BRASIL EM TRANSE

Page 1

ANAISDASCAP PORQUE OS TEMPOS ESTÃO MUDANDO

ANAISDASCAP BRASIL EM TRANSE





Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero (ORG)

X SEMANA DE CIÊNCIA, ARTE E POLÍTICA DA PUC MINAS SÃO GABRIEL

ANAIS DA SCAP BRASIL EM TRANSE: Democracia, Tecnologia e Direitos Humanos

PUC-MG Belo Horizonte 2018


6

FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel (10. : 2018 : Belo Horizonte, (MG) S471a Anais da SCAP: Brasil em transe: democracia, tecnologia e direitos humanos / organizadora: Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero. Belo Horizonte: PUC-MG, 2018. E-book (189 p.: il.)

ISBN: 978-85-8239-105-1

1. Brasil. [Constituição (1988)]. 2. Direitos humanos - Congressos - Minas Gerais. 3. Democracia - Brasil. 4. Ciência e tecnologia. 5. Direitos e garantias individuais - Brasil. I. Quintero, Elisa Cristina de Oliveira Rezende. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Campus São Gabriel). III. Título.

CDU: 342.7(100) Ficha catalográfica elaborada por Fernanda Paim Brito - CRB 6/2999


7


8

EXPEDIENTE

Organização e Edição:

Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero

Projeto Gráfico, Direção de Arte e Diagramação:

Prof.ª Dulce Maria de Oliveira Albarez

Revisão:

Prof. Mário Francisco Ianni Viggiano

Fotografias:

Filipe Chaves e Luís Siqueira


9

Grão-chanceler:

Reitor:

Vice-reitora:

Dom Walmor Oliveira de Azevedo Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães Prof.ª Patrícia Bernardes

Chefia de Gabinete da Reitoria:

Prof. Paulo Roberto de Sousa

Prof. José Tarcísio Amorim

Assessor Especial: Pró-reitores:

Prof.ª Maria Inês Martins (Graduação)

Prof. Wanderley Chieppe Felippe (Extensão)

Prof. Sérgio de Morais Hanriot (Pesquisa e de Pós-graduação)

Prof. Paulo Sérgio Gontijo do Carmo (Gestão Financeira)

Prof. Rômulo Albertini Rigueira (Logística e de Infraestrutura)

Prof. Sérgio Silveira Martins (Recursos Humanos)

Prof. Mozahir Salomão Bruck

Secretário de Comunicação:

Secretária de Cultura

e Assuntos Comunitários:

Secretário Geral:

Secretário de Planejamento

e Desenvolvimento Institucional:

Prof.ª Maria Beatriz Rocha Cardoso Prof. Ronaldo Rajão Santiago

Prof. Carlos Barreto Ribas

Pró-reitor Adjunto

da PUC Minas São Gabriel:

Prof. Alexandre Rezende Guimarães

Diretor Acadêmico:

Prof. Cláudio Listher Marques Bahia

Coordenadora de Extensão:

Coordenador de Pesquisa:

Coordenadora da

Pastoral Universitária:

Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Prof. José Wanderley Novato Silva

Prof.ª Rosélia Junqueira Carvalho Rodrigues


10


11

ÍNDICE EDITORIAL

Cláudio Listher Marques Bahia Elisa C. O. Rezende Quintero 12

DESINVENTANDO O BRASIL

Ivana Bentes 17

DIREITOS HUMANOS EM TEMPOS SOMBRIOS: uma análise do Brasil Robson Sávio Reis Souza 65 contemporâneo

A DEMOCRACIA EM QUESTÃO: pontos e contrapontos

TECNOCIÊNCIAS E SUBJETIVIDADES: uma leitura por territórios, fluxos, máquinas e universos

VERSOS DE LIBERDADE E VENTURA DE SER

João Carlos Lino Gomes Pe. Márcio Antônio de Paiva 113

Bruno Vasconcelos de Almeida

145

Breno Bede 183


12

EDITORIAL A Semana de Ciência, Arte e Política

nestes ANAIS “BRASIL EM TRANSE:

– SCAP é um evento acadêmico que

Democracia, Tecnologia e Direitos

integra o Ensino, a Pesquisa,

Humanos” nos artigos e ensaios:

a Extensão e a Pastoral Universitária

Desinventando o Brasil, de Ivana

na PUC Minas São Gabriel.

Bentes; Direitos Humanos em

Por meio da interdisciplinaridade

Tempos Sombrios, de Robson Sávio

e pautada por debates acerca de

Reis Souza; A Democracia em

questões contemporâneas,

Questão, de João Carlos Lino Gomes

a SCAP objetiva a formação geral

e Pe. Márcio Antônio de Paiva;

e humanística não só do corpo

Tecnociências e Subjetividades, de

discente, mas também do corpo

Bruno Vasconcelos de Almeida;

docente, técnico-administrativo e

nos Versos de Liberdade de Breno

comunidade externa.

Bede e no ensaio fotográfico de

A Semana propicia interlocução

Filipe Chaves e Luís Siqueira.

com diferentes grupos sociais, instituições de ensino superior e

Ivana Bentes nos apresenta uma

entidades científicas e promove

lúcida reflexão crítica sobre as

trocas entre as diversas áreas de

transformações que desinventaram

conhecimento.

aquilo que achávamos que o Brasil era. “Estamos em um desses momentos de

Em 2018, as questões suscitadas

confronto entre imaginários em torno

pela décima edição do evento

do Brasil, disputa entre grupos sociais

tiveram como ponto de partida os

pela representação do país, o que

70 anos da Declaração Universal dos

achamos que somos ou deveríamos

Direitos Humanos e os 30 anos da

ser.” A autora nos lembra de que todas

Constituição Brasileira,

essas transformações apresentam um

a constituição cidadã, até chegar às

desafio: o de construir a democracia

perguntas difíceis que temos que

em um novo cenário comunicacional.

enfrentar: afinal, como vai o Brasil?

Para Robson Sávio, dois projetos

Afinal, como vai a democracia?

de sociedade estão no centro das disputas políticas.

A SCAP apresenta-se como

Ele nos fala de disputas narrativas,

importante tarefa acadêmica e

das eleições de 2018 e pergunta: a

ação sociocultural documentada

quem interessa a criminalização da


13

política? Pode a democracia conviver

acontecimento biopolítico, ou seja,

com uma economia que mata? João

“uma produção alternativa de

Carlos Lino Gomes e Pe. Márcio

subjetividade, que não só resiste ao

Antônio de Paiva lançam luz sobre o

poder como busca autonomia em

debate contemporâneo para repensar

relação a ele”.

os atuais paradoxos da democracia.

No ensaio fotográfico de Filipe Chaves

Não há dúvida de que a tecnologia

e Luís Siqueira vemos a rua como

tem mudado as regras do jogo

espaço de produção de subjetividades

democrático. Bruno Vasconcelos de

biopolíticas. As fotografias mostram

Almeida vai discutir sobre a complexa

as marcas da eleição presidencial de

relação entre tecnociência e modos

2018. Vestígios de uma disputa que

de produção de subjetividade

dividiu o país, colhidos com câmera

desencadeados a partir do encontro

analógica em muros, calçadas e postes

entre corpos e máquinas. Breno Bede

das ruas de Belo Horizonte.

encerra estes Anais com seus versos

Os fotógrafos apresentam ainda

de liberdade e a fé dedicada ao outro

imagens da multidão que tomou as

que “otimistas chamariam de amor”.

ruas nas primeiras manifestações em

No livro Bem Estar Comum, Antonio

protesto ao governo eleito.

Negri e Michael Hardt lembram que na poesia de Walt Whitman o amor do

Assim, fica registrado nestes Anais a

estranho reaparece constantemente.

décima edição da Semana de

E que esse amor do estranho, do

Ciência, Arte e Política – SCAP 2018.

mais distante, da alteridade, possui outro significado, o do amor como

Leiam e reflitam.

Prof. Cláudio Listher Marques Bahia Diretor Acadêmico da PUC Minas São Gabriel Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Coordenadora de Extensão da PUC Minas São Gabriel


14


15


16


17

DESINVENTANDO O BRASIL1 Ivana Bentes2

Estamos vivendo um momento de

de turbulência, são portadoras de

crise, um momento de passagem,

transformação.

um momento em que mesmo os nossos conceitos e nossas

Estamos em um desses momentos

experiências sobre o Brasil estão

de confronto entre imaginários

mudando. Quando falamos de crise

em torno do Brasil, disputa entre

se temos a noção de instabilidade,

grupos sociais pela representação

de negativo, crise na política,

do país, o que achamos que somos

na ética, a crise e as crises são

ou deveríamos ser, não em um

indícios de algo muito importante:

futuro longínquo, mas nos futuros

a gente não suporta mais o que até

imediatos, no presente urgente.

então era suportável. A crise é um momento de mudança de patamar

Um processo que traz um desafio:

do que era tolerável.

A construção da democracia em um novo cenário comunicacional. Nesse

O Brasil passou, nos últimos

momento em que mídias e redes

10 anos, por transformações

sociais disputam a narrativa do que

enormes e que desinventaram o

é o Brasil, o que é a política, quem

Brasil, desinventaram aquilo que

nós somos. Existe uma relação direta

achávamos que o Brasil era. Então

entre mídia e democracia, mídias e

a crise, mesmo nesses momentos

construção desses imaginários.

1

Conferência de abertura da X Semana de Ciência, Arte e Política da PUC Minas São Gabriel. Belo Horizonte, 3 de setembro de 2018.

2 Doutora em Comunicação (UFRJ). Diretora da Escola de Comunicação da UFRJ. Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural no Ministério da Cultura de 2015 a 2016. Pesquisadora do CNPQ de Estéticas da Comunicação e Periferias Globais. Autora, entre outros, do livro MídiaMultidão: estéticas da comunicação e biopolíticas (Editora Mauad X. 2015).


18


19


20

Mas o que mudou? Nas primeiras

Outra questão nesses primeiros

décadas, as análises sobre a

estudos era o horizonte das

emergência de uma rede como

democracias pós mídias digitais,

a internet, ou o surgimento das

a democratização dos meios

redes sociais foram a celebração

em um contexto de assimetria

de uma potência, um potencial.

e concentração de poder, um

Falamos muito de revoluções na

potencial disruptivo das mídias.

comunicação, a partir da emergência da mídia livre, da produção de

Com a apropriação tecnológica por

conteúdos digitais, do potencial

diferentes grupos sociais vimos a

colaborativo das redes. Uma espécie

emergência de uma ciberperiferia,

de fim da reserva de mercado na

ou cultura popular digital, a

produção de conteúdos feitas

capacidade dos diferentes grupos

apenas por especialistas, as redes

sociais de se apropriarem das

como laboratórios de formação

tecnologias para uso expressivo,

e autoformação. O declínio dos

cultural, político e artístico muito

mediadores e especialistas como

singulares.

jornalistas, figuras de autoridade, formadores de opinião, historiadores.

A questão que me interessou nas primeiras décadas dos estudos das

Uma série de crises dentro do

novas mídias e redes foi o impacto

próprio campo das ciências

da cultura digital nos territórios

humanas e das autoridades do nosso

ligados às favelas, à pobreza, às

campo. Essas primeiras análises

periferias. Ou dito de outro modo:

traziam um horizonte utópico e

Como a pobreza produz riqueza,

disruptivo, apontando as mudanças

música, cultura, funk, hip-hop, a

de paradigmas.

partir dessa apropriação tecnológica e de repertórios. Esse foi um dos

No próprio campo da produção

campos aos quais me dediquei

de conhecimento as universidades

em uma pesquisa em andamento

começaram a questionar seu

intitulada Periferias Globais, iniciada

modelo fordista de formação,

nos anos 2000.

com a emergência de tecnologias e processos fora do controle

Também me interessaram as

corporativo ou institucional.

experiências de formação livre que

Experiências de formação de

explodiram no Brasil todo. E uma

baixo para cima. Apropriação de

forma de apropriação tecnológica

conteúdos por grupos e pessoas de

singular. A cultura dos remixes,

fora das universidades.

a cultura de ressignificação do negativo em positivo, a capacidade


21

de converter as forças hostis

mobilizados desde 2016, desde o

máximas, a pobreza, a violência em

impeachment da presidenta Dilma

processos de criação, invenção e

Roussef pelo menos.

autoformação. Essa emergência no Brasil nos Então, mesmo diante de crises em

últimos 10, 15 anos, das culturas

série, diante dessa instabilidade

que vêm das periferias, dessas

estrutural, podemos invocar esse

bordas que vão se articular, dessa

princípio de conversão do negativo

apropriação que produz uma cultura

em positivo, que é uma característica

popular digital, essa transmutação

do Brasil, e de seus movimentos

da pobreza em riqueza produziram

culturais e sociais mais potentes:

fenômenos muito fortes.

o movimento antropofágico, o movimento do Cinema Novo,

O que foi a emergência da cultura

o tropicalismo, as experiências

digital no Brasil? Podemos começar

contraculturais em plena ditadura

falando da multiplicação das

militar, nas décadas de 1960 e 1970,

primeiras lan houses que apareceram

as explosões criativas em contextos

no Rio de Janeiro e em todo o Brasil,

políticos de exceção e repressão.

nas favelas e periferias. Espaços em que se montavam computadores

Em qualquer conjuntura não

fazendo metareciclagem, usando

podemos deixar de ver essas linhas

sucata, lugares que funcionavam

subterrâneas que atravessam a

como pontos de encontro,

cultura, que estão agindo mesmo em

de festa, sociabilidade, formando

um momento em que parece que

comunidades em torno do acesso as

“está tudo dominado” e as narrativas

tecnologias. E mais do que acesso,

são de perplexidade e impotência .

usos distintos das novas tecnologias.

3

Nós chamamos de cultura digital

GUERRAS CULTURAIS

essas apropriações tecnológicas. A emergência de ciberfavelas,

Por isso invoco aqui a cultura e a

ciberperiferias, em que o prefixo

arte, os comportamentos e modos

ciber emergiu como um modo

de existência, como os campos

de distinção e de modulação dos

de batalhas em que se travam as

territórios diante das tecnologias.

guerras culturais nas quais estamos

3

Enquanto falo, o Rio de Janeiro está recolhendo o rescaldo de 200 anos da história do Brasil queimados no incêndio do Museu Nacional da UFRJ, ocorrido no dia 2 de setembro de 2018, mas não se muda a história com lágrimas, não se muda a história com choro, não se muda a história com sentimento de impotência.


22


23


24

ORAL E DIGITAL

tecnológica como forma de ativismo e de luta.

Explodiram as lan houses caseiras nas comunidades, vimos usos

Outro exemplo que gosto é

singulares das tecnologias por

do Quilombo do Campinho da

grupos indígenas, a emergência de

Independência, em Paraty,

“quilombos digitais”. A primeira vez

que pensa o turismo comunitário,

que eu conversei com um indígena

ou etnoturismo. Ou esse grupo

que trabalhava com cultura digital,

Realidade Negra de lá que articula

eu perguntei para ele “Onde é sua

linguagens estéticas de matriz

tribo?”. Ele respondeu: “Eu não

africana e muito tradicionais com a

tenho tribo, eu tenho um portal

cultura urbana em um grupo de

na internet. A minha tribo se

hip-hop quilombola.

reconectou e se reencontrou em uma terra virtual. E hoje a gente luta

São movimentos culturais de novo

pelas causas indígenas utilizando

tipo, que englobam desde ações

as novas tecnologias, as redes, os

culturais, de comportamento e

vídeos”. Essa transculturalidade já

de posicionamento: os novos

tinha resultado em projetos como

movimentos feministas, a visibilidade

o Vídeo nas Aldeias, de cineastas

através das mídias de grupos

e realizadores indígenas que

invisibilizados: indígenas, LGBTQI,

produzem narrativas, produzem

movimentos que reposicionam o

estéticas novas, a partir dessa

debate sobre o racismo, machismo,

passagem entre as culturas.

patriarcado no Brasil, a partir do uso de novas linguagens.

Os portais índios online e webindígena4 usam a tecnologia para um projeto de preservação das línguas

2013 E OS MOVIMENTOS DE NOVO TIPO

indígenas que estão em extinção, para a preservação, registro da

Nessa linha, as manifestações de

cultura oral em novos meios, digitais.

junho de 2013 no Brasil foram o

Ou seja, não há qualquer tipo de

momento de explosão de uma

incompatibilidade entre as culturas

miríade de outras linguagens e

mais tradicionais, ou a cultura oral,

processos. Uma politização da

e as novas tecnologias. Trata-se de

cultura ou uma culturalização da

pensar a transculturalidade,

política, podemos dizer. Movimentos

a interculturalidade, a apropriação

que nascem ou se organizam a partir

4

https://www.indiosonline.net/ e http://www.webindigena.org/ Acesso em 19/05/2019.


25

dessa configuração das redes e da

ser branco no país é um privilégio,

cultura digital. Desde 2013 estamos

tudo isso aponta para um momento

literalmente desinventando o Brasil,

muito intenso de rompimento com a

derrubando por terra alguns dos

imagem que tínhamos do Brasil.

seus mitos fundadores e produzindo outras mitologias.

É um momento de uma nova partilha do sensível, para citar

Nos últimos 13 anos o Brasil passou

Jacques Rancière5. Acreditávamos

por uma mutação antropológica

que política não se misturava com

e abalou alguns desses mitos

futebol, mas vimos na Copa do

fundadores. O debate das cotas

Mundo os movimentos de protesto

raciais nas universidades por exemplo

denunciando obras superfaturadas

colocou em xeque o mito de que o

para os megaeventos, populações

Brasil tinha resolvido o problema do

sendo expulsas de seus territórios

racismo a partir do multiculturalismo,

na zona portuária, processos de

que teríamos uma mistura, uma

gentrificação, corrupção no governo

mestiçagem que teria adocicado a

de Sérgio Cabral que anteciparam a

brutalidade da escravidão.

tragédia do Rio de Janeiro, a falência do estado do Rio, que

A narrativa apaziguadora das raças,

foi anunciada pelos manifestantes

dessa escravidão doce que produz

de 2013. Em 2018 já tínhamos o

relações assimétricas (de poder,

governador Sérgio Cabral preso por

de assujeitamento, econômicas,

corrupção, o megaempresário Eike

afetivas e sexuais) entre escravizador

Batista preso, o empresário da máfia

e escravizados se rompeu, não se

dos transportes do Rio preso.

sustenta mais socialmente. A fábula

Uma série de questões e

da relação familiar e afetiva entre

pautas foram denunciadas nas

patrões e empregadas domésticas

manifestações e a mídia ignorava

deixou de ser contada como um

ou malversava. E hoje podemos

trunfo cultural.

nos perguntar: Quem eram os vândalos em 2013? Quem eram os

A emergência do discurso feminista,

reais blackblocks da política, os

que traz a discussão sobre o

depredadores do patrimônio público?

machismo para a cena principal do

Sem dúvidas sabemos quem são.

debate público, toda a discussão sobre o patriarcalismo, o debate da

Enfim, eu faço uma análise muito

“brancocracia”, o entendimento que

mais ampla e generosa de 2013,

5

RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: Estética e Política. São Paulo: Editora 34, 2009.


26


27


28

foi um movimento decisivo, que

O que me interessou em 2013 foi

tinha participação da esquerda,

como os movimentos sociais,

de parte do movimento conservador

os desorganizados - pessoas que

e foi um movimento multitudinário

não fazem parte de partidos,

que inventou muitas das linguagens

não vieram de universidades, de

das manifestações que redundaram

sindicatos, sem nenhum tipo de

depois nas ocupações das escolas

experiência política - puderam se

pelos secundaristas, por exemplo,

organizar a partir das plataformas

mas também produziu uma

digitais.

renovação da direita.

Como os desorganizados se organizaram a partir de uma nova

Não podemos reduzir 2013 a “origem

partilha do sensível utilizando as

da tragédia”, não foi um golpe da

plataformas e essa cultura digital.

CIA contra a presidenta Dilma, como diziam alguns dos meus amigos de

Podemos falar em um momento

esquerda. Reduzindo as indignações

construtivo de apropriação de

acumuladas a um “golpe da CIA

plataformas como o Facebook,

contra o PT”. Ao mesmo tempo,

o Twitter, por formas grupos

os conservadores diziam que era

não institucionalizados e que

a implantação do comunismo no

redundaram em movimentos e

Brasil. Ou seja, os dois polos estavam

fenômenos posteriores, como a

errados. Achavam que estávamos

primavera feminista e outros.

diante de algo hipermanipulado. Obviamente que em 2013 havia sim

É dessa forma que podemos

grupos conservadores, grupos que

constatar que o espaço público

usaram dessas manifestações para

passa a ser disputado, por exemplo,

desestabilizar o governo de Dilma

por um movimento que ganhou

que não soube dialogar e responder

uma hashtag na internet chamada

aos manifestantes.

#ChegaDeFiuFiu e me pergunto se há cinco anos, há 10 anos a cantada

Mas tínhamos ali um caldeirão,

de rua poderia ser considerada uma

uma explosão que poderia ter ido

expressão do machismo.

para todos os lados. Então, 2013

E a resposta é: não. Uma campanha

foi uma explosão da diversidade

como essa seria considerada

e da multiplicidade de pautas, de

intolerante e exagerada. Mas hoje

linguagens, depois vimos em 2016

entendemos que muita coisa que

as manifestações verde-amarelas,

aceitávamos, se tornou intolerável.

com pautas conservadoras que

O patamar do que era tolerável

culminaram com o impeachment da

mudou, isso é algo radical.

Presidenta da República.

Não poderíamos imaginar no Brasil


29

um jornalista como William Waak perder o emprego porque fez uma

CONSUMO E PAUTAS IDENTITÁRIAS

brincadeira racista, não podíamos imaginar um ator de televisão global,

Mas o que mudou? Podemos

José Mayer, sair das telas por um

dar exemplos no campo do

comportamento de assédio.

comportamento, no campo do consumo. Essa imagem que estamos

O horizonte do que era o tolerável em

vendo é uma publicidade da Avon.

termos de racismo, machismo mudou.

Aquela marca de cosméticos para

É isso que chamo de a desinvenção

senhoras, donas de casa, para

do Brasil. Apesar de muitos, inclusive

uma mulher tradicional e bem-

meus pares universitários, chamarem

comportada, com aqueles catálogos

atenção para a possibilidade de um

para a mulheres venderam nas casas.

“radicalismo” das pautas identitárias,

A Avon entendeu que havia outros

de gênero etc. Esse “radicalismo” é

imaginários e que até para vender

decisivo em um primeiro momento

e ampliar seu público precisava

para pautar novos consensos.

das minorias e das linguagens

Eu costumo usar a fórmula, estamos

identitárias. Até para vender

em um momento em que privilégio

cosméticos e batom, ela precisava

se tornou desvantagem, se você é

incluir LGBTQIs no seu discurso e

homem, se você é branco e se você

em sua narrativa. A Avon trouxe

é hétero, quando você abrir a boca

a Elke Maravilha, drag queens,

saiba que você já está errado [risos].

figuras ligadas à emergência dessas

É uma forma de dizer: Algo de

minorias e linguagens.

estruturante mudou. E é importante que a gente veja Dito de outra forma. Alguns sujeitos

que o consumo hoje nos leva a

do discurso tradicionais estão em

pensar sobre essa necessidade e

uma posição em que deveriam ouvir

essa ampliação do que chamávamos

mais do que falar. E isso é talvez muito

de democracia no Brasil. Todos

violento para toda uma geração, e

os movimentos como o afropunk,

por isso eu entendo todos os que

o afrofutursimo, a estética de

se sentem atingidos e em xeque: é

uma figura como a Karol Conká e

que seus privilégios se tornam uma

tantas outras, culturaliza o debate,

desvantagem.

e politiza a cultura a partir de

Mas é um momento importante,

uma estética negra e afro, pop,

pois sem essa radicalização também

valorizando a cultura negra e

não avançamos, fica sempre a mesma

combatendo o racismo através

coisa. Precisamos colocar esse senso

do cabelo, da moda, da música e

comum em questão.

fazendo política através do corpo.


30


31


32

Trata-se de uma outra maneira da

ofensa, um palavrão, que remete

gente pensar o discurso político e o

a algo negativo. Como ter direitos

comportamento político.

pode ser algo negativo? Como

É um tipo de midiativismo nas

ter direitos pode ser considerado

redes e nas ruas que vimos ganhar

um privilégio? Os direitos das

visibilidade através de pautas

minorias e das maiorias estão sendo

que eram invisíveis. Como falar

considerados privilégios.

sobre assuntos escondidos, tabus,

Eis a origem do ressentimento de

segredos de família sobre o assédio,

certos grupos.

na campanha #MeuPrimeiroAssédio, chocante e impactante porque revelava algo que todo mundo sabia, mas não verbalizava. Que são

VIRALIZAÇÃO DAS INDIGNAÇÕES E O MIDIATIVISMO

familiares, os mais próximos, os pais, os tios, os padrastos, os vizinhos, os

Essa onda que estamos

“cidadãos de bem” que cometem

experimentando e vivendo no

assédios, abusos e que violentam e

Brasil não é só do Brasil. A gente

batem nas mulheres. Uma campanha

viu explodir e ganhar visibilidade

nas redes faz emergir um discurso

essa luta pela ampliação dos

barrado e velado. Vejam só que

direitos, a defesa da vida contra a

momento rico e importante da

financeirização do capital, contra a

cultura brasileira.

violência baseada na cor da pele, no gênero etc. São movimentos

Minha pesquisa atual passa por

globais. Podemos falar dessa

essa mídia-multidão, ou seja, esse

viralização das indignações, não

momento em que muitos passam

só no Brasil, mas em um contexto

a produzir conteúdo, mídias e

global. 2013 no Brasil veio depois do

campanhas e a incidir socialmente,

15M, a eclosão de um movimento

ao fazer emergir outras narrativas

para pedir “democracia real já”, mais

do país: Somos racistas, somos

participação da população nos rumos

machistas, existe uma brancocracia,

da política, etc.

privilégios e como a gente pode transformar e converter privilégios

No 15M emergiram experiências

em igualdade ou justiça, como

muito interessantes, como o partido

podemos combater privilégios,

político Podemos e a experiências e

como lidar com a questão dos

laboratórios de mídia e midiativismo.

direitos humanos.

Na Praça do Sol em Madrid vimos a eclosão das assembleias e ocupações

O Brasil é um dos países em que

dos indignados transmitidas ao vivo,

direitos humanos se tornaram uma

em direto,


33

em tempo real. As ocupações eram

e experiências que vão se

mostradas para todos os outros

configurando em novas formas de

países em tempo real, o que causou

midiativismo, que não se contenta em

uma comoção surpreendente.

informar, mas que partem para ações de mídia , visibilidade e viralização.

O uso da tecnologia do ao vivo na

Midiativismo é esse momento em que

internet e nas redes produziu uma

você deixa de ser um consumidor

adesão e comoção no mundo inteiro.

da informação e passa a agir a partir

Mas não só as transmissões ao

da informação que você recebe, a

vivo. Todo um “estado da arte” do

gente viu muitas dessas experiências

midiativismo, naquele momento.

no Brasil. Em que as redes e mídias transbordam para as ruas. Junho de

Podemos voltar para junho de 2013

2013 foi isso. E depois os movimentos

no Brasil e encontraremos esse

conservadores também.

laboratório do 15M na Espanha sem dúvida. Não se trata de relações

OS DESORGANIZADOS

causais, mas de contaminação. Grande parte das análises sobre

Desde 2013 é importante

as manifestações de 2013 falam

acompanhar a emergência desse

de um fenômeno que não era

midiativismo. Também estou falando

previsto. A reunião de grupos e

da emergência decisiva da figura dos

de pessoas em torno de pautas

desorganizados. Quem são? É essa

heterogêneas e descentralizadas.

multidão urbana e heterogênea, sem

Mas se olhamos para trás vamos

uma única identidade, fragmentada,

encontrar micromovimentos,

o precariado urbano que pode juntar

campanhas, mobilizações que foram

grupos muitos distintos e que não

se acumulando. Os protestos nas

se juntavam, vindos de espaços,

redes contra a assinatura do código

experiências e territórios díspares.

florestal pelo governo, grupos que mudavam seu sobrenome nas redes

Se a gente pensar em junho de 2013

para apoiar e dar visibilidade ao

é uma referência para visualizarmos

massacre dos índios Guarani Kaiowá,

a emergência dos desorganizados

ou a emergência de movimentos

como força política. Também nas

como a Marcha das Vadias, que

manifestações de grupos como o

transformavam a palavra vadia, que é

dos caminhoneiros, podemos nos

pejorativa e acusatória,

perguntar por essa heterogeneidade.

em autonomia de liberdade para as

Quem eram esses caminhoneiros

mulheres.

que pararam o Brasil em 2018? Onde eles estavam? Que forma é essa de

Trata-se de uma série de movimentos

organização que emergiu articulando


34


35


36

grupos por meio do WhatsApp?

midiática com uma incidência política

Como usaram as mídias digitais para

muito forte.

se articularem e para pressionar o governo? Grupos dispersos, sem

O ACONTECIMENTO 2013

lideranças marcantes, que unificaram suas reivindicações e deram um

Em 2013, eu estava na direção

xeque-mate no governo de Michel

da Escola de Comunicação da

Temer.

UFRJ e abrimos nossas portas e laboratórios para os coletivos de

São movimentos de novo tipo.

mídia, grupos como Mídia Ninja e

A greve dos caminhoneiros foi tão

dezenas de outros no Rio de Janeiro.

inusitada nessa forma de organização

Fizemos experimentos incríveis

via WhatsApp que colocou o governo

e os estudantes dos cursos de

temeroso e golpista em crise.

comunicação se juntaram a esses

Os porta-vozes do governo

midiativistas em coberturas nas ruas,

levantavam contato com eles como

produzindo o que chamamos de

aqueles alienígenas que chegam na

contra discurso ou contra narrativa

Terra e pedem:

sobre as pautas das manifestações

“Me levem ao seu líder.”. Quem eram

e combatendo a criminalização dos

os líderes dos caminhoneiros?

manifestantes.

As lideranças eram fluidas, difusas, eram distribuídas, ou seja, eram

O que a gente via nas mídias

multilideranças que surgiam, faziam

corporativas eram só as imagens

uma performance midiática, nas

de violência, de destruição, os

redes, no Youtube, em mensagens

manifestantes como vândalos e

e memes de Whatsapp que

baderneiros. As mídias livres naquele

repercutiam midiaticamente e

ano foram decisivas na disputa do

desapareciam para dar lugar a outras.

sentido de 2013. Um momento em que esses desorganizados

Esses movimentos que estão

se juntaram para organizar e

emergindo não têm a forma

para disputar a narrativa de um

tradicional do partido, do sindicato,

acontecimento.

tal qual nós conhecemos, a comunicação aqui é decisiva,

Foi a partir de 2013 que começamos

é a forma de organizar os

a falar de disputa narrativa no Brasil.

desorganizados. O uso do WhatsApp

E isso eu acho que é um tema muito

pelos caminhoneiros na greve foi,

importante para a gente entender

comparável ao uso das mídias e redes

que mesmo com avanços políticos,

digitais no 15M, na Primavera Árabe,

econômicos e sociais, se você perde

em junho de 2013, uma governança

a narrativa, você perde a política.


37

O impeachment de 2016 e a ascensão

“nós”, produzindo uma emergência.

da extrema-direita no Brasil foi em parte a perda do controle da

Apresento aqui algumas imagens

narrativa de 2013.

e fotografias impactantes da Mídia Ninja que me parecem significativas

De certa maneira, eu acredito que

dentro da formação dessas

foi isso que aconteceu com todo

linguagens novas. São imagens que

o processo do impeachment. Foi

expressam a iconografia de 2013 e

uma derrota narrativa, construída,

suas disputas narrativas. Em junho

que desmontou e desconstruiu um

de 2013 também vimos a emergência

campo político. Estamos dentro

de um campo importantíssimo, a

dessa disputa narrativa, às vésperas

disputa memética, a comunicação

das eleições presidenciais de 2018.

por hashtags e memes. A memética

Sem dúvida essas experiências da

como uma linguagem popular em

Mídia Ninja em 2013 são um marco

uma disputa narrativa a partir do

e foram inspiradoras. Eu trato

humor, do remix, dos repertórios

dessas invenções políticas e de

da cultura de massa ou dos nichos,

linguagem no livro Mídia-Multidão,

uma comunicação veloz, virótica que

o entendimento das mídias como

produz uma renovação no próprio

forma de organização. Podemos falar

campo do discurso e das linguagens.

de uma mídia negra, mídia indígena, mídia feminista, mídia secundarista,

Eu falei muito de disputa narrativa

mídia vinda de linguagens e

e é disso que se trata, de uma

propostas distintas e que explodem

possibilidade de emergência dessas

pelo Brasil.

multilinguagens. Disputando direitos,

É uma tendência forte no Brasil

disputa em torno dos modos de vida,

e na América Latina, essas vidas-

da educação, saúde e valores que

linguagens que apontam para um

são muito caros para todos nós. Até

midiativismo renovado.

agora eu falei sobre essa mídia de uma forma bem positiva, mas óbvio

A partir de 2013 começamos a falar

que as redes sociais também fizeram

de novas narrativas, que seria a

eclodir as redes de ódio,

articulação desses pequenos canais

as redes da intolerância.

de nichos, quando eles se coordenam e produzem ondas no Facebook,

A memética produz também o que

no Twitter, campanhas, ou seja, são

eu chamo de odioativismo,

capazes de produzir narrativas que

o ativismo que argumenta contra

disputam os sentidos dos fatos.

o outro, contra as diferenças, e nós

Então, podemos dizer que a nova

estamos mergulhados não só por

grande mídia é essa articulação dos

essa ameaça como também pelo


38


39


40

exército de trolls, esse racismo

e contribuíram para a criação de

exacerbado, linchamentos virtuais

um “estado de exceção” em cidades

nas redes etc. Uma plataforma

como o Rio de Janeiro.

como o Facebook e outras mídias digitais produziram essa percepção

O Rio de Janeiro hoje é um estado

ampliada do outro, deu visibilidade

sob intervenção militar, é um estado

as diferenças e ao mesmo tempo

em que esse regime de exceção

produziu o ódio as diferenças.

paira sobre a cidade, esse regime é sustentado pelo medo, é sustentado

Estamos falando das mídias digitais e

por um discurso midiático da

redes sociais, mas em um país como

insegurança, que produz o ódio ao

o Brasil não se pode falar de mídia

outro, uma guerra real e simbólica

e democracia sem dizer que a mídia

seja contra os manifestantes de 2013,

corporativa funciona como uma

seja contra os pobres e que atinge

Mídia-Estado, rivaliza com a política,

de forma terrível as periferias, com

rivaliza com o Estado.

o genocídio da juventude negra, por exemplo.

Vocês devem ter acompanhado as entrevistas do Jornal Nacional

Vamos falar dessa imagem.

com os candidatos à presidência da

Um muro erguido diante do

república [nas eleições de 2018] e é

Congresso Nacional em 2016, para

muito assustador essa bancada, esse

separar manifestantes em favor do

supremo tribunal midiático, de juízo

impeachment de Dilma Roussef

sobre o outro, pouco importando

e os contra o impeachment. Uma

quem são os candidatos.

superpolarização construída midiaticamente. Esse muro simboliza

Essa ideia de que os candidatos têm

o fracasso da política, o fracasso da

que ser julgados midiaticamente

nossa capacidade de conviver com o

por uma força que está acima do

outro, o fracasso da ideia da política

bem e do mal, acima do Estado,

como mediadora de conflitos e de

a mídia corporativa. Quando

convivência entre diferentes.

falo dessa Mídia-Estado, falo da forma de expressão violenta em

É resultado dessa superpolarização

torno das narrativas sobre 2013.

criada de forma midiática. Então,

Narrativas que criminalizaram esses

a imagem simboliza essa partilha

movimentos sociais, criminalizaram

radical do espaço, a transformação

os manifestantes, deram apoio

da política em conflito, uma guerra

a repressão, ao vigilantismo,

de torcidas, irracional, polarizada,

produziram uma condenação dos

sem saída.

movimentos que emergiram no Brasil,


41

A questão da polarização é

nosso humor, capacidade cognitiva,

muito importante, é a redução da

crenças. Temos que aprender a ler as

complexidade do pensamento em

mídias, produzir mídias, disputar as

mundos duais e irreconciliáveis.

mídias. A comunicação hoje é

Cria-se um pensamento

um campo de gestão da vida.

hiperpolarizado, o bem ou o mal,

Quem comanda o sistema financeiro

nós e os outros, nós e eles, e não

e quem comanda a mídia comanda

nos leva muito longe, já que produz

todos os outros setores.

um discurso fundamentalista, um

As narrativas comandam a produção.

discurso de ódio.

Podemos falar inclusive de uma economia narrativa, nesse sentido.

Em 2016 a gente viu no processo do impeachment essa produção jurídica

Quando falamos de judicialização

e midiática de crise e instabilidade,

em tempo real das disputas e

numa gestão da velocidade das

da política, dessa velocidade da

informações. Acompanhar o

produção de informação que

noticiário durante o pré-processo

alucina, que descontextualiza e

de impeachment era perceber essa

produz perplexidade, falamos de

gestão alucinatória das informações.

justiçamento e linchamentos em

Recebíamos uma quantidade de

tempo real. A democracia sobrevive

informações fragmentadas que eram

em um regime da tomada de

difíceis de processar e extrair seu

decisões em tempo real?

sentido. O filósofo francês Paul Virillo fala Essa velocidade, essa enxurrada de

sobre a ditadura da velocidade

informação, produz uma espécie de

no livro Velocidade e Política,

anestesia, ficamos perplexos diante

como a velocidade é um poder

da quantidade de informações em

e produz estados mentais e

fluxo e torrentes. É um vazamento

descontextualização. Temos que

contínuo, mas fragmentado,

problematizar todos os processos de

à conta-gotas de informações

justiçamento em tempo real, quando

descontextualizadas. Até produzir

reputações podem ser destruídas a

uma nuvem tóxica o uma histeria

partir de uma manchete de jornal,

coletiva, como por exemplo a

de uma matéria no Jornal Nacional

produção de ódio e de horror à

ou no Fantástico, na televisão ou nas

política e aos políticos.

redes sociais. É real o poder midiático de construir e destruir reputações.

Vivemos e estamos dentro de um laboratório social, em que esses

Denúncias, delações diárias

processos midiáticos interferem no

direcionadas para um só alvo


42


43


44

produzem um estrago e uma

por exemplo. Se usa argumentos

distorção perceptiva. Esse poder

retóricos para sustentar uma crença

é distribuído e incorporado pelos

ou convicções. A que estamos do

usuários das redes sociais, um

lado certo da história.

denuncismo irresponsável que destrói reputações e vidas.

Estamos falando de uma das características da memética, a

Uma outra característica importante,

possibilidade de produzir um ‘efeito

nesse campo midiático e estético, é

de verdade” mesmo que provisório

a dramaturgia do real, ficcionalizar o

e frágil. “Me dê um meme” e eu

real, criar personagens demoníacos

responderei uma questão complexa

e produzir um teleshow da realidade,

com um truísmo, uma redução, ou

um gênero televiso hoje no Brasil.

com a retórica da “lacração”.

Nós temos uma variedade muito

Uma “vitória” argumentativa através

grande em telenovelas, uma

de um sofisma, imagem, clichê.

dramaturgia forte, inteligente e ela também é usada na ficcionalização

Ao mesmo tempo a memética

e na produção de consensos, na

é responsável pela emergência

moralização de pautas e na produção

de linguagens novas no campo

de estados emocionais. Pode-

do ativismo, da política, da

se produzir histeria, ódio, medo,

sociabilidade. A crise produz

insegurança midiaticamente.

linguagem, a crise produz renovação, a crise produz formas de articular e

MEMÉTICA

disputar essas narrativas novas, de forma popular e pop.

Outra questão importante desde

Essa renovação da linguagem marca

2013 e que atravessa o nosso

os cartazes e flyers da Mídia Ninja

debate até agora, é o limite das

e de muitas redes e coletivos do

instituições clássicas: mídias

campo cultural e político.

corporativas, partidos, Estado, sindicatos, universidades. E a crise

Quais as novas linguagens

de autoridade e centralidade dessas

emergentes? Vivemos a saturação

instituições.

da linguagem política tradicional, inclusive esteticamente falando.

Essa crise de autoridade e a entrada

As manifestações com carros

da Mídia-Multidão produz outros

de som, as palavras de ordem

efeitos. Vamos analisar aqui alguns

gritadas de palanques, os

cartazes das manifestações pró-

comícios tradicionais. É uma

impeachment, em 2016. “Cunha é

saturação da linguagem, não só da

ladrão, mas está do nosso lado”,

política tradicional. A linguagem


45

se desgastou e não podemos

assujeitados etc.

subestimar a linguagem. Então podemos falar de uma politização

Com Nietzsche e depois Foucault

da estética e de uma estetização da

e os pensadores contemporâneos

política nesses movimentos de novo

vamos passar a falar da verdade

tipo.

como construção, ou como consenso,

A CRISE DA VERDADE E OUTRAS CRISES

No jornalismo os discursos de

no discurso científico. verdade, de objetividade, de imparcialidade buscam esconder as Falamos da cise de autoridade, da

disputas em torno das verdades e

crise de credibilidade e o fenômeno

seus efeitos.

das fake news é uma das expressões desse contexto em convulsão.

Se as verdades são produzidas,

As fake news (notícias falsas)

cada sociedade tem seu regime

sempre existiram, mas sua forma

de verdade e esse regime produz

contemporânea, a forma da notícia

efeitos. Podem ser desnaturalizados.

combinada com a desinformação

O Brasil está passando por um

intencional, ganha uma nova escala

processo de desnaturalização de

contemporaneamente.

seus mitos e verdades. O combate ao racismo, ao machismo,

A discussão em torno do conceito de

a percepção de privilégios brancos

verdade é uma discussão filosófica,

mostra que estamos em uma

histórica e muito importante.

mutação do nosso regime de

Nietzsche que é um filósofo que

verdades. Aquilo que era verdade,

eu gosto muito, diz que a história

ou era aceitável, deixa de ser

da verdade é a história de um erro.

quando esses regimes mudam.

O conceito de verdade deve ser

Por isso, é muito importante

abandonado por uma pergunta sobre

a gente se perguntar como se

os seus efeitos e performance. Quem

produzem verdade, como se

fala e de onde fala?

produz determinados sentimentos,

Pois se nos ativermos ao conceito

experiências, como a ciência produz

de verdade haverá sempre um

verdades provisórias? Como o

absoluto que desqualifica a crença e

jornalismo produz verdade? Como

a a percepção do outro. O discurso

os meios jurídicos e a lei produzem

fundamentalista usa a verdade

verdade? Estamos falando em

como arma para destruir o outro.

regimes de verdade.

Em nome da verdade se mata, em nome da verdade se excomunga, em

Os regimes de verdade produzem

nome da verdade povos inteiros são

leis, produzem crime. Por exemplo,


46


47


48

enquanto as drogas forem

do fato de eu acreditar que

consideradas ilegais, elas geram

minha branquitude é um sinal de

crime. A qualquer momento você

superioridade sobre outros? Essa

pode legalizar as drogas e um crime

minha crença pode produzir um

deixa de existir. Os crimes estão

crime, ela pode produzir injustiça e

ligados a um regime jurídico e suas

morte. Não temos que nos perguntar

mutações. O que era crime deixa de

pela verdade das coisas, mas qual o

ser crime, o que não era se torna.

efeito daquilo que eu acredito, já que

No Brasil, o crime de racismo não

as crenças produzem efeitos.

existia e passou a existir, ou passou a ser visibilizado pela sociedade

Ou seja, a disputa em torno das

brasileira.

fake news é a produção de notícias para as nossas crenças, fake news,

Da mesma forma, a comunicação,

as notícias ou o meme falso ou

o regime das mídias e do jornalismo

distorcido é produzido para aquilo

são regimes de produção de

que você já acredita. É o que

verdades. Estamos dentro de uma

chamamos de viés de confirmação.

fábrica de fatos, de memes, de imagens que produzem as verdades

Então nesse sentido a fake news é

nas quais acreditamos. Estamos no

um poderoso modelo de negócio que

meio de uma desordem informacional

cria conteúdos, notícias, promoções,

e muitos perderam o parâmetro em

manchetes, imagens, retórica,

relação ao que podem acreditar ou

produzidas para reforçar crenças.

não. Que fontes e instituições são confiáveis?

Outra questão da crise do conceito de verdade se expressa na própria

Temos que introduzir aqui a questão

forma como as agências checadoras

das crenças. Porque as notícias falsas

de fatos classificam as notícias, com

podem ser desmentidas, mas como

uma vasta gama de modulações

desmentir uma crença? Então talvez

entre o verdadeiro e o falso.

seja mais produtivo falar de regimes

Entre esses polos podemos dizer

de crenças e quais os efeitos dessa

que uma notícia ou informação é

verdade, quais os efeitos minhas

exagerada, insustentável, imprecisa,

crenças produzem? Essa me parece

distorcida etc.

a questão ética que tem que ser enunciada para sairmos do impasse

As fake news vocalizam também

entre falso e verdadeiro.

o imaginário, o medo, aquilo que a sociedade brasileira vê como

“A minha crença me leva a produzir

ameaça e receio. “Novelas irão

injustiças? Quais as consequências

mostrar beijo gay infantil”. Uma fake


49

news que associa as novelas e a TV

A desvirtuação das crianças pela

a um comportamento “perverso”

cultura de massa e “ideologia de

ou moralmente condenável. Ou

gênero”. Um meme que sintetiza

ainda: “Zezé di Camargo tem

a histeria brasileira diante das

razão, nunca houve ditadura no

mudanças que estamos vivendo,

Brasil”. Temos o deslocamento

diante das transformações de

da autoridade para uma figura

comportamento e sexualidade.

midiática: Zezé di Camargo tornado historiador, cientista social, alguém

As fakes news também se espalharam

que disputa os fatos históricos. E

pelas questões científicas. Todos

completa “a ditadura só foi ruim para

já ouviram falar nos terraplanistas,

vagabundos.”

pessoas que, a despeito da ciência e de todas as provas científicas em

Isso são as pós-verdades ou os

contrário, acreditam, no século XXI

fatos alternativos, consagrados

que a terra é plana.

pela era Trump. A capacidade de produzir narrativas que sustentam

Eu estava em uma palestra e uma

crenças. Os negacionistas dizem

garota me disse: “Professora, por

que o holocausto não existiu, que

favor me ajude”, eu falei “O que

não existiu o genocídio do povo

aconteceu?”, ela disse “A minha

judeu durante o nazismo. Milhares

família inteira foi pega pela teoria da

de judeus mortos em campos

Terra Plana, só sobrou eu e minha

de concentração passa a ser um

vó de 89 anos que acreditamos que

fato passível de denegação. São

a Terra é redonda. O que eu posso

produzidos vídeos, depoimentos,

fazer para provar para eles que a

aprecem “autoridades” que

Terra é redonda?”

sustentam crenças. As fakes news se propagam como Outro meme, um dos mais

vírus que se pega, por contaminação.

compartilhados dos últimos tempos

A memética é como se fosse

no Brasil: “Pabllo Vittar ganha

uma virose, um contágio, com

programa infantil na Globo com

vida própria. É uma metáfora que

apoio da Lei Rouanet”. Junta-se em

naturaliza uma construção midiática.

um só enunciado temas tabus e/

No Rio de Janeiro, com as vacinas

ou polêmicos que deixam cidadãos

contra a febre amarela, graças aos

de bem em pânico. A ideia de

memes e às fake news, começou a

doutrinação de crianças em um

circular notícias falsas que diziam que

programa de televisão apresentado

o estado brasileiro estava produzindo

por uma mulher trans com o uso

mortes a partir das vacinas aplicadas

da Lei Rouanet para fins perversos.

nos grupos da terceira idade porque


50


51


52

queriam matar os velhinhos para

passar, depois do fechamento, por

diminuir o déficit da previdência. E

vistoria de um promotor da infância

as pessoas acreditam e repassam.

e da juventude que foi à Porto

Talvez porque haja uma desconfiança

Alegre fazer um “exame “e chegou a

histórica diante desse Estado.

brilhante conclusão que a exposição Queermuseu não tratava e nem

CIDADÃOS ROBÔS

expunha ou difundia pornografia, zoofilia etc.

Quando falamos da crise de autoridade da mídia, dos partidos,

As obras do Queermuseu,

do Estado, podemos estendê-la

com curadoria de Gaudêncio

para outros campos. A crise de

Fidelis, foram recortadas e

autoridade na arte é um outro

descontextualizadas nas redes e

bom exemplo. Não se trata de uma

caracterizadas na sua literalidade.

questão nova, mas acompanhamos

Se havia nudez ou sexo foram

no Brasil, nesse contexto dos novos

consideradas pornográficas.

cenários comunicacionais o retorno

Se usavam símbolos religiosos foram

de uma antiga questão: Quem diz o

consideradas blasfêmias etc. Uma

que é arte? A polêmica em torno da

narrativa construída por grupos

exposição Queermuseu, fechada por

como o MBL (Movimento Brasil

pressão de grupos conservadores

Livre) associado a grupos religiosos

em setembro de 2017 pelo

e um exército de bots e cidadãos

Santander Cultural em Porto Alegre

zumbis que agiram sob comandos:

traz questões importantes.

derrubar a página do Santander, protestar na exposição etc.

As chamadas “guerras culturais” se voltaram contra artistas e contra o

Estamos em um campo de disputa,

campo da arte (curadores, diretores

a exposição Queermuseu -

de Museu, gestores de cultura, etc.)

Cartografias da Diferença na Arte

culminando com discursos e ações

Brasileira foi fechada e censurada

de judicialização que buscavam

porque discutia questões de

decretar se a exposição violava

gênero e diversidade sexual em

ou não a moralidade, violava ou

obras contemporâneas e clássicas.

não o Estatuto da Criança e do

Adriana Varejão, Cândido Portinari,

Adolescente, sendo apresentada

Fernando Baril, Hudinilson Jr., Lygia

como uma exposição com obras

Clark, Leonilson, Yuri Firmesa etc.

que difundiam pornografia, zoofilia, pedofilia, etc. Todo um discurso

Trata-se de um caso sintomático

moral e de produção de histeria

da hiperpolarização produzida no

coletiva. As obras chegaram a

contexto das guerras culturais que


53

criam um efeito de verdade causado

o uso de robôs no impulsionamento

pela descontextualização. Entre

dessas informações, campanhas e

270 obras de 85 artistas foram

fake news. Trata-se de promover,

escolhidas pouquíssimas obras,

impulsionar, reforçar crenças e

recortadas, para se construir um

utilizá-las como arma eleitoral com

discurso moralizante e criminalizante

efeitos imediatos.

que via pedofilia, zoofilia e blasfêmia. Entre as obras usadas nessa

Estamos falando da emergência

construção discursiva de

do cidadão robô, que segue o MBL

stacamos: Cruzando Jesus Cristo

quando ele dá um “salve”: “Vamos

Deusa Schiva, de Fernando Baril,

derrubar a página do Santander”,

imagens de crianças com as

na linha dos comandos de

inscrições Criança viada travesti da

linchamento a página do Facebook

lambada e Criança viada deusa das

do banco foi avaliada massivamente

águas, da artista Bia Leite e Interior

de forma negativa. De uma hora

II, da artista Adriana Varejão.

pra outra, o Santander Cultural de Porto Alegre, que é uma instituição

O componente político e a

de prestígio, superbem avaliada,

condenação moral na censura da

foi considerada uma promotora

exposição Queermuseu antecipa

da pornografia e de crimes. E isso

o clima das eleições de 2018, em

numa velocidade muito grande.

que o campo da arte, da cultura,

“Vamos derrubar, vamos tirar a

dos artistas, das questões de

credibilidade dessa página, vamos

gênero e das minorias servem para

produzir um ato político”. Induz-se

se produzir um clima de histeria.

a um comportamento de manada,

Os mesmos sujeitos da política

que permite ações diretas e

corruptos são os sujeitos da

imediatas com as mais diferentes

cultura. Trata-se de um grupo de

consequências.

“pervertidos” que é preciso tirar do

A potência da multidão passa por

poder a qualquer custo.

essa possibilidade de automação não só da informação, mas da

Estamos em um momento

inteligência coletiva, produzindo

importante dessa emergência

cidadãos zumbis que agem como os

de novos regimes de verdade,

bots.

a verdade produzida por meio de cliques, de likes, de

Quando falo de cidadão robô, estou

compartilhamentos, uma quantidade

falando dessa figura dos grupos

gigantesca de posts, imagens,

de Whatsapp que alimenta a linha

memes produzidos em uma

de transmissão de fake news, que

velocidade muito grande. Também

duplica sem checar ou mesmo sem


54


55


56

ler, que só lê o título, não lê a matéria

público financia e apoia aquilo que

e compartilha mesmo o que for mais

quer ver.

bizarro e improvável porque vem reforçar suas crenças.

Para finalizar trouxe aqui uns

É um comportamento de

memes utilizados para criticar e rir

automação, como nas correntes

da censura, com o prefeito do Rio

do WhatsApp, uma contaminação

horrorizado diante de obras de arte

veloz e virótica que produz estados

clássicas que exibem nudez, como

mentais e emocionais.

A Origem do Mundo, de Courbet, Les Demoiselles d’Avignon, de

Podemos dar contra exemplos

Picasso, Homem Nu, de Lucian

também que rompem a lista de

Freud, etc. O moralismo e as

transmissão de forma crítica.

acusações de pornografia passam

A memética como contra discurso,

pela falta de repertório, de códigos,

usando o humor para se confrontar

pelo olha literal, pela literalidade da

a essa produção de histeria e/

imagem.

ou discursos criminalizantes e moralizantes no campo da cultura

Ao mesmo tempo a discussão do

e da arte. Quando o prefeito do

Queermuseu massifica discussões

Rio, o bispo Marcello Crivella, disse

de grupos e guetos em torno

que a exposição do Queermuseu

do repertório das artes. Arte,

não iria para o Rio de Janeiro de

autonomia, liberdade artística,

jeito nenhum, produziu a reação

curadoria, passam a ser discutidas

inversa. Artistas, galeristas,

por uma multidão. Milhões de

empresários, gestores, o público de

pessoas discutindo no Brasil o que é

arte e cultura, pessoas comuns se

arte e o que não é arte.

mobilizaram e fizeram um processo

Ou seja, os desorganizados

de financiamento coletivo, através

passaram a organizar o sentido do

do crowdfunding, que conseguiu

debate a partir de outros códigos.

arrecadar 1 milhão de reais e tornou

O que pode ser ofensivo ou não para

possível levar uma exposição

determinados grupos, o que viola ou

gigantesca censurada para ser

não as crenças dos outros. Como se

exibida no Parque Lage, no Rio de

negocia valores. Obviamente não é

Janeiro.

censurando, impedindo pessoas de entrarem em um museu, um lugar

Trata-se de uma resposta

que parecia seguro e controlado

extraordinária utilizando as mesmas

para se fazer uma discussão

redes e tecnologias disponíveis.

complexa sem hiperpolarizações e

Novas economias e meios de

reduções.

financiamento do comum, em que o


57

Estamos falando da comunicação na

os informados, os que estão dentro

era da sua automação massiva, ou

das universidades, os que trabalham

seja, estamos vivendo uma época

diretamente no campo da arte e

de construção da opinião pública de

da cultura. E descobrimos que uma

forma automatizada e massiva. Isso,

parte do Brasil não saiu do “vovô

tanto para o melhor, quanto para

viu a uva”. Mas o humor e a

o pior. Produz-se campanhas, os

memética também podem nos tirar

grupos se articulam para construir

dessa crise de repertório.

sentidos e verdades que podem

A histeria em volta do Queermuseu,

se tornar consensos. As guerras

que poderia ter sido evitado se

culturais em ambientes digitais

a gente tivesse uma formação

são uma das formas de disputar

em arte e cultura nas escolas, um

o sentido do mundo. Disputar

debate sobre a história da arte,

sentidos.

como a gente vê em qualquer lugar do mundo, essa construção de

Durante muito tempo ficamos

repertório é decisiva para ter um

discutindo conceitos muito

entendimento mais complexo do

sofisticados sobre os campos da

mundo. Sair do literal.

arte. Foucault analisando o quadro “Isto não é um Cachimbo”, de Magritte. O que você está vendo não é a coisa e sim a representação da coisa. E talvez nós do campo universitário, cultural e artístico não imaginávamos que no Brasil olhar um quadro e ver uma cena de nudez poderia ser lido de forma literal como pornografia ou algo que pode ofender alguém. O que falta? Repertório, sair do mundo da literalidade, em que as coisas são apenas o que são. Sem contextos, sem sentidos abertos. Estamos sofrendo a tragédia da literalidade em uma cultura e meio empobrecidos. Esse debate de repertório é decisivo no Brasil, ficamos reféns da nossa bolha cultural, entre nós,


58


59


60

REFERÊNCIAS

BENTES, Ivana. Mídia-Multidão. Estéticas da comunicação e biopolíticas. Rio de Janeiro: Editora Mauad X, 2015. BLACKMORE, Suzan. The meme machine. Oxford and New York: Oxford University Press, 1999. COMITÉ INVISIVEL. Motim e Destituição Agora. São Paulo: Ed. N-1, 2017. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1984. LATOUR, Bruno. Reagregando o Social. Uma Introdução à Teoria do Ator-Rede. Salvador: Edufba, 2012. LAZZARATO, Maurizio. As Revoluções do Capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Record, 2006. NAGLE, Angela. Kill all normies: Online culture wars from 4chan and Tumblr to Trump and the Alt-Right. New Alresford, Reino Unido: Zero Books, 2017. NEGRI, Antonio e HARDT, Michel. Bem Estar Comum (Commonwealth). Rio de Janeiro: Editora Record, 2016. PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual. São Paulo: N-1 Edições, 2017. ________, Paul B. Testo Junkie. São Paulo: N-1 Edições, 2018. VALENCIA, Sayak. Capitalismo Gore. Santa Cruz de Tenerife, Espanha: Editorial Melusina, 2010.


61


62


63


64


65

DIREITOS HUMANOS EM TEMPOS SOMBRIOS: uma análise do Brasil contemporâneo Robson Sávio Reis Souza1

O resultado das eleições de 2018

A eleição de grupos políticos

no Brasil alterou profundamente

identificados com valores

certo equilíbrio das forças

ultraconservadores, ultraliberais e

políticas nacionais que, desde a

reacionários, notadamente contra

redemocratização (1985) e com

os princípios dos direitos humanos,

a Constituição Federal (1988),

consolidou um processo de

articulavam, a passos lentos, a

deterioração político-institucional,

construção de um estado de bem-

que começou no início da década de

estar social num dos países mais

2010 e teve um marco importante

desiguais do mundo, tendo como

nas jornadas de junho de 2013.

fulcro os pressupostos consolidados, internacionalmente, na Declaração

Não somente no Brasil, os grandes

Universal dos Direitos Humanos

embates políticos contemporâneos

(1948); ou seja, um estado que

se resumem na seguinte questão:

garantisse a todos os cidadãos

a democracia pode conviver com o

além dos direitos liberais (civis

neoliberalismo? Ou até mesmo com

e políticos), também os direitos

o ultraliberalismo?

sociais, econômicos, culturais...

1

Licenciado em Filosofia, doutor em Ciências Sociais e pós-doutor em Direitos Humanos. É professor da PUC Minas, onde coordena o Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp) e da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos de Minas Gerais; associado da Sociedade Teologia e Ciências da Religião (Soter) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.


66


67


68

Dois projetos de sociedade estão no

principalmente os países ocidentais

centro das disputas políticas.

e, em especial, os países periféricos

De um lado, articularam-se partidos

- ainda marcados pela desigualdade

políticos identificados com grupos,

e injustiça social. Tais forças são

movimentos e as lutas políticas

francamente favoráveis ao mercado

emancipatórias, cujos programas

e à economia rentista, a sustentarem

focam na continuidade do processo

um “sistema global idólatra que

de construção de uma sociedade

exclui, degrada e mata”.4

mais democrática, inclusiva e igualitária. De outro, partidos que

Ademais, a atualidade do discurso

representam os interesses do poder

do Papa em relação ao que ocorre

econômico, em sua fase rentista

na América Latina e no Brasil nos

e especulativa, concentrador de

últimos tempos pode ser percebida

riqueza e renda - que garante a

quando o pontífice tratou, em outras

vida nababesca de 1% da população

ocasiões, das múltiplas tentativas de

mundial2 e de um contingente

destruição da identidade dos povos

similar no Brasil. Nas palavras do

latino-americanos: “Identidade que

Papa Francisco, de “uma economia

alguns poderes, tanto aqui como

que mata”.

em outros países, se empenham por

3

apagar, talvez porque a nossa fé é Aliás, o Papa Francisco é talvez

revolucionária; porque a nossa fé

o único grande líder mundial

desafia a tirania do ídolo dinheiro”.5

contemporâneo que se mostra preocupado e atento ao

Em sociedades verdadeiramente

recrudescimento das forças

democráticas, que priorizam a

ultraliberais que dominam

defesa dos direitos humanos (todos

2

De toda a riqueza gerada no mundo em 2017, 82% foi parar nas mãos do 1% mais rico do planeta. Enquanto isso, a metade mais pobre da população global – 3,7 bilhões de pessoas – não ficou com nada. O dado faz parte do relatório “Recompensem o trabalho, não a riqueza”, lançado pela Oxfam às vésperas do encontro do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, que as elites empresariais e políticas do mundo. Mais informações em: https://www.oxfam.org.br/ noticias/super-ricos-estao-ficando-com-quase-toda-riqueza-as-custas-de-bilhoes-de-pessoas. Acesso em 25fev2019.

3 Disse o Papa: “Assim como o mandamento não matar põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da desigualdade social. Esta economia mata”. Veja em: http://domtotal.com/ noticia/1247389/2018/04/papa-francisco-critica-politicas-economica-que-criam-novosexcluidos/ . Acesso em 25fev2019. 4

Papa Francisco. Discurso no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares.

5 Idem.


69

os direitos e os direitos de todos),

sociais são necessários para

os governos estão a serviço dos

o aperfeiçoamento da própria

interesses populares, atuando para

democracia.

o provimento e a consolidação de políticas públicas capazes de

(3) a democracia é a afirmação

mitigar os efeitos avassaladores de

da soberania popular; ou seja,

uma economia que, cada vez mais,

todo poder vem do povo e não

precede, domina e subjuga a política.

dos governantes, da burocracia estatal ou de grupos que se

SIMULACROS DE DEMOCRACIAS

apropriam do Estado para a defesa de interesses privados e particulares.

Uma visão liberal-conservadora define a democracia como um

Historicamente, o Brasil nunca foi

conjunto de regras procedimentais

um país inteiramente democrático.

e formas de organização política:

A violência multifacetada - gerada

eleições livres, imprensa livre,

pela exclusão social, por um sistema

partidos políticos, autonomia dos

de justiça altamente seletivo, uma

três poderes e acesso aos direitos de

elite de mentalidade escravocrata

liberdade e igualdade. E, claro,

e pelo patriarcalismo indutor de

a garantia da propriedade privada.

múltiplas formas de opressão sempre impediu a efetivação de

Acontece que os pilares de uma

direitos para todos, por um lado e,

democracia de fato, para além de

por outro, desequilibra as disputas

democracias meramente formais,

sociopolíticas à medida que a

são outro conjunto de valores

maioria do povo é sistematicamente

sociopolíticos:

esmagada por essa ordem social

6

elitista e autoritária. (1) a democracia cria, consolida, garante e amplia os direitos;

As relações de mando e obediência, características da hierarquização

6

(2) ademais, a democracia

da sociedade brasileira, estão

valoriza os conflitos, portanto,

presentes no cotidiano das famílias,

as disputas sociais como

das igrejas, das relações de trabalho,

algo legítimo. E, mais que

nas escolas e em quase todos os

isso, os conflitos, gerados por

espaços da vida, a definir uma

múltiplos interesses de grupos

cidadania marcada por privilégios

Cf. CHAUÍ, M., 2012.


70


71


72

de uns pouco e uma subcidadania

já desgastado pelo processo eleitoral

- caracterizada pela não efetivação

belicoso de 2014 e as jornadas

dos direitos - à maioria da

de junho de 2013. O resultado:

população.

a produção de uma “cidadania regressiva”:

A criação e efetivação de direitos é recente em nosso país. A Constituição Federal de 1988 e os governos seguintes deram alguns passos importantes para a construção de uma sociedade minimamente igualitária e justa. Mas, quando estávamos no caminho “civilizatório”, a sair de uma democracia meramente formal e de baixíssima intensidade para uma democracia mais inclusiva e igualitária veio, mais uma vez, de forma violenta e avassaladora, uma ruptura institucional, em 2016, com o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Os históricos segmentos refratários e violentos da sociedade brasileira (as elites econômicas do empresariado, dos bancos e do agronegócio; os setores retrógrados da classe média, representados pela bancada BBB (da Bala, da Bíblia e do Boi) no Congresso; a mídia empresarial antidemocrática e segmentos privilegiados do sistema de justiça se uniram para golpear a trajetória de construção gradual de uma sociedade verdadeiramente democrática. Isso no contexto de uma gravíssima crise econômica que se abateu sobre o país, fragilizando ainda mais o governo central -

Todavia, nos dias atuais, considerando os avanços de uma nova direita no Brasil e no mundo, surge uma terceira perspectiva do conceito aqui em discussão, qual seja a cidadania regressiva. Dela resulta um tipo novo de cidadão, que participa ativamente da vida comunitária e social, de atividades políticas, de organizações de diferentes tipos, atua nas ruas e em redes sociais, mas não para manter, ampliar ou conquistar direitos e bens materiais, simbólicos e sociais para todos e todas, e sim para reduzilos, bem como ao Estado como fiador deles, deixando os indivíduos ao sabor de seu próprio mérito e empreendedorismo pessoal no jogo do mercado, sem reconhecer as desigualdades concretas que marcam cada um e torna dessemelhante a competitividade, e nem reparar dívidas históricas que determinadas formações sociais, como a brasileira, têm com alguns grupos sociais, vide a comunidade negra. (MARTINS, M. F., 2019, p. 46).

O importante é perceber que por trás do conjunto de atores sociais e políticos conservadores que comandaram o processo de impeachment estão os interesses do poder econômico. Para aniquilar a democracia de fato, esses segmentos são os mentores de um modelo de governança que retira do povo a soberania e a transfere para o deus-mercado.


73

O quadro mundial também deve ser

os vários e legítimos interesses

considerado. A subalternidade da

e conflitos sociais, políticos e

política à economia, característica do

econômicos e passa a ser um mero

neoliberalismo global, ajuda a explicar

gestor, ocupado e preocupado com

a crise de legitimidade das instituições

a eficiência de toda uma estrutura

públicas, a centralidade do deus-

pública que, no neoliberalismo, é

mercado e a fragilidade de governos

direcionada a maximizar os interesses

populares.

econômicos e financeiros dos detentores do poder econômico

Assim, podemos falar de um estado

desconsiderando os direitos da

de exceção - uma exigência do

maioria dos cidadãos.

neoliberalismo, que reconfigura as estruturas do poder e do

No estado neoliberal, o espaço

Estado a partir de uma lógica de

privado dos interesses dos poderosos

exceção, corroendo até mesmo os

é alargado e, ao mesmo tempo, o

pressupostos da democracia liberal.

espaço público dos direitos dos cidadãos é encolhido.

Trata-se de um estado de exceção porque convivemos com uma

As contrarreformas aprovadas

democracia sem povo, a serviço do

durante o governo de Michel Temer

mercado, e sustentada por medidas

(2016 -2018), por exemplo, todas elas,

autoritárias dos três poderes

atendem aos interesses privados de

amalgamados contra o povo e

uns poucos e contraria os interesses

a Nação, como ocorre no Brasil

públicos da grande maioria do povo

contemporâneo.

brasileiro. Foram um ataque direto às políticas públicas de promoção de

Portanto, a ruptura havida em 2016

direitos consolidadas na Constituição

se baseou num pressuposto segundo

de 1988.

o qual o poder público, portanto o Estado, deve ser administrado como

Nos termos do neoliberalismo é

uma empresa. O Estado é pensado a

impossível uma democracia de fato.

partir de interesses privados; deixa de

Só serve uma democracia tutelada

ter como base fundante o interesse

pelos donos do capital ou por seus

público, respaldado na soberania

prepostos nos poderes do Estado.

popular, para se preocupar e garantir

Portanto,

os interesses de uns poucos, em detrimento dos direitos de todos. O político, nesses termos, deixa de ser um representante eleito a mediar

convém levar a sério a hipótese segundo a qual entramos num sistema social pós-democrático inédito na história, que rompeu com o velho sistema que articulava capitalismo nacional, Estado social, democracia liberal.


74


75


76

Uma certa distribuição dos poderes entre o “político”, o “econômico” e o “social” era estabelecida, deixando às forças políticas e sociais uma margem de ação e um jogo de iniciativas e propostas. Entre essas forças, o sindicalismo participava do equilíbrio dinâmico de um capitalismo nacional regulado, garantindo, no entanto, avanços sociais e progressões salariais pela negociação e por uma conflitualidade relativamente instituída. Capitalismo e democracia parlamentar, mas também em parte social pareciam poder se conciliar até certo ponto. Com o neoliberalismo, essa conciliação não está mais na ordem do dia. O neoliberalismo, pela extensão de seus efeitos e manifestações, é um verdadeiro sistema político-econômico cuja originalidade é preciso apreender. Essa originalidade provém, inicialmente, do fato de que o neoliberalismo visa esvaziar a democracia (em sua dupla forma política e social) de seu conteúdo. Percebe-se melhor agora que as políticas neoliberais obedeceram a uma estratégia de “desdemocratização, segundo a fórmula de Wendy Brown7, que conduziu progressivamente ao estabelecimento de uma situação em que a “soberania popular”, na orientação das escolhas políticas, é destituída em proveito das “forças de mercado”. (DARDOT, P.; LAVAL, C. Revista Fevereiro, 2016, p. 09).

UMA REPÚBLICA TUTELADA

de democracia aparente da Nova República por meio da transferência do poder político real para as Forças Armadas.”8 Segundo Safatle, mais importante do que as eleições presidenciais é o deslocamento do poder em curso no Brasil. Desde Temer, inexiste agenda política importante que não passe pelas Forças Armadas: paralisação de caminhoneiros, decomposição do governo carioca e degeneração do governo federal. Em todos esses casos, as Forças Armadas são convocadas e cada vez mais se tornam protagonistas. A montagem do governo de Jair Bolsonaro, com quase a metade dos ministros das Forças Armadas, comprova a tese de Safatle. Por outro lado, setores do sistema de justiça também resolveram tutelar os demais poderes. O protagonismo exacerbado do Poder Judiciário pode ser observado na seletividade da atuação de alguns magistrados a interferir no processo político e eleitoral.

O filósofo Vladimir Safatle tem alertado que o Brasil caminha para

A estrutura judicial brasileira serve

uma espécie de ditadura camuflada,

para garantir privilégios de classe,

ou seja, a tutela total e irrestrita das

operar discricionariamente a

Forças Armadas: “o jogo consiste

aplicação da lei, perseguir inimigos

a terminar o período de pactos e 7

Cf. Wendy Brown, Les Habits neufs de la politique mondiale. Les Pairies Ordinaires, 2007.

8

SAFLATE. V. Cartas sobre a mesa.


77

(bodes expiatórios geralmente

empresarial. Apesar de formarem

construídos pela mídia), proteger

um contingente numericamente

interesses econômicos dentro

maior, esses grupos de advogados,

e fora do aparelho do Estado,

promotores, juízes e policiais são

operar a favor do capital e contra

minoritários quando se trata do

os interesses públicos. Tudo sob o

controle do poder das corporações.

manto da lei, essa invenção liberal

Reconhecemos, também, algumas

usada, também, como armadilha

entidades de advogados populares

para ludibriar o povo, à medida que

e setores da justiça e do MP que

a igualdade de direitos se torna mera

lutam por uma democratização do

convenção retórica ou formal.

judiciário e por uma república de fato.

A lei, no Brasil, de um modo geral, é uma dádiva para os ricos e para

As ações arbitrárias que unem

os membros da classe média. Para

bacharéis, outros operadores do

os demais, salvo exceções, é açoite.

sistema de justiça e os militares

Como nesse país nunca tivemos um

remontam da proclamação da

estado de bem-estar social, a lei é

república: um golpe que teve como

instrumento de salvaguardas para

principais atores: advogados,

30% dos brasileiros (ricos e classe

militares, latifundiários e maçons.

média).

Desde então, esses segmentos, em diversos momentos da vida

Qualquer cidadão brasileiro sabe

republicana, de forma mais ou

que o poder judiciário é seletivo,

menos coesa, patrocinaram todo o

elitista, hermético e, às vezes,

tipo de tutela à democracia no país.

antidemocrático; que as leis são operadas para favorecerem uns em

Não por acaso, durante a ditadura

detrimento de outros com muita

militar, assistimos a convivência

frequência.

amistosa entre os generais, os tribunais (a começar pelo Supremo

Ressalvamos a valorosa e combativa

Tribunal Federal), as grandes bancas

empreitada de muitos operadores

de advogados, juízes e policiais.

do direito que, à revelia das

Obviamente, esses segmentos,

corporações jurídicas (que mais

salvo exceções, sempre estiveram

parecem castas), têm tentado,

a serviço de interesses das elites

a todo custo, pautar suas ações

econômicas, sociais e políticas.

dentro dos princípios republicanos e democráticos, inclusive

Em vários momentos da vida

sendo excluídos de instituições,

nacional, essa associação - que

agremiações de classe e da mídia

envolve os setores jurídico, policial


78


79


80

e militar - protagonizou rupturas

à violência extremada contra estes

democráticas.

últimos - denunciava a ouvidos moucos que a democracia no Brasil

Os pactos feitos “por cima”, ou seja,

é muito frágil.

entre as elites, como a famigerada lei da anistia (de 1979), sempre foram

Porém, todos, inclusive os

abençoados por esses atores. E os

acadêmicos, afirmavam com

grandes beneficiários dos golpes são

retumbante convicção que a

os fiadores dessa união.

democracia brasileira estava consolidada. Dormíamos felizes com

Infelizmente, boa parte da classe

lemas do tipo “Brasil: um país de

média, inclusive alguns setores

todos”.

progressistas, dormiu em “berço esplêndido” depois da Constituição

Gradualmente, desde 2016, o

Federal de 1988. Primeiro, porque

país começou a ser duplamente

não houve nenhuma reforma

tutelado. De um lado, uma espécie

substantiva no sistema de justiça e

de juristocracia (governo de juízes)

no modelo policial-militar herdados

que consolidava um estado penal-

da ditatura. Ademais, sob a égide

policial-judicial seletivo; doutro,

do chamado “estado democrático

as Forças Armadas atuando

de direito” consolidou-se um

politicamente. Some-se a esse

pensamento hegemônico segundo

cenário a ação da mídia empresarial,

o qual a democracia de direito se

a criminalizar a política e as

transbordaria na democracia de fato.

instituições republicanas.

A abissal desigualdade social,

CRIMINALIZAÇÃO DA POLÍTICA: A QUEM INTERESSA?

o recrudescimento do estado policial-penal, potencializado com as propostas de alterações legislativas patrocinadas pelo ministro Sérgio

Como compreender a onda

Moro, e a brutal violência seletiva

avassaladora de criminalização da

transformada em política estatal

política, capitaneada principalmente

continuaram a conviver com uma

pela mídia empresarial e por

nação cuja cidadania é de e para

segmentos conservadores e

poucos.

ultraliberais das elites nacionais?

Não obstante a melhoria dos

Trata-se de interesses que querem

indicadores sociais desde 1988,

implantar nas mentes e nos

o abismo que separa os ricos e a

corações dos brasileiros que a

classe média dos pobres - somado

política institucional (aquela que se


81

desenvolve nos poderes públicos,

Observando os resultados de pleitos

nos partidos etc.) é suja, pervertida e

de 2014 e 2016 já se percebia o

eivada de vícios e de corrupção.

crescente afastamento do eleitor do processo de escolha dos

Nos últimos anos, a mídia

representantes. Nas eleições de

comercial se articulou à ação

2018, foram recordes os indicadores

de influenciadores das políticas

de abstenção e votos nulos e

ultraliberais, em postos-chave da

brancos. Resultado: um candidato

sociedade, pagos por think tanks

radical e de extrema-direita, com

americanos.9

discursos veementes contra os direitos humanos, que teve pouco

Com essa estratégia, os cidadãos

mais de 35% dos votos (do total

foram se afastando cada vez mais

do eleitorado) e cujo somatório

da política. Muitos passaram a

de votos (57 milhões, pouco mais

repetir expressões do tipo “todos os

que 1/4 da população) foi eleito

políticos são bandidos”; ou “não voto

presidente do país.

porque meu voto não vale nada”. Em redes sociais, fake news sobre o

DISPUTAS DE NARRATIVAS

tema são abundantes. Até bem pouco tempo, a mídia Essa estratégia provoca, entre

empresarial10 e os setores

outros, um afastamento do cidadão

conservadores da sociedade, irmãos

das instâncias de participação,

siameses, tinham o monopólio da

inclusive do processo eleitoral,

informação e se pontificavam como

e um desencanto gradual com a

donos da verdade.

democracia, os direitos humanos e as ideias de justiça e de liberdade.

9

Porém, à medida que a sociedade

São grupos e instituições americanas que têm parceiros estratégicos no Brasil para a formação de influenciadores de lideranças políticas e sociais com ideologia neoliberal com o objetivo de atuarem na Academia, jornalismo (mídia), sistema de justiça (juízes, promotores, policiais) e junto ao neopentecostalismo (católico e, principalmente, evangélico). Recomendamos o artigo de Kátia Gerab Baggio que faz um apanhado sobre ações de think tanks no Brasil (BAGGIO, K. G., 2018, pp 115-150).

10 Em relação à mídia empresarial, o Papa Francisco não cansa de alertar sobre a imposição de um discurso em uníssono que se concretiza com “a concentração monopolista dos meios de comunicação social que pretende impor padrões alienantes de consumo e certa uniformidade cultural” e é parte da estratégia do sistema que produz a morte dos pobres e da Mãe Terra. E, para tanto, “as instituições financeiras e as empresas transnacionais se fortalecem ao ponto de subordinar as economias locais, sobretudo debilitando os Estados, que aparecem cada vez mais impotentes para levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de suas populações.” (Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares).


82


83


84

foi se tornando mais plural e

econômicas, políticas, intelectuais,

polissêmica novos atores (sociais,

sociais, religiosas que concentram

políticos, culturais...), historicamente

o poder e a influência no Estado e

silenciados e/ou ignorados, entraram

na sociedade, para a defesa de seus

em cena na disputa das narrativas

privilégios).

no espaço público.

AS ELEIÇÕES DE 2018 Para o bem e/ou para o mal, as redes sociais passaram a disputar

Muitos analistas políticos têm

com a mídia tradicional as visões de

considerado que, com o advento do

mundo. Ademais, à medida que os

neoliberalismo a partir da década

grandes oligopólios de comunicação

de 1980, iniciou-se um processo de

brasileiros resolveram produzir

implosão dos estados de bem-estar

um discurso único ficava clara a

social. No Brasil, tardiamente, esse

partidarização da imprensa e sua

fenômeno ocorreu décadas depois:

credibilidade junto à sociedade

houve políticas neoliberais durante

brasileira caía abruptamente.

o período do governo de FHC (1995 – 2002), parcialmente revertidas nos

Assim, visões totalmente

governos de Lula e Dilma (2003 –

antagônicas de mundo também

2016).

entraram na disputa. Não só duas visões, como deseja uma narrativa

É importante considerarmos,

binária e maniqueísta. Mas múltiplas

mesmo que rapidamente, algumas

visões lastreadas em paradigmas

das variáveis que deflagraram uma

neoliberais (mercado e capital no

série de conflitos sociais, políticos

centro do debate) e socialistas ou

e culturais no país. Partiremos

socialdemocratas (o ser humano

dos eventos ocorridos em 2013,

como protagonista).11

as chamadas “jornadas de junho”. Naquele momento, não somente

Numa sociedade multicultural,

no Brasil, mas em várias partes

diversa e desigual, outras vozes

do mundo, uma série de atos de

entraram na disputa pelas narrativas

protesto questionavam, entre

sobre as demandas de múltiplos

outros, a democracia representativa.

grupos sociais, étnicos, culturais,

Vozes de diversos segmentos

religiosos.

sociais, com interesses diferentes,

E isso, obviamente, incomodou

demandavam mudanças substantivas

por demais o establishment (elites

no modelo esgarçado de governança

11

Obviamente, estamos simplificando uma discussão complexa, dado não ser objetivo deste texto refletir sobre o tema.


85

democrática capitalista12, no qual

Nesse contexto, é importante analisar

os representantes eleitos não

o fato de parte da classe média

representam os interesses da maioria

brasileira, historicamente acostumada

dos eleitores.13

com privilégios, bandeou para um discurso e prática saudosistas

Havia evidências claras de múltiplas

de uma sociedade estruturada

falências que, a rigor, apontavam

no autoritarismo. Pedidos de

para algo muito mais profundo:

intervenção militar e fechamento

o esgotamento do modelo de

das instituições republicanas, por

democracia capitalista. Esse

exemplo, começaram a pipocar em

esgotamento pode ser percebido

manifestações de rua, televisionadas

em várias dimensões: colapso do

para todo o país, e nas redes sociais.

ecossistema; da política; da economia

Um dos alvos prediletos desses

baseada na especulação (e sua última

grupos foi um conjunto de políticas

grande crise, a partir de 2008, nos

públicas de direitos humanos.

Estados Unidos); das instituições tradicionais (incapazes de dar

Ao invés de usar seu poderio

respostas às demandas de sociedades

político para lutar por justiça

cada vez mais complexas).

social e equidade, ou seja, contra a concentração de renda nas mãos

Uma guinada à direita começava a

de poucos, esses segmentos da

se esboçar à medida que as classes

classe média direcionavam seu

médias e os setores conservadores e

discurso raivoso contra os pobres e

de direita passaram a disputar as ruas

aqueles grupos e partidos taxados

(espaços tradicionalmente ocupados

de “comunistas”. Considerando-se

pelos movimentos sociais e grupos

“superiores”, não miravam o “andar de

progressistas).

cima”; ao contrário, atacaram o “andar de baixo”, extravasando preconceito e

No mesmo período, sinais do refluxo

ódio contra os pobres.

da crise econômica global batiam às portas do nosso país. Como sabemos,

A violência, que sempre determinou

o sistema político foi incapaz de

a “ordem” das relações sociais no

incorporar as reivindicações dos

Brasil, tornou-se o recurso utilizado

diversos segmentos que saíram às

em doses cavalares por setores

ruas naquele ano.

da classe média que tentavam

12 Para uma maior compreensão da crise democrática no capitalismo, indicamos o artigo “A democracia no capitalismo” (ABDALLA, M., 2018, pp 19- 44). 13 Veja também em: MARTINS, M. F. Educação, cidadania regressiva e movimentos sociais regressivos: o MBL em questão. Crítica Educativa, 2019.


86


87


88

se reposicionar num cenário de

(tendo como principais atores deste

disputas reais e simbólicas.

campo neopentecostais dentro do protestantismo e do catolicismo).

Nesse contexto, o governo de Dilma Rousseff (e movimentos sociais),

Os segmentos que lideraram a ruptura

acuados, defendiam a democracia

democrática de 2016 não obtiveram

e a crença segundo a qual eleições

êxito no primeiro turno das eleições

regulares corrigiriam o refluxo

(de 2018), principalmente na disputa

autoritário defendido por segmentos

presidencial. Os candidatos prediletos

sociais insatisfeitos com tudo o que

deles, Geraldo Alckmin (PSDB) e

tinha a ver com o establishment.

Henrique Meirelles (MDB) tiveram votação pífia.

O processo eleitoral se iniciou radicalizado e nenhum programa

Não houve nenhuma dificuldade

de governo tratava de debater e

de união desses grupos em torno

pautar as reformas estruturais14.

da candidatura de extrema direita

E, sem reformas estruturais, os

e ultraliberal. Afinal, Jair Bolsonaro,

setores progressistas e democráticos

apesar do evidente desdém com a

se conformaram na defesa da

Constituição, a justiça, os direitos

democracia formal.

humanos, entre outros, carrega os principais predicados da coalizão

UMA COMPETIÇÃO VICIADA E DESIGUAL

que tomou o poder em 2016: diferentemente de candidatos de ultradireita europeia, por exemplo,

As jornadas de 2013, capturadas

que são antiliberais, o presidente

por setores da direita, a não

eleito tem um discurso ultraliberal que

aceitação do resultado das eleições

agrada profundamente os segmentos

de 2014 derrotado (Aécio Neves)

reacionários e as elites brasileiras.

e o impeachment parlamentar-

Em nome de interesses privados,

judiciário-midiático de 2016 foram

individualistas e até antinacionais,

alguns dos sinais de um movimento

esses segmentos aderiram ao então

de marcha à ré da frágil democracia

candidato do Partido Social Liberal

brasileira, liderado pelas elites e

(PSL) já no primeiro turno das

setores conservadores e reacionário

eleições.

nacionais, incluindo grupos religiosos

14 São reformas que alteram as estruturas política e econômica do país e favorecerem a construção de uma sociedade justa e igualitária. Como, por exemplo, a reforma do sistema econômico (o que inclui reforma tributária, mudar a tributação sobre consumo para tributação sobre riqueza e renda); a reforma agrária; a reforma política; entre outras.


89

Num ambiente verdadeiramente

espalhados em redes sociais,

democrático, a candidatura de

com recursos financeiros não

Bolsonaro dificilmente prosperaria.

contabilizados, segundo denúncia

A maioria dos cientistas sociais e/

do jornal Folha de São Paulo,15

ou políticos que fazia análise de

às vésperas do primeiro turno

conjuntura um ano antes da eleição de

tutelou, em certa medida, a decisão

2018 tinha essa percepção.

do eleitor. As mensagens foram cuidadosamente pensadas para

O primeiro turno das eleições se

atingir o imaginário e o emocional

transformou numa guerra. Mas a

de uma sociedade amedrontada e

desproporcionalidade da disputa

moralista: acusavam o candidato

eleitoral desde o final do primeiro

do PT, sem provas e sem nenhuma

turno foi caracterizada pela

evidência empírica, de desrespeitar

composição e pelo modus operandi

valores familiares, de práticas

da coalizão que se articulou em torno

violentas, de alianças com

da candidatura ultraconservadora,

“demônios” inexistentes. Guiado

ultraliberal e de extrema direita e que

por um tsunami de mensagens

tem como principais atores:

desonestas e falsas, o eleitor não

a) Elites econômicas: grandes

tinha instrumentos nem condições

empresários, o agronegócio

de averiguar os fatos. Formou

e banqueiros que, segundo

opinião de última hora baseado em

reportagens publicadas pela mídia,

mensagem em massa em grupos

despejaram rios de dinheiro na

de WhatsApp. Isso é um dos

campanha de Bolsonaro.

fatores explicativos do movimento

A expedição de notícias falsas

abrupto do eleitorado na semana

em doses cavalares através de

do primeiro turno das eleições, que

grupos de Whatsapp e a produção

impulsionou várias candidaturas

deliberada de conteúdos falsos

de ultradireita16 nas disputas

15 No dia 18 de outubro de 2018 uma ampla reportagem do jornal “Folha de S. Paulo” afirmava que empresários simpáticos ao candidato Jair Bolsonaro teriam comprado “pacotes” de disparo em massa de mensagens contra o PT (fake News), o que caracteriza caixa dois de campanha. Conforme a legislação eleitoral em vigor, doações de empresas em campanhas são vetadas. Empresas com a rede de lojas de departamento Havan chegaram a gastar 12 milhões de reais na campanha do então presidenciável, conforme reportagem da Folha. Até a entrega deste artigo, a justiça eleitoral, mais uma vez, deixou de atuar. Assim sendo, podemos afirmar que a maior fake News das eleições de 2018 foi a ameaça do então presidente do TSE, ministro Luiz Fux, segundo a qual o tribunal seria implacável contra as notícias falsas. 16 Estamos nomeando como ultradireita a versão extrema do conservadorismo, que se expressa de forma reacionária. É formada por grupos que não aceitam a modernidade e buscam mobilizar e conquistar o aparato estatal pelo uso da força, saudosos de um passado nostálgico. São autoritários, reativos a todo tipo de diversidade, contrários a políticas de direitos humanos e violentos; portanto, incompatíveis com a democracia. Combinam com o modo mais violento, excludente e opressor do capitalismo na contemporaneidade: o ultraliberalismo.


90


91


92

pelo executivo, principalmente

período pós-eleições, as condições

na disputa presidencial, e do

jurídicas e institucionais para

legislativo (notadamente no

a consolidação de uma ordem

Congresso).

autoritária que poderá emergir no Brasil, num futuro próximo.

b) Elites da burocracia estatal: juízes, promotores, policiais e

c) Participação de think tanks

outros funcionários públicos

norte-americanos17. São instituições

do alto escalão que atuam (no

que financiam formadores de

aparelho estatal) como se fossem

opinião ultraliberais na mídia, em

prepostos e/ou parceiros das elites

espaços acadêmicos e junto a

econômicas e ultraliberais. Esses

grupos religiosos neopentecostais

grupos da alta burocracia pública

dentro do protestantismo e do

vêm agindo sistematicamente (por

catolicismo. Essas instituições dos

ações, conivências e omissões)

EUA investem há muito tempo

para o atendimento das demandas

na formação de uma ampla rede

dos setores do establishment.

de influenciadores que atuam em

Segmentos do sistema de justiça

universidades, imprensa, igrejas,

- mais preocupados em perseguir

clubes de serviço, empresas,

e destruir biografias de políticos

ONGs, sociedades secretas,

escolhidos a dedo -, não somente

divulgando princípios ultraliberais e

permitiram, mas foram coniventes

antidemocráticos, com impacto em

com o processo eleitoral maculado.

amplos segmentos da vida social.

Militares voltaram a atuar

Esses influenciadores criaram uma

politicamente.

imensa rede de agentes políticos

O discurso de Bolsonaro agradava

que são incapazes de defenderem

setores poderosos das Forças

valores democráticos; odeiam

Armadas e das instituições de

quaisquer políticas que visam a

segurança que apresentavam

justiça e a igualdade e só exaltam

o capitão do Exército como o

os valores e interesses privados

único capaz de reverter a crise

e individualistas. São contra um

da insegurança pública brasileira.

estado social e preferem entregar

Já comprometidos com todo

todo o patrimônio nacional aos

o processo anterior de ruptura

estrangeiros desde que seus

democrática e institucional, esses

privilégios de classe sejam

grupos de elites de burocratas

mantidos.

estatais trataram de articular, no 17 Sugerimos o artigo “Conexões ultraliberais nas Américas: o think tank norte-americano Atlas Network e suas vinculações com organizações latino-americanas” ((BAGGIO, K. G., 2018, pp 115150).


93

d) Ação da mídia empresarial.

Executivo Federal.

Há muito, os grupos midiáticos brasileiros se consolidaram como

Não é nossa intenção fazer um

um instrumento de controle e

inventário desses descaminhos, mas

manipulação da informação na

não é honesto deixar de registrar

tentativa de imposição de um

essa questão. Por outro lado,

pensamento único. De forma

é evidente que a culpabilização

hermética, seus veículos de

dirigida exclusivamente ao partido

comunicação atuaram em uníssono

é desonesta e persecutória e

para favorecer o lado da disputa

desconsidera que quaisquer

que atendia aos interesses da

governos estão passíveis de erros e

coalização ultraliberal. Para

acertos na condução do Estado.

consolidar a ruptura democrática e a imposição de um governo

Especificamente em relação à

ultraliberal e das elites, a coalizão

campanha eleitoral de 2018, o PT

que se formou em torno do

não foi eficiente nem na inteligência

candidato vencedor usou (e

estratégica, nem na infraestrutura

continua usando depois das

capaz de enfrentar a campanha

eleições) os armamentos de uma

bolsonarista – que contou, segundo

guerra híbrida18.

constam estudos preliminares, com estrategistas, planejadores,

Assim, as eleições de 2018 consolidaram

conhecimentos e tecnologias até

um simulacro democrático.

militares de última geração: a chamada ciberguerra19.

CRÍTICAS AO PARTIDO DOS TRABALHADORES

Mesmo antes de iniciar a disputa presidencial, o então candidato do

Não há como desconsiderar nesse

Partido Social Liberal (PSL) já tinha

processo de erosão da democracia

mais de 18 milhões de seguidores

brasileira os equívocos cometidos

nas mídias sociais.

pelas esquerdas e, em especial, pelo

A estratégia de campanha do

PT durante os 13 anos à frente do

partido associava o PT como o único

18 Trata-se de uma estratégia de disputa que combina elementos de uma guerra militar, com métodos como fake news, guerra informacional, intervenções alheias ao processo democrático, entre outras estratégias de ataque ao adversário político. 19 Esse tipo de estratégia belicosa mescla recursos de inteligência artificial, pregação religiosa de base teocrática, disseminação de fake News em massa, promessas de purificação e limpeza da sociedade com a eliminação daqueles que são escolhidos como os “inimigos” [estrangeiros, imigrantes, venezuelanos, pobres, negros, petistas etc.], desmoralização do sistema e do Estado de Direito e, por fim, a criminalização da política.


94


95


96

partido responsável pela corrupção e

dos linguistas mais importantes

pela crise econômica. Para agradar a

da contemporaneidade, resumiu

direita e setores ultraconservadores,

o que se esperaria de um partido

criticava a “imprensa comunista”, o

que nasceu para representar os

sistema de cotas e políticas de ações

interesses dos trabalhadores

afirmativas; atacava a comunidade

brasileiros:

LGBT, os “vagabundos” do bolsafamília, os “comunistas” infiltrados nas Universidades. Também há críticas ao PT em relação ao descolamento da burocracia e suas elites partidárias das bases da sociedade e, até mesmo, do sindicalismo. Segundo Frei Betto, com o tempo, o PT deixou de valorizar o “trabalho da formiga” e passou a entoar o “canto da cigarra” e o projeto de Brasil deu lugar ao (projeto) de poder: Se o PT pretende se refundar, terá que abandonar a postura altiva de cigarra e voltar a pisar no chão duro do povo brasileiro, esse imenso formigueiro que, hoje, tem mais acesso a bens materiais, como carro e telefone celular, mas nem tanto a bens espirituais: consciência crítica, organização política e compromisso com a conquista de “outros mundos possíveis”.20

Já o filósofo norte-americano

Eles tiveram tremendas oportunidades. Algumas foram usadas em benefício da população, outras foram perdidas. É preciso perguntar por que isso ocorreu, e fazer isso publicamente. E realizar reformas internas que impeçam que aconteça outra vez. (...) Se o PT reconquistar o poder político - ou mesmo se não chegar lá, de uma forma ou de outra -, uma grande tarefa que deve enfrentar é de estabelecer uma espécie de comissão da verdade para olhar com honestidade para o que ocorreu. Olhar com franqueza para as oportunidades que perderam. Isso teria um grande significado.21

OS RESULTADOS DAS URNAS Do rescaldo da onda mudancista22 do processo eleitoral surgiu um presidente de ultradireita, “filho” da velha política que se apresentou como o “novo”, eleito com mais de 57 milhões de votos.

Noam Chomsky, considerado um 20 BETTO, F. A fábula petista. 21 PT deveria realizar ‘comissão da verdade’ para examinar seus erros. 22 “A onda mudancista de natureza antissistêmica foi consequência da profunda crise política, econômica, social moral que atingiu o sistema político e os partidos que dele faziam parte como protagonistas desde a Constituição de 1988. O PT, mesmo tendo sido tirado do poder por um golpe, fazia parte desse sistema, tendo governando o país por 13 anos e alguns meses. Em boa medida, tanto no primeiro quanto no segundo turno, foi apontado como o principal responsável pela crise do sistema.” (FORNAZIERI, Aldo).


97

Governadores eleitos de estados

Há quem tenha esperança que

importantes, como Minas Gerais,

o Poder Judiciário poderá ser o

Rio de Janeiro e São Paulo seguem

equilíbrio à onda conservadora e de

a mesma cartilha do chefe do

direita no Executivo e Legislativo

Executivo Federal. Um Congresso

federais, à medida que resguardará

ainda mais conservador que o

a defesa dos direitos e garantias

eleito em 2014 (responsável pelo

da Constituição de 1988. Vamos

impeachment de Dilma Rousseff)

conferir...

surgiu das urnas, com o aumento expressivo das bancadas militar e

É preciso registrar a votação

neopentecostal. O perfil do “novo”

expressiva que o nordeste

Congresso brasileiro é: homens

brasileiro confiou aos partidos

brancos, com curso superior, com

mais identificados com políticas

alta renda econômica e de direita.

de proteção, defesa e promoção

Certamente, não coincide com

dos direitos humanos. Muito

o perfil mediano da sociedade

provavelmente, o Nordeste se

brasileira.

constituirá como um foco de resistência às políticas ultraliberais e

Quanto ao Judiciário, declarações

será um contrapeso importantíssimo

como a do presidente do STF, Dias

para o enfrentamento da onda

Toffoli, afirmando que a ditadura

ultraconservadora observada no Sul,

militar foi um “movimento” podem

Sudeste e Centro-Oeste brasileiros.

indicar um possível alinhamento dos três poderes a partir de 2019.

Certamente, o resultado, eleitoral no Nordeste está relacionado,

A “velha” noção de freios e

também, à fidelização do eleitorado

contrapesos que deveria pautar

dessa região ao ex-presidente Lula -

uma república alicerçada em

expurgado do processo eleitoral por

três poderes independentes e

uma condenação muito contestada

autônomos nunca esteve tão

por muitos juristas e estudiosos

fragilizada.

do fenômeno político e que está

23

23 Segundo Montesquieu, “quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou mesmo o Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria o Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor. Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares.” (MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. 2000, p. 167).


98


99


100

sendo objeto de análise em tribunais

As cenas de barbárie e violência

internacionais de proteção aos

protagonizadas país afora contra

direitos humanos, como a Corte

militantes sociais, explicitando

Interamericana de Direitos Humanos.

a violência política (que sempre existiu, mas parecia contida),

Também é positiva a votação de

mostram que a pulsão pela morte se

Fernando Haddad no segundo turno,

espraiou pelo país, mesmo antes do

alcançado mais de 47 milhões de

início da disputa eleitoral.

votos, a demonstrar que existe um grande contingente de eleitores se

É preciso muito trabalho de

posicionando claramente contra o

educação política e cidadã para

governo de Bolsonaro.

fortalecer os impulsos pela vida. Faz-se necessário enfrentar a pulsão

Muito preocupante é o fato de a

de morte e canalizar a agressividade

alienação eleitoral (abstenções,

difusa de setores autoritários para

brancos e nulos) ter superado a casa

ser utilizada em prol da vida, da

dos 40 milhões de eleitores.

justiça, da igualdade, da democracia

Ou seja, quase um terço dos

e dos direitos humanos.

eleitores “lavaram as mãos” no processo eleitoral. Mais um fator

Igualmente, é necessário enfrentar

a evidenciar a fragilidade da

esse “demônio oculto” do ódio,

democracia representativa.

da vingança e da violência.

EROS E TÂNATOS

E AGORA?

Amor e ódio, sexualidade e

É importante refletir, à guisa de uma

agressividade, vida e morte são

conclusão parcial e incompleta,

forças que habitam o ser humano e

que as eleições de 2018 fecharam

estão presentes no cotidiano, tanto

um ciclo de ampliação de políticas

nos conflitos mais banais quanto

de direitos humanos e da tentativa

nas mais mórbidas disputas da

de consolidação de um estado

humanidade. Esses opostos estão

de bem-estar social no Brasil,

misturados, amalgamados em tudo o

inaugurado com a Constituição

que fazemos, pensamos e sentimos.

Federal de 1988, e abriram um novo ciclo, que provavelmente

Nas eleições de 2018 percebemos

será marcado pela voracidade no

pulsões pela vida e pulsões pela

desmonte do estado social, restrição

morte.

de direitos, controle e perseguição a movimentos e lideranças sociais,


101

eclesiais e culturais e implementação

em certa medida, os estereótipos

de políticas que visam ao

de um ditador populista, o mais

incremento da “economia que mata”.

preocupante é que o núcleo do totalitarismo está nas instituições

Também há que se reconhecer que

sociais e políticas quando (elas)

os eleitores de Bolsonaro não são

se tornam homogêneas. E o

um grupo homogêneo. Há, pelos

alinhamento dos poderes da

menos, três grandes agrupamentos:

República a ideais autoritários

cidadãos frustrados com as

podem indicar essa tenebrosa

políticas anteriores que prometiam

perspectiva.

um novo patamar de vida e, com as decepções advindas com o

Ademais, o ultraliberalismo é

desemprego, a crise econômica

uma forma contemporânea do

e a precariedade das políticas

totalitarismo: tudo é pensado como

públicas rejeitam tudo o que

se fosse uma empresa privada,

representa o establishment e não

inclusive o Estado. Elegem-se

vislumbraram outra opção eleitoral

gestores como governantes e

senão a radicalização política; os

prima-se pela meritocracia, num

antiesquerdistas e, principalmente,

país marcado por profundas

os antipetistas (e tudo o que,

desigualdades, o que torna qualquer

simbolicamente, representa o PT)

competição um jogo de cartas

e um grupo minoritário que flerta,

marcadas.

sem constrangimento e pudor, com práticas e governos fascistas.

Ora, se o Estado e as instituições públicas são empresas, como será

No espectro político-institucional

possível lidar com os conflitos,

há imensos desafios para o campo

a diversidade e a exclusão social,

democrático e popular pela frente.

por exemplo?

Entre os principais desafios, a formação de uma ampla aliança

No campo religioso há que se

de centro-esquerda democrática

destacar que os segmentos

para enfrentar, com uma oposição

neopentecostais dentro do

consistente, um governo de viés

protestantismo e do catolicismo

nitidamente autoritário.

continuam ativos e usam a estratégia de guerrilha para a defesa

É preciso registrar que o governo

de uma cosmovisão fundamentada

Bolsonaro surge, também, como

em valores conservadores e

uma ameaça totalitária.

reacionários. Continuarão atacando

Além de Bolsonaro personificar,

os segmentos identificados com


102


103


104

ações sociopolíticas transformadoras

informação voltada aos segmentos

e disputarão, cada vez mais, as

sociais de base. Sites, blogs e redes

narrativas sobre o significado

sociais se tornaram importantes

do cristianismo em tempos de

mecanismos de mobilização e

adensamento da exclusão, das fakes

resistência política.

News, dos discursos de ódio e da violência - em nome da moral e dos

Os partidos de esquerda,

bons costumes da família tradicional.

tendencialmente ensimesmados

São visões de mundo e valores que

em seus microuniversos políticos,

não podem ser desprezados, porque

foram provocados ao diálogo e

significam, para esses segmentos,

têm buscado construir consensos

o fundamento de sua fé (por mais

importantes em torno de projetos

que se possa questionar e negar tais

comuns para o país. Dos setores de

fundamentos). Alguns desses grupos

esquerda nasceram e consolidaram

engrossam o coro de segmentos

as frentes Brasil Popular e Povo

ultraconservadores do catolicismo

Sem Medo que se constituem em

nos ataques ao Papa Francisco.

mecanismos potentes de formação política, construção coletiva de

Porém, é preciso registrar muitos

plataformas programáticas, além de

sinais de esperança. Há um

atuarem na organização e formação

ressurgimento potente de vários

das bases sociais.

movimentos sociais no campo dos direitos humanos, principalmente

Muitos dos discursos anticorrupção

ligados às questões de gênero

foram desmascarados e desnudaram

(feministas e LGBT+), étnicos

o caráter moralista, autoritário e

(movimentos negros) e geracionais

classista de segmentos que não têm

(juventudes). Esses movimentos

nenhum compromisso com a ética

lideram importante resistência

pública e só se preocupam com a

democrática e denunciam as feições

defesa de privilégios.

machista, racista, homofóbica e velhaca da ordem social e política

As eleições de 2018 também

brasileira contemporânea.

lançaram luz sobre os interesses de movimentos religiosos

Uma potente polifonia jornalística

ultraconservadores que se espraiam

e comunicacional está a contrapor

pelo país. Está cada vez mais

com qualidade e profundidade a

cristalina a participação de líderes

mídia empresarial, articulando parte

religiosos que usam da boa-fé do

da opinião pública progressista

povo para manipular e enganar a

e, também, a divulgar e produzir

população. Nunca se percebeu com


105

tanta clarividência que há falsários,

política; unificar as lutas sociais

“sepulcros caiados” e enganadores

e criar novos mecanismos de

que se escondem sob o manto da

informação e formação alternativos

religião para manter o povo alienado

aos oligopólios da mídia.

e na condição de miséria e pobreza. Por fim, um projeto de Nação As “reformas” encabeçadas pelo

democrática de fato, para além

governo neoliberal de Michel Temer

de democracia formal, significa a

mostraram à opinião pública que os

defesa intransigente dos direitos

verdadeiros ganhadores de rupturas

e conquistas advindos com a

democráticas são os banqueiros,

Constituição Federal de 1988,

os latifundiários, os especuladores e

principalmente na perspectiva da

rentistas e que governos neoliberais

construção de um estado social,

e ultraliberais só servem para

baseado nos pressupostos dos

contrariar interesses do povo, da

direitos humanos.

nação e da democracia, a favor do sistema financeiro local e global. Está claro, também, que as elites agrárias e empresariais que ainda dominam o Brasil e respaldam o atual governo (herdeiras da cultura colonial e submissas historicamente à burguesia mundial, sem projeto nacional e alheias aos interesses do país) carregam a tradição elitista, racista, etnocêntrica, patriarcal e violadora dos direitos humanos. São os filhotes da Casa Grande. O caminho para a reconquista da democracia real é longo. Aos setores democráticos é preciso evitar ilusões messiânicas; atuar em diversas frentes na consolidação de um projeto nacional inclusivo e democrático. Retomar as ações estratégicas de organizações de base, trabalhando a formação


106


107


108

REFERÊNCIAS

ABDALLA, M. A democracia no capitalismo. IN: IN: SOUZA, R. S. R.; PENZIM, A. M. B.; ALVES, C. F. Democracia em crise: o Brasil contemporâneo. Belo Horizonte, Editora PUC Minas, 2018, pp. 19 – 44. BAGGIO, K. . Conexões ultraliberais nas Américas: o think tank norte-americano Atlas Network e suas vinculações com organizações latino-americanas. IN: SOUZA, R. S. R.; PENZIM, A. M. B.; ALVES, C. F. Democracia em crise: o Brasil contemporâneo. Belo Horizonte, Editora PUC Minas, 2018, pp. 115-150. BETTO, Frei. A fábula petista. Disponível em: https://jornalggn.com.br/noticia/afabula-petista-por-frei-betto. Acesso em 20nov2018. CHAUÍ, M. Democracia e Sociedade Autoritária. Revista Comunicação & Informação, v. 15, n. 2, p. 149-161, jul./dez. 2012. DARDOT, P.; LAVAL, C. O neoliberalismo, um sistema fora da democracia. (Tradução Martha Costa). Nº 09, abril 2016, pp 01 -18. Revista Fevereiro (Política, Teoria, Cultura). ISSN: 2236-2037. Disponível em: http://www.revistafevereiro.com/ pag.php?r=09&t=18. Acesso em 24fev2019. FORNAZIERI, Aldo. Onda mudancista abala o sistema político. Artigo disponível em: https://www.brasil247.com/pt/colunistas/aldofornazieri/373505/Onda-mudancistaabala-sistema-pol%C3%ADtico.htm. Acesso em 10nov2018. MARTINS, M. F. Educação, cidadania regressiva e movimentos sociais regressivos: o MBL em questão. Revista Crítica Educativa (Sorocaba/SP), v. 4, n. 2, p. 41-68, jul./ dez.2018. ISSN: 2447-42232019. MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Do Espírito das Leis. São Paulo: Saraiva, 2000. PAPA FRANCISCO. Discurso no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, Bolívia, 5-13 julho de 2015. Disponível em http://w2.vatican.va/content/francesco/ pt/speeches/2015/july/documents/papa-francesco_20150709_bolivia-movimentipopolari.html . Acesso em 24fev2019.


109

PT deveria realizar comissão da verdade para examinar seus erros, diz Noam Chomsky. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/ brasil-45582040. Acesso em 07nov2018. SAFATLE, V. Cartas sobre a mesa. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ colunas/vladimirsafatle/2018/06/cartas-sobre-a-mesa.shtml. Acesso em 07nov2018. STEFANO, Zamagni. Uma economia que mata. Disponível em http://www.ihu.unisinos. br/78-noticias/584388-uma-economia-que-mata. Acesso em 24fev2019.


110


111


112


113

A DEMOCRACIA EM QUESTÃO: pontos e contrapontos João Carlos Lino Gomes1 Pe. Márcio Antônio de Paiva2

1 INTRODUÇÃO Pensar a democracia hoje é repensar

seguida, mas o cidadão comum fica

os caminhos trilhados pela política

a mercê dos que detêm o poder

na modernidade e discutir os

econômico.

descaminhos de uma sociedade ocidental que, apesar das inegáveis

Nesse sentido, faz-se necessária

conquistas no plano material, se vê

uma investigação que, sem negar as

dominada por uma economia muitas

conquistas do projeto democrático,

vezes antropofágica, excluiu uma

verifique até que ponto ele foi

imensa parcela da população mundial

corrompido por experiências internas

dos benefícios criados pelo progresso

ou externas à democracia de modo

material, além de ter construído uma

que o lugar da maioria que produz o

paradoxal democracia oligárquica,

poder possa ser resgatado. Usaremos,

onde a formalidade democrática é

para tanto, algumas reflexões de

1

Diploma de Estudios Avanzados en Filosofia, Tecnología y Sociedad pela Universidade Complutense de Madrid. Mestre em Filosofia (UFMG). Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC MINAS), do Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA) e da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). http://lattes.cnpq.br/9793347048061591

2

Doutor em Filosofia pela Pontificia Università Gregoriana (1998). Professor adjunto IV da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. http://lattes.cnpq.br/8132958863250237


114


115


116

Hannah Arendt para discutir esta

político a partir da modernidade.

questão já que a autora, conhecida por suas análises acerca dos totalitarismos nazista e stalinista, já

1

SOB O HORIZONTE DA TOTALIDADE

apontava que algumas das práticas totalitárias destas experiências

É característica da modernidade

históricas poderiam ser apropriadas

a ideia de história acompanhada

pelas democracias no seu esforço de

da noção de progresso e

manter a ordem a qualquer preço.

superação, superação da tradição

Como contraponto, trazemos algumas

e autoafirmação do sujeito. A

contribuições de Emmanuel Lévinas,

autonomia do sujeito o torna não

que sentiu na própria pele os horrores

somente o lugar, mas o critério da

do totalitarismo, o qual iluminará a

verdade, entretanto, privado de

reflexão com suas célebres reflexões

tradição. Nessa perspectiva, “êxito” é

acerca da alteridade, da pluralidade e

a única coisa que conta na história e

do sentido ético que, segundo ele, não

se constitui como “verdadeiro Deus”

vem do contexto cultural.

radicalmente secularizado. Com a secularização, as verdades e os

Para Lévinas, o pluralismo não é

valores, como a natureza e a política,

mais entendido numericamente

já não são expressão direta de uma

na perspectiva da pluralidade

vontade divina (PAIVA; TOMÉ, 2014).

sociocultural, mas um pluralismo embasado noutra lógica: a via da

Ora, a obra de Hannah Arendt é uma

alteridade. Portanto, um pluralismo

das mais desafiadoras, no campo

nem de sobreposição, nem violento.

da Filosofia Política, produzidas no

Em outros termos, pode-se dizer que

século XX, sendo que uma das suas

o autêntico pluralismo se dá a partir

preocupações mais instigantes é a

do outro. Assim esperamos lançar

perda da tradição do pensamento

luzes para o debate contemporâneo

político ocidental que, para ela,

e abrir algum caminho para repensar

cobre um universo que abrange

os atuais paradoxos da democracia.

de Platão a Marx, e o consequente

Arendt e Lévinas são judeus, ambos

desmoronamento das nossas

sofreram os horrores da Segunda

referências para pensar com rigor

Guerra mundial, como estudantes

algumas das experiências cruciais

aprenderam muito com Heidegger,

que vivemos no século XX tais como

lutaram contra as tendências

o totalitarismo, o consumismo e o

opressivas na política – daí nossa

desgaste da ideia de democracia

aproximação dos dois filósofos,

que, em última instância,

mesmo cientes da grande diferença

contribuíram para a destruição do

entre eles, como entre o ético e o

espaço público político.


117

Para a pensadora, este espaço

ser pensadas pela tradição do

é constituído pela ação humana

pensamento político ocidental

e sua capacidade de produzir

(ARENDT, 1989, p. 442-464).

constantemente novos começos. Por

Enfrentou-se, então, o seguinte

outro lado, Lévinas acusa o século

problema: acreditou-se, no ocidente,

XX dos horrores da guerra, do

que não seria possível experimentar

culminar do pensamento ocidental

realidades que estivessem fora da

no totalitarismo, que anulou a

nossa capacidade de pensá-las.

diferença e o outro na lógica da dominação (LÉVINAS, 1980,

No entanto, os regimes totalitários

Prefácio).

(que Hannah Arendt identifica no nazismo e no stalinismo) se

Arendt, ao tentar compreender a

constituíram em si mesmos como

importância que o espaço público

sistemas que desafiaram a nossa

político teve no ocidente, afirma que

capacidade para pensá-los porque

a tradição filosófica ocidental, ao

realizaram experiências que

fazer da contemplação, na Grécia

escaparam à nossa capacidade de

antiga, a esfera fundamental da vida

compreensão imediata. É como

humana, diluiu a importância que

afirma Lévinas, o totalitarismo que

a polis atribuía à atividade política

gera a guerra nos faz inaptos a

e estabeleceu um preconceito

qualquer atividade de julgamento

com relação a esta que se tornou

e pensamento. Por isso mesmo, o

determinante para a tradição do

pensador judeu desfere uma crítica

pensamento no ocidente. Mas,

radical à ontologia como lógica da

apesar disso, criou-se uma tradição,

guerra.

ou seja, mesmo com o rebaixamento da política, juntamente com outras

Isso colocou para a cultura ocidental

atividades da vida ativa (a vida do

uma dura realidade: descobrimos

agir), o ocidente conseguiu criar

que nós, seres humanos, somos

referenciais que de alguma forma

capazes de fazer coisas que não

orientaram a experiência humana

conseguimos pensar e, mais do que

durante séculos.

isso, podemos fazer coisas sem pensar e isto não diminui a eficácia

Mas esta tradição começou a

das ações realizadas sob este

se romper no século XIX e os

prisma. Na terceira parte do seu livro

regimes totalitários do século XX

sobre o totalitarismo, Hannah Arendt

produziram a sua total dissolução.

coloca como epígrafe um verso do

Isso aconteceu na medida em que o

poeta David Rousset que diz “os

totalitarismo efetivou experiências

homens normais não sabem que

que simplesmente não puderam

tudo é possível”.


118


119


120

Ou seja, os homens normais –

um lugar no mundo, de não mais

e a maioria dos seres humanos

conseguirem se compreender

na sua experiência cotidiana se

dentro das prerrogativas que

inscreve nesta categoria – por mais

tradicionalmente atribuímos ao

que possam abrir algum espaço

ser humano e, portanto, de não

em sua vida para pensar o absurdo,

poderem fundar, através da ação e

não conseguem pensar a absoluta

do discurso, o espaço da pluralidade,

dissolução de todo e qualquer

onde se age em comum sem perder

parâmetro legal, moral e político;

a própria singularidade. Isto é

enfim, não conseguem pensar a

possível porque, neste espaço, as

total ausência de sentido, porque

pessoas, apesar de agirem juntas,

a dissolução absoluta do sentido

têm condições de se distinguir, não

destrói até mesmo a concepção de

se confundindo com uma massa

absurdo que produzimos a partir de

informe (ARENDT, 2010, p.61).

certas condições de normalidade. As palavras de Lévinas fazem pensar

Hannah Arendt identifica como um

pela sua contundência:

dos elementos potencializadores

O estado de guerra suspende a moral; despoja as instituições e as obrigações eternas da sua eternidade, por seguinte, anula, no provisório, os imperativos incondicionais. Projeta antecipadamente a sua sombra sobre os atos dos homens. A guerra não se classifica apenas-com a maior entre as provas de que vive a moral. Torna-a irrisória. A arte de prever e de ganhar por todos os meios a guerra – a política – impõe-se, então, como o próprio exercício da razão. A política opõe-se à moral, como a filosofia à ingenuidade (LEVINAS. 1980, p.9).

O totalitarismo rompeu com o mínimo horizonte de significado3 e, ao fazê-lo, criou nos seres humanos a impressão de não terem mais 3

do totalitarismo o fato de que, na modernidade, o espaço público político ter sido destruído com o avanço da cultura moderna e sua matriz, ao mesmo tempo, individualista e societária. Segundo a autora, nos tempos modernos, assistimos a uma perda do mundo e isso se explica pelo surgimento de uma nova esfera na experiência humana em que a satisfação das necessidades para a manutenção da vida biológica e a luta pelos interesses privados produziram uma constante diminuição da esfera política que, por exemplo, para os gregos antigos, era de suma importância, já que estes,

Em Lévinas, encontramos a célebre reflexão em torno da crise de sentido em Humanismo do outro homem, obra em que ele fala de um sentido único – o ético – que brota da própria condição humana, como arcaico e imemorial. Veja-se: PAIVA, M. A.; TOMÉ, M. E. F. Proximidade segundo Lévinas: uma lógica para além do relativismo. Filosofia Unisinos. Maio-Agosto 2014, 15(2), p. 116-129, (doi: 10.4013/fsu.2014.152.03).


121

ao inventarem a política, passaram

teriam tempo para o exercício da

a fazer uma distinção entre aquilo

verdadeira liberdade que, conforme

que próprio do ser humano na sua

Hannah Arendt, na Grécia Antiga

particularidade (idion) e aquilo que

se definia como libertação das

ele partilha com a comunidade

necessidades para poder se dedicar

(ARENDT, 2010, p.28-29).

à vida política (ARENDT, 2010, p.3839).

De qualquer forma, Arendt e Lévinas combatem o totalitarismo,

Mas a morte de Sócrates pela

seja pela acusando a lógica do

democracia ateniense instaura,

Mesmo, o eu penso, o sujeito

na leitura arendtiana, uma forma

epistêmico, que reduz o outro a si

diferente de o ocidente ler a vida

mesmo instaurando a violência na

política fortemente influenciada pelo

seara social; seja pela constatação

enfoque que a filosofia passa a dar

da perda do espaço público

para esta. Platão, por exemplo, no

político como autêntico lugar da

livro A República, interdita como

democracia.

vida humana plena não só a vida dos negócios propriamente dita, mas a

2

ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE

própria vida política. A partir deste momento, a vida por excelência passa a ser a do filósofo

Segundo Arendt, os gregos

e tanto a vida dos negócios quanto

estabeleciam uma clara distinção

a vida política passaram a ser lidas

entre a vida privada da casa, onde

do ponto de vista do seu olhar

os homens satisfaziam as suas

contemplativo. Essa experiência

necessidades materiais, e a esfera

com a política orientou a cultura

pública da pólis, onde exerciam sua

ocidental até a idade média.

liberdade decidindo os destinos da cidade ao exercitar o discurso e a

A modernidade, com a criação

ação entre iguais. Isso significava

da economia de mercado, muda

que, no espaço político, todos

radicalmente a relação entre vida

tinham as mesmas possibilidades

ativa e vida contemplativa, tal como

de se distinguir, de atualizar suas

colocada pela filosofia grega.

potencialidades como cidadãos.

A ascensão da economia permite

A casa, a vida privada, era um

que a satisfação das necessidades

espaço fundamental na medida

seja retirada da esfera privada e

em que, sem ela, os homens-

passe a ocupar a esfera pública e

cidadãos teriam de empregar parte

é assim que se institui a esfera do

de seu tempo satisfazendo suas

social. Esta funciona como uma

necessidades materiais e, assim, não

espécie de ampliação do universo


122


123


124

doméstico e, ao invadir o espaço público antes ocupado pela política, reduz a experiência humana à pura satisfação das próprias necessidades.

que encaro a partir do meu egoísmo. A alteridade de outrem está nele e não em relação a mim, revela-se, mas é a partir de mim e não por comparação com o outro que eu lá chego. (LÉVINAS, 1980, p. 106).

No social, na sociedade, não existe

Se a modernidade faz desaparecer

espaço para que as pessoas possam

a pluralidade, abre-se a porta para

se distinguir, pois todos são

o totalitarismo que nossos filósofos

uniformizados na medida em que,

tanto combatem. Para Lévinas, na

apesar de lutarem por interesses

maioria das vezes a inspiração do

privados, estes se reduzem à

pluralismo numérico é totalitária,

manutenção da vida biológica e

cada diferente usa a tendência a

esta obedece a certos padrões que

não reconhecer o outro como outro,

valem para todos os seres humanos

anulando-o na consciência do sujeito

(ARENDT, 2010, p.55-56). Não há,

epistêmico. O social esvazia tanto

então, espaço para a diferença, logo,

a esfera privada, pois faz com que

também desaparece a pluralidade

ela perca sua importância para a

que, como já afirmamos, Hannah

sustentação da vida biológica e para

Arendt identifica como uma das

nossa proteção contra a invasão

características fundamentais da

da nossa privacidade pela esfera

política.

pública, quanto a esfera política no que diz respeito à possibilidade

Aqui faz-se necessária uma pequena

de uma vida efetivamente voltada

digressão em torno do que Lévinas

para o estabelecimento de relações

entende como verdadeira e

propriamente humanas (ARENDT,

autêntica pluralidade. Muitas vezes

2010, p.47).

a consideração numérica não basta para garantir o pluralismo, pois

No livro A condição humana, Hannah

pode-se usar a mesma lógica que

Arendt afirma que a ascensão do

anula a diferença: pela violência, pela

social, num primeiro momento,

massificação ou pelo totalitarismo.

significa a vitória do homo faber,

Por isso, há uma inovação

que ela define como o homem

interessante em Lévinas, segundo o

como construtor do mundo, ou

qual

seja, como produtor de objetos O pluralismo não é uma multiplicidade numérica [...]. O pluralismo supõe uma alteridade radical do outro que não concebo simplesmente em relação a mim, mas

duráveis para serem utilizados pelas pessoas. Para a autora, o feito mais marcante do homo faber foi o telescópio de Galileu que mostrou como o ser humano pode perscrutar


125

o universo com um objeto feito

um ser incapaz, em função do seu

por suas próprias mãos e colocou

isolamento, de participar livremente

sob suspeita tanto os olhos do

dos destinos da sociedade4.

corpo, reafirmando a desconfiança

As massas se constituíram, no fim

dos filósofos com relação aos

do século XIX e início do século

sentidos, quanto os olhos do

XX, como consequência da crise

espírito, questionando desta forma a

da sociedade de classes que gerou

acuidade do próprio olhar filosófico

na Europa um grande número de

que vê essências mas não descobre

indivíduos que não conseguiam

novos mundos. Assim:

encontrar um lugar numa sociedade

Não foi a razão, mas um instrumento feito pela mão do homem, o telescópio, que realmente mudou a concepção física do mundo; o que os levou ao novo conhecimento não foi a contemplação, nem a observação, nem a especulação, mas a ativa interferência do homo faber, da atividade de fazer e de fabricar [making and fabricating]. Em outras palavras, o homem estava enganado somente enquanto acreditava que a realidade e a verdade se revelariam aos seus sentidos e à sua razão, bastando para tanto que ele permanecesse fiel ao que via com os olhos do corpo e da mente. (ARENDT, 2010, p.342).

Mas a vitória do homo faber é, de certa forma, momentânea, pois, no mundo contemporâneo, com o aparecimento da sociedade de massas, assistimos à ascensão, juntamente com a sociedade de consumo, do homem da massa,

que assistia ao crescimento de economias transnacionais e à implementação da produção de bens supérfluos onde a produção passou a se justificar em função do consumo e não mais do uso. Hannah Arendt escreve: O termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores. Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto. (ARENDT, 1989, p.361).

Com todas essas mudanças o ocidente tornou-se palco para

4 Para Lévinas, cabe ressaltar aqui, não há uma noção abstrata de sujeito humano pensante ou racional como contraponto ao sujeito das massas. A subjetividade de que trata é aquela encarnada. Por isso, pode-se afirmar, com Lévinas, que o homem só será o bem supremo, cujos direitos devem ser salvaguardados, a partir do outro. Contrariamente ao totalitarismo que vê no outro e no diferente um inimigo. Não é uma noção abstrata “homem” que está na base do humanismo, é o Outro, e o outro encarnado. Aqui deve ser acrescentado também o préoriginário da alteridade que garante a pluralidade e um lugar ao sol nas democracias. Portanto, é a partir do cenário da existência, da intriga social, que se constrói a ética e a política.


126


127


128

a vitória do animal laborans.

sensação de que isto lhe dá certo

Este, contrariamente ao homo

apego à realidade.

faber, está reduzido à função de consumir e representa a dimensão

O animal laborans tornou-se a marca

humana em que estamos presos

do nosso tempo na medida em

ao ciclo biológico e repetitivo da

que a maioria dos seres humanos

manutenção da vida. Na cultura do

está presa hoje à luta pela própria

consumo tudo se torna supérfluo,

sobrevivência e não ao esforço pela

pois as coisas não são feitas para

preservação do mundo. Ele também

durar e, portanto, carecem de

se faz presente na experiência do

substância. Neste modelo de cultura,

nosso tempo em que se acredita

o próprio homem torna-se supérfluo,

que tudo que é criado deve ser

pois se torna um ser superficial

consumido. Assim, cremos que

e descartável. Ele não vive a

os dois livros de Hannah Arendt

experiência do pluralismo e sim a da

podem ser melhor articulados

massificação.

quando os compreendemos como fazendo parte de uma temática que

3 CONSEQUÊNCIAS DA MODERNIDADE

perpassa a sua obra, qual seja: a perda do espaço público-político e a consequente impossibilidade

Embora Origens do totalitarismo

de que os seres humanos possam

e A condição humana sejam livros

aparecer (o espaço político, para

diferentes, escritos em épocas

nossa autora, é o espaço da

diferentes, acreditamos que o

aparência) como seres criadores e

homem da massa, que no primeiro

instauradores do novo e do sentido

livro é aquele que é manipulado

(ARENDT, 2010, p.227-228).

pelo totalitarismo e assim se torna uma peça-chave para este sistema,

Há uma grande distância

se identifica com o ser humano

nesse aspecto entre Lévinas e

reduzido ao animal laborans (cuja

Arendt. Embora estejam ambos

compreensão a autora considera

preocupados com a crise de sentido,

fundamental para a investigação

o filósofo critica a multiplicidade

da destruição do espaço político

cultural como fonte única e legítima

em nossa modernidade),

de significação.

particularmente no que diz respeito

Mesmo que represente uma luta

ao seu sentimento de ser supérfluo,

contra o colonialismo cultural

de estar sobrando no mundo e ter

de algum povo ou de uma

que consumir (mesmo que não

determinada cultura, a dependência

tenha muitas vezes as condições

da significação, da multiplicidade

ideais para o consumo) para ter a

cultural, levou ultimamente não só


129

ao relativismo e à dispersão das

não pode ser inventariado na

significações, mas à indiferença,

interioridade de um pensamento,

à desorientação, aos valores e

no sujeito.

deuses culturalizados que, ao contrário do bem que é universal,

Pelo contrário, o próprio

estão assentados todos juntos sobre

pensamento insere-se na cultura,

a base comum das necessidades,

através do gesto verbal do corpo

dentro da totalidade do ser.

que o precede e o supera. Assim, ele chega a afirmar o sentido único

Aí tanto os deuses como os valores

perdido: o rosto é o lugar onde se

são dados pelo homem a si mesmo

manifesta a significação original,

e, por isso mesmo, já estão mortos.

que comanda e ordena o agir moral.

A verdadeira multiplicidade que

Sua apresentação não é a da esfera

não multiplica as significações e

da percepção, do conhecimento

reúne na paz – é a relação face-

ou da compreensão, mas sim

a-face que revela a multiplicidade

significação ética.

originária – começa na separação entre absolutos e na consideração

Essa significação não faz parte de

da transcendência do outro .

um contexto histórico-cultural, nem

O animal laborans não tem, em

de um processo de identificação do

função de estar preso ao ciclo

sujeito racional, como responsável

repetitivo da vida, a dimensão do

e criador de normas morais. “[...]

novo, e não busca o sentido, pelo

A significação situa-se na ética,

fato de que vive preso ao imediato

pressuposto de toda cultura e de

do aqui agora.

toda significação. A moral não

5

pertence à Cultura: é ela que permite O projeto intelectual de Hannah

julgá-la, que descobre a dimensão

Arendt se constitui como uma crítica

da altura” (LÉVINAS, 1993, p.67).

à modernidade entendida como uma

Portanto, para o pensador judeu,

experiência histórica onde,

existe um arquétipo imemorial ético

de uma exaltação do utilitarismo,

que é a responsabilidade pelo outro,

que produziu um primeiro impacto

fonte da justiça e da democracia.

no espaço público político,

Diz o filósofo:

chegamos à sociedade de massas que perde tanto a dimensão da utilidade quanto a do sentido. O sentido, de acordo com Lévinas,

Em toda sua análise da linguagem, a filosofia contemporânea insiste, certamente com razão, sobre sua estrutura hermenêutica e sobre o esforço cultural do ser encarnado que

5 Cf. SUSIN, Luiz Carlos. O homem messiânico: uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas. Porto Alegre: Vozes, 1984. p.236.


130


131


132

se exprime. Não se terá esquecido uma terceira dimensão, isto é, a direção para Outrem, que não é somente o colaborador e o vizinho de nossa obra cultural de expressão ou o cliente de nossa produção artística, mas o interlocutor: aquele para quem a expressão exprime, para quem a celebração celebra, e que é, ao mesmo tempo, termo de uma orientação e significação primeira? (LÉVINAS, 1993, p. 49-50).

Quando Hannah Arendt faz referências à forma como os gregos compreendiam a política antes do advento da filosofia, é menos por um suposto hábito saudosista de uma mente conservadora e mais por ver ali uma experiência que mostra, à maneira de um exemplo, que o mundo no qual vivemos, tal como se constituiu a partir de condições históricas específicas, não pode se colocar como a verdade final do homem já que um dia fomos capazes de viver num espaço público político e isto mostra, para a autora, que a experiência da pluralidade existe potencialmente em nós. E quem sabe, a diferença e a pluralidade têm como desafio o reconhecimento da ética como Filosofia primeira, diria Lévinas. A sociedade de massas implica, no quadro das reflexões de Arendt, na diluição da ideia de mundo tão cara ao projeto do homo faber. Paradoxalmente, ela causa a própria perda da identidade dos seres humanos justamente na medida em

que tenta torná-los absolutamente idênticos, desconsiderando aquelas diferenças que, em um espaço público marcado pelo livre uso da palavra e da ação, possibilitariam a troca de experiências e pontos de vista entre os indivíduos. A democracia da sociedade de massas é falaciosa justamente na medida em que destrói a pluralidade que viabiliza e justifica que cada ser humano singular encontre, no espaço público, a oportunidade de tecer relações com outros indivíduos que também desejem se interrelacionar. A sociedade de massas, que é um registro contundente da vitória do animal laborans, por estar reduzida ao círculo vicioso do trabalho-consumo, eleva o transitório, o fútil e o supérfluo em níveis nunca antes vistos no ocidente. Para Hannah Arendt, um mundo entregue ao animal laborans seria praticamente destruído pela ânsia devoradora deste. A autora demonstra que, de certa forma, há uma amostra disto na economia do desperdício, típica do século XX, onde tudo é devorado e abandonado quase ao mesmo tempo em que surgiu no mundo. Uma vida neste mundo ainda seria vida, mas não seria humana (ARENDT, 2010, p. 166). Sociedade das massas, na linguagem


133

levinasiana, é a vitória da ontologia

Aceitando as análises de Hannah

sobre a ética, é dominação. Portanto

Arendt, quando ela nos mostra

a saída só pode ser em direção ao

que em um verdadeiro espaço

humanismo do outro homem.

político os seres humanos se comunicam através da palavra e

Por este viés, podemos

da ação, podemos concluir que

compreender mais claramente o

o espaço público invadido pelo

porquê da superfluidade do ser

social, por seres humanos sem uma

humano no mundo massificado.

vida privada que, preservada da

Segundo Hannah Arendt, possuir

voracidade do consumo se coloque

uma vida privada é importante

como um pano de fundo para a

não só para satisfazer nossas

aparição pública dos indivíduos,

necessidades, mas também para que

só permite uma comunicação

esta vida nos proteja da aparição

através de imagens que não

absoluta que carrega o perigo de

necessariamente têm um correlato

nos tornar seres sem profundidade,

exterior a elas ou de linguagens que

sem algo que, justamente porque

podem até transmitir mensagens

não aparece, sustenta nosso

coerentes, mas que não levam em

aparecer.

consideração a questão do sentido, do significado (ARENDT, 2010, p.87).

A própria luz que percebemos no mundo nos permite enxergar em

4 EPÍLOGO

função da escuridão que constitui uma espécie de pano de fundo sem

Assim, para nós, acima de tudo

o qual teríamos uma claridade tão

é de fundamental importância

absoluta que simplesmente nos

compreender como Hannah Arendt

impediria de ver. A ascensão do

diagnostica na cultura do supérfluo,

animal laborans e a concomitante

do banal, a diluição de todo e

constituição da sociedade de massas

qualquer sentido, ao mesmo tempo

opera uma espécie de iluminação

que é importante entender que, para

total sobre nossas vidas.

Lévinas, a perda de sentido acontece na pluralidade numérica dos

Na medida em que o social invade

contextos. Se a ascensão do homo

o privado, este se torna algo de

faber, ao reduzir tudo à sua utilidade,

interesse público e deixa de fazer o

trouxe problemas para a busca do

papel daquele pano de fundo que,

sentido – ao trocar a pergunta pelo

de alguma forma, deveria sustentar a

em nome de quê pela pergunta

nossa aparição no espaço público.

sobre o para que – a ascensão do animal laborans destrói o espaço


134


135


136

para perguntas na medida em que

Hannah Arendt identifica filosofia

a palavra que tanto traduz como

e metafisica e, em função desta

doa o sentido é, como já dissemos,

identificação, critica as pretensões

substituída pela imagem vazia

do filósofo de ditar normas

ou pelas linguagens formalizadas

transcendentes para a política,

(ARENDT, 2010, p.192).

ela questiona as tentativas do pensamento ocidental de

Nessa perspectiva, um dos

fundamentar os valores morais a

maiores desafios da democracia

partir de uma esfera absoluta e

contemporânea é justamente

transcendente.

resgatar o sentido, e diríamos ainda mais, o sentido da alteridade do

Este suposto caráter absoluto dos

outro numa cultura da diferença,

valores foi duramente colocado

na direção da revalorização do

à prova em alguns momentos de

espaço público da política. Se com

horror do século XX (as duas guerras

Arendt aprendemos que somos

mundiais, por exemplo) e, apesar

seres de ação e de linguagem, logo

da morte e violência perpetradas,

somos responsáveis pelo horizonte

o mundo não desabou sobre os

saudável da vida política, desde

seres humanos que promoveram a

que lutemos contra a massificação

barbárie, para demonstrar que estes

instaurada; com Lévinas somos

tinham quebrado leis morais que

convidados a redescobrir o

sustentariam absolutamente o agir

originário ético – responsabilidade

humano.

e justiça – como fonte de toda vida ativa no mundo e superação dos

Seres supérfluos, sem identidade,

totalitarismos.

podem mudar de valores sem nenhuma culpa em sua consciência,

É também neste quadro que

pois não conseguem mais remeter

acreditamos ser possível perceber o

a nenhuma experiência de sentido.

impacto sobre a reflexão acerca da

Só lhes resta se apegar ao processo

moral do pensamento de Hannah

repetitivo da satisfação das

Arendt. A autora não nos deixou

necessidades. Já para o filósofo

uma ética sistematizada e não

lituano, o pensamento primeiro é a

são raras as passagens em que

ética, não concebida como valores

ela demonstra claramente a sua

universais ou transcendentes, aliás

desconfiança com relação à tradição

este é um ponto de proximidade

moral do ocidente (ARENDT, 2004,

entre os dois pensadores.

p.118). O movimento levinasiano parte Assim, da mesma forma que

da humanidade do homem, da


137

vida encarnada, até encontrar-se

já tinha sofrido o seu primeiro

no vestígio de Deus, mas ele não

grande golpe quando a fabricação

apresenta uma ética constituída,

mostrou a sua força na construção

senão uma matriz pré-originária,

de instrumentos extremamente

uma lógica, a da proximidade.

eficazes para a construção de um

Portanto, dizer que a ética é filosofia

mundo que, enquanto obra humana,

primeira significa apenas reconhecer

podia ser objetivamente conhecido

que o tecido do real é ético, algo de

pelo homem. Mas apesar deste

que a modernidade se encontra bem

primeiro golpe sofrido por ela,

distante.

ainda restou para o ser humano um mundo – cada vez mais despido de

Em Hannah Arendt não há uma

significado, mas um mundo. Com a

negação da importância da moral

ascensão da sociedade de massas

enquanto um conjunto de valores

tanto a práxis quanto a poiesis são

produzidos historicamente com a

engolidas pela força paralisadora do

função de criar expectativas entre as

comportamento.

pessoas de certo universo cultural. O que existe em seu pensamento é

Assim, é fundamental para nós a

um questionamento sobre a efetiva

reflexão sobre como uma sociedade

força que a moral tem para impedir

massificada, na medida em que

a instauração da barbárie.

torna tudo supérfluo, torna a moral superficial, vazia.

Esta força que, na tradição cultural

No mundo da moral esvaziada não

do ocidente, foi atribuída ao

deixamos de agir moralmente, mas

suposto caráter transcendente e

este agir torna-se simplesmente

absoluto das regras morais, perdeu

uma formalidade cumprida

sua efetividade quando o ser

mecanicamente por quem quer ser

humano deixou de se reconhecer

aceito minimamente pela sociedade.

em um espaço comum, livremente

Talvez seja isso mesmo que esteja

constituído por sua própria práxis,

acontecendo nas democracias em

entendida aqui como esta forma de

torno do Globo.

ação que, diferentemente da poiesis (da ação fabricação, produção),

Resta-nos, por fim, reconhecer

não deixa um registro objetivo e

e enfrentar os desafios que a

durável da sua realização, sendo que

democracia tem diante de si,

seu sentido só revela no momento

se quiser sobreviver e reinventar.

mesmo da sua realização (ARENDT,

Se na época de Arendt a

2010, p.194-205).

massificação já era uma realidade, hoje é potencializada pelo suporte

A práxis, no mundo do homo faber,

tecnológico, iludindo os indivíduos


138


139


140

em meio a falatórios sem sentido,

o desafio de reconstruir o mínimo de

de levarem uma vida

metavalores – aquele laço metafísico

verdadeiramente autêntica, quando

originário – que une as diferenças,

na verdade a superficialidade

por exemplo, em torno da definição

impera, as polarizações políticas e

do bem comum, da defesa da vida,

religiosas campeiam nas redes e no

do cuidado com o planeta. Sem o

tecido cotidiano da vida, a barbárie

mínimo horizonte metafísico –

bate à nossa porta. Talvez, a cultura

a partir do nosso aqui e do nosso

das massas tenha uma serventia:

agora – nenhuma empresa humana

facilitar o exercício do poder e o

chega a bom termo, antes correm o

uso e abuso dos recursos públicos.

risco de se perderem no universo do

Se para Lévinas, a ontologia gera

sem-sentido e da fugacidade.

violência, há uma saída – tênue que

Por isso mesmo, o presente já é

seja – em direção ao reconhecimento

nosso futuro. E aí vale lembrar o

da ética da alteridade: o acolhimento

poeta:

do outro gera uma cultura de

“O presente é tão grande,

encontro e de paz.

não nos afastemos Não nos afastemos muito,

A humanidade do humano tem ainda

vamos de mãos dadas”.


141

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2010. _________. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das letras, 1989. _________. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das letras, 2004. LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980. LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Trad.: Pergentino Stefano Pivatto (coord), Petrópolis: Vozes, 1997. LEVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Trad.: Pergentino S. Pivatto (coord.). Petrópolis: Vozes, 1993. PAIVA, M. A.; TOMÉ, M. E. F. Proximidade segundo Lévinas: uma lógica para além do relativismo. Filosofia Unisinos. Maio-Agosto 2014, 15(2), p. 116-129, (doi: 10.4013/ fsu.2014.152.03). SUSIN, Luiz Carlos. O homem messiânico: uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas. Porto Alegre: Vozes, 1984.


142


143


144


145

TECNOCIÊNCIAS E SUBJETIVIDADES: uma leitura por territórios, fluxos, máquinas e universos Bruno Vasconcelos de Almeida1

O presente artigo trata das relações

subjetividades. O terceiro momento

entre tecnociências e modos

aborda tecnologias específicas,

de produção de subjetividade

evidenciando alguns modos de

desencadeados a partir do encontro

interação entre corpos e máquinas,

entre corpos e máquinas. Do ponto

a saber: interfaces, acoplagens,

de vista metodológico, o trabalho

incorporações e fusões; referentes às

está dividido em quatro momentos.

tecnologias do andar, do pensar e do

O primeiro realiza mapeamento

olhar. Por fim, as linhas antecedentes

provisório dos territórios das

da pesquisa desaguam em alguns

tecnociências e das convergências

problemas da vida contemporânea:

tecnológicas. O segundo investiga

modos de existência, vida psíquica

linhas de conexão entre corpos

transcoletiva e multiplicidades.

e máquinas em obras de Gilbert

De maneira preliminar, pode-se

Simondon, Gilles Deleuze e Alfred

dizer que a ciência moderna operou

North Whitehead, com o objetivo

uma espécie de neutralização dos

de dar consistência a uma questão

modos de afetação entre o homem

capaz de problematizar os fluxos

e a ciência, apartando os processos

entre tecnociências e produção de

que ocorriam no primeiro do

1

Pós-doutor em Filosofia (UFMG, 2016; UFMG, 2014). Doutor e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP, 2010; PUC-SP, 2005). Professor da PUC Minas. Psicólogo e acompanhante terapêutico. Pesquisador do Núcleo de Estudos do Pensamento Contemporâneo (NEPC - FAFICH - UFMG). Membro do grupo de trabalho CLACSO: Espaços Deliberativos e Governança Pública. Membro do GT Filosofia da Técnica e da Tecnologia (ANPOF).


146

modus operandi e das condições

a um ideal utilitarista, levando-a a

sociotécnicas da segunda.

reboque dos fluxos financeiros em

As tecnociências contemporâneas

jogo no capitalismo atual.

fazem exatamente o contrário:

Por outro lado, os modos de

geram processos de atravessamento

produção de si e de invenção do

cada vez mais potentes entre o

humano e do pós-humano são

homem e a ciência, entre o homem

afetados pelas realizações da

e a técnica, entre o homem e a

tecnociência, de uma maneira inédita

tecnologia, mesclando o fazer

com relação a outros momentos

científico com a reinvenção de si,

da história, através de processos

acoplando ou fundindo corpos e

acelerados da abolição de fronteiras

máquinas, achatando os planos de

antes existentes no conhecimento,

diferenciação entre homem, natureza

permitindo a manipulação genética

e máquina e, sobretudo, reduzindo

e outros feitos extraordinários no

os espaços e paisagens da vida

plano da reengenhagem de seres

psíquica a um mínimo existencial

vivos (biodesigns, etc.), tais que

necessário à biopolítica. A vida

tornaram obsoletas as relações entre

tornou-se a base e o objeto da vida

corpos e máquinas estabelecidas em

política. A vida psíquica foi lançada

outros momentos da história.

no espaço do fora, com a radical transformação das subjetividades

A pergunta de matriz socrático-

nos cenários do capitalismo atual.

kantiana, que estamos habituados a fazer de nós mesmos, ao

O projeto Tecnociência e

perguntar o que é o homem em

Subjetividade: corpos e máquinas

sua dualidade de ser natural e ser

no âmbito das convergências

moral, pressupondo a existência de

tecnológicas atuais (UFMG, 2016)

esferas circunscritas ou domínios

investigou modos de produção

demarcáveis, desloca-se para outra:

de subjetividade nas sociedades

o que é que nos tornamos quando

atuais, onde a conjunção ciência e

entramos em relação intensiva

técnica toma de assalto o cotidiano

com os processos da tecnociência

das pessoas. Este artigo é oriundo

e seus efeitos políticos, sociais,

da pesquisa. Por um lado, a noção

econômicos e psíquicos. Em anos

de tecnociência parece indicar

recentes, a agência federal de

um estatuto especial para as

pesquisa dos EUA, a NSF, conhecida

relações entre técnica e ciência,

por seu imenso protagonismo e

com predomínio da primeira sobre

a capacidade de definir os rumos

a segunda. O uso e aplicabilidade

da C&T naquela que ainda é a

de tecnologias nas sociedades

primeira potência econômica do

contemporâneas vinculam a ciência

planeta, repercutindo sobre o resto


147

do mundo, propôs a priorização

documentos como o Converging

das chamadas Tecnologias

Technologies for the European

Convergentes NBIC, formulada no

Knowledge Society – CTEKS.

Simpósio Converging Technologies for Improving Human Performance (2001), discutida e reelaborada em eventos posteriores, abarcando integração da nanotecnologia,

1 MAPA PROVISÓRIO DO PENSAMENTO TECNOCIENTÍFICO (TERRITÓRIOS)

da biotecnologia, das tecnologias da informação e da comunicação

O termo tecnociência, tratado no

e das neurociências. Este conjunto,

singular, ganhou visibilidade a partir

nano-bio-info-cogno, estaria voltado

da década de 1970, por oposição à

para a melhoria da performance

ciência moderna, empreendimento

humana e a pressuposição é que

teórico dissociado das técnicas.

não se trata de um resultado

Ele diz respeito à pesquisa científica,

aleatório, como nas convergências

em especial aquela vinculada a

tradicionais ocorridas no passado

resultados práticos,

e ainda ocorrendo, mas de algo

com aplicabilidade definida,

planejado e intencionalmente

e atrelado aos interesses do setor

buscado. E pergunta-se: quais forças

produtivo e do mercado. De acordo

percorrem esse novo movimento

com Hottois (2008)2, a pesquisa e

convergente? Quais efeitos ele

o desenvolvimento tecnocientíficos

produz nas subjetividades atuais?

comportam uma ausência de

Quais mecanismos são ativados em

hierarquia entre pesquisas e

um plano de interfaces políticas,

invenções, entre teorias e técnicas;

sociais e psíquicas?

eles são produzidos na confluência

De que modos a convergência atual

e emaranhamento de diferentes

dispõe a conectividade corpos

saberes, de maneira dinâmica e

e máquinas? Estas são algumas

ativa. A tecnociência é processo,

perguntas trazidas à tona pelo

ou momento de um processo,

desenvolvimento tecnocientífico

que visa a um modelo hipotético

desde o último quartil do século

e operativo, com consequências

XX, mas especialmente a partir do

econômicas e questionamentos

documento americano de 2001

éticos, políticos e culturais.

citado acima e do posicionamento europeu de 2004, em reuniões

Vale lembrar que uma das linhas

científicas que se desdobraram em

genealógicas para a tecnociência

2 HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à Pós-Modernidade: uma história da filosofia moderna e contemporânea. Tradução Ivo Storniolo. Aparecida: Ideias & Letras, 2008.


148

remete à Escola de Alexandria

desejos e novos modos de vida

e a Thales, engenheiro filósofo.

(HOTTOIS, 2008, pp.609-610)7.

Entre outros nomes dessa linhagem, encontram-se os de

Ciência, técnica e tecnologia são

Francis Bacon, Gaston Bachelard

muitas vezes confundidas pelo senso

e Werner Heisenberg (HOTTOIS,

comum. Em uma simplificação,

2013)3. As possibilidades de

a ciência está preocupada com um

investigação acerca da tecnociência

sistema coerente de conhecimentos,

são múltiplas, com inúmeras

voltado para a produção de

personagens e versões conflitantes.

saberes logicamente sustentados

Há trabalhos importantes na

e afeitos ao problema da verdade;

produção de uma leitura crítica

a técnica diz respeito aos recursos

em relação às tecnociências

de que o homem se vale para

(BENSAUDE-VINCENT, 20134;

resolver problemas práticos; já a

KASS, 2008 ; ROSE, 2013 ). Para

tecnologia refere-se à aplicação

um mapeamento contemporâneo

de conhecimentos que tornam

e provisório do problema, optou-

mais eficientes a produção da vida

se pela investigação do conceito

material. Se em outros momentos

em trabalhos de Gilbert Simondon

da história, ciência, técnica e

(1924-1989), Gilbert Hottois (1946),

tecnologia estiveram dissociadas,

Bruno Latour (1947) e Bernard

no contemporâneo a tecnociência,

Stiegler (1952).

estratégia marcada por confluência

5

6

e convergência, opera a mistura das Ao associar tecnociência com

três, em movimentos cada vez mais

pesquisa e desenvolvimento

precisos.

tecnocientíficos, Hottois afirma que estes estão em interação constante

De acordo com Bensaude-Vincent

com o meio simbólico no qual se

(2013)8, a tecnociência provoca

desenvolvem e que os fantasmas e

uma recomposição dos saberes,

desejos mobilizados suscitam outros

transformando o conhecimento em

3

HOTTOIS, Gilbert. Généalogies Philosophique, Politique et Imaginaire de la Technoscience. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2013.

4 BENSAUDE-VINCENT, Bernadette. As Vertigens da Tecnociência: moldar o mundo átomo por átomo. Tradução José Luiz Cazarotto. São Paulo: Ideias & Letras, 2013. 5 KASS, Leon. Beyond Therapy: biotechnology and the pursuit of happiness. New York: Harper Perennial, 2003. 6 ROSE, Nikolas. A Política da Própria Vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. Tradução Paulo Ferreira Valerio. São Paulo: Paulus, 2013. (Coleção Biopolíticas). 7

HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à Pós-Modernidade: uma história da filosofia moderna e contemporânea. Tradução Ivo Storniolo. Aparecida: Ideias & Letras, 2008.


149

um processo teleológico orientado

A vida, como tal, tornou-se a base

por uma decisão política. Entre seus

e o objeto da vida política, captura

traços característicos, a tecnociência

que se estende da individuação

tem seu foco nos dispositivos

do objeto técnico às dimensões

operacionais, na abolição da

sensíveis dos processos de

distância entre o humano e a

singularização. O interior do corpo

natureza, e na individuação dos

volta a ser espaço de investimento

objetos técnicos.

político, com tecnociências da molecularização e da digitalização;

Esta investigação abordou linhas

a vida psíquica, ao contrário,

de entrelaçamento entre as

é lançada no espaço do fora, com

tecnociências contemporâneas

o fim da intersubjetividade e o

e processos de subjetivação aí

desaparecimento da duração.

gestados. Até um certo ponto,

O problema do fim da psicologia,

a ciência moderna operou uma

ou de sua reinvenção, não é

espécie de neutralização dos modos

objeto deste trabalho, mas sua

de afetação entre o homem e a

problematização se coloca na

ciência, apartando os processos

medida em que estamos tratando

que ocorriam no primeiro, do

de uma subjetividade maquínica

modus operandi e das condições

que abandonou completamente a

sociotécnicas da segunda.

constituição do sujeito em prol de

As tecnociências contemporâneas

modelos ancorados naquilo que

fazem exatamente o contrário:

Simondon chamou de transcoletivo.

geram processos de atravessamento cada vez mais potentes entre o homem e a ciência, entre o homem e a técnica, entre o homem e a tecnologia, mesclando o fazer

1.1 TERRITÓRIOS SIMONDONIANOS (GILBERT SIMONDON – 1924-1989)

científico com a reinvenção de si, acoplando ou fundindo corpos e

A tecnociência para Simondon está

máquinas, achatando os planos

relacionada à técnica. Os atores deste

de diferenciação entre homem,

cenário são inventores, pesquisadores,

natureza e máquina e, sobretudo,

criadores, descobridores,

reduzindo os espaços e paisagens

exploradores, empreendedores

da vida psíquica a um mínimo

(HOTTOIS, 2013, p.48)9. Para o autor,

existencial necessário à biopolítica.

não há oposição entre tecnociência

8

BENSAUDE-VINCENT, Bernadette. As Vertigens da Tecnociência: moldar o mundo átomo por átomo. Tradução José Luiz Cazarotto. São Paulo: Ideias & Letras, 2013.

9

HOTTOIS, Gilbert. Généalogies Philosophique, Politique et Imaginaire de la Technoscience. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2013.


150


151


152

e cultura. A tecnociência muitas

de aquisição da forma da matéria a

vezes é diabolizada, porque a

partir de um molde que, por sua vez,

cultura disponível não permite

o permitiu observar particularidades

simbolizá-la. Simondon é adepto

da eletrônica e da informação.

de uma religação entre natureza,

É o caso da cristalografia, que lida

humanidades e objetos técnicos.

com o problema dos limites dos

Ele foi um crítico das duas culturas

indivíduos físicos e sua abertura

apontadas por C. P. Snow. Pode-

para a singularidade, e o caso das

se dizer que aproximou filosofia

distâncias entre biologia e física,

da técnica, que é também uma

questão que antecipou a biofísica.

filosofia das tecnociências, filosofia

O personagem conceitual chave aqui

da natureza e ainda antropologia

não é Max Planck, nem Niels Bohr,

filosófica. Trata-se de pensar

nem Albert Einstein, e sim Louis

uma cultura tecnocientífica, com

de Broglie, que estabeleceu que

valorização e autonomia das técnicas,

os elétrons são tanto ondas como

relação marcada por liberdade e

partículas, dependendo do caso,

universalidade. Individuação técnica e

ou melhor, do tipo de individuação,

individuação humana são processos

segundo Simondon (RODRÍGUEZ,

que se misturam no âmbito das

s/d)11.

tecnociências. Em Simondon, as individuações Simondon pensa a questão

psíquica e coletiva não estão

tecnológica no contexto de uma

separadas das individuações vital e

teoria geral do vivo. A filosofia da

física. Os processos de individuação

técnica dele está situada em relação

se constroem incessantemente

aos processos de individuação.

junto aos processos de individuação

Dois de seus livros, de certo modo,

coletiva, em planos de individuação

são complementares: Du Mode

vital e física. Na individuação, os

d’Existence des Objets Techniques

papéis da percepção e da afetividade

e L’individuation à la Lumière des

funcionam como níveis de uma

Notions de Forme et d’Information.

ontogênese coletiva. Indivíduo,

De acordo com Rodríguez (s/d)10,

comunidade e sociedade não se

Simondon se deteve nas tecnologias

distinguem, senão por efeitos de

10 RODRÍGUEZ, Pablo Esteban. Individuar: de cristales, esponjas y afectos. Prólogo. In: SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Tradución Pablo Ires. Buenos Aires: Editorial Cactus, 2009. 11

RODRÍGUEZ, Pablo Esteban. Individuar: de cristales, esponjas y afectos. Prólogo. In: SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Tradución Pablo Ires. Buenos Aires: Editorial Cactus, 2009, p. 17.


153

superfície. As individuações para

suas aplicações. Por outro,

Simondon, portanto, se dão através

a tecnociência pode ser associada à

de modificações e passagens

pós-modernidade, e caracteriza-se

transindividuais e transcoletivas.

pelo primado da tecnologia sobre a

Nesse sentido, os territórios

ciência (BENSAUDE-VINCENT, 2013,

simondonianos da individuação

pp.17-18)12. Nos últimos trinta anos,

contemplam igualmente as

o termo ganha uma multiplicidade de

individuações psíquicas e coletivas,

sentidos.

e ao mesmo tempo, as individuações técnicas. As tecnociências contemporâneas compõem igualmente nossos modos atuais de individuar.

1.2 TECNOFOBIA HUMANISTA, TECNOFILIA HUMANISTA E TECNOFILIA EVOLUCIONISTA (GILBERT HOTTOIS – 1946)

O termo “tecnociência” aparece em meados dos anos 70. Ele designa a ciência contemporânea, expressando claramente o contraste com o projeto logoteórico, da ciência antiga, assim como com a representação ainda dominante da ciência moderna, que continua a assimilar esta a um empreendimento fundamentalmente teórico, independente da produção e da ação. (HOTTOIS, 2008, p.608).13

Hottois refere-se à Pesquisa e o Desenvolvimento Tecnocientíficos (PDTC) como uma grande rede que comporta a ausência de

Hottois tem lugar de destaque

hierarquia estável entre pesquisas,

na definição e compreensão da

o emaranhamento dinâmico das

tecnociência contemporânea. Ele

diferentes tecnociências, sua

contextualiza o termo já na década

capacidade dinâmica, ativa e

de 1970, investigando a convergência

produtiva, sua natureza processual,

progressiva entre ciência e tecnologia.

suas consequências econômicas e seus problemas éticos, sociais e

De acordo com Bensaude-Vincent,

políticos. O autor afirma ainda que

há divergência quanto às origens da

a PDTC está em interação constante

tecnociência. Por um lado,

com o meio simbólico e que por isto

o importante texto de Heidegger,

impõe as questões que conectam o

A Questão da Técnica, denunciava

tecnocientífico e a vida.

as orientações da ciência moderna e

12 BENSAUDE-VINCENT, Bernadette. As Vertigens da Tecnociência: moldar o mundo átomo por átomo. Tradução José Luiz Cazarotto. São Paulo: Ideias & Letras, 2013, pp. 17-18. 13 HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à Pós-Modernidade: uma história da filosofia moderna e contemporânea. Tradução Ivo Storniolo. Aparecida: Ideias & Letras, 2008, p. 608.


154

[...] a PDTC está em interação constante com o meio simbólico (cultural, social, psicológico, institucional etc.) no qual ela se desenvolve e que varia de uma região do mundo para outra. Desejos (fantasmas, esperanças, angústias) estão na origem, e as possibilidades que ela concretiza suscitam outros desejos, fantasmas, esperanças e angústias, assim como novos modos de vida. Essa interação do possível tecnocientífico e da vida simbólica se expressa com frequência sob a forma de doenças, inquietações, questões e problemas éticos. (HOTTOIS, 2008, p.609-610).14

A tecnofobia humanista situa a condição humana como finita e incapaz de ser superada. Ela aponta para os perigos advindos do avanço sobre a natureza e sua superação. A dignidade do ser humano está ligada a um desinvestimento do mundo e a uma valorização dos processos simbólicos em torno do indivíduo. A tecnofilia humanista, por seu turno, valoriza a relação com a técnica, lócus privilegiado de emancipação humana. Trata-se de uma perspectiva que aposta em uma cultura tecnocientífica

1.3 PROCESSOS DA TECNOCIÊNCIA SEGUNDO LATOUR (BRUNO LATOUR – 1947) Bruno Latour utiliza o termo tecnociência em 1983, com o objetivo de evitar a expressão ciência e tecnologia, ou mesmo para produzir uma diferença em relação ao campo tradicional dos estudos sobre ciência e tecnologia (FERREIRA, 2013)15. Ao se colocar a pergunta quem faz ciência, ele rompe com a dicotomia interno/ externo presente nos meios científicos. Latour aponta para as relações entre cientistas que estão nos laboratórios e os demais personagens que estão fora, mas diretamente vinculados ao fazer científico: professores, investidores, políticos, gestores etc. O autor desenvolve sete regras metodológicas que servem como diretrizes para a produção tecnocientífica, a saber:

universal. Já a tecnofilia evolucionista,

- a tecnociência tem uma dimensão

leva em consideração os processos

processual; controvérsias,

de evolução biocósmica; as

discussões e afirmações, podem ou

transformações da vida humana

não resultar em algo novo;

dependem da capacidade de

- uma teoria ou equipamento bem

intervenção no universo (HOTTOIS, 2008).

sucedido depende do julgamento que a sociedade faz de ambos;

14 HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à Pós-Modernidade: uma história da filosofia moderna e contemporânea. Tradução Ivo Storniolo. Aparecida: Ideias & Letras, 2008, pp. 609-610. 15 FERREIRA, Rubens. Ciência e Tecnologia no Olhar de Bruno Latour. http:www.uel.br/revistas/ informacao/. 19/09/2016.


155

é esta última quem legitima os

Portanto, tecnociência, de acordo com

produtos da tecnociência na vida

Latour (2011)16, diz respeito ao modus

cotidiana – há uma dependência

operandi da ciência em suas relações

entre ciência e sociedade;

com a sociedade, bem como às

- controvérsias geram representações da natureza, os discursos socialmente validados encerram controvérsias; - a tecnociência impõe a compreensão de um processo dinâmico e sincrônico através de diferentes pesquisas, e mesmo em épocas diferentes;

experiências como observador in loco.

1.4 TECNOCIÊNCIAS, GRAMATIZAÇÃO DA VIDA E PSICOPODER (BERNARD STIEGLER – 1952) De acordo com Stiegler, a tecnociência designa uma época na

- a quinta regra diz respeito ao

qual a ciência devém como função

fato do pesquisador direcionar

da economia. Ciência e técnica não

seu foco para dentro e para fora

estão separadas e ambas são afetadas

do laboratório, identificando os

pelas transformações oriundas de

diferentes atores que fazem ciência

cada uma. A tecnociência é um

– aí surge a noção de rede;

meio da ciência, meio de vida e

- para Latour, o pesquisador em tecnociência deve ater-se ao movimento e extensão da rede, de modo a compreender o que está em jogo e problematizar a linha tênue entre tecnociência e sociedade; - a sétima e última regra

de conhecimento. O meio técnico propicia um instrumento a serviço do saber. A ciência sempre assumiu uma técnica hypomnésica, e, portanto, nunca qualquer técnica pura, ao contrário do que tende a perguntar Platão, e depois dele tudo que se chama metafísica (STIEGLER; PETIT, 2013, p.437)17.

diz respeito aos registros e documentações das pesquisas e

A tecnociência diz respeito ao

aos modos como elas integram

contexto industrial da ciência e

redes de saberes.

aos processos de gramatização.

16 LATOUR, Bruno. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. Tradução Ivone C. Benedetti. 2ª Edição. São Paulo: Ed. Unesp, 2011. 17 La science a toujours supposé une technique hypomnésique, et n’a donc jamais été pure de toute technique, contrairement à ce que tend à poser Platon, et après lui tout ce que l’on appelle la Métaphysique. STIEGLER, Bernard. Pharmacologie du Front National. Suivi du Vocabulaire D’ars Industrialis (Par Victor Petit). Paris: Flammarion, 2013, p. 437.


156


157


158

O autor sustenta que uma das

relacional, acentuando o que

principais atividades científicas

Simondon chamava de um “meio

contemporâneas consiste

técnico-geográfico associado”,

precisamente na gramatização da

reconfigurando o que também

vida; o sequenciamento do DNA,

ele chamava de processos de

por exemplo, é um processo de

individuação psíquica e coletiva,

gramatização do vivo.

e transformando em tecnologias do espírito o que funcionava até então

Por outro lado, o psicopoder que

essencialmente como tecnologias de

opera nas sociedades de controle

controle. (STIEGLER, s/d)18.

tem por função a captação da atenção, sobretudo a partir das psicotecnologias que se desenvolveram com o rádio, com a televisão e com as tecnologias

2

LINHAS E PLANOS ENTRE DELEUZE, WHITEHEAD E SIMONDON (FLUXOS)

numéricas. A tecnociência incide sobre a atenção, como realidade da

Os três autores citados neste

individuação, tal como entendida por

subtítulo possuem uma concepção

Simondon. A destruição da atenção,

específica de ciência, desenvolvida

capacidade de se concentrar sobre

em momentos históricos distintos,

um objeto, é ao mesmo tempo a

e que teve grande importância para

destruição do aparelho psíquico e do

o pensamento e a filosofia, bem

aparelho social. São estes aparelhos

como diferentes desdobramentos

que se agenciam com os aparelhos

em outras áreas do conhecimento.

tecnológicos.

Apesar de suas diferenças, e do

A partir da gramatização da própria

reconhecimento que Deleuze faz

transindividuação psíquica e coletiva,

aos outros dois, valeria perguntar

passa-se das psicotecnologias às

como se coloca o problema das

sociotecnologias.

interfaces entre corpos e máquinas nos três pensadores. Em Deleuze

No contexto tecnocientífico, boa

encontra-se um percurso que vai

parte dos jogos da atenção, sua

das máquinas desejantes ao corpo

captura e destruição, se dá no

sem órgãos, passando pelos mapas

âmbito das redes sociais.

cerebrais; em Simondon encontrase uma evolução concomitante

As tecnologias numéricas formam

dos meios biológicos e dos meios

um novo meio tecnológico, reticular,

técnicos através da qual, corpos

18 STIEGLER, Bernard. O Que Faz Valer a Pena Viver. http://revolucoes.org.br/v1/seminario/ bernard-stiegler/o-que-faz. 30/09/2016.


159

e máquinas ocupam um mesmo

nos processos, indicam uma

plano ontológico; em Whitehead

teoria do desejo produtivo, pleno,

encontra-se um universo conceitual

corporificado e imanentizado.

diferenciado, porém alguns de seus

Um leitor de primeira viagem,

conceitos possam, talvez, indicar

um leitor ingênuo e por isso mesmo

alternativas para a questão corpos e

cheio de virtualidades, poderia

máquinas, conceitos como entidade

pensar que a máquina desejante

atual, entidade real, concrescência e

é uma máquina sociotécnica

objetos eternos).

capaz de desejar outra máquina, um humano ou um animal. E isso,

2.1 DELEUZE, AS MÁQUINAS E O CORPO SEM ÓRGÃOS

certamente, encontra-se no cenário contemporâneo das tecnociências. Pode-se tomar a máquina desejante como máquina que deseja, inscrita

Logo no início de O Anti-Édipo,

no modelo tradicional da ciência,

Deleuze e Guattari dão uma

em uma relação do tipo sujeito

definição para as máquinas

objeto. A máquina deseja, tal

desejantes: elas são máquinas

como na série americana Almost

binárias, com regra binária ou regime

Human ou no vídeo de parceria de

associativo, uma máquina acoplada

Chris Cunningham com a cantora

à outra. A máquina produz fluxos

Björk, intitulado The Erotic Life of

e outra, acoplada, faz cortes nos

Machines.

fluxos; de forma que a máquina desejante é fluxo, corte de fluxo,

Por outro lado, o trabalho de Richard

fluxo, e assim por diante. Há um

Lindner, muito conhecido pela obra

correr ou um escorrer permanente

Boy With Machine, materializa um

nos processos do desejo.

conjunto significativo de relações

Mas porque pensar o desejo como

entre máquinas e humanos no

fluxo, corte de fluxo ou máquina?

contexto da arte pop. O Menino

Sabemos que está em jogo uma

com Máquina mostra uma criança

literalidade que não dá espaços aos

articulada e acoplada ao conjunto

jogos significantes das metáforas.

de uma máquina técnica. Em outros

Pois bem, a ideia do desejo como

trabalhos do pintor e gravurista,

máquina é encarnada e desloca no

encontram-se uma série de

plano ontológico dos encontros,

conexões de máquinas, corpos,

o sentido, a temporalidade e a

grafismos, engenharias, que de certa

encarnação do desejo.

forma, fazem funcionar as máquinas desejantes.

O escorrer, o fluxo, o movimento, os deslizamentos e deslocamentos

As máquinas desejantes levam


160

ao corpo sem órgãos. Deleuze e Guattari afirmam que elas funcionam desarranjadas, desarranjando-se constantemente. O corpo sem órgãos é o improdutivo, o estéril, o inegendrado, o inconsumível20. Uma citação extraída de O AntiÉdipo acerca do corpo sem órgãos, pode ajudar na sua compreensão: Entre as máquinas desejantes e o corpo sem órgãos surge um conflito aparente. Cada conexão de máquinas, cada produção de máquina, cada ruído de máquina se tornou insuportável ao corpo sem órgãos. Sob os órgãos ele sente larvas e vermes repugnantes, a ação de um Deus que o sabota ou estrangula ao organizá-lo. “O corpo é o corpo/ ele está só/ e não precisa de órgão/ o corpo nunca é um organismo/ os organismos são os inimigos do corpo”. Tantos pregos na sua carne, tantos suplícios. Às máquinas-órgãos, o corpo sem órgãos opõe sua superfície deslizante, opaca e tensa. Aos fluxos ligados, conectados e recortados, opõe seu fluido amorfo indiferenciado. Às palavras fonéticas, ele opõe sopros e gritos, que são outros tantos blocos inarticulados. Acreditamos ser este o sentido do recalcamento dito originário: não um “contra investimento”, mas essa repulsão das máquinas desejantes pelo corpo sem órgãos. E é justamente isso que significa a máquina paranoica, a ação invasiva das máquinas desejantes sobre o corpo sem órgãos, e a reação repulsiva do corpo sem órgãos, que as sente globalmente como aparelho de perseguição.

Assim, não podemos seguir Tausk quando ele vê na máquina paranoica uma simples projeção do “próprio corpo” e dos órgãos genitais. A gênese da máquina paranoica ocorre precisamente aqui, na oposição entre o processo de produção das máquinas desejantes e a parada improdutiva do corpo sem órgãos. Dão provas disso o caráter anônimo dessa máquina e a indiferenciação de sua superfície. A projeção só intervém secundariamente, assim como o contra investimento, na medida em que o corpo sem órgãos investe um contra - dentro ou um contra - fora, sob a forma de um órgão perseguidor ou de um agente exterior de perseguição. Mas, em si, a máquina paranoica é uma mutação das máquinas desejantes: resulta da relação das máquinas desejantes com o corpo sem órgãos, na medida em que este já não pode suportá-las. (DELEUZE e GUATTARI, 2010, pp.2122)21.

As máquinas, segundo Deleuze e Guattari, se engancham no capital. O funcionamento delas depende do capital, como aliás fica bastante evidente no caso das relações entre técnica e ciência, atualmente configurada nas chamadas tecnociências. São três as sínteses que colocam em funcionamento as máquinas desejantes na superfície do corpo sem órgãos: síntese conectiva da produção, síntese disjuntiva do registro e síntese conjuntiva de consumo. A uma parte da energia

20 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010, p.20. 21 Idem, 2010, pp.21-22.


161

transformada na produção desejante

agenciam multiplicidades de

dá-se o nome de numen, que por sua

sentidos, estendendo-se do campo

vez se distribui no processo.

sóciotécnico ao campo do desejo e da pulsão. Deleuze e Guattari

Deleuze e Guattari afirmam que o

indicam a existência de máquinas

esquizofrênico passa de um código

técnicas, máquinas sociais, máquinas

a outro, que ele embaralha todos os

psíquicas, máquinas literárias,

códigos. Código delirante e código

entre outras.

desejante são termos conceitos que remetem ao funcionamento

Deleuze, leitor de Simondon, acolhe

maquínico. Por outro lado, Deleuze e

as ressonâncias do princípio da

Guattari tomam de Duchamp e Michel

individuação de Simondon em sua

Carrouges o curioso termo “máquinas

obra. Simondon tinha amor pelas

celibatárias”, isto é, máquinas

máquinas. O modo de produção

fantásticas presentes na literatura de

dos objetos técnicos e a filosofia

escritores como Kafka, Roussel, Jarry,

das máquinas, articuladas à tese da

Poe, Villiers, e outros, bem como no

individuação, permitiram a Deleuze

próprio trabalho de Duchamp.

recolocar os problemas das três

...Empreguemos o nome de máquina celibatária para designar essa máquina que sucede à máquina paranoica e à máquina miraculante, formando uma nova aliança entre as máquinas desejantes e o corpo sem órgãos, em prol do nascimento de uma humanidade nova ou de um organismo glorioso. Isso equivale a dizer que o sujeito é produzido como um resto, ao lado das máquinas desejantes, ou que ele próprio se confunde com essa terceira máquina produtora e com a reconciliação residual que ela opera: síntese conjuntiva de consumo, sob a forma maravilhosa de um ‘Então era isso!’. (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p.32).22

Pode-se afirmar que os conceitos de máquina e de corpo sem órgãos, presentes em O Anti-Édipo,

22 Idem, p.32.

sínteses, bem como pensar as lógicas desejantes a partir das ideias de fluxo e corte de fluxo. A questão das máquinas excede toda a mecânica. A máquina abstrata, por exemplo, é definida por Deleuze e Guattari como conjunto de matérias e funções: Isto se vê claramente num plano tecnológico: um tal plano não é composto simplesmente por substâncias formadas, alumínio, plástico, fio elétrico, etc., nem por formas organizadoras, programa, protótipos, etc., mas por um conjunto de matérias não formadas que só apresentam graus de intensidade (resistência, condutibilidade, aquecimento, estiramento, velocidade ou retardamento, indução, transdução...), e funções


162


163


164

diagramáticas que só apresentam equações diferenciais ou, mais geralmente, tensores. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.227)23

As categorias se dividem em três modalidades: categorias do último, categorias de existência e categorias de explicação. As categorias

2.2 AS TECNOLOGIAS NAS PAISAGENS CONCEITUAIS WHITEHEADIANAS

do último são três: criatividade

Alfred North Whitehead (1861 – 1947)

atuais; preensões ou fatos

construiu um poderoso esquema categorial no âmbito de uma ontologia e uma metafísica próprias, que lhe possibilitou pensar uma filosofia do organismo, a realidade como processo, a questão da mudança e da continuidade na perspectiva dos devires, a ordem e o conhecimento da natureza, o espaço e o tempo, e a ideia de Deus como chave

(creativity), muitos (many) e um (one). As categorias de existência são oito: entidades atuais ou ocasiões concretos de realidade; nexos ou realidades públicas; formas subjetivas ou realidades privadas; objetos eternos ou potenciais puros para a determinação específica do fato, ou ainda formas de definição; proposições ou realidades em determinação potencial, ou potenciais impuros para a determinação específica de realidades, ou ainda teorias;

explicativa da natureza.

multiplicidades, ou disjunções puras

O esquema categorial é composto

ou modos de sínteses ou entidades

dos seguintes eixos: noções divergentes e fundamentais ao esquema categorial, categorias do último, categorias de existência, categorias de explicação e obrigações categoriais. As noções divergentes e fundamentais ao esquema categorial são quatro, a saber: entidade atual ou ocasião atual, preensão, nexo ou realidade pública e princípio ontológico.

de entidades diversas; e contrastes, em uma preensão única. As categorias de explicação são vinte e sete, as obrigações categoriais são nove; todas estão descritas no opus magnum de Whitehead. Após contextualizar o esquema categorial whiteheadiano, pode-se perguntar onde entra a questão tecnológica. De acordo com Ferré

23 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1997, p.227 (Coleção TRANS).


165

(2004)24, o ponto principal é a relação entre tecnologia e liberdade.

2.3 APROXIMAÇÕES CONCEITUAIS

Ela propicia ao homem a possibilidade de se livrar de

Em Simondon pode-se encontrar

trabalhos forçados e propicia

a evolução concomitante dos

igualmente uma liberdade cívica

meios biológicos e dos meios

e social. A liberdade de ação é a

técnicos, através dos quais, corpos

primeira necessidade humana.

e máquinas ocupariam um mesmo plano ontológico. Há todo um

De acordo com Ferré25, Whitehead

conjunto de tipologias maquínicas

afirma que os seres humanos

na Filosofia da Tecnologia de raiz

percebem as tecnologias de seu

francesa. Jacques Lafitte (1884

tempo como senseless agencies.

– 1966) divide as máquinas em

À razão de Platão, se contrapõe a

passivas, ativas e reflexas. Raymond

razão de Ulysses, isto é, a prática

Ruyer (1902 – 1987) caracteriza sua

técnica. Esta por sua vez gera

tipologia em máquinas de cálculo,

desenvolvimento tecnológico,

máquinas de raciocínio, máquinas

mistura da razão prática com a razão

de indução e máquinas de auto

especulativa. Para o autor,

regulação. Gilbert Simondon, por

a tecnologia é uma força histórica.

sua vez, em elementos, indivíduos e conjuntos técnicos26.

Há inúmeras possibilidades para se pensar a questão tecnológica

No esboço conceitual de

no âmbito do esquema categorial

aproximação entre Simondon,

de Whitehead. A questão corpos e

Whitehead e Deleuze, pode-se

máquinas, como dito acima, pode

detectar linhas conceituais de

valer-se de conceitos como entidade

convergência, tal como estabelecido

atual, entidade real, concrescência e

no quadro a seguir:

objetos eternos.

24 FERRÉ, Frederick. Whitehead and Technology. In: POLANOWSKI, Janusz e SHERBURNE, Donald. Whitehead’s Philosophy: points of connection. New York: State University of New York Press, 2004. 25 Idem, 2004, p.199. 26 ILIADIS, Andrew. Mechanology: Machine Typologies and the Birth of Philosophy of Technology in France (1932-1958). Disponível em: www.systema-journal.org/article/view/398/333. Acesso em: 18/11/2016.


166

PLANO DE APROXIMAÇÕES CONCEITUAIS

3 O PROBLEMA CORPOS E MÁQUINAS (MÁQUINAS)

é a relação de menor intensidade, e a fusão, a de maior intensidade. A interface evidencia-se quando interagimos com máquinas e objetos

3.1

CORPOS E MÁQUINAS NO ÂMBITO DAS CONVERGÊNCIAS TECNOLÓGICAS ATUAIS

técnicos. O cotidiano de boa parte da população contém a questão das interfaces. As acoplagens, por seu turno, caracterizam-se por um processo de cyborguização do

No âmbito das convergências

humano; é o caso, por exemplo, dos

tecnológicas atuais, propomos

chips, sobretudo cerebrais, e dos

considerar quadro formatos para as

microadesivos. Já as incorporações,

relações entre corpos e máquinas,

evidenciam-se nos casos das

a saber: interfaces, acoplagens,

próteses e dos tecidos orgânicos.

incorporações e fusões. A interface

Por último, as fusões; elas consistem


167

do grau mais elevado das relações

a dia de pessoas idosas em países

entre corpos e máquinas; no

como o Japão. Os aviões, desde os

momento, trata-se da possibilidade

irmãos Wright e de Alberto Santos

do encontro completo entre

Dumont, modificaram as lógicas dos

corpos e máquinas, das máquinas

transportes humano e de carga, por

humanizadas ou dos corpos

todo o planeta.

maquínicos. Devires maquínicos a

Os celulares, inicialmente

romper completamente as barreiras

objetos para conversação, hoje

entre natureza e cultura, entre sujeito

são multifuncionais e alteraram

e objeto, entre vida e morte.

significativamente a sociabilidade

Em jogo nos quatro formatos,

humana.

a questão do trânsito entre o lógico e o sensível. As interfaces e as

Um caso especial de interface corpo

acoplagens mantêm o predomínio

máquina é a prática ainda incipiente

do lógico. As incorporações e fusões

da estimulação transcraniana por

caminham para o predomínio do

corrente contínua (ETCC), que

sensível. No momento em que a

consiste na aplicação de uma

máquina for capaz de sentir,

pequena corrente elétrica na cabeça

o processo estará completo.

para estimular áreas específicas

É possível pensar que a humanização

do cérebro27. Com uma origem

das máquinas e o maquinismo

que remonta aos terríveis ECTs

dos humanos andem na mesma

(eletroconvulsoterapias), o ETCC

velocidade e em sentidos contrários.

se utiliza de pequena dosagem da ordem de um ou dois mil

O caso das interfaces entre corpos e

amperes. A estimulação ativa o

máquinas está presente, por exemplo,

cérebro criando uma sensação de

na relação que estabelecemos

vivacidade e melhora dos focos

com computadores, robôs, aviões,

atencionais. Nesse caso, a discussão

celulares e outros objetos técnicos.

gira em torno da melhora da função

Os computadores modificaram

cognitiva por estimulação elétrica,

a lógica da transmissão de

ao mesmo tempo em que entra

informações. De tecnologia militar,

em concorrência com a indústria

está presente no cotidiano e nos

farmacêutica, no tocante à produção

domicílios, mundo de telas a se

de metilfenidato, estimulante leve

multiplicar por todos os espaços e

do sistema nervoso central, de larga

tempos. Os robôs, de uso industrial,

utilização social, como no caso do

passaram a ocupar igualmente o

uso da ritalina para tratamento do

cenário doméstico, como é o caso

transtorno do déficit de atenção e

daqueles que acompanham o dia

hiperatividade (TDAH).


168


169


170

As acoplagens, por seu turno,

As incorporações podem ser

envolvem algum tipo de colagem,

exemplificadas com próteses

introdução ou implantação

corporais e tecidos orgânicos.

de objetos técnicos no corpo

Tome-se o caso da modelo e atleta

humano. É o caso dos biochips,

Aimee Mullins, que nasceu com um

implantados sob a pele da mão,

problema raro na formação óssea

que utilizam tecnologia RFID, isto é,

das pernas e teve que amputá-las

identificação por radiofrequência.

com apenas um ano de idade.

O biochip permite abrir portas,

Quebrou recordes do atletismo na

catracas, disponibilizar dados em

paraolimpíada de Atlanta (1996) e

casos de acidentes, mas precisa

fez uma das aberturas dançantes

estar conectado com bases

da paraolimpíada do Rio de Janeiro

transmissoras . Do ponto de vista

(2016). Foi modelo e trabalha junto à

político, as acoplagens ajudam a

indústria de próteses; é uma espécie

problematizar a questão do controle

de ativista da transformação de

dos corpos, ela gera a sensação de

discursos e imagens da deficiência

controle por parte de usuário,

em discursos e imagens da

e ao mesmo tempo, lança a questão

vantagem competitiva,

do controle externo, por algo

das potencialidades performáticas

ou alguém externo a uma dada

dos corpos. O corpo orgânico

situação. Microadesivos presos às

incorpora a perna protética30.

orelhas promovem algo parecido:

Igualmente pode-se considerar

através de um eletrodo auricular,

incorporações, os implantes de

um conjunto de sensores EEG

tecidos orgânicos como pele,

captura os sinais cerebrais através

cartilagem, olhos, rins, dentes,

da orelha do usuário; a conexão com

bexiga, coração, fígado.

28

um computador foi testada com utilização de fios e com previsão

Por último, as fusões, sonho pós-

para wireless, o sinal é captado e

humanista e transhumanista de

amplificado pelo computador, que

recriação maquínica completa do

o interpreta através de algoritmos;

orgânico, máquinas capazes de

o computador é controlado pelo

sentir, pensar, viver, espécie de

pensamento do usuário .

criação total do homem, presente

29

28 Ver:http://delltecnologiasdofuturo.ig.com.br/para-empresa/brasileiro-implanta-biochip-nocorpo/. 29 Ver:http://www.em.com.br/app/noticia/tecnologia/2015/06/14/interna_tecnologia,657975/ microadesivos-presos-a-orelha-permitem-controle-de-dispositivos-eletro.shtml 30 Ver: https://www.ted.com/talks/aimee_mullins_prosthetic_aesthetics?language=pt-br e http:// www.deficienteciente.com.br/2010/08/exemplo-de-superacao-aimee-mullins.html.


171

nas artes, sobretudo na literatura

por câmeras de vigilância urbanas,

e no cinema de ficção científica.

é bem provável que estas mesmas

Um exemplo é o caso do artista

câmeras modifiquem o movimento

Stelarc, pseudônimo de Stelios

do corpo humano. Da mesma

Arcadiou, nascido no Chipre, autor

forma, o pensamento é afetado pela

de diferentes obras e performances

disponibilidade das informações

nas quais experimenta-se a extensão

na rede mundial de computadores.

robótica do corpo humano.

O olhar altera o que é visto, em consonância com as alterações de

Trata-se de experimentar tecnologias

intensidade do olhar de quem olha.

completamente integradas ao

Do ponto de vista da experiência,

corpo, como sua suspensão

acredita-se que as tecnologias

através de ganchos, sua conexão

do andar, do pensar e do olhar

por estimuladores eletrônicos de

engendram novas possibilidades de

músculos conectados à internet,

subjetivação. Contudo, vale perguntar:

sua terceira mão e terceiro braço

qual a natureza destas modificações,

robóticos, uma máquina de andar

em que elas se diferenciam de

pneumática semelhante a uma

dispositivos anteriores e posteriores,

aranha, e ainda o implante de uma

quais os efeitos psíquicos, coletivos

orelha em seu braço esquerdo,

e políticos que as novas tecnologias

através de cirurgia.

mobilizam no cenário de aceleração da

31

vida cotidiana, onde máquinas estão

3.2

CORPOS E MÁQUINAS EM TECNOLOGIAS DO PENSAR, DO ANDAR E DO OLHAR

acopladas aos organismos, e espaços e tempos são reinvestidos pela tecnociência? Nesse trabalho investigamos três

Nesta pesquisa, trata-se de perguntar

questões em torno das tecnologias

pelas tecnologias do pensar, como por

do pensar: a inteligência artificial,

exemplo computadores; tecnologias

a questão do corpo no âmbito das

do andar, como próteses e tecidos

tecnologias digitais e as máquinas

orgânicos; ou ainda tecnologias do

espirituais. A inteligência artificial

olhar, como câmeras de vigilância;

consiste no esforço de se produzir

modificam as composições homens

uma inteligência similar à humana,

máquinas. Como elas afetam a

através de softwares, sistemas e

subjetividade? Elas engendram,

dispositivos computacionais.

produzem, reinventam modos de

Trata-se de máquinas com capacidade

vida. Se o corpo humano é vigiado

de raciocínio, de aprendizagem,

31 Ver: http://stelarc.org/?catID=20247.


172

de reconhecimento de padrões e

[...] as máquinas tecnológicas de

de inferências. Do ponto de vista

informação e de comunicação

histórico, a IA, como é popularmente

operam no núcleo da subjetividade

reconhecida, tem entre seus

humana, não apenas no seio das

idealizadores, nomes como os de Alan

suas memórias, da sua inteligência,

Turing, Herbert Simon, Allen Newell,

mas também da sua sensibilidade,

John McCarthy, Warren McCulloch,

dos seus efeitos, dos seus fantasmas

Walter Pitts e Marvin Minsky.

inconscientes.

A inteligência artificial forte considera

É preciso perguntar de qual corpo se

que é possível criar uma máquina

fala quando ele é pensado a partir de

consciente e que os sistemas artificiais

tecnologias digitais. Esboça-se aqui

podem replicar uma mentalidade

apenas a perspectiva de que o corpo

humana. Na perspectiva da pesquisa,

é experimentado de maneira inédita

a questão da inteligência artificial

quando de sua completa virtualização

coloca em jogo os aspectos interativos

e que não é possível estabelecer

entre corpos e máquinas, em especial

paralelos com a organicidade.

a aprendizagem. Se os sistemas binários e lógicos serão capazes de

As máquinas espirituais, objeto de

produzir um ser maquínico autônomo,

estudo de Ray Kurzweil33, estudioso

não se pode ter certeza, mas há uma

da tecnologia, combina uma curiosa

evolução interessante do problema

fusão entre sensibilidade humana

no âmbito da inteligência artificial

e inteligência artificial, através

experimental, através de abordagens

da robótica e da implantação de

conexionistas e de sistemas neurais.

nanobots no sistema nervoso. Para o autor, a distinção entre o humano e a

Computadores e redes móveis

máquina tende a tornar-se imprecisa,

impactaram os relacionamentos

e os resultados da tecnocientificização

humanos nos últimos anos. Parte

sinalizam maior capacidade de

significativa das comunicações

memória, informações mais rápidas

humanas em diferentes áreas

e diretas, e ainda a produção da

da existência tornou obsoleta a

consciência na máquina. As máquinas

presença do corpo humano em seus

espirituais seriam o resultado dessa

processos. As tecnologias digitais que

indiferenciação, ou mesmo fusão,

transformam linguagens em números

entre o pensamento humano e o

ou códigos facilitaram o intercâmbio

pensamento maquínico.

virtual. De acordo com Guattari32, 32 GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 2006, p.14. 33 KURZWEIL, Ray. A Era das Máquinas Espirituais. Tradução Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2007.


173

As tecnologias do andar referem-se

são avaliados: tamanho do passo,

inicialmente aos projetos voltados para

velocidade, postura, silhueta da pessoa

a possibilidade de paraplégicos ou

etc. Tecnologia de controle explícita,

tetraplégicos voltarem a andar através

o sistema se utiliza de câmeras

da utilização de um exoesqueleto

comuns de vigilância das ruas de

movimentado pelo cérebro do

Tóquio para identificação das pessoas.

sujeito que o veste. Uma das grandes

O programa tanto pode ser utilizado

pesquisas que trabalham com a ideia

na busca de pessoas identificadas ou

é a de Miguel Nicolelis, que dirige o

na procura por desaparecidos.

Duke’s Center for Neuroengineering

Trata-se de uma cartografia do

e o Instituto Internacional de

movimento humano para fins de

Neurociências de Natal Edmond e

controle. Contudo, seu uso poderia

Lily Safra. Nicolelis trabalha com a

ter outros destinos, como no campo

perspectiva de união entre o cérebro

da saúde, em especial na fisioterapia.

e a máquina. O projeto Walk Again

34

viabilizou que um tetraplégico pudesse

As tecnologias do olhar, por sua

dar o pontapé inicial da Copa do

vez, apresentam longa história de

Mundo no Brasil. Comandos cerebrais

seus desenvolvimentos na história

de um paciente são captados por

ocidental, desde o panóptico

eletrodos e retransmitidos para

de Bentham ao atual jogo de

um equipamento tecnológico

entretenimento conhecido como

computadorizado. Este conta com

Pokémon Go. De grande aplicação

dispositivos que devolvem à pessoa

nos sistemas de vigilância, militar

a informação de pisar no chão,

e civil, as tecnologias do olhar

através de sinais vibratórios no braço.

se distribuem pelas sociedades,

Primeiro a experiência foi realizada

impactando a comunicação e a

em laboratório, em uma espécie de

transmissão de textos e imagens.

caminhada virtual; e posteriormente,

Contudo, o regime de visibilidade,

utilizado o exoesqueleto para passos

como diria Foucault, o regime das

reais. Outro exemplo é a pesquisa do

imagens, em grau acentuado de

Museu de Ciências e Tecnologias de

profusão, parece entrar em conflito

Tóquio35, sob responsabilidade do

com os regimes de memória.

professor Yasushi Yagi, que produz

Se o armazenamento pode ser

em uma passarela, registros do

melhorado pelo aumento de sua

movimento corporal ou do modo

capacidade, por outro lado, seu

de andar das pessoas. Oito pontos

manejo humano parece cada vez

34 Ver: https://www.youtube.com/watch?v=1IEIzyaG108. 35 http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2015/10/japoneses-criam-metodo-para-identificarpessoas-pelo-jeito-de-andar.html.


174


175


176

mais se circunscrever a bolhas digitais, como é o caso do Facebook. O corpo real dá lugar ao corpo performático, circunscrito nos

4 VIDA NO UNIVERSO, VIDA PSÍQUICA E VIDA NA LITERATURA (UNIVERSOS)

registros de curtir e compartilhar. O plano de mútua afetação entre Outro exemplo de tecnologia do

tecnociências e subjetividades

olhar é o sistema de segurança

materializa-se em desdobramentos

por câmeras nos centros urbanos

em diferentes áreas e campos.

de cidades brasileiras. Ele produz

Do ponto de vista da individuação

o curioso efeito de empurrar para

psíquica e transcoletiva, anotamos

outras áreas das cidades, grupos

quatro desses desdobramentos:

populacionais específicos. Mesmo

o desaparecimento da interioridade

quando o sistema parece prover a

e o fim do “eu”, a redução

sensação de segurança, ele promove

das margens da experiência

uma captura de imagens que torna

intersubjetiva, a exterioridade

ainda mais vulnerável pessoas e

completa e a conexão permanente

grupos. O monitoramento eletrônico

e, por fim, a produção de um corpo

dos espaços públicos produz

vibrátil virtual. A experiência interior

movimentos e comportamentos

e a constituição de “eus”, gestadas

específicos, que respondem às

na modernidade, parece dar lugar

expectativas do controle público

a uma vida experimentada apenas

ou privado. Não há tecnologia sem

no exterior, em um fora completo

impacto social e subjetivo. Do objeto

caracterizado por conexões em

técnico mais simples e funcional

tempo integral. Os processos das

aos atuais sistemas de controle por

tecnociências geraram diferentes

imagens, temos um longo percurso

reações entre tecnofóbicas e

que modificou a relação do homem

tecnofílicas, gramatização da vida e

com o ambiente, com a natureza,

captura pelo conexionismo global.

com a técnica e consigo próprio.

O primeiro e o terceiro

É nos âmbitos ético, comum e

desdobramento estão interligados

democrático, que algumas dessas

na medida em que o terceiro invade

transformações necessitam ser

o primeiro. Do ponto de vista

pensadas.

relacional, nota-se uma redução dos espaços daquilo que configurou, no mesmo período, a experiência da intersubjetividade. A indiferenciação ontológica entre homens, corpos e máquinas teve,


177

por um lado, o aspecto positivo do

tecnociências concentra a feroz

descentramento de si, e por outro,

disputa das vantagens econômicas,

a supervalorização dos

por outro lado, ele coloca

determinantes técnicos da

interessantes problemas sobre

existência. O corpo interativo das

a existência, a sobrevivência e a

relações corpos e máquinas, que

capacidade de re-fabricar o humano,

se manifesta no conexionismo

redesenhar o corpo, reinventar a

generalizado, contém potências

subjetividade. Nesse sentido, a arte

de variação e recriação, nos jogos

faz algo parecido, quando investiga

de virtualização e atualização,

as forças e as formas em jogo na

que se estabelecem nos cenários

fabricação do humano,

contemporâneos. Pode-se falar de

do corpo e da subjetividade.

um corpo vibrátil virtual?

Campo de afetação e linhas que se

A expressão remete ao conceito

cruzam permanentemente,

estabelecido por Rolnik (2006),

e que colocam a todo momento

onde ele apreende a alteridade em

questões políticas e éticas,

sua condição de campo de forças

deixando ao pensamento o desafio

vivas que se afetam, presentes

de problematizar os cenários

através das sensações, e na qual o

tecnocientíficos do presente.

outro faz parte de nós mesmos. Os quatro desdobramentos acima dizem respeito à vida psíquica, com consequências políticas, culturais, sociais, econômicas etc. No processo de misturas e transformações por que passam as sociedades atuais, a fabricação da vida psíquica não se faz sem os modos intensivos de afetação que a vinculam com a ciência e a arte, melhor dizendo, com as tecnociências e com as diferentes expressões do campo estético. No limite das questões tecnocientíficas está o problema da vida no universo; e em um dos limites da arte, estão os problemas da expressão, do imaginário e da escrita. Se o mundo prático das


178

REFERÊNCIAS BENSAUDE-VINCENT, Bernadette. As Vertigens da Tecnociência: moldar o mundo átomo por átomo. Tradução José Luiz Cazarotto. São Paulo: Ideias & Letras, 2013. CHATEAU, Jean-Yves. Le vocabulaire de Simondon. Paris: Ellipses, 2011. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988. DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução Luiz Orlandi. Campinas: Papirus, 1991. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010. (Coleção TRANS). DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1997. (Coleção TRANS). DEROO, Emeline. “On the Effects of a Fictitious Encounter between Alfred North Whitehead and Gilbert Simondon”. In: Petrov, Vesselin (Ed.). Ontological Landscapes: Recent Thought on Conceptual Interfaces Between Science and Philosophy. Germany: Ontos Verlag, 2011. FERRÉ, Frederick. Whitehead and Technology. In: POLANOWSKI, Janusz e SHERBURNE, Donald. Whitehead’s Philosophy: points of connection. New York: State University of New York Press, 2004. GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 2006. HOTTOIS, Gilbert. Do Renascimento à Pós-Modernidade: uma história da filosofia moderna e contemporânea. Tradução Ivo Storniolo. Aparecida: Ideias & Letras, 2008. HOTTOIS, Gilbert. Généalogies Philosophique, Politique et Imaginaire de la Technoscience. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2013. KASS, Leon. Beyond Therapy: biotechnology and the pursuit of happiness. New York: Harper Perennial, 2003. KURZWEIL, Ray. A Era das Máquinas Espirituais. Tradução Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2007. LATOUR, Bruno. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. Tradução Ivone C. Benedetti. 2ª Edição. São Paulo: Ed. Unesp, 2011.


179

RODRÍGUEZ, Pablo Esteban. Individuar: de cristales, esponjas y afectos. Prólogo. In: SIMONDON, Gilbert. La Individuación a la Luz de las Nociones de Forma y de Información. Tradución Pablo Ires. Buenos Aires: Editorial Cactus, 2009. ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2006. SIMONDON, Gilbert. Du mode d’ existence des objets techniques. Paris: Éditions Aubier, 1989. (Philosophie). SIMONDON, Gilbert. L’individuation à la lumière des notions de forme et d’information. Grenoble: Éditions Jérôme Millon, 2005. STIEGLER, Bernard. Pharmacologie du Front National. Suivi du Vocabulaire D’ars Industrialis (Par Victor Petit). Paris: Flammarion, 2013. WHITEHEAD, Alfred North. O conceito de natureza. Tradução Júlio B. Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1993. (Coleção Tópicos). WHITEHEAD, Alfred North. A função da razão. Tradução Fernando Dídimo Vieira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985. (Coleção Pensamento Científico, 11). WHITEHEAD, Alfred North. Process and Reality. Corrected Edition. Gifford Lectures; 1927-28. New York: The Free Press, 1985.

DOCUMENTOS ELETRÔNICOS: FERREIRA, Rubens. Ciência e Tecnologia no Olhar de Bruno Latour. Disponível em: http:www.uel.br/revistas/informacao/. Acesso em: 19/09/2016.

HOTTOIS, Gilbert. La Technoscience: de l’origine du mot à ses usages actuels. Recherche en soins infirmiers 2006/3 (Nº 86), p.24-32. Disponível em: https://www. cairn.info/revue-recherche-en-soins-infirmiers-2006-3-page-24.htm. Acesso em: 09/02/2016. MASSUMI, Brian. “Technical Mentality Revisited: Brian Massumi on Gilbert Simondon”. Parrhesia number 7, 2009, 36-45. Disponível em: http://parrhesiajournal.org/ parrhesia07/parrhesia07_massumi.pdf. Acesso em 30/09/2016. STIEGLER, Bernard. O Que Faz Valer a Pena Viver. Disponível em: Acesso em: http:// revolucoes.org.br/v1/seminario/bernard-stiegler/o-que-faz. Acesso em: 30/09/2016.


180


181


182


183

VERSOS DE LIBERDADE E VENTURA DE SER Breno Brede1

CANCELADO O VERSO

Cancelado o verso Em tempo de palavras magras Os famintos se esquecem da fome De tão áridos os corações O próprio o medo some No silêncio da torra o verbo se racha Onde brotava rima, nem sentido resta Essa ordenha mísera que agora lê É o restante de um sonho distante A semear corações férteis pensantes E também o desjejum de um poeta retirante.

1

Artista gráfico, multimídia e poeta.


184


185


186

SEM TÍTULO Esse coração danado que tem a gente, Se dana a descobrir a diferença entre seus pares e um estranho. Já é muito difícil saber quem eu sou. Saber quem é o outro seguramente seria um luxo, uma ousadia. Narciso sabia muito bem... a definição de intruso, qualquer um que não eu. Qualquer outro ser que não eu, um estranho, um desconhecido que insiste em se intrometer no meu pequeno mundo. Assim, o que dá razão à convivência com o outro? O amor, diriam os mais corajosos... Um elo mágico para o que nunca pareceu dar certo, conviver com o outro. Amor… Esse conceito virtual. [alguém já o viu?] Mas e quando você olha pro seu par e se surpreende com uma intriga mental, aquela pergunta narcísica, “quem é”? Que pensamento perturbador e inconveniente. É um indício? A evidência de um fato? Certamente uma prova clara para os descrentes… o desamor. Isso explica muita coisa, pois o desamor poderia justificar o ódio. Mas e para os que creem? Nunca ousariam colocar o amor em suspeição. A pergunta que para seus opositores seria uma conclusão, para os que creem não passa de uma intriga. Uma charada, no entanto, em que a matemática não se aplica.


187

Por que é sempre mais difícil para os devotos? Desses, os mais otimistas diriam que é um amor bem verdadeiro aceitar alguém que não é você. O que é amar um desconhecido? De repente é fé. Fé se dedica ao divino, diriam os descrentes. Mas o que eles sabem sobre fé? Essa fé, humildemente descoberta por este devoto que vos escreve, é a fé dedicada ao outro. Otimistas chamariam de amor.


188


189

Os temas, as perspectivas e entendimentos sobre os mesmos,

apresentados por membros da Comunidade Acadêmica e Administrativa

ou convidados desta casa nesta publicação, são de responsabilidade do autor,

nem sempre expressando os valores e orientação filosófica e teológica

da PUC Minas e da Reitoria.


190


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.