.

Nas imagens há momentos de

Produzidas em geral por pessoas

intimidade e retratos do cotidiano,

de classe média ou da elite,

assim como também instantes de

boa parte das imagens dos

euforia e êxtase.

despossuídos brasileiros focou na

O universo da série transita por

denúncia social ou no pitoresco,

retratos tomados à luz de um

ignorando a complexidade das

prosaico fim de tarde e segue

pessoas e dos lugares retratados.

até instantâneos de convívio com

O pobre nessas imagens raramente

as drogas e a violência.

1

A série de fotografia Sangue de Bairro esteve exposta na PUC Minas São Gabriel durante a programação da XI SCAP.

2

Affonso Uchôa é cineasta, fotógrafo, montador e diretor. Desali é artista plástico, seu trabalho transita entre a pintura, a fotografia, a ação performativa e o vídeo.


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Na nossa série buscamos uma

Sangue de Bairro traduz em imagens

representação da periferia mais

a melodia da vida na periferia, que

ampla e sem julgamentos.

ressoa em Contagem, mas também no Rio de Janeiro, São Paulo e em

A série atualiza um tradicional

todo lugar de excluídos mundo

princípio fotográfico:

afora. O Sangue de Bairro corre nas

a imagem é a revelação de um

veias de toda quebrada.

estado do mundo. Nesse caso, de um lugar específico do mundo. A série é devotada a capturar a existência fulgurante dos lugares, corpos e instantes do Bairro Nacional. Sangue de Bairro se origina da deriva pelo mundo em busca de um esplendor que transforme uma presença em imagem. Buscamos, nessa série, encarar uma questão fundamental da linguagem fotográfica: o jogo entre quem retrata e quem posa. O jovem deitado em posição frágil na cama e a jovem mulher preparando seu cachimbo de crack expõem seus momentos e segredos mais íntimos para a gente. Ao mesmo tempo, nós também deixamos aberta a possibilidade de uma participação mais ativa dos retratados, para que eles ofereçam para câmera a sua performance ou sua consciência da pose. Acima de tudo, sentimos que está nas fotos a força e dignidade da gente do Bairro Nacional. Corpos e vidas pobres, invisibilizados e esquecidos na sociedade, também apresentam força incomum e a nossa imagem é testemunha da sua potência.


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Os temas, as perspectivas e entendimentos sobre os mesmos, apresentados por membros da Comunidade Acadêmica e Administrativa ou convidados desta casa nesta publicação, são de responsabilidade do autor, nem sempre expressando os valores e orientação filosófica e teológica da PUC Minas e da Reitoria.


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