CIDADES: TEM GENTE AQUI

Page 1

1

ANAISDASCAP CIDADES: TEM GENTE AQUI


2


3


4


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Unidade São Gabriel

VI SEMANA DE CIÊNCIA, ARTE E POLÍTICA Belo Horizonte, 8 de setembro de 2014

ANAIS DA SCAP CIDADES: TEM GENTE AQUI

Belo Horizonte 2014


6

FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Semana de Ciência, Arte e Política (6. : 2014. : Belo Horizonte, MG) S612a Anais da SCAP: cidades: tem gente aqui / Organização Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero. Belo Horizonte: PUC Minas, 2014. 173 p.: il. ISSN: 978-85-8239-022-1 1. Ciência e civilização – Congressos. 2. Direito urbanístico. 3. Urbanização. 4. Economia urbana. 5. Cidadania. 6. Identidade Social. I. Quintero, Elisa Cristina de Oliveira Rezende. II. Título.

CDU: 711.4


7


8

EXPEDIENTE

Secretário de Comunicação:

Prof. Mozahir Salomão Bruck

Organização:

Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero

Edição:

Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero

Fotografia:

Henrique Cacique Iana Domingos Izabella Dutra Mariana Oliveira Paulo Cantalice Pedro Quintero Thainá Nogueira Vítor Brandão

Projeto Gráfico e Direção de Arte:

Prof.ª Dulce Maria de Oliveira Albarez

Diagramação:

Prof.ª Dulce Maria de Oliveira Albarez

Revisão:

Prof. Mário Francisco Ianni Viggiano


9

Grão-chanceler:

Reitor:

Vice-reitora:

Dom Walmor Oliveira de Azevedo Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães Prof.ª Patrícia Bernardes

Chefia de Gabinete da Reitoria:

Prof. Paulo Roberto de Sousa

Assessor Especial:

Prof. José Tarcísio Amorim

Pró-reitores:

Prof.ª Maria Inês Martins (Graduação)

Prof. Wanderley Chieppe Felippe (Extensão)

Prof. Sérgio de Morais Hanriot (Pesquisa e de Pós-graduação)

Prof. Paulo Sérgio Gontijo do Carmo (Gestão Financeira)

Prof. Rômulo Albertini Rigueira (Logística e de Infraestrutura)

Prof. Sérgio Silveira Martins (Recursos Humanos)

Secretário de Comunicação:

Prof. Mozahir Salomão Bruck

Secretária de Cultura e Assuntos Comunitários:

Secretário Geral:

Prof.ª Maria Beatriz Rocha Cardoso Prof. Ronaldo Rajão Santiago

Secretário de Planejamento e Desenvolvimento Institucional:

Prof. Carlos Barreto Ribas

Pró-reitor Adjunto da PUC Minas no São Gabriel:

Prof. Alexandre Rezende Guimarães

Diretor Acadêmico da PUC Minas no São Gabriel:

Prof. Cláudio Listher Marques Bahia

Coordenadora de Extensão da PUC Minas no São Gabriel:

Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero

Assessora de Extensão da PUC Minas no São Gabriel:

Prof.ª Luciana Fagundes da Silveira

Coordenadora de Pesquisa e Pós-graduação da PUC Minas no São Gabriel:

Prof.ª Aline Mendes Aguiar Vilela

Coordenador da Pastoral da PUC Minas no São Gabriel:

Frei Mário da Paixão Taurinho

Assessora de Comunicação da PUC Minas no São Gabriel:

Michelle Stammet


10

EDITORIAL A Semana de Ciência, Arte e Política

que são produzidos por demandas

(SCAP) da PUC Minas no São

globais, que pressionam a vida local

Gabriel propicia a integração entre

e modificam o modo cotidiano de

diferentes grupos interlocutores

vida do cidadão. O direito à cidade

da Universidade, de outras

passa pela valorização do espaço

instituições de ensino superior e

público urbano, acessível a todos,

entidades científicas, como também

como um lugar de aprendizado

trocas entre diversas áreas de

da vida comum, onde se praticam

conhecimento formal e informal,

novas maneiras de convivência e

promovendo a interdisciplinaridade,

de respeito. As cidades hoje se

a integração entre os cursos

constituem como o ponto crucial

da Unidade e a interação da

onde o futuro da humanidade é

comunidade universitária com a

decidido e de onde teremos a

comunidade externa. A SCAP

resposta à pergunta: podemos viver

se consolidou como o principal

juntos?

evento de extensão da Unidade São Gabriel com ações potencializando

As cidades tornaram-se mercadoria.

o relacionamento da Unidade com

No atual estilo de vida, o de livre

seu entorno e oferecendo novas

mercado onde economia e consumo

oportunidades de aproximação.

são livres, existe uma pressão para que tudo se torne commodities.

O tema da VI SCAP foi “o direito

Nesse quadro, usufrui da cidade

à cidade” e teve como foco a

quem tem como pagar e quem

relação da urbanização com o

não tem como pagar passa a ser

sistema econômico e de quem se

considerado supérfluo. Como explica

beneficia com o atual modelo – o

o sociólogo Zygmunt Bauman em

de colonizar espaços para os ricos e

seu livro “Confiança e Medo nas

isolar em áreas distantes os menos

Cidades”. Segundo o autor, no

favorecidos.

passado, a Europa podia utilizar o resto do mundo como depósito

As cidades de nosso tempo

da população supérflua que era

tornaram-se o palco de embates

“descarregada” em terras distantes.


11

Hoje, a população supérflua é

qualquer outra parte do planeta.

produzida em todos os lugares

Ao contrário dos cidadãos “da última

porque o mesmo modelo econômico

fila”, condenados a permanecer no

predomina em todos os países.

mesmo lugar. Bauman descreve em seu livro a presença da mixofobia

A sensação de impotência diante

nas cidades, nome dado ao medo

dessa dinâmica e estrutura das

das pessoas de estarem junto com

cidades produz um sentimento

estranhos e diferentes. Ele defende

crescente de medo e insegurança.

a importância das cidades de

Para Bauman, os medos modernos

promoverem as possibilidades de

tiveram início com a redução do

mixofilia, o encontro e convívio entre

controle estatal da economia e o

diferentes e acredita que as cidades,

fim do estado de bem-estar social.

como laboratórios de descoberta e

Com o enfraquecimento dos estados

experimentação de soluções para

e fortalecimento dos mercados, a

os problemas globais, deveriam

solidariedade foi substituída pela

incrementar a mixofilia e diminuir a

competitividade.

mixofobia.

A alta competitividade produz uma classe de excluídos praticamente

Assim, a tarefa acadêmica da

irrevogável, o que os transforma em

Universidade e a responsabilidade

“classes perigosas”. Para Bauman,

sociocultural da Semana de Ciência,

as elites nas cidades, que ele se

Arte e Política (SCAP) da PUC

refere como pessoas da “primeira

Minas, Unidade São Gabriel fica

fila”, não se identificam com a

documentada nestes Anais: Cidades

cidade, não estão preocupadas

- tem gente aqui, constituídos

com as questões da cidade, não

numa valorosa reflexão crítica a

possuem vínculos comunitários

partir de uma coletânea de artigos,

com o local, nem compromissos.

ideias e discussões apresentados e

Trata-se de pessoas com recursos

desenvolvidos durante a realização

globais, conectadas com as redes

da VI SCAP.

mundiais, e quando o local não mais lhes atende, podem se deslocar para

Leiam e reflitam.

Prof. Cláudio Listher Marques Bahia Diretor Acadêmico da PUC Minas no São Gabriel Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Coordenadora de Extensão da PUC Minas no São Gabriel


12


13

ÍNDICE EDITORIAL

Cláudio Listher Marques Bahia

Elisa C. O. Rezende Quintero 10

CIDADES: TEM GENTE AQUI

Maria Elisa Baptista 14

ANOTAÇÕES NAS MARGENS: ENCLAVES FORTIFICADOS E INSCRIÇÕES POÉTICAS NA POLÍTICA

Maria Luísa Magalhães Nogueira

30

ANÔNIMO

Pedro Quintero e Vitor Brandão

62

O ESCRITOR E A CIDADE: HORIZONTE BELO E TRISTE

Raquel Beatriz Junqueira Guimarães

68

POR MEIO DESTA” Izabella Dutra, Paulo Cantalice, Thainá Nogueira

86

PAISAGENS URBANAS: UMA DISCUSSÃO INTERDISCIPLINAR

José Wanderley Novato Silva

92

UM MUNDO ONDE TUDO É AO CONTRÁRIO

Amanda Marina Lima Batista

120

CIDADES: A ESPACIALIZAÇÃO DA PAISAGEM CULTURAL

Cláudio Listher Marques Bahia

130

“VENHO


14

CIDADES:

tem gente aqui Maria Elisa Baptista1

Palavra larga e funda, cidade.

tudo isso, se tornam possíveis.

Diz muitas coisas, e a mais bela:

É o lugar onde os direitos abstratos

que há gente aqui. Essa a cidade

se concretizam, mas, mais que

republicana, uma cidade onde

isso, é o lugar onde a consciência,

todos os moradores são cidadãos

a reivindicação e a luta por esses

e todos os visitantes são tratados

direitos toma forma2.

como cidadãos. Uma cidade em

E isso não é pouca coisa.

que a ideia de cidadania é vivida no sentido amplo dos direitos,

A nossa vida se dá em uma

dos deveres, das garantias e das

paisagem cultural que é construída,

alegrias. Direitos que, abrigados no

habitada e mutável. Saber quem

guarda-chuva do direito à cidade

somos depende de nossa memória,

e do direito à moradia, são direitos

daquilo que estrutura e que compõe

territoriais.

a nossa identidade3. E a memória depende, todo o tempo, de fios que

O território é o lugar onde as

fazem uma história, uma pequena

políticas de habitação,

história de cada um, ou a história

de mobilidade, de saneamento,

maiúscula de um povo. Os lugares e

e também as políticas de educação

os objetos guardam essa capacidade

e de saúde, parte indissociável de

evocadora da memória, e é por isso

1 Professora da PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9319880330064921 2 David Harvey nos pergunta como o direito à cidade pode ser exercitado pela mudança da vida urbana e nos dá a resposta simples de Lefebvre: “por meio da mobilização social e da luta política/social” (HARVEY, David. A liberdade da cidade. In: MARICATO, Ermínia [et al]. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013, p. 31). 3 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.


15


16


17


18

que dependemos de lugares,

Uma qualidade da boa cidade,

de coisas, para manter viva a nossa

aquela que nos acolhe e nos diz

identidade. Dependemos de nossas

não só quem somos, mas o que

ruas e praças, e dos edifícios que as

podemos ser, é o que chamamos

cercam, para sermos quem somos.

de vitalidade urbana, uma condição indispensável da vida humana, vida

E a cidade depende de como se

que é urbana por excelência.

mora, para saber que cidade é.

A vitalidade é uma linha mediadora

Morar é a única função da cidade

entre a apatia e a excitação, uma

que diz respeito, sem exceção,

conjugação e um equilíbrio de

a todos nós. Morar é um uso

ações, de atividades e de fruição.

arraigado no solo. Vai depender do

O principal componente são as

relevo, do tipo de solo, do caminho

pessoas. O estímulo e o interesse

das águas, do jeito mais fácil ou mais

suscitados pela presença das

difícil de fazer chegar a água e a

pessoas são infinitos. Não por acaso,

eletricidade, de escoar o esgoto.

as mesas dos cafés nas calçadas

É preciso morar perto, perto da

são mais frequentadas que as do

escola, do posto de saúde, do

interior dos salões e os bancos mais

parque, da praça, do trabalho, da

procurados são os que desfrutam da

padaria, perto dos amigos,

vista para o movimento das pessoas.

do cinema. No entanto, o termo revitalização, O que está perto pode ser função

um termo urbanístico em voga,

da distância, função do tempo ou

pode se referir tanto à recuperação

função da qualidade do percurso.

de qualidades arquitetônicas e

Cumprimos nossas atividades

urbanísticas preexistentes,

necessárias, não importa muito a

à recriação de atrativos esquecidos,

qualidade do caminho ou o sacrifício

à recuperação de áreas degradadas,

a ser feito: as crianças vão à escola,

quanto à completa mudança de

nós vamos à farmácia, à padaria ou

usos e usuários sob a mesma

ao trabalho, faça chuva ou faça sol.

casca romântica dos edifícios. O

Mas caminhar por prazer, sentar à

resultado, catastrófico no meu modo

porta ou sair a passear depende do

de entender, é o enobrecimento

desejo, do clima, das condições do

dessas áreas revitalizadas, como

lugar e dos caminhos.

vimos em tantas cidades, a expulsão

Vai precisar do acesso seguro,

das camadas populares e sua

da rua boa de caminhar, do ônibus

substituição pelas camadas médias e

logo ali.

altas. Recuperam-se as coisas e perdem-se as pessoas.


19


20


21


22

Não se trata apenas das grandes

pessoas de conviver e compartilhar

obras, das grandes intervenções,

atividades com desconhecidos,

mas da rua comum. A rua comum

em espaços onde modos de

é a rua em sua simplicidade

sociabilidade acordados regulam

cotidiana, importante apenas para

o uso coletivo e substituem, assim,

seus moradores e transeuntes, sem

as hierarquias, as obrigações e os

pretensões de representar a história

direitos familiares6.

da cidade, mas apenas abrigar a vida comum do homem simples.

Em ambientes que abrigam diversidade, o convívio social

A extensão do conceito de vitalidade

urbano, um convívio que é ocasional,

a um atributo do espaço parte do

fortuito, sem continuidade na

entendimento do espaço como algo

intimidade da vida privada, esse

estruturável, mutável e produzido

convívio baseado na urbanidade,

socialmente . Quando dizemos um

aumenta o grau de tolerância

lugar animado, uma cidade viva ou

ao desconhecido, ao diferente

uma rua morta, estamos percebendo

e ao inesperado. E essa é uma

a cidade como um organismo

característica da urbanidade

vivo, capaz de se modificar

que Jane Jacobs percebia

incessantemente5. A vitalidade de

como a grande qualidade das

um espaço pode ser entendida

grandes cidades: poder sentir-se

como sua capacidade de animação,

seguro, sentir-se bem em meio a

motivada pelas relações sociais que

desconhecidos7. A diversidade é,

aí têm lugar e condicionada pelos

também, potencialmente, explosiva,

atributos espaciais de cada lugar.

possibilitando o enfrentamento e o

4

eventual acordo das visões distintas Ora, a vitalidade do espaço público

sobre aquilo que é um bem comum:

relaciona-se ao vigor da esfera

a cidade8.

pública, ao desejo e ao hábito das 4 MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2008. 5 ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. São Paulo: Ática, 2000. 6 ELLIN, Nan. Integral urbanism. New York: Routledge, 2006 7 O sociólogo Richard Sennett associa o esvaziamento dos espaços públicos à dominância dos valores da vida privada sobre os valores políticos e sociais da vida pública. Para entender o Brasil, Sérgio Buarque de Holanda fala de nossa extensão continuada da vida privada e das relações patrimonialistas à esfera do estado e do espaço público. 8 JACOBS, Jane. The death and life of great American cities. New York: Vintage Books, 1992 (©1961).


23


24


25


26


27

A vitalidade é a qualidade urbana

o caminhão de lixo. No entanto, as

mais ameaçada pelo modo como

possibilidades de reconhecimento

nossa sociedade lida com seus

e de interlocução social com os

antagonismos. Pelo medo da

vizinhos dependem de certo grau

violência, um medo generalizado,

de animação, do movimento que

a sensação de insegurança resulta

impele as pessoas a se demorarem

no enclausuramento das atividades,

um pouco mais à porta da casa, do

no cerceamento do tempo e no

grau de contato entre o espaço da

esvaziamento dos espaços de fato

casa e a rua, e do convívio ocasional

públicos, impedindo o aprendizado

possibilitado por essas interações9.

do convívio com os outros.

A animação, e a segurança decorrente dela, dependem,

Há, para cada tipo de rua, um tipo

também, da inteligente mistura de

ou um grau de vitalidade desejável,

usos que pode garantir movimento

composto por ingredientes cujas

em horas diferentes do dia e da

características e dosagem geram

noite, e que garanta uma supervisão

ambientes urbanos favoráveis às

informal dos espaços pelos

atividades que ali se desenrolam.

habitantes daquele lugar.

Assim, uma rua calma garante aos seus moradores a tranquilidade

A imagem de ruas animadas e

necessária para a vida doméstica,

cheias de vitalidade ilustra a ideia

desde que se sintam seguros ao

da cidade como lugar do encontro

chegar ou sair de casa, ao percorrer

e da festa, uma ideia que define

o trajeto necessário até o ponto

a cidade como o habitat humano

de ônibus, a estação de metrô, a

por excelência10. O encontro não

escola, a padaria ou o trabalho.

implica, necessariamente, pensar

A animação adequada a essa rua

do mesmo modo, nem ter os

será, provavelmente, a dos próprios

mesmos hábitos, mas compartilhar

moradores em seu movimento

alguns valores, confrontando

cotidiano de ir e vir, das crianças no

suas próprias diferenças. O lugar

trajeto para a escola, e dos serviços

do encontro é, assim, também o

aí prestados, o carteiro, o medidor

lugar da diversidade e o lugar do

das fornecedoras de gás, água,

acordo. Nesse sentido, habitar é

9 ver HARVEY, David. A liberdade da cidade. In: MARICATO, Ermínia [et al]. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013. 10 GEHL, Jan. La humanización del espacio urbano: la vida social entre los edificios. Barcelona: Reverté, 2004 (©1971). HERTZBERGER, Herman. Lições de arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1996 e Space and the architect: lessons in architecture, 2. Rotterdam: 010 Publishers, 2000.


28

um processo de transformação

enquanto um caminho descuidado,

da realidade e de elaboração de

um edifício de grande feiura, cantos

uma identidade própria em meio à

ameaçadores nos desconcertam e

diversidade e ao acordo social.

indispõem contra os outros.

E é um processo educativo, em que

Que tipo de adultos serão as

nos formamos e reestabelecemos

crianças criadas nas cidades de

constantemente as relações que

muros altos encimados por arame

regem a sociedade.

farpado?

É essa experiência, a experiência

Penso que só a construção de um

de compartilhar lugares e eventos

novo olhar, um olhar nosso para

urbanos, que contribui, em alguma

nós mesmos11, um olhar lúcido que

medida, para a educação, para a

se oponha ao culto da fatalidade12,

sociabilidade, aquilo que se aprende

que enfrente a exploração e a

no convívio com o outro, entre as

especulação13, um olhar que mire

paredes da rua. Assim, uma face

o horizonte e nos faça caminhar

convidativa de um edifício, uma rua

passo a passo14, um olhar que não

amena, a sombra de uma árvore,

se desespera, mas age, pode nos

ou janelas que antecipam alegrias

conduzir na construção de cidades

nos fazem pessoas melhores,

republicanas.

11 Para o arquiteto Norberg-Schulz, habitar, que é a função primordial da vida humana, significa “encontrar outros seres humanos para trocar produtos, ideias e sentimentos, para experimentar a vida como uma multidão de possibilidades” NORBERG-SCHULZ, Christian. Habiter: vers une architecture figurative. Paris: Electa, 1985, p. 7. 12 SANTOS, Boaventura de Souza. 13 CAMUS, Albert. Os quatro pilares da imprensa livre. O manifesto de 1939, censurado à época, foi publicado pela primeira vez em 18 de março de 2012 pelo jornal Le Monde, e em 25 de março de 2012 pelo jornal Folha de São Paulo, com tradução de Paulo Werneck. 14 “Não se projeta nunca para mas sempre contra alguém ou alguma coisa: contra a especulação imobiliária e as leis ou autoridades que a protegem, contra a exploração do homem pelo homem, contra a mecanização da existência, contra a inércia do hábito e do costume, contra os tabus e a superstição, contra a agressão dos violentos, contra a adversidade das forças naturais; sobretudo, projeta-se contra a resignação ao imprevisível, ao acaso, à desordem, aos golpes cegos


29

dos acontecimentos, ao destino. Projeta-se contra a pressão de um passado imodificável, para que sua força seja impulso e não peso, senso de responsabilidade e não complexo de culpa. Projeta-se contra algo que é, para que mude; não se pode projetar para algo que não é; não se projeta para aquilo que será depois da revolução, mas para a revolução, portanto contra todo tipo e modo de conservadorismo. É portanto impossível considerar a metodologia e a técnica do projetista como zonas de imunidade ideológica. A sua metodologia e a sua técnica são rigorosas porque ideologicamente intencionadas. A ideologia não é abstrata imagem de uma futura catarse, é a imagem do mundo que tentamos construir lutando: planejando não se planeja a vitória mas o comportamento que nos propomos manter na luta”. ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. São Paulo: Ática, 2000, p.53. 15 “La utopía ella está en el horizonte. Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. ¿Para qué sirve la utopía? Para eso sirve: para caminar”. Fernando Birri citado por Eduardo Galeano.


30

ANOTAÇÕES NAS MARGENS: enclaves fortificados e inscrições poéticas na política Maria Luísa Magalhães Nogueira1

Pela primeira vez na história da

sempre nela. Não “estranhamos”

humanidade a população urbana é

tampouco o modo como vivemos

superior à rural. Vivemos na cidade,

– juntos, mas isolados – na cidade.

mas não nos perguntamos muito

Não sabemos bem o que significa

sobre o que é esse objeto, que anda

viver na cidade e, tampouco, como

tão na moda. Naturalizamos essa

proceder para que essa vivência seja

nossa experiência cotidiana, inclusive

representativa e produtora de um

com seus dissabores e medos, com

projeto social interessante.

seus deslocamentos monótonos, em que a cidade parece ser só apenas

Ao contrário, viver na cidade tem

um plano a ser atravessado de um

sido significado como viver mal

lugar a outro. Notamos, mas não

– poluição, segregação, medo,

questionamos, as construções e

violência e, por isso, viver na cidade

destruições inúteis, analisadas nas

tem se transformado em viver na

obras de Henri Lefebvre (2008)

cidade evitando a cidade... assim,

que alteram nossas cidades, com

vamos produzindo e reinventando

velocidade impressionante, e as

espaços de recusa ao urbano, os

tornam cada vez mais distantes de

chamados enclaves fortificados

nós mesmos, ainda que estejamos

(CALDEIRA, 2011).

1 Professora do Departamento de Psicologia da UFMG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0658721467035688


31


32


33


34


35

Podemos enxergar na literatura fantástica de Ítalo Calvino alguns ecos importantes para os estudiosos do espaço urbano, que em nossa contemporaneidade, tomam emprestadas as descrições dAs cidades invisíveis, visitadas pelo viajante Marco Polo a serviço do imperador Kublai Khan. O livro é inescapável provavelmente por sua capacidade de traçar imagens em que vemos as cidades da cidade. Suas páginas nos convidam a ver como cada cidade contém diversas cidades, e como vamos produzindo composições diversas a partir da materialidade do espaço e das subjetivações que imprimimos nessa relação. Sobre Irene, uma cidade que fica na extremidade de um planalto, Marco Polo conta que viajantes, pastores, eremitas, passarinheiros, sempre olham para cidade, falam dela, ficam fascinados.

nome diferente; talvez eu já tenha falado de Irene sob outros nomes; talvez eu só tenha falado de Irene (CALVINO, 1990, p. 114/115).

O texto de Ítalo Calvino fala de várias coisas ao descrever a relação de Irene, seus habitantes e seus não moradores. As diversas cidades da cidade contêm, cada uma, de alguma maneira, o todo da cidade, em metonímia. Pensamos as cidades compostas por partes que comportam o todo, todo feito de partes não desconexas e que se sobrepõem. Ao falar de condomínios fechados, falamos da cidade? O modelo de isolamento e desconexão da cidade, presente no condomínio fechado, prolifera e passa a ser o modo de vida desejado em vários estratos sociais, morar nas margens da cidade, distantes do outro de mim. Nesse cenário, já não sabemos

A esta altura, Kublai Khan espera que Marco diga como é Irene vista de dentro. E Marco não pode fazê-lo: não conseguiu saber qual é a cidade que os moradores do planalto chamam de Irene; por outro lado, não importa: vista de dentro, seria uma outra cidade; Irene é o nome de uma cidade distante que muda à medida que se aproxima dela.

porque nos acostumamos aos

A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali; uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez, outra é a que se abandona para nunca retornar; cada uma merece um

status (CALDEIRA, 2011).

muros. Por que admiramos, do lado de fora e desejamos esse modelo tão obscenamente segregativo? Os muros são para o lado “de fora”, para o outro, diferente. Antes, por causa dele. Muros cada vez mais altos, que não nos incomodam, servem como forma de visibilizar o

Como nos aprisionamos? Quanto mais buscamos a proteção frente ao outro, mais nos sentimos


36


37


38

invadidos e ameaçados.

medo; a indústria da (in)segurança;

Quanto mais nos fechamos às

o espetáculo da violência.

desestabilizações necessárias à invenção, ao desenvolvimento, à subjetivação, mais limitamos nosso potencial de ação e de produção subjetiva. Vamo-nos sufocando entre o portão, a câmera, a insígnia da vigilância (MUNTADAS, 2008), a espetacularização da violência. As utopias desabam quando se conformam em objetos de consumo. Não é a utopia que os condomínios

Essas tecnologias incluem a ubiquidade dos muros, sua inserção em complexos sistemas de vigilância e distinção, privatização e comoditização da segurança e a naturalização de mecanismos de controle. Essas novas tecnologias do público tornaram a desigualdade e a segregação naturais. O público que elas criaram, inerentemente desigual, não apenas distancia grupos sociais, mas trata essa separação como desejável (CALDEIRA, 2011, p. 217).

fechados querem vender? Em formatos variados, dentro e fora

O excesso de conforto produz uma

da cidade, verticais ou horizontais,

anestesia. O que mais? Como esses

para elite e todos que nela se

arranjos urbanos povoam nossas

espelham, multiplicam-se imagens

subjetivações e nossa fundante

paradisíacas desse modo de viver

experiência de alteridade?

bem, aparentemente tão seguro,

Cabe sublinhar: a previsibilidade que

confortável, previsível, garantido.

parece ser exclusividade de outros

Nessas cidades repletas de muros,

universos, como a matemática ou a

em que o espaço público vem sendo

física, pode ser sempre questionada

cercado, feitas de moradias que não

quando percebemos como nossa

dialogam com a rua, sem varandas,

percepção, demasiadamente

sem janelas dando para rua, sem

humana, é capaz de atravessar tais

praças, sem um território coletivo

previsibilidades aparentes.

para conversas e cumprimentos, vamos destruindo nossas reservas de delicadeza, como sugere Maria Rita Kehl (2011). Há um quê de espetacularização nesse esparramar de cercas. Há a visibilização escancarada e assumida — e às vezes festejada — da segregação: a tecnologia e a arquitetura do

Um exemplo interessante, que inspira o título desse texto, é a história do Último teorema de Fermat2. Esse teorema, derivado de Pitágoras, conta um pouco da história da matemática, esse mundo tão marcado por controle, segurança, previsibilidades

2 A história do teorema e sua demonstração recente, pelo matemático britânico Andrew Wiles, é relatada no livro O Último Teorema de Fermat de Simon Singh (1994).


39


40


41


42


43

fundantes e, mesmo assim,

que interagem com tais universos

tão sujeito aos dissensos e surpresas

– essas somos nós; mesmo se

próprias do encontro entre

não efetivamente frequentamos

diferenças.

condomínios, habitamos, em maior ou menor medida, essa proposta

O matemático Pierre de Fermat

de privatização que o condomínio

afirmou, no século XVII, nas margens

sintetiza.

do livro Arithmetica de Diofanto, referindo-se a uma derivação

Deste modo, trata-se de entender

de Pitágoras: “Encontrei uma

como esses são processos que

demonstração verdadeiramente

vão sendo interiorizados como

maravilhosa disto, mas esta margem

justificativas e desculpas sinceras, no

é estreita demais para contê-la.”

cotidiano concreto e material, por

(SINGH, 1994). Por mais de trezentos

todas essas pessoas, moradores ou

anos, a afirmação do cientista

não de condomínios, por nós, em

francês desafiou a comunidade

maior ou menor medida, independe

matemática e foi motivo de diversos

do CEP ou do tamanho do muro

dissensos e polêmicas, envolvendo

que nos cerca, nós que estamos

promessas de prêmios, a interrupção

todos submersos em desejos de

de um suicídio planejado (pois

separação, conforto, previsibilidade e

o suicida teve uma ideia sobre

segurança. O condomínio é apenas a

o teorema e perdeu a hora do

ponta mais visível, a síntese, o sonho

suicídio) e carreiras dedicadas à

– uma superfície inexaurível. O que

busca da solução prometida por

se passa nessa profundeza, em que

Fermat. Apesar dessa breve alusão

mergulhamos, é o empobrecimento

à matemática, o que interessa aqui

da experiência subjetiva, pois a

é colocar em relevo que mesmo

produção de subjetividade demanda

a previsibilidade dos números é

desestabilização. Demanda encontro,

afetada pela subjetivação que

diferença, a vivência ampliada da

inventamos.

alteridade, o acaso, a surpresa, a invenção. Todos esses ingredientes

Esse texto não é sobre matemáticos

do urbano.

e previsibilidade, do mesmo modo, não é sobre os moradores de

Ora, temos esvaziado as ruas e,

condomínios fechados, com seus

em seguida, reclamamos que não

portais e seguranças armados,

são seguras? E as reclamamos

seus muros e o acesso a ilhas de

só para nós, os nossos – cuidado

segurança. Esse texto não é sobre

com as nossas crianças. Tornamos

sua “maligna” população, pois não

as praças secas (LOPES, 2009,

se trata de demonizar as pessoas

p. 181), perdemos a medida da


44


45


46

desordem, da entropia necessária

que eram antes próprios da cidade

ao movimento do mundo e à

– o comércio (o mercado), a troca,

mobilidade humana. Esvaziamo-nos

o lazer, o encontro. Assim, vamos

do contato com o outro. Limitamos

esvaziando a cidade e alimentando

caminhos e experiências. Inventamos

sua representação de lugar perigoso

e fortalecemos inimigos. Tornamo-

a ser evitado. Como se a vida na

nos reféns desse imaginário, de

cidade fosse essencialmente ruim.

nossos medos. Estancamos as

A propaganda de um prédio num

trocas. Transformamos a experiência

bairro sobrevalorizado de Belo

da cidade em experiência de medo.

Horizonte informa: Aqui, a vida fora

Tornamo-nos imunes ao conflito,

do comum.

insensíveis à heterogeneidade e fazemos da voz do outro apenas

O que se diz nessa afirmação?

um ruído (RANCIÈRE, 1996), tal

Cabe já sublinhar esse paradoxo

como descreveu Jacques Rancière

em que nos metemos: o

em sua discussão sobre política.

outro nos é fundamental, mas

Assim, tornamo-nos refratários ao

desejamos eliminar a diferença.

desconhecido, ao desconfortável,

A homogeneidade do aqui em

ao outro. A materialização e a

contraponto ao “resto”, onde a vida

proliferação da cerca e do muro

é comum, requer a capacidade

é a concretização de nossas

de dissolver diferença em

estratégias de privação de

semelhança, ou, então, o outro

contato, de aceitação apenas do

extremo, transformar a diferença

que é semelhante a nós mesmos,

em dispositivo discriminatório.

a constante homogeneização,

Tal afirmação demanda, ainda,

alteridade cosmética e confortização

esfumaçar a potência da cidade

(NOGUEIRA, 2013). A alteridade

enquanto espaço de alteridade.

cosmética se apresenta na produção de territórios urbanos em que a

Em São Paulo, o Complexo Cidade

exposição não se dá, onde não há

Jardim reúne torres residenciais,

convite à leitura da cidade, pois ela

comerciais com acesso direto ao

já está decifrada. Não cabe invenção,

Shopping Cidade Jardim que,

troca. Essa dimensão cosmética

por sua vez, não está dotado de

serve ao encobrimento das

acesso aos pedestres.

marcas, refere-se à contenção das

Nesse shopping, cujo slogan afirma

diferenças, do risco, da resistência,

isto é inédito, não há entrada para

dos antagonismos.

pedestres; chega-se de carro, como forma de favorecer a exclusividade

Nesse processo, o shopping center transportou para seu interior usos

que o centro comercial propõe.


47


48


49


50


51

Há pelo menos duas vias

Ainda assim, a psicossociologia

interessantes para se pensar a

sublinha: “Ora, a vida em comum

relação com o outro. A psicanálise é

é perigosa, tumultuada, ela destrói

a primeira via que nos vem à mente,

continuamente os pontos de

posto que Freud sempre colocou

referência, propõe sempre novas

em questão como as manifestações

aventuras” (ENRIQUEZ, 2005,

sensíveis de todos nós, por caminhos

p. 166). Fica claro que controlar

mais ou menos bem estruturados,

a desestabilização que o outro

estão articuladas ao processos de

provoca implica extinguir, em si

entrada do sujeito na cultura.

mesmo, a abertura ao novo.

Em seus textos, aqueles

No entanto, não existimos sem o

reconhecidos como sociais,

outro, simples assim:

o autor tentava explorar mais a fundo suas preocupações com a intersubjetividade. Não à toa, o autor demonstrou pouco otimismo com reação ao futuro desse projeto social que nos constitui, ainda que tenha dedicado poucas reflexões sobre nossa constituição como seres de falta (questão que parece ser vista de modo essencialista pelo fundador da psicanálise e, mais fatalmente, por muitos de seus seguidores). Ele chega, em 1921, a desenhar uma interessante descrição do que chamou de narcisismo das pequenas diferenças3, que justifica arranjos em que o outro é visto e usado pelo viés da desqualificação. Essa radicalização do outro, no entanto, não é levada como questão, mas como fato – o que deixa de fortalecer a teoria.

E cabe acrescentar que o próprio sujeito se constitui como sujeito pela existência do outro: é porque um outro nos ama, nos fala e nos olha que nós existimos enquanto sujeitos humanos. Sem a presença dos outros, nós não poderíamos aceder à humanidade (ENRIQUEZ, 2005, p. 163).

Ainda que a diversidade ameace a estabilidade psíquica, paradoxalmente, é a diferença que a constitui em sua natureza individual. A presença do outro em nós é incontestável e fundamental. Reconhecer a diferença do outro não pode ser esvaziá-lo de sua alteridade. Se os vínculos humanos estão carregados de hostilidade, conforme observa a psicanálise, não se trata de querer apagála, mas, antes, de tomá-la como integrante do processo civilizatório – reconhecê-la em mim, suportá-la,

3 Sobre narcisismo das pequenas diferenças: “Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade. [...] Dei a isso o nome de narcisismo das pequenas diferenças” (FREUD, 2010 [1930], p. 60).


52


53


54


55

proceder à modelagem de nossos meandros. O conflito intersubjetivo detonado neste contato é inerente à nossa sociedade. Não é possível ignorar, abstrair ou dissociar nada desse processo. Entretanto, parece que estamos insistindo em criar modos de nos tornarmos alheios ao desconforto que o outro nos provoca – de fato, um desconforto sobre nós mesmos. Isso se passa justamente porque o outro é capaz de revelar nossas limitações, uma vez que projeto nele aquilo que rejeito em mim, e ele passa a servir como eixo para a articulação de um mecanismo de defesa, em que o objetivo é anular o “mal” em mim mesmo, admitindo-o exclusivamente como característica do outro. Há outros caminhos teóricos, além da psicanálise, para se pensar a alteridade, igualmente potentes. As reflexões de José Saramago, no discurso de Estolcomo de 1998, quando o escritor foi reconhecido com Prêmio Nobel, descrevem bem como suas personagens, criaturas, são, simultaneamente, capazes de fazê-lo outro, tanto quanto seus avós. Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e esta minha avó Josefa [...] tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira

de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem horizontes, como quem vai recriando, por cima do instável mapa da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver. [...] Ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro modo construtoras da minha vida, estava, sem o perceber, a traçar o caminho por onde as personagens que viesse a inventar, as outras, as efectivamente literárias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante e no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que é defeito mas também naquilo que é excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei. Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais do que um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa não conseguiram passar, a existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não tinha chegado a ser. (SARAMAGO, 1999, p. 17)


56

Vemos aqui tanto a importância da

mortífero” (ENRIQUEZ, 2004, p. 51).

atividade, que, numa perspectiva

Por isso, uma reflexão sobre as novas

vygotskiana, vai favorecer com

e antigas formas de resistência no

que possamos nos apropriar da

urbano não é dispensável.

cultura enquanto, simultaneamente, vamos nela nos objetivando – o que

Se as possibilidades de condição

confere uma consistência objetiva

de lugar estão reduzidas, como

à subjetividade e explicita nossa

nos enclaves fortificados,

conexão social inescapável.

cabe reconhecer que, antes, são indeléveis. Não se trata

Podemos pensar, ainda, na dimensão

de simplesmente demonizar o

de poder que atravessa nossa

que parece homogeneizado. É

relação com a diferença. Ao mesmo

obrigatório pensar sobre como

tempo que a diferença nos é

fazer face à especulação urbana,

fundante, ela nos desgasta. Ambas,

à paranoia, aos novos fascismos

identidade e diferença precisam ser

e à despolitização das práticas

pensadas dentro dos sistemas de

cotidianas. Trata-se de buscar os

significação, sugere Tomas Tadeu

respiros de singularidade capazes

da Silva (2003), o que inclui a

de se fazerem sentir mesmo no seio

linguagem, sua instabilidade e seus

da padronização e do controle, do

jogos de poder. A identidade pode

conforto e da alteridade cosmética.

funcionar como uma norma, crivo

Lembrar o desejo pela cidade

através do qual o outro é visto e

porosa, pela heterogeneidade,

interpretado. Porém, esse crivo foi

pelo movimento. Carregamos em

constituído socialmente.

nós a privatização, não a sofremos simplesmente. Resistir, então, é

Subordinar-se à homogeneização

agir contra nossas referências

é esquivar-se da subjetividade que

tradicionais, estar abertos ao outro,

se processa como singularização

à diferença, ao imprevisto, ao acaso,

e devir, é aceitar que ela seja

ao risco.

apenas depositária de fórmulas de identidade. A homogeneização

Se, por um lado, temos a

é incapaz de compor o elo

proliferação dos espaços

fundamental entre eu e outro. Assim,

homogeneizantes, por outro, vemos

a redução substancial dos encontros

uma redescoberta da importância

e, logo, da alteridade, apresentada

do espaço público (é interessante

por esses arranjos urbanos nunca é

a titulação de movimentos com

total. Não pode ser, pois “recusar o

o termo occupy), o que não é

outro seria cair no narcisismo mais

nada desprezível (HARVEY, 2012).


57

Afinal, os espaços públicos livres,

Trata-se de um respiro e a evidência

imprevistos, concretos e mesmo

de que não perdemos a capacidade

periféricos (livres da centralidade)

de imaginar cidades?

sustentam o reencantamento constante da vida urbana, como

Essas são ações pequenas, efêmeras,

evidenciam trabalhos como o de

frágeis e despretensiosas (ou não),

João Texeira Lopes, Sophie Watson,

mas são cumulativas. Umas dão

Richard Sennet, Paola Berestein

força e sentido para as outras,

Jacques, Regina Helena Alves da

traçando na nossa compreensão

Silva, no campo da academia.

uma leitura mais crítica do que se

Mas é isso também que a arte

passa no mundo, até que a gente

aponta, com muita insistência hoje

comece a se perguntar e a revindicar

em dia, em suportes diversos.

a cidade para nós. Como os convites propostos por tais ações, podemos

Vemos a proliferação de

ir passando do registro do já-dado,

intervenções artísticas que

ao campo aberto das possibilidades.

sublinham a importância das cidades

Como temos feito, felizmente.

para as pessoas, que recusam o

Ainda que não seja fácil. Aos poucos,

modelo da cidade mercadoria

temos começado a perceber que

que se tenta instituir em Belo

fazer um piquenique na praça

Horizonte, onde a arte, instalações,

não é proibido e, mais, é muito

performances, ações disruptivas,

interessante. A experiência num

vem se acomodando aos poucos na

espaço aberto, como numa praça,

compreensão dura de sociedade.

é qualitativamente muito diferente da experiência que temos num

Em Belo Horizonte, as lãs coloridas

espaço fechado, na praça de

que interligam as pessoas e a praça;

alimentação do shopping.

o homem que come as rosas com

Aos poucos, vamos tomando a

a etiqueta 8 de março e oferece as

cidade de volta. A arte na rua tem

hastes apenas aos outros homens

o poder de ativar nossa memória

passantes na Praça 7; a moça que

sobre para que/quem serve a

distribui panfletos em que se lê

cidade. Vamos redescobrindo que

10 maneiras incríveis para “perder

a condição opressora da cidade

tempo” com um bottom “perca

não é sua natureza, ao contrário,

tempo agora, pergunte-me como”;

as cidades floresceram como

mas há também aquele que, na

alternativa à servidão feudal,

aridez da praça da estação, sobe

a resistência e a política lhe são

numa escadinha de alumínio e,

fundantes.

lá de cima, abre um guarda-sol, oferecendo sombra à fila do ônibus.


58


59


60

Por isso, não por acaso, vivemos

os horizontes, para que possamos

na cidade hoje. Cidade e política se

imaginar cidades.

interligam e a política é condição fundamental às subjetividades,

As poéticas invisíveis que fomentam

uma vez que a política diz respeito,

as experiências subjetivas

grosso modo, a alguma esfera de

contemporâneas não são fixas —

negociação das diferenças, elemento

derretem-se. Geopoéticas.

fundamental da produção de

São vários os fios e grãos que

singularidades. Assim, precisamos

percorrem tudo, marcando o peso

viver a diferença para negociá-la.

da relação espaço/subjetividade,

Só sabe lidar com a diferença quem

um peso sustentado na leveza da

convive com ela e, assim, a arte

poesia literária e visual, nas artes e

parece ter um papel fundamental

também no mais trivial, no cotidiano

na contemporaneidade, o de abrir

de quem habita uma cidade, de

caminhos para essa vivência e

quem habita várias cidades...

desconfortar, para que se ampliem

REFERÊNCIAS CALDEIRA, Tereza Pires do R. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2003 [2000]. CALDEIRA, Tereza Pires do R. Muros e novas tecnologias do público. In: ROCA, José (curadoria). Muntadas: informação, espaço, controle. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2011. CALVINO, Italo. Cidades invisíveis. São Paulo: Cia. das Letras, 1990a. ENRIQUEZ, Eugène. Psicanálise e ciências sociais. Revista Ágora, Rio de Janeiro, v. VIII, n. 2, jul./dez. 2005. ENRIQUEZ, Eugène. O outro, semelhante ou inimigo? In: NOVAES, Adauto. Civilização e Barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. HARVEY, David. Rebel Cities: from the right to the city to the urban revolution. New York: Verso, 2012. JACQUES, Paola B. Corpografias urbanas. Revista Arquitextos/Vitruvius, v. 93, n. 02, p. 93. 2008. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/ arquitextos/08.093/165>. Acesso em: 21 jan. 2010.


61

SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 2008. SILVA, Regina Helena A. Cartografias urbanas: construindo uma metodologia de apreensão dos usos e apropriações dos espaços da cidade. Cadernos PPG-AU/ FAUFBA, número especial, 2008. LOPES, João Teixeira. Andante, andante: tempo para andar e descobrir o espaço público. In: Leite, Rogério P. (Org.). Cultura e vida urbana: ensaios sobre a cidade. São Cristóvão: Ed. UFS, 2008. NOGUEIRA, Maria Luísa M. Nogueira. Espaço e subjetividade na cidade privatizada. Tese (doutorado em Geografia) – Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006. ROCA, José. Muntadas: informação, espaço, controle. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2011. SARAMAGO, José. De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz. In: Discursos de Estocolmo. Lisboa: Fundação José Saramago, s/d. SINGH, Simon. O último teorema de Fermat. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998. SILVA, Tomás Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2003. WATSON, Sophie. City publics: the (dis)enchantments of urban encounters. London: Routledge, 2006.


62

ANÔNIMO

1

Pedro Quintero e Vitor Brandão2

O projeto Anônimo nasceu de um

O muro nos fez pensar na questão

acaso, o nosso encontro com um

da ocupação do espaço urbano e a

muro coberto por stencils,

tensão entre o público, o privado e o

em Belo Horizonte.

comum. O comum representa aquilo que é de todos, uma vez que o muro

No início, o que nos chamou a

serve como fronteira, pois ao mesmo

atenção foi a quantidade e a

tempo em que ele delimita uma

variedade de stencils no muro que

propriedade privada, ele também

observados de perto revelavam uma

está na rua pública, em um caminho

riqueza infinita de detalhes.

que é comum a todos e exposto a qualquer intervenção que possa vir a

Aos nossos olhos, era uma exposição

acontecer.

ao ar livre realizada pelo artista dos stencils, pelos passantes que de

O artista que produziu os

alguma maneira intervieram naquele

stencils não assinou seu trabalho.

muro e também pelo tempo que aos

Acreditamos que tenha sido

poucos imprimiu novas camadas

justamente pelo desejo de tornar

e revelou cores de inscrições e

sua arte um bem comum, ou seja,

pinturas antigas.

de todos. E isso dá ao trabalho

1 Em 2014, apresentamos a exposição fotográfica “Anônimo” na VI Semana de Ciência, Arte e Política. 2 Alunos do curso de Publicidade e Propaganda da PUC Minas.


63


64


65


66


67

um sentido novo, transgressor, se pensarmos que as ruas das grandes cidades é, cada vez mais, um espaço do mercado ou do estado, e cada vez menos dos que nela vivem. É exatamente por conta dessa pluralidade de sentidos em uma mesma obra, da tensão entre público, privado e o comum que a atravessa, da relação cidade e errantes, das inúmeras camadas e de sua fragilidade – já que uma tinta cinza pode detê-la a qualquer momento - que nós nos decidimos, tomados por sua potência, preservar esta obra por meio da fotografia. Posteriormente, as fotos transformaram-se em exposições financiadas por crowdfunding além de outros desdobramentos. E por meio da conexão redes e ruas, tivemos o prazer de conhecer o artista responsável pelos stencils, Adriano Paulino.


68

O ESCRITOR E A CIDADE: horizonte belo e triste Raquel Beatriz Junqueira Guimarães1

Jamais poderei esquecer-me de ti Belo Horizonte, de ti nos teus anos vinte. E, se isso acontecer, que, como no salmo, minha mão direita se resseque e que a língua se me pegue no céu da boca. Belo, belo – Belorizonte. Minas – minha confissão. (NAVA, 1986, p. 306-307)

Na literatura brasileira, a cidade

De acordo com Valéria Machado,

moderna foi tema para muitos

o antigo Curral D’El Rei cedeu lugar

escritores, dentre eles Pedro Nava.

a uma cidade geometricamente

Para o memorialista, Belo Horizonte

planejada e ao traçado urbanístico

foi depositária do registro de

inspirado nos modelos europeus e

percepções sobre a modernidade, e

americanos do século XIX.

as mudanças da cidade se tornaram

Belo Horizonte, “inaugurada em

motivos poéticos para o escritor que

1897, símbolo da primeira grande

viveu ali na década de 1920.

obra da República brasileira,

1 Professora da PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4190193491782323


69


70


71


72


73

nasce como o marco de uma nova mentalidade que veio para limpar os rastros do passado e sepultar as marcas deixadas por três séculos de dominação do Império” (MACHADO, 2009, p. 81). Essa cidade, marco de uma nova mentalidade, está registrada nas páginas dos seis volumes das Memórias de Pedro Nava. Ao passear por elas, o leitor tornase um flâneur que transita pelas ruas das cidades por onde viveu o narrador-memorialista (Juiz de Fora, Belo Horizonte, Rio de Janeiro), isso porque, na obra de Pedro Nava, a escrita da memória é tecida na/ pela vida das cidades: as avenidas, as praças, a arquitetura, os transportes aparecem cerzidos ao footing dos namorados, aos hábitos das famílias tradicionais, ao corre-corre dos trabalhadores e dos estudantes. Tal como um cronista, Nava se preocupou em informar sobre a vida das pessoas nas cidades,

construção meio de tijolo, meio de madeira, com três entradas sem portas, pintada a óleo e dotada dum torreão para o relógio. Seu verde era semelhante ao dos pistaches e contrastava, qual outra cor, com os verdes dos seis renques de árvores da Avenida Afonso Pena e com os mais numerosos do Parque. Porque a estação debruçava-se sobre ele. (...) BAR – pelo café que lhe ficava em frente, escancarado para a via pública. Só entravam senhores. Logo à frente, à esquerda, um armário quiosque de metal brunido como ouro vivo, aquecido por forninho inferior e em cujas prateleiras estavam sempre quentes os bolinhos de carne, os pastéis, as espadinhas(sic) de galinha. Eram o fino do fino e custavam respectivamente tostão, tostão, duzentão. O balcão e a estante de cigarros — Londres, mistura especial, maço, pacote. O roliço 17. Petit Londrinos. Yolanda verde, Yolanda azul, Liberty oval ou redondo. (...) A freguesia habitual do cafezinho e da conversa. A especial, e mais demorada, das cervejadas ostensivas ou da cachacinha pudicamente tomada em xícaras, para não escandalizar a Família Mineira passando na rua.” (NAVA, 1985, p.3)

os pontos de encontro, as mudanças arquitetônicas pelas quais essas cidades passaram, a destruição e a reconstrução delas. Em Beira-mar, por exemplo, a narrativa autobiográfica é iniciada pela descrição de um ponto de bonde, lugar de encontro e de movimento da cidade moderna. PONTO – porque era o local da Estação dos Bondes. Vejo-a ainda,

A visão do narrador nos envia para a pintura do ponto e do bar com suas cores e sua arquitetura. A câmera do olhar do narrador flagra os habitués do bar, os transeuntes, o entra e sai dos compradores, os produtos em exposição e o cuidado “para não escandalizar a família mineira”,


74


75


76

numa clara divisão entre os que

o funcionamento do lugar

estão dentro do bar, prováveis

demonstra que ele o conhece

profanadores da tradição, e os que

como quem faz parte, o constitui

passam lá fora, moças e meninas,

e se constitui nele, como um dos

senhoras da alta, homens sérios

materiais de sua composição.

debaixo dos óculos e do bigode.

O narrador-memorialista é parte do

Flanando pelo perímetro do “grande

lugar, do mesmo modo que o Ponto

Bar do Ponto”, o leitor acompanha

é constituinte da cidade, referência

os moradores da cidade indo à

para os moradores da nova capital.

Sapataria Central, à Papelaria e

Sendo assim, o narrador informa:

Livraria de Oliveira & Costa. Os frequentadores da região, e junto com eles o leitor, se alvoroça(va)m ao assistir à passagem de uma “menina e moça irresistível no seu grande chapéu de tagal enfeitado de largas fitas, no seu vestido de palha de seda, nas meias marrons moldando bemaventuradas pernas e cominando com a cor dos sapatos rasos ainda sem salto.” (NAVA, 1985, p. 5. Grifos do autor) Aliados à capacidade de o narrador pintar os lugares, aparecem o estilista que desenha a vestimenta das mulheres, e os fofoqueiros cujas “linguinhas trabalhavam, sobretudo dentro do Bar do Ponto. Que pernas, que seios os desta garota. (..) Dizem que aquela madama está dando. Quem está comendo é o. Esta, agora, não. ada uma recebia seu comentário” (NAVA, 1985, p. 5. Grifos do autor) Todo esse envolvimento do narrador com a arquitetura, o movimento, os costumes, a moda,

O café chamado Bar do Ponto estava para Belo Horizonte como a Brahma para o Rio. Servia de referência. No Bar do Ponto. Em frente ao Bar do Ponto. Na esquina do Bar do ponto. Encontros de amigos, encontros de obrigação. O nome acabou extrapolando, se estendendo, ultrapassando o estabelecimento, passando a designar o polígono formado pelo cruzamento de Afonso Pena com Bahia – local onde termina também a ladeira da rua Tupis.” (...) Bar do Ponto é um vasto hexágono irregular que tive várias vezes a honra de atravessar, no tempo em que se o fazia flanando, conversando, sem esperar o pare e o siga da luz vermelha, da verde, das mangas brancas dos guardas e do trilo de seus apitos”. (NAVA, 1985, p. 4. Grifos do autor)

Ao descrever o ponto do bonde e o bar que existia em suas proximidades, o narrador já antevê as transformações que aquele lugar sofreria, com o passar do tempo, ao anunciar que ali não havia sinais nem guardas de trânsito, que, posteriormente, se tornariam parte da paisagem e personagens dela.


77

O narrador, no entanto, não fica apenas na apresentação das cores, formas, dores e amores que transitam pelo trajeto por onde “passava Belo Horizonte inteira” (NAVA, 1985, p. 5). Ele conduz o leitor ao conhecimento das mudanças ocorridas na cidade e o coloca em contado com a multidão de transeuntes, com a velocidade do bonde, e a véspera do trânsito marcado pela chegada dos carros. O narrador apresenta ao leitor as antigas edificações da cidade: O prédio ocupado pelo antigo Correio era uma linda edificação que ficava dentro do triângulo formado por Bahia, Tamoios e, à frente pela Avenida Afonso Pena. Era róseo, de arestas pintadas de branco, alternando largos janelões com elegantes janelas finas. Tinha porão habitável, dois pisos e seu maior requinte estava no vestíbulo cuja altura era a dos seus dois andares, juntos.” (NAVA, 1985, p.7)

E o faz acompanhar, conduzido pelo seu olhar melancólico, a demolição dos prédios da primeira Belo Horizonte: O magnífico exemplar da arquitetura da belle-époque foi derrubado para dar lugar a um arranha-céu e a repartição passou para defronte, sempre na Avenida, para outro próprio federal – o da Delegacia Fiscal por sua vez mudada para casarão quase ponto — que vinha sendo levantado como obra de Santa Engrácia, no mesmo logradouro,

na esquina defronte do Automóvel Clube. (NAVA, 1985, p. 7. Grifos do autor)

Ao flanar pela região do “Grande Bar do Ponto”, portanto, o leitor conhece a arquitetura em ruínas, não só a arquitetura da cidade que, tal como o prédio dos Correios fora derrubado, substituído, mas também a arquitetura da memória do narrador, que, inconformado com os acontecimentos, parece querer perenizar os tempos em que a cidade era nova, jovem como os jovens que circulavam por ela: Essa Igreja [Matriz de São José] é bem proporcionada e antigamente suas três torres destacavam-se no céu livre de Belo Horizonte. Hoje ela encolheu, perdeu altura, esmagada pela palissada(sic) de arranha-céus construída nas suas costas. Da via pública subia-se o adro imponente trinta e oito degraus, interrompidos por três patamares. Assim como o Viaduto de Santa Teresa ligou-se à história do modernismo pelas acrobacias do poeta da geração dos 25, aqueles degraus pertencem também à história do admirável grupo dito de 45. Um dos seus componentes era aficionado a descer e a subir, de automóvel, a rampa escabrosa. E era sentado nos seus degraus, na noite impossível de Belo Horizonte, que Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Alphonsus de Guimaraens Filho, Murilo Rubião, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino — puxavam sua angústia. Como nós, vinte anos antes, na esquina de Álvares Cabral e Bahia, abancados nos


78


79


80

degraus da Caixa Econômica. (NAVA, 1985, p. 7)

Por essa descrição da frequência dos jovens às escadarias da Matriz de São José, aos arcos do Viaduto Santa Tereza, e aos degraus da Caixa Econômica, o leitor é remetido não só à irreverência juvenil dos escritores na convivência com os espaços urbanos, mas também à história dos outros jovens da cidade e da literatura ali praticada. Os jovens, no entanto, não circulavam apenas por esses espaços centrais da cidade, por onde todos passavam. Iam, naturalmente, para os outros ambientes, mais clandestinos que ficavam em outro cenário, no quadrilátero da zona: Esse compreendia tudo que ficava entre Bahia, Caetés, Curitiba e Oiapoque, vasta área de doze quarteirões de casas. (...) Para nele chegar era preciso marchar rampas abaixo e daí o significado especial de descer dado pelos belorizontinos à ação de ir à zona, à patuscada, à farra, ao cabaré lá embaixo. (NAVA, 1985, p. 54)

A cidade do movimento, da modernidade, do bonde, da zona, é, para o narrador de Beira-mar, um pedaço da França, metrópole da cultura, da arte e do lazer. “A rua Guaicurus era um pedaço de Marselha jogado no sertão”; e o narrador se sentia mais arrebatado “na sala de danças da

Maciela, da sabarense Rosa Maciel” do que no foyer do Operá de Paris. (NAVA, 1985, p. 54-55. Grifo do autor) Para além dessa presença da cidade (des)construída, do lazer e das reuniões juvenis, do bordel, das conversas intelectuais, o narradorpersonagem traz também sua visão da cidade-floresta, e a vida pacata, do tempo dos coronéis: Moraríamos vários anos na Floresta. No quarteirão formado por Januária, Pouso Alegre, Jacuí e Rio Preto, sempre em casas do seu coronel. Residimos sucessivamente no 327, do primeiro logradouro; no 690, do segundo; no 185. Mais tarde é que fomos para um prédio do Seu Raul Mendes, à Avenida do Contorno, mas isto já em período de aculturação e ensaio de abandono do velho bairro do Júlio Pinto. (NAVA, 1976, p. 129)

Antes de o jovem experimentar as delícias da vida na região principal da cidade, vivencia, ao chegar à capital, uma espécie de choque de cultura, e só depois de a futura metrópole ser reconhecida pelas caminhadas juvenis, é que o menino de Juiz de Fora se torna o jovem que, adaptado, passa a frequentar os lugares centrais da cidade e suas ruas de lazer alternativo. Diferentemente do que ocorre nas primeiras páginas de Beira-mar, o memorialista, em Balão Cativo


81


82


83


84

leva o leitor para percorrer partes

a presença marcante de certa

de uma cidade mais provinciana que

angústia do crescimento que não se

metropolitana, longe dos prédios,

pode frear:

repleta de chácaras, casarões, que viriam a ser demolidos e

A Avenida Amazonas só tinha

substituídos por prédios ou novos

quatro quarteirões e a cidade

traçados de ruas.

mandava tímidos prolongamentos para a Serra, a Barroca, o Calafate,

A cidade-floresta e suas chácaras

o Bonfim, a Floresta. (...) Entretanto

povoadas de gente recolhida,

crescera para além do Cruzeiro,

apresentada em Balão cativo, é,

materializara o círculo da Avenida

também, comparada a Paris, e pela

do Contorno, tomara conta do Barro

memória do narrador, efetiva-se um

Preto, canalizara o Córrego Leitão,

processo de aglutinação por meio

asfaltara o Centro e ligava-se,

do qual promove-se o encontro da

sem descontinuidade, ao Calafate,

província com a metrópole francesa.

ao Carlos Prates, ao Bonfim,

Quando se olham os mapas históricos de Paris, vemos seu início, Lutécia, circunscrito à Citè, à Ilha de São Luís; depois seu extravasamento nas duas margens, sua progressão até às muralhas de Filipe Augusto — englobando a superfície que hoje nos mostra a Sorbonne, o Panteon, o Instituto e, do outro lado, o Louvre (...) Prosseguem os círculos concêntricos nas linhas dos fermiers généraux e de Thiers. Mas a cidade enjamba cada limite que se lhe dá e Paris continua (...) Assim também Belo Horizonte. Quem Caminha nas calçadas de Aimorés, Sergipe, João Pinheiro e Guajajaras, que se avizinham da Boa Viagem, este perlustrando, na Cidade de Minas, o que foi A Cité para Paris. (NAVA, 1976, p. 144).

Junto com esse processo de aglutinação que compõe o modo de lembrar a cidade, há, ainda,

à Lagoinha. Estendeu-se mais ainda, em todas as direções (...) mas não vai parar! (NAVA, 1976, p. 144-145). Impressionado com a rapidez das mudanças, o memorialista procura, por meio da escrita, recuperar cada detalhe daquela época, quer registrar tudo, porque, afinal, escrever memória é “um ajuste de contas do eu com o eu” é transfundir vida e essa vida é a verdade. E a verdade são as ruínas da cidade transformada, desfigurada pelo tempo. A verdade é a juventude finda. Para manter o passado, o memorialista, por meio do narrador-personagem, procura lembrar, obstinadamente, de cada detalhe da cidade-floresta e da cidade Bar do Ponto, mas em sua tentativa de suspender o processo de arruinamento da cidade, não o consegue controlar, porque,


85

como todo processo de memória,

como a cidade-floresta da década

“lembrando estamos provocando o

de 1920.

esquecimento. Depois de escrito, o que foi ressuscitado estará, então,

A cidade lembrada, definitivamente

definitivamente morto”

morta, está, entretanto, viva em

(NAVA, 1985, p. 199).

cada grupo de jovens que circula por suas praças, avenidas, prédios

Morto, definitivamente morto,

públicos, estabelecimentos

como ficou o antigo Curral D’El Rei,

comerciais, ruas, vielas, favelas;

cujas edificações foram derrubadas

está viva para os que fazem da

“por não coincidirem com o cenário

cidade hoje, em 2015, (e fizeram em

projetado para a nova capital,

2005, 1995, 1985, 1965...)

que previa a divisão da cidade em

o lugar conhecido, no qual padecem,

três áreas: central, suburbana e

esperam, amam, discutem,

rural.” (MACHADO, 2009, p. 82);

manifestam; está viva para os que

mortos, definitivamente mortos

conhecem cada pedra das calçadas,

como os prédios demolidos para a

cada tijolo das sarjetas, cada bueiro,

construção de arranha-céus,

cada poste, cada árvore; viva para os

mortos como os jovens que

que distinguem seus odores e suas

circulavam pela Matriz de São José,

cores de todas as horas.

pelo Viaduto de Santa Tereza,

Viva para os que nela vivem

pelo quadrilátero da zona, morta

(NAVA, 1985, p. 10).

REFERÊNCIAS NAVA, Pedro. Chão de Ferro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. NAVA, Pedro. Beira-mar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. NAVA, Pedro. Balão cativo. Rio de Janeiro: Livraria Jose Olympio Editora, 1976. MACHADO, Valéria Aparecida de Souza. A cidade moderna: Belo Horizonte nas crônicas de Carlos Drummond de Andrade. Revista Outra Travessia n. 8. Cidades da periferia, periferia das cidades. Florianópolis: UFSC, 2009. GUIMARÃES, Raquel. Pedro Nava, leitor de Drummond. Campinas: Pontes, 2002.


86

“VENHO POR MEIO DESTA” Izabella Dutra, Paulo Cantalice, Thainá Nogueira1

Cresci com uma imagem de você

A sua imensidão está mesmo nos

gigante e, quando cheguei aqui,

detalhes... As luzes acesas, o céu

percebi que nem tudo o que

azul escuro - quase negro da noite

imaginei era verdade.

caindo -, o cheiro das compotas de

Esse seu comportamento adulto não

doces saindo das janelas, o vermelho

abandona as pequenas partes que

madeira da catuaba, o amarelo bolha

fizeram de você o que você é hoje.

dos pastéis. As sombras do asfalto, a Bahia, a freguesia, a gelada.

Aos sábados, eu percebia o tamanho

A fazenda: o galo, o coelho, a raposa.

da minha gritante carência pelo seu

O vermelho e o branco, o indo e o

movimento. O quintal cimentado era

vindo.

a minha rua, era a avenida que eu só conhecia de ouvir falar. Era a minha

Foi meio assim quando saí de lá e

Cristiano Machado, minha Antônio

cheguei mais perto de você.

Carlos, minha Tereza Cristina. Meu

No começo achei que estava no

carro era um patinete que vivia

lugar errado, porque não havia

batendo em vassouras.

nenhuma praça ali. Mas toda

E aí, enquanto eu ficava parada no

aquela gente desconhecida, todos

sinal vermelho imaginário, pensava

aqueles carros, prédios, ambulantes,

no quão legal devia ser ficar presa

moradores de rua, lanchonetes,

em um congestionamento.

tudo aquilo me abraçava de

1 Alunos de Jornalismo da PUC Minas.


87


88


89


90


91

alguma forma. Eles eram a minha

palavra, mas eu não acho que eles

companhia naquele desconhecido.

saibam o real significado do verbo

E aquelas luzes, as luzes que me

amar. Porque depois de um tempo,

iluminavam pela TV, estavam agora

eles vão mostrando as tais das

diante de mim. Nada mais podia me

garras, tão temidas. Eles querem que

amedrontar.

você seja como eles e que você faça o que eles fazem.

Aí eu mergulhei. Ficamos íntimos em semanas e tudo o que eu fazia era

Se não for assim, você não é bom

relacionado a você.

o suficiente para ser parte do seu grupo de amigos.

Talvez seja porque sempre senti que lá não me cabia direito ou porque

Você está repleta de ursos. E esses

eu te imaginava como um cara

ursos às vezes me afastam de você.

superlegal e moderno, que abraçava

Às vezes volto a sentir aquele medo,

todo mundo e já chegava dizendo:

aquele sentimento estranho de

“agora você é um de nós!”.

quando cheguei aqui. Mas ainda

Talvez seja também por essa sua

assim eu tento me manter em você.

vontade de se perder na juventude,

Eu me distraio com sua arquitetura,

entre o rock e a Praça do Papa,

com os seus contrastes, com o fogo

ou pelo amor ao pão de queijo e as

que te mantém vivo localizado em

rotinas não muito importantes.

seu centro.

Só que sinto cada vez mais que para

Quando nos encontramos pela

ser aceito por você é preciso muito

primeira vez, éramos só textura e

mais do que simplesmente ter boas

cores, pele e tato. Hoje fizemos o

intenções.

que queríamos e agora já é tudo saudade.

Tem muita gente querendo mandar em você e você nem sabe disso.

Talvez por esse seu dom de diminuir

São uns ursos. Eles são lindos à

o espaço entre as pessoas, ou talvez

primeira vista, e o colo deles parece

seja culpa minha, que fico tentando

ser imenso e confortável. Parece que

disfarçar essa minha solidão...

eles querem abraçar todo o mundo

E assim, sem perceber, vou levando

com amor. Aliás, eles amam essa

os dias e as horas.


92

PAISAGENS URBANAS: uma discussão interdisciplinar

José Wanderley Novato Silva1

O conceito de paisagem, nascido na

mas também são formadas de

Geografia, foi logo adotado pelas

movimentos, odores e sons - isto

Ciências Biológicas quando um dos

é: contêm componentes materiais

seus campos, a Ecologia, dedicou

e não-materiais aos quais são

especial atenção ao estudo das

atribuídos valores financeiros,

relações entre os seres vivos e o

sentimentais e simbólicos.

meio que habitam. Posteriormente,

O musicólogo canadense Murray

os estudos culturais inseriram

Schafer, por exemplo, desenvolveu

o homem na paisagem, e esse

o conceito de “paisagem sonora”

conceito revelou-se bastante útil

(SCHAFER,1997) para analisar

na abordagem da dinâmica social,

os sons como componentes das

desde as contribuições iniciais

paisagens, e as soundscapes

da Antropologia até os trabalhos

urbanas incluem, naturalmente,

contemporâneos das várias ciências

a poluição sonora, os músicos de rua

sociais, quando o desenvolvimento

e os vendedores ambulantes.

econômico expandiu os seus efeitos a todas as regiões do planeta.

Dentro dessa ampla discussão, a progressiva urbanização das

As paisagens não têm uma

sociedades fez com que as

dimensão unicamente espacial,

paisagens urbanas fossem cada vez

1 Professor da PUC Minas. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9171380556226032


93


94


95


96

mais estudadas em abordagens que

específicos. As paisagens urbanas

ultrapassam os campos disciplinares

incluem “paisagens temporárias” e,

tradicionais.

tanto os estragos causados por uma

Essa interdisciplinaridade representa

enchente ou um atentado terrorista,

um esforço para compreender

quanto os engarrafamentos

como no meio urbano interagem

cotidianos das grandes metrópoles

elementos naturais, culturais,

são exemplos de paisagens

sociais e econômicos - e como

entendidas nessa dimensão.

os indivíduos, tomados em sua dimensão simultaneamente

Como seres divididos entre um

biológica e psicológica, percebem as

mundo interior, constituído por

paisagens específicas em que vivem.

símbolos, e um mundo exterior, construído pela razão, vivemos

Trata-se de uma discussão que

uma “confusão espacial”: o espaço

ocupa geógrafos, ecólogos,

entendido como o mundo da nossa

sociólogos, antropólogos e

experiência corporal como faz a

psicólogos; ao mesmo tempo, a vida

“fenomenologia da percepção”

nas cidades é diretamente afetada

(MERLEAU-PONTY, 1999), o espaço

pelo trabalho de formuladores de

entendido como o lugar da história

políticas públicas, economistas,

(incluindo a história econômica),

urbanistas, publicitários e arquitetos

o espaço como lugar antropológico

– e também de cada cidadão, em

que condiciona a sensibilidade

suas ações cotidianas individuais ou

humana à sua dimensão cultural,

coletivas.

e o espaço como ambiente natural, mesmo que violentamente alterado.

As paisagens urbanas são

As paisagens urbanas são, assim,

caracterizadas pelas relações, nos

exteriormente, simultaneamente

diferentes espaços das cidades,

paisagens geográficas, econômicas,

entre indivíduos que podem ou

culturais e ecológicas.

não se conhecer, e que podem ser um contato efêmero ou bastante

Um dos impasses entre as

duradouro, como no caso das

ciências sociais e a psicologia

relações de vizinhança. E essas

nessa discussão foi o banimento

relações podem ser alteradas de

das percepções individuais da

forma lenta ou instantânea, tanto

constituição de qualquer ciência,

pelo envelhecimento natural das

como propôs Sauer, um dos

pessoas e das coisas, quanto por

geógrafos criadores do conceito

alterações naturais ou artificiais no

de “paisagem cultural”. Seria

espaço físico, sendo reconstruídas

possível afirmar que os indígenas,

cotidianamente em ritmos

os mexicanos, os espanhóis e


97

a população norte-americana

de ações explicadas em parte pela

descendente de ingleses atuaram

dimensão social, compondo um tipo

na Califórnia unicamente a partir de

de “ecologia social”. Assim, a análise

percepções culturalmente - e não

de uma esquina de uma grande

individualmente - determinadas?

cidade revela múltiplos significados

Para alguns pesquisadores, reduzir

grupais (para adolescentes, para

os seres humanos a organismos sem

desempregados, para consumidores,

nenhuma autonomia significa adotar

para os donos de loja etc.), mas

um modelo bastante desfavorável

também individuais - e sem o

aos indivíduos (mesmo que isso

elemento simbólico a compreensão

não seja epistemologicamente

desse espaço torna-se impossível.

importante). De qualquer forma, a reificação ou a externalidade da

Além disso, o esquecimento da

cultura surge, nessa perspectiva,

dimensão biológica pelas ciências

como algo “mitológico” ou

sociais significa um esquecimento

“metafísico”. Nessa perspectiva as

simultâneo do mundo dos sentidos –

instituições deixam de ser vistas

e a vida urbana deixa os indivíduos,

como produtos da interação social,

de fato, um pouco distantes dessa

envolvendo conflito e negociação,

dimensão - que, nas sociedades

para serem a expressão de um todo

rurais, por exemplo, é bem mais

harmônico chamado “cultura”.

importante.

Acerca dessa questão polêmica

Outra abordagem que inclui

alguns geógrafos, como Duncan

os sentidos deriva do conceito

(1980), associam-se às mudanças

de “percepção ambiental”, que

no pensamento antropológico

se tornou um tema importante

que sugerem não o abandono do

para a Geografia (a “Geografia

conceito de cultura, mas a sua

da Percepção”) – uma postura

não-reificação – isto é, a cultura deve

epistemológica criticada por alguns

ser entendida como um “contexto

geógrafos, no entanto,

para”, e não como um “determinante

por ter um caráter mais estético que

de” escolhas, abrindo lugar para a

científico. Mas, embora o conceito

liberdade e criatividade individual.

de paisagem tenha nascido junto com representações científicas que

No entanto, a autonomia dos

procuravam ser muito objetivas

indivíduos tem de ser compreendida

(a cartografia e o trabalho dos

em sua limitação - pelo fato de

naturalistas), esses estudos também

eles estarem necessariamente

tinham um viés delimitado – o

vinculados a algum tipo de grupo,

olhar do viajante. E geógrafos

cuja ação resulta de um conjunto

importantes desenvolveram


98


99


100


101

conceitos diferentes de paisagem; em Dardel (2011), por exemplo, a paisagem é “impressionista”, uma

A PAISAGEM URBANA E A CIÊNCIA ECONÔMICA

experiência vivenciada unificadora

Do ponto de vista dos impactos do

de muitos elementos. Em uma

desenvolvimento econômico sobre a

linha similar, outro geógrafo, Tuan

natureza, um dos primeiros grandes

(1980) postulou que a questão de

estudos intitulou-se “Os limites do

como as pessoas criam um mundo

crescimento”, e foi elaborado por

significativo para suas vidas deveria

um grupo de economistas para

compreender o conceito de “lugar”.

o chamado “Clube de Roma” em

Como uma crítica à geografia como

1972. Esse estudo gerou um certo

“ciência dos espaços”, o “lugar”,

desconforto entre os economistas

para esse autor, envolve um modo

por afirmar a impossibilidade

de relacionamento com o mundo –

da generalização planetária do

também uma “experiência”.

modo de vida dos países ricos – pela pressão sobre os recursos

A compreensão das paisagens

não renováveis ou pela poluição

urbanas apresenta também a

lançada no ambiente - negando

necessidade da compreensão da

os pressupostos sobre os quais

sua dimensão comunicativa, que

a ciência econômica havia sido

inclui tanto a comunicação como

construída. Embora esse estudo

transmissão de informações quanto

tenha sofrido críticas posteriores,

a comunicação simbólica – como

ele é importante na medida em

um contato que aproxima indivíduos

que a ciência econômica fez

que partilham um mesmo sistema

uma reflexão acerca dos seus

cultural. Assim, à medida que o

fundamentos e colocou em bases

conceito de paisagem cultural foi

científicas uma “impressão” que

sendo ampliado, os trabalhos sobre

se generalizava entre os críticos

paisagens urbanas foram envolvendo

do capitalismo (e mesmo entre

temas mais complexos e específicos,

os seus defensores) – isto é: a

como cidades decadentes, shopping

possível falência dos pressupostos

centers e condomínios e, mesmo

da economia passou a compor o

que o conceito de paisagem não

novo quadro em que as paisagens

seja mencionado, a sociologia

econômicas passaram a ser

urbana transformou-se em grande

discutidas.

parte em um estudo de “paisagens sociais”, coincidindo em muitos

Schumpeter (1997) via o que

pontos com os trabalhos feitos sob

foi chamado de “destruição

a denominação da “antropologia

criadora” como garantidora do

urbana”.


102


103


104

progresso econômico, a partir

Harvey (2004) viu também nas

do seu funcionamento como

dimensões de espaço e tempo as

motor do eterno impulso para

fontes de poder social. Do ponto

adiante do capitalismo: cada nova

de vista temporal isso pode ser

tecnologia sucateia a precedente.

notado a partir da monetarização

É forçoso admitir, então, que o

progressiva das relações da vida

progresso científico passa assim a

social e da criação de uma rede

ser o patrocinador da “destruição

cronológica artificial para a vida

criadora” tanto dos produtos

cotidiana a partir dos horários de

quanto da cultura, à medida que

trabalho. Do ponto de vista do

as novas tecnologias criam novos

espaço, o mapeamento do mundo

hábitos de consumo que modificam

abriu o caminho para a apropriação

os padrões tradicionais de

e o controle mais efetivo do espaço,

habitação, alimentação, vestuário e,

controle esse que foi se difundindo

principalmente, de convivência.

a partir da constatação de que todo

A aliança entre a ciência e a

o complexo da produção envolve a

lógica do capital fez com que o

organização espacial, que partindo

conhecimento científico assumisse

das fábricas e dos escritórios,

a dianteira do processo de

conforma as cidades e procura

transformação das paisagens.

se infiltrar mesmo nos espaços domésticos.

Os impactos dessa aliança sobre as concepções de espaço e tempo

Analisando o ambiente do

individual na vida social,

capitalismo contemporâneo Dupas

e particularmente na vida urbana,

(2006) descreveu o que chamou

são importantes.

de “mercado da pobreza”; nessa

Outros autores também

perspectiva não apenas as paisagens

identificaram elementos de caráter

dos países do Terceiro Mundo vêm

sociopsicológico na relação

sendo então progressivamente

indivíduo e espaço, ao longo da

ocupadas pelo capitalismo, mas

história da sociedade ocidental.

também a sua inserção como

Foucault (1979), por exemplo,

mercado de consumo tornou-

estudou a organização do espaço

se importante para as grandes

dedicado às técnicas de controle

corporações – e os efeitos dessa

social; Michel de Certeau (2007)

realidade sobre as paisagens

analisou as formas clandestinas

urbanas são muitos, incluindo uma

de organização popular para se

tendência à homogeneização e à

libertar justamente dessas redes de

invasão desenfreada da publicidade

disciplina.

em todos os espaços públicos (e até domésticos).


105


106


107


108

É inegável, além disso, que os aspectos econômicos da contemporaneidade estão

MAIS ESTUDOS INTERDISCIPLINARES

diretamente ligados a alguns

Entre tantos outros, dois autores

dos problemas que impactam

de contribuições relevantes para

diretamente a vida nas cidades,

o estudo das paisagens urbanas

entre eles a devastação ambiental,

contemporâneas o fizeram sob uma

que se relaciona à controvérsia sobre

perspectiva bastante interdisciplinar:

a mudança climática e à ocorrência

Edward T. Hall (2005), que em seus

de catástrofes naturais; a poluição,

trabalhos incluiu a antropologia,

o uso de pesticidas e a

a sociologia, a comunicação e o

industrialização dos alimentos –

urbanismo, entre outros campos,

que estão ligados aos problemas

e Stuart Hall (2006), que em seus

de saúde dos indivíduos – e muitos

estudos culturais também incluiu

outros.

outras áreas do conhecimento, como a comunicação e as ciências

Isso tem obviamente gerado

políticas.

adaptações e resistências, e junto às proposições do ambientalismo e

A obra de Hall (2005) tratou a

de um “ecocapitalismo” vem sendo

paisagem no que ele chamou de

criado, ainda de forma incipiente,

“dimensão proximal” – a zona de

um movimento original de recusa

interação que existe na esfera

à compressão do espaço-tempo

de movimentação cotidiana

e à aceleração da velocidade nas

dos indivíduos. Ele partiu do

várias dimensões da vida social:

entendimento da cultura como

trata-se do movimento Slow

um complexo de vários níveis de

(“Devagar”), que propõe várias

comunicação, e foi a partir desse

formas de desaceleração da vida

entendimento que estudou a

em sociedade, como os movimentos

percepção que os indivíduos têm do

Slow Food, Slow Schooling e Slow

espaço pessoal e da interação social.

Travel - proposições analisadas por

Para tanto, chamou de “antropologia

Honoré (2007) como constituintes

do espaço” as observações sobre o

de uma nova forma de vida urbana

uso que o homem faz do meio físico,

- as Slow Cities. Embora a proposta

entendendo o uso do espaço como

seja bastante simpática para muitas

uma elaboração especializada da

pessoas, trata-se de um movimento

cultura.

ainda embrionário que visa à criação de “micropaisagens de resistência”.

Escrevendo na década de 1960, Hall (2005) colocou o trabalho, senão


109

como uma evidência,

a culturas diferentes vivem em

ao menos como um forte indício da

“mundos sensoriais” diferentes; as

validade da hipótese elaborada por

diferenças notadas na percepção

Whorf (1956) de que o pensamento

das paisagens entre viajantes e

humano é conformado pela

“nativos” quando entram em contato

linguagem. Ao abraçar essa tese,

encontra nessa argumentação uma

ele colocou o trabalho no centro de

explicação bastante razoável.

três questões bastante controversas, mas importantes e contemporâneas:

Além disso, a consideração dos

a primeira, sobre a associação

problemas que a urbanização

entre linguagem e pensamento;

crescente da população mundial

a segunda, sobre os mecanismos

trazia na época em que escreveu

de percepção do sistema nervoso

(particularmente nos Estados

e a linguagem; e a terceira, sobre

Unidos), fez com que esse autor

o funcionamento computacional

colocasse a paisagem urbana

da mente. Elaborando a discussão

em uma posição central nas suas

do espaço físico e localizando-a

análises, pois ele lembrava que

também dentro da cultura, mas

qualquer evento que aconteça na

com referências interdisciplinares

história da humanidade acontecerá

à evolução humana e ao

necessariamente num cenário

comportamento animal, colocou-

espacial, fazendo com que o projeto

se, cinquenta anos atrás, em uma

desse cenário exerça uma influência

posição bastante avançada até os

profunda e persistente sobre as

dias de hoje.

pessoas que ali estejam. A partir dessa constatação, a psicologia

Ele analisou o papel dos sentidos

dos indivíduos passa em sua obra

em diferentes culturas, chegando

a encontrar a arquitetura e o

à conclusão de que os filtros da

urbanismo.

cultura, através da linguagem, implicam num funcionamento

Os estudos contemporâneos do

diferente do sistema nervoso –

urbanismo, mais do que a ação

isto é: confrontados pela mesma

de projetar e ordenar as cidades,

experiência os sistemas nervosos

comporta a análise desse fenômeno

centrais não são alimentados

que, a partir do final da Idade Média

pelos mesmos dados, e o registro

na Europa, tornou-se progressivo,

feito pelo cérebro não é similar,

acompanhando a expansão do

transformando a “experiência” em

capitalismo (embora já tenha

algo não confiável, porque não

existido em outros períodos e

é “objetiva” – ela é mediada pela

locais, como a Grécia clássica ou as

cultura. Pessoas pertencentes

civilizações pré-colombianas):


110


111


112

a concentração espacial da

produtor codifique seu texto de

população e os seus problemas –

uma forma específica, o receptor

déficit de habitações, dificuldades

irá decodificá-lo dentro de uma

relacionadas ao deslocamento dos

“margem de entendimento”. As

indivíduos, aumento da violência,

análises de Hall (2006) abrem assim

entre outros.

a possibilidade de considerações acerca da percepção da paisagem

Hall (2005), a respeito, fez uma

pelo acréscimo da dimensão

análise de várias características da

interpretativa e da variabilidade de

paisagem urbana: a superlotação

significados que ela pode comportar,

e a compressão dos espaços

a partir do contexto sociocultural de

domésticos, a fuga das classes

quem a percebe.

médias, as comunidades fechadas, o stress urbano, e o que ele chamou

Além disso, ele abordou questões

de “síndrome do automóvel”

acerca do multiculturalismo e dos

pelos impactos desses veículos na

conflitos interculturais na sociedade

paisagem, visto que o automóvel é,

contemporânea que são importantes

segundo ele, “o maior consumidor

para a consideração das paisagens

de espaço público e privado jamais

no contexto da globalização cultural.

criado pelo homem” (p. 218).

Segundo Hall (2006), as identidades culturais - étnicas,

O outro autor mencionado no início

raciais, linguísticas, religiosas e

desse tópico, e que empreendeu

nacionais - estão em crise. Segundo

estudos interdisciplinares

ele, o “eu iluminista”, centrado e

importantes para a consideração

autossuficiente, foi substituído

das paisagens urbanas, é Stuart Hall.

inicialmente pelo “eu sociológico”

Ele analisou o uso da linguagem e

no qual a identidade é definida

os impactos da mídia na sociedade

pela interação social – e, hoje, o

contemporânea segundo a “teoria

“eu pós-moderno” é descentrado

da recepção”. Em sua análise,

pelo fim dos valores e tradições

a comunicação envolve um

das sociedades tradicionais, pela

processo ativo de recepção de

sua colocação num contexto

um “texto” (escrito, oral ou visual)

de rupturas institucionais e

no qual a negociação em torno

comportamentais, e pela rápida

da significação da mensagem

interconexão entre muitas áreas

depende de variáveis diversas

diferentes do mundo, gerando

do receptor e do seu contexto

mudanças no comportamento e

(grupo social ou étnico, padrão

levando à fragmentação dos modos

cultural e nível de conhecimento).

de vida. Hall (2006) entendeu que

Mesmo considerando que o

as culturas nacionais são “discursos”


113


114


115


116

– narrativas que criam um sentido

Marcada pelo sincretismo e pelo

que organiza as nossas ações e

hibridismo, a paisagem cultural

a concepção que temos de nós

global, progressivamente urbana,

mesmos. Os membros de uma

e que tende por um lado à

nação são muito diferentes – todas

homogeneização pelos modos e

as nações contêm diferentes povos,

técnicas de produção econômica

classes sociais e grupos específicos

e pela criação de uma sociedade

- mas todos participarão da mesma

global de consumo, comporta muitas

cultura nacional “se acreditarem na

“paisagens culturais específicas”,

mesma história”. Para esse autor, o

que envolvem diferentes formas

mesmo vale para a identidade racial:

de convivência e de conflitos

trata-se de uma categoria discursiva,

– incluindo o ressurgimento de

e não de uma realidade genética.

nacionalismos e fundamentalismos.

Essas categorias formam grupos que

A conclusão de Stuart Hall é

convivem, negociam e entram em

que, não criando o global, nem

conflito nas grandes cidades,

dissolvendo o local (como se

e as paisagens urbanas – bairros,

esperava “pela força irresistível

prédios, locais de esportes e

da modernidade”) e, ao contrário,

manifestações culturais – são em

fazendo ressurgir ou reforçando

parte assim delimitadas.

lealdades étnicas, o próprio Ocidente estaria dando continuidade

Lembrando que o processo de

ao processo continuado de seu

globalização é, na verdade, um

“descentramento”.

processo de “ocidentalização”, Hall (2006) salientou pontos importantes da paisagem cultural

OUTRO OLHAR SOBRE AS CIDADES

global que está em formação - entre eles a assimetria da globalização,

Finalizando este texto é interessante

os processos de reforçamento

buscar, numa perspectiva de

das identidades locais e os efeitos

inversão antropológica, a visão do

não previstos dos processos

“outro” – as sociedades indígenas,

de descolonização, como a

por exemplo – sobre as paisagens

imigração dos habitantes dos

urbanas do Ocidente. A percepção

países da “periferia” para os países

nesses casos pode tanto levar a

centrais. Guattari (1990) chamou

casos curiosos, como a atenção

a atenção para esse fenômeno na

concedida pelos indígenas a

Europa chamando-o de “terceiro-

alguns objetos desprovidos de

mundização”, e declarando a sua

qualquer atrativo para os moradores

irreversibilidade.

das cidades, como postes de iluminação, quanto à compreensão


117

das dificuldades dos integrantes de várias etnias indígenas em reconhecer alguns alimentos ocidentais como “alimentos” (mesmo em situações de fome), além das diferenças de percepção acerca de estados como “estar nu”, e muitos outros. No relato do xamã yanomami Davi Kopenawa, que visitou várias vezes a Europa e os Estados Unidos nas décadas de 1980/90, colhido pelo antropólogo francês Bruce Albert, ele discorreu sobre o temor causado em sua infância pelo contato com os brasileiros “civilizados”: os aviões, o cheiro do cigarro e da gasolina, e a violência. Ao final desse relato, mostrou o seu ponto de vista sobre as metrópoles ocidentais: Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto.

Algumas cidades são belas, mas seu barulho não para nunca. Eles correm por elas com carros, nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra. Há muito barulho e gente por toda parte. O espírito se torna obscuro e emaranhado, não se pode mais pensar direito. É por isso que o pensamento dos brancos está cheio de vertigem e eles não compreendem nossas palavras. Eles não fazem mais que dizer: Estamos muito contentes de rodar e de voar! Continuemos! Procuremos petróleo, ouro, ferro! Os yanomami são mentirosos! O pensamento desses brancos está obstruído, é por isso que eles maltratam a terra, desbravando-a por toda parte, e a cavam até debaixo de suas casas. Eles não pensam que ela vai acabar por desmoronar (...). Seu pensamento está cheio de esquecimento. Eles continuam a fixá-lo sem descanso em suas mercadorias, como se elas fossem suas namoradas. (KOPENAWA apud NOVAES, 1999, p. 20).

REFERÊNCIAS DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. DARDEL, E. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2011. DUNCAN, J. The superorganic in american cultural geography. Annals of the Assocation of American Geographers, v. 70, n. 2, p. 181-198, 1980. DUPAS, G. O Mito do Progresso. São Paulo: Ed. UNESP, 2006. FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.


118

GUATTARI, F. As Três Ecologias. São Paulo: Papirus, 1990. HALL, E.T. A Dimensão Oculta. São Paulo: Martins Fontes, 2005. HALL, S. A Identidade Cultural da Pós-Modernidade. São Paulo: DP&A Editora, 2006. HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2004 HONORÉ, C. Devagar. Rio de Janeiro: Record, 2007. MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. NOVAES, A. (org.) A Outra Margem do Ocidente. São Paulo: Cia. Das Letras, 1999. SCHAFER, M. A afinação do mundo. São Paulo: UNESP, 1997. SCHUMPETER, J. A Teoria do Desenvolvimento Econômico. São Paulo: Nova Cultural, 1997. TUAN, Y. F. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980. WHORF, B. L. Language, Thought and Reality (Selected writings). Cambridge: Technology Press of Massachusetts Institute of Techno


119


120

UM MUNDO ONDE TUDO É AO CONTRÁRIO1 Amanda Marina Lima Batista2

Como diria Galeano, estamos em um

O projeto “Sonhos nunca serão

mundo onde tudo é ao contrário.

demolidos” nasceu da tristeza

Com as cidades, não é diferente:

de ver, diariamente, partes do

trocamos espaços coletivos por

São Gabriel serem demolidas em

privatizações, porque o modelo

nome da melhor fluidez do modelo

capitalista de cidade desenvolvida

rodoviarista falido da cidade. As

visa atrair grandes investimentos

famílias se mudando, as crianças

e para isso abre mão dos espaços

brincando nos escombros e o bairro

públicos em nome de centros

de periferia, antes tão cheio de vida,

comerciais e outras “maravilhas”

se tornando vazio, restando apenas

privadas. Investimos nos projetos

ratos, insetos e poucos moradores,

mais poluentes e danosos em

ainda lutando por outro lugar para

detrimento do meio ambiente e do

morar, por uma indenização mais

bem-estar social. Há cerca de quatro

justa.

anos em Belo Horizonte, surgiu a ideia de um novo terminal rodoviário

Desses moradores resistentes, um

cujo local escolhido para construção

casal de idosos, José Norberto e

foi o bairro São Gabriel.

Geralda, se destacou em função

1 Este texto integra o Projeto “Sonhos nunca são demolidos” que resultou em uma instalação em 2013 e uma exposição fotográfica na VI Semana de Ciência, Arte e Política. 2 Aluna do curso de Direito da PUC Minas no São Gabriel.


121


122


123


124

de sua imensa solidão devido à

ao verem o trator desfazer sua

remoção e de sua linda história: eles

conquista. Seguem querendo

estavam juntos há trinta e quatro

espaço nessa cidade que os expulsa

anos e nunca haviam se casado, mas

e explora. E é essa luta que nosso

ainda tinham a esperança e o sonho

trabalho busca registrar, para que

de fazerem isso. Sem filhos, estavam

não nos esqueçamos deles e para

inseguros e tristonhos em deixarem

entendermos que a cidade é de

a casinha, cujo segundo andar Sr.

todos e que isso é uma violação.

Norberto estava pintando e havia

Essa violação é fruto de uma

acabado de construir há pouco.

urbanização elitista e higienista que exclui e causa sofrimento.

Realizou-se, então, com a ajuda de muitas pessoas, um ato simbólico

Importante salientar que o que

em relação à luta daquelas famílias

houve no bairro São Gabriel é uma

e de muitas outras comunidades:

pequena amostra do que ocorre, em

o casamento do Norberto e da

proporções até mais desumanas,

Geralda. Foi um ato de despedida,

nas grandes cidades brasileiras

resistência e alegria. Hoje, nossos

como Belo Horizonte. Atualmente, o

recém-casados estão no bairro

Brasil possui um déficit habitacional

Belmonte e recebendo bolsa aluguel

inferior ao número de imóveis vazios

até o famoso “predinho” ficar pronto.

segundo o Censo 2010. Minas Gerais,

A antiga casinha da Rua Doutora

que é o segundo estado com o

Denise já foi demolida, mas o

maior número de habitações vazias,

momento de cooperação e harmonia

conta com cerca de 689 mil imóveis

que se fez não será apagado.

vazios contra 444 mil famílias que compõem o déficit habitacional

Não mesmo. No muro da estação

mineiro estimado pelo Sinduscon-SP.

de metrô, que em breve dividirá lugar com a Rodoviária, está pintado

Com a Copa do Mundo, a

“Sonhos nunca serão demolidos”,

higienização social cresceu ainda

uma homenagem dos artistas

mais, especialmente contra a

grafiteiros à luta pela moradia de

população em situação de rua e

todas as famílias que perderam suas

os moradores de vilas, favelas e

casas. Essa frase se encontrava em

ocupações. Há uma crescente bolha

outra parede do São Gabriel e já foi

imobiliária nas grandes cidades

destruída.

brasileiras que, além de cercear o sonho da casa própria, ainda remove

Entretanto, a mensagem persiste,

e marginaliza mais os pobres e suas

assim como todas as famílias. Elas

moradias. Estamos vivendo a época

seguem resistindo e “re-sonhando”

das cidades de exceção descrita


125


126


127


128


129

por Carlos Vainer na qual a exceção legislativa vira regra para tornar a cidade atraente perante os grandes empreendimentos com benefícios fiscais, além de obras que favoreçam a estética da cidade em nome do progresso urbano ligado às grandes empresas, especialmente às grandes construtoras. Enquanto isso, os movimentos sociais disputam o espaço público com essas forças econômicas, seja por meio de protestos, seja por meio de eventos que valorizam a essência coletiva das cidades, como a Praia da Estação, o Duelo de MCs e o Espaço Comum Luiz Estrela que ocorrem na capital mineira ou por meio da resistência das ocupações urbanas em nome do direito à moradia digna. Esses acontecimentos demonstram o que seria o verdadeiro progresso urbano: a construção de uma cidade plural onde caibam todxs. A luta de todas essas pessoas é diária e, aparentemente, caminha mais vagarosamente que os grandes empreendimentos que sufocam a cidade. Mas a construção dela é uma semente de um mundo melhor. Afinal, como também diria Galeano, vivemos em um mundo muito ruim, mas que está “grávido” de um mundo melhor.


130

CIDADES: a espacialização da paisagem cultural

Cláudio Listher Marques Bahia1

A descrição da paisagem de uma

que a vivenciam.

cidade é mais do que qualquer

Para tanto, propõe-se como base

entendimento lógico-científico que

desta investigação: a antropologia -

se possa ter da própria cidade.

por considerar a questão do sentido

Esta reflexão formula outra

da existência por meio da “leitura”

investigação de paisagem pela

do mundo social, aprofundando

dilatação do tempo e espaço da

o conhecimento do homem pelo

cultura urbana, passando a buscar

homem; a fenomenologia - por

outra descrição - a paisagem

tratar a questão do espaço vivido,

cultural das cidades. Pelo viés

referindo-se a experiência primária,

fenomenológico da geografia

anterior a qualquer representação

cultural, deixa-se de valorizar apenas

lógico-científica; e a hermenêutica

a descrição do mundo físico e

- por abordar a questão da

humano para também enfatizar a

temporalidade vivida, pela fusão

descrição do mundo vivido, onde a

de horizontes do fato observado

relação cidadão/cidade é percebida

e do observador no seu momento

e interpretada pelos vários sujeitos

presente.

1 Diretor Acadêmico da PUC Minas no São Gabriel. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7694046038497957


131


132


133


134


135

E, identifica-se, na dinâmica dessas

paisagem? Qual o significado

três bases de investigação,

contemporâneo do termo

um ponto convergente - a relação

paisagem cultural? Observa-se,

do homem com o espaço e o tempo,

por hipótese, que o estudo da

na qual se fundamenta toda a

paisagem apresenta, sobretudo,

interpretação desta reflexão: cidades

uma questão de ordem

– a espacialização da paisagem

epistemológica, e necessita de uma

cultural no tempo. Não se pretende

abordagem metodológica para

referir às espacializações urbanas

sua compreensão. De acordo com

apenas por meio de suas geografias,

George Bertrand (2002),

de suas experiências estéticas

a paisagem não é apenas recortes

passadas, de suas arquiteturas

de elementos de determinada área

visíveis e compositivas do cenário

do conhecimento humano de inter-

urbano, mas, antes de tudo,

relacionamento improcedente.

entender a paisagem das cidades

É, em uma determinada porção do

como uma construção cultural da

espaço e do tempo, o resultado

vida civil e da sociedade no tempo.

da combinação dinâmica, desse

Compreende-se que o território

modo instável, de elementos físicos,

urbano é uma espacialidade dotada

biológicos e antrópicos que, em

de valores socioculturais próprios

uma relação dialética, tornam a

de cada temporalidade. A questão

paisagem um conjunto único e

que se apresenta pela investigação e

indissociável da vida humana, em

construção da paisagem cultural das

constante evolução. Não se trata

cidades implica uma territorialidade

apenas da paisagem “natural”, mas

estabelecida pelo conjunto de

da paisagem total que integra as

práticas e expressões materiais

implicações da ação antrópica.

e simbólicas que garantiram e garantem a apropriação e a

O estudo da paisagem das cidades

permanência do lugar da sociedade

deve sim apresentar um problema

urbana no espaço construído.

de método. Principalmente, se a

Entende-se o espaço construído

paisagem é adjetivada pelo termo

como um lugar cujo conceito está

cultural, o seu entendimento requer

subordinado à organização espacial

atenção de uma investigação

- é o espaço revestido da dimensão

científica, pois uma determinação

política, socioeconômica, cultural

de paisagem cultural, a priori,

e de sentido identitário, histórico e

remete-se a um complexo ambiente

relacional do sujeito que o habita.

de significação antropológica, que indica uma inicial e geral

Todavia, uma questão crucial permanece: afinal, o que é

compreensão do termo cultura:


136


137


138

Sistemas de valores subjacentes que

tema específico de investigação.

estruturam as tomadas de posturas

Entretanto, no século 20,

fundamentais da vida cotidiana, que

paulatinamente o termo paisagem

passam despercebidos à consciência

foi sendo desconsiderado pelas artes

dos sujeitos, mas são decisivos

e vem se transformando em objeto

para a sua identidade individual e

da pesquisa acadêmica e, no século

de grupo. (CERTEAU & GIARD &

21, tem se reafirmado na pluralidade

MAYOL, 1997, p. 347).

conceitual, na formalidade estrutural e na forma de apreensão, passando

Considerando-se sua origem a

a ser objeto de interesse de

partir da descrição do ambiente

estudos de geógrafos, arquitetos e

que envolve o homem, o estudo

historiadores.

da paisagem cultural das cidades ocupa-se atualmente, com maior

Numa perspectiva contemporânea

atenção, da rede relacional que

da geografia cultural, Augustin

historicamente liga os homens ao

Berque (1998) definiu paisagem a

território.

partir da dinâmica de dois conceitos: paisagem-marca e paisagem-

Este trabalho objetiva uma base

matriz. Marca, pois expressa uma

teórica geográfica para uma

civilização, e matriz porque participa

metodologia que construa um

dos esquemas de percepção e de

entendimento sobre paisagem

ação da cultura – que canalizam,

cultural hoje. A questão

em certo sentido, a relação de uma

metodológica para a compreensão

sociedade com o espaço e com

do termo paisagem cultural das

a natureza, e, consequentemente

cidades firma-se a partir de uma

a paisagem de seu ecúmeno. O

perspectiva transdisciplinar pela

estudo da paisagem, que tendo

Geografia, Arquitetura e História.

sua origem pela descrição do ambiente que envolve o homem,

IDENTIDADE, LUGAR E PAISAGEM

ocupa-se com maior atenção, com a rede relacional que historicamente liga, por exemplo, os cidadãos

O termo paisagem remete sua

ao seu lugar – a cidade, e parte

origem ao século 15 e, até o século

para uma investigação de relação

20, apresentou-se como vocábulo

dinâmica e dialética da paisagem

mais aplicado à atividade artística

em si e as categorias de análises

da pintura, e não provocando

estabelecidas por Roger Brunet

discussões sobre seu significado,

(1995): fisionômica, da percepção e

nem maiores preocupações

dos sistemas.

conceituais e muito menos foi


139


140


141


142


143

A paisagem além de carregar

das práticas políticas e culturais.

a marca da cultura se constitui também objeto privilegiado dos

No pensamento tradicional

trabalhos da geografia cultural e

geográfico a paisagem ocupou papel

cuja interpretação é uma tarefa

relevante, inclusive no âmbito da

fascinante para os geógrafos

abordagem morfológica tradicional

ocupados com as realidades

da cidade, sendo, posteriormente,

culturais, entendendo que cultura é

abandonada pela corrente teórico-

um fator essencial de diferenciação

quantitativa, reemergindo na

social, uma construção que

perspectiva humanística. O tema

permite aos indivíduos e grupos se

paisagem volta ao debate da

projetarem no futuro e nos aléns

geografia como, por exemplo:

variados; em suma, é a mediação entre os homens e a natureza

- o conceito de paisagem urbana

e ainda pode-se constatar que

como aspecto particular da evolução

a geografia cultural apresenta,

geral do conceito de paisagem –

desde seus primórdios, uma base

maior riqueza de reflexão teórico-

antropológica e um crescente

metodológico, acarretando

referencial fenomenológico,

facilidade na compreensão dos

principalmente na publicação de

fundamentos epistemológicos nas

L‘homme et laterre: nature de la

variações históricas do termo;

réalité geographique de Eric Dardel, em 1952, e no texto de apresentação

- e o entendimento de paisagem

da reedição pelos geógrafos

cultural a partir da interação dos

franceses Jean-Marc Beese e

três temas da paisagem urbana

Philippe Pinchemel, em 1990.

abordados por Horácio Capel (2002) – a dinâmica morfológico-

O pensamento fenomenológico

funcional urbana, a compreensão

iniciado nos meados do século 20

da cidade como fato cultural e

na geografia cultural revelou um

análise tecnológica das informações

processo de renovação no qual a

espaciais (GIS).

tradição humanista, alicerçada em Ratzel e Vidal de La Blache, e a

No desenvolvimento do pensamento

posição teórica da geografia cultural,

geográfico observa-se que

em Sauer – Escola de Berkeley,

na trajetória dos conceitos de

foram reavaliadas por geógrafos

paisagem identificam-se aspectos

contextualizados na valorização da

de convergências e divergências.

cultura. A nova tarefa da geografia

A geografia cultural surge das

cultural foi tratar de examinar o

paisagens e da diversidade dos

papel das paisagens na constituição

gêneros de vida, e, pela cultura


144


145


146

institui o sujeito, a sociedade

afetiva e simbólica, é o mundo da

e o lugar onde é desenvolvida

existência, dos lugares, da paisagem,

a coletividade, resultando na

que rearranja as dimensões do

identidade coletiva que delineia

conhecimento, e principalmente

as marcas exteriores e explica as

lugar daquelas ações no mundo

diferenciações dos sistemas de

vivido.

valores nos quais se desenvolvem os grupos humanos.

A geografia cultural tomou parte das preocupações contemporâneas

A perspectiva fenomenológica da

sobre as questões e fenômenos

geografia cultural valoriza e enfatiza

identitários, em especial pela

a descrição do mundo vivido, onde

identidade dos lugares e sua

a relação sujeito/objeto é percebida

interatividade na formação

e interpretada pelos vários agentes.

da consciência individual e de

O sujeito que olha todas as coisas

grupo, que, pela perspectiva de

também pode olhar a si mesmo e

Dardel, foi elaborada a partir da

reconhecer-se no que está vendo,

geografia humanista. Os geógrafos

como definiu Merleau-Ponty,

humanistas, mesmo não tendo uma fundamentação fenomenológica,

o mundo não é aquilo que penso,

favoreceram as bases da

mas aquilo que eu vivo; estou

fenomenologia na geografia ao

aberto ao mundo, comunico

pensar os lugares e as regiões como

indubitavelmente com ele, mas não

mundo vivido.

o possuo, ele é inesgotável... ele é um meio natural e o campo de todos

Mais recentemente, a geografia

os meus pensamentos e de todas

cultural apresentou um emergente

as minhas percepções explicitas.

e discreto viés fenomenológico em

(MERLEAU-PONTY, 1999, p.14).

que se percebe a compreensão do espaço como espaço vivido.

Esse mundo que não é o que se

E assim a paisagem, criadora e

pensa, mas aquilo que se vive, está

criatura do processo de urbanização,

relacionado na fenomenologia

da rede urbana e da vida da

de Merleau-Ponty e também na

cidade, constitui-se lugar fértil

geografia cultural de Dardel.

- mundo vivido, à investigação fenomenológica da geografia

Para Dardel a Geografia não

cultural, conforme afirmação de

considera a natureza em si, mas

Werther Holzer (1996),

a relação dos homens com a natureza, uma relação existencial

A paisagem, assim como o lugar

que é, às vezes, teórica, prática,

e a região, é um desses termos


147


148


149


150

que permitem à geografia colocar-

os pensamentos do intelectual

se como uma das ciências das

Thomas Kuhn, do filósofo sociólogo

essências nos moldes propostos

francês Henri Lèfebvre, do geógrafo

pela fenomenologia. Ela nos remete

americano Edward Soja e, no Brasil,

para o mundo que é um campo

também geógrafo Milton Santos,

que se estrutura na relação do eu

assistindo-se assim, nessa evolução,

com o outro, o reino onde ocorre

um crescente acirramento de

nossa história, onde encontramos

uma realidade do conhecimento

as coisas, os outros e nós mesmos.

geográfico de intensa diversidade

(HOLZER, 1996, p. 72).

temática e de um cenário epistemológico difuso.

Pensando a fenomenologia na geografia cultural referenciada

A partir dessa reflexão

em Dardel, localiza-se também

fenomenológica e epistemológica

o pensamento de Edward Relph

pode-se observar uma convergência

(1978), que compreende o lugar

de postura crítica entre três áreas

como mundo vivido, mas vai além

de conhecimento distintas: a

ao definir que não há limites a serem

Geografia Cultural, a Arquitetura e

delineados entre espaço, paisagem

a História. Esta convergência toma

e lugar – lugares têm paisagem, e

nítido contorno quando se observa

paisagem e espaços têm lugares

que os arquitetos contemporâneos

(RELPH, 1978, p. 3).

têm considerado a cidade como um lugar distinto em suas formas

O lugar é entendido, conforme

de organização urbana, de

Mathias le Bossé (2004), como

manifestações cotidianas, de seus

o baluarte fundamental da

ritos e de seu ritmo: a memória

identidade cultural, não só pelo

cultural das marcas da interação

sentido naturalista, mas pelo

entre cidade e seus cidadãos na

vínculo fenomenológico que ancora

experiência vivida no seu momento

naquilo que Dardel determinou

presente, entendendo que a cidade

como geograficidades. Os lugares

revela uma paisagem significante

desempenham papel fundamental

que confere ao seu morador a

na formação de consciências

noção de pertencer a um lugar que

individuais e coletivas.

é único, mundo vivido, e a um povo que tem identidade própria. Então,

Hoje, se observada a epistemologia

mais recentemente pela Arquitetura,

geográfica, de ciência moderna,

verifica-se que é a paisagem cultural

preconizada por Kant, à fronteira

das cidades que lhe confere unidade

da Geografia Cultural, reafirmada

e situa o seu habitante no tempo e

por Dardel, encontram-se também

no espaço.


151


152


153


154


155

Afinal, que paisagem é essa?

sociedade, e ainda estar intimamente relacionada à natureza. A arquitetura

Pelo olhar contemporâneo, cultura

dos edifícios não representaria mais

e cidade são entendimentos

que um aspecto de uma realidade

indissociáveis e constituem o vetor

mais complexa, de uma estrutura

componente do objeto desta

particular, mas ao mesmo tempo,

reflexão - a paisagem cultural das

seria o dado último verificável

cidades.

dessa realidade mais concreta com o qual se pode encarar a cidade.

Destarte, apresenta-se aqui uma

Nessa perspectiva, considera e

abordagem epistemológica aliada a

caracterizam-se os edifícios como

uma ação transdisciplinar elegendo a

“fatos urbanos” (ROSSI, 1998, p. 22).

Geografia, a História e a Arquitetura

Na ideia de Amos Rapoport (1969),

como ambientes investigatórios da

segundo certa ênfase conceptiva e

paisagem cultural das cidades:

projetual arquitetônica, entendeuse a arquitetura como um ambiente

a) a História, pela reflexão

construído organizado por

humanística; a análise histórica

quatro elementos: espaço, tempo,

a partir dos conceitos de

comunicação e significado, que

descontinuidade, de ruptura,

caracterizam os edifícios como

de limiar, de limite, de série,

espaços arquiteturais qualificados

de transformação. A História

como lugares, dotados de

determina não somente questões

significação, e fundamentalmente

de procedimento, mas também

espacializados pela praxe social.

problemas teóricos.

E, numa simplificação de sua própria ideia, Rapoport concluiria que ao

b) a Arquitetura, pela manifestação

conceber um projeto arquitetônico

absolutamente coletiva, inseparável

organiza-se o tempo e o espaço.

da formação da civilização e

Bernard Tschumi (1999), ainda,

objeto permanente universal e

opôs-se à noção superestimada

necessário, no qual a arquitetura

da forma arquitetural, mais

é dado real que se remete à

particularmente reintegrou o termo

experiência concreta do sujeito

função, e reescreveu o movimento

no mundo, assumindo dimensão

das pessoas no espaço junto com

existencial e, concomitantemente,

a ação e eventos que se localizam

caracterizando-se em suas bases

dentro do campo político-social

estáveis - ambiente propício à vida

arquitetônico. A definição de

e intencionalidade estética, nesse

Arquitetura como simultaneamente

sentido diferindo-a de outras artes

espaço e evento trouxe de volta

e ciências por dar forma concreta à

o interesse político ou, mais


156


157


158

precisamente, a questão do espaço

e o momento presente estabelecem

como relativo à prática social.

a tarefa de integração pétrea entre

Concluiria Bernard Tschumi, que,

o agora e o antes. E, finalmente, na

se a Arquitetura não é “forma pura”,

consolidação do tempo e espaço

nem exclusivamente determinada

dos edifícios como ambiente da

pela estrutura socioeconômica ou

práxis social, a Arquitetura mostra-

funcional, a pesquisa para a sua

se transcendente de sua própria

definição deve-se desenvolver na

representação cultural, por não ser

dimensão urbana. Observou-se

apenas um testemunho de uma

que tais autores, ao relacionarem

forma de organização dada pela

o homem ao ambiente construído,

cultura, mas por ser também sua

consideraram os edifícios

guardiã, conferindo, à questão

como obras de Arquitetura que

edilícia e urbana da Arquitetura

fundamentam e organizam-se

status de fato cultural.

no tempo e espaço da existência humana. Entenderam, como na

c) a Geografia, pela natureza

acepção de Maurice Merleau-Ponty

científica; dentro de uma perspectiva

(1945), formulada na sua obra

de estudos urbanos na geografia

Fenomenologia da Percepção, o

cultural, procura-se a partir de

espaço não como uma categoria

uma atitude epistemológica

abortada das coisas, mas o

uma metodologia que resulte

mediador de sua existência. Se

numa definição de paisagem

espacialmente está implícita a

cultural. A Geografia como ciência

dimensão da existência do homem

sempre foi esse pensamento

nas definições de arquitetura

extraordinariamente ativo, essa

de Rapoport e Tschumi pelo

anterioridade de tratar todo ser

entendimento de que “o corpo é

e seu ambiente a princípio como

o sujeito do espaço – o espaço

objeto em geral e no segundo

é existencial porque pertence a

momento nas particularidades,

própria essência do ser”, como

a um tempo como se eles nada

definiu Merleau-Ponty (1999, p. 337),

fossem e, no entanto, se achassem

esses autores compreenderam

predestinados aos nossos artifícios.

também que o tempo está

Portanto, manifesta-se sempre no

relacionado com a vivência.

homem uma forma de pensamento

Essa vivência é a experiência

de natureza geográfica, no qual

temporal no espaço vivido, além de

indagações de ordem espacial,

representar valores estruturantes da

tais como aquelas associadas à

memória e da existência rotineira da

localização, ao deslocamento e ao

vida urbana, nos quais a interação

território imediato, ainda emergem

de obras de arquitetura do passado

como questões indissociáveis


159


160


161


162


163

da sobrevivência. Ou melhor,

Objetiva-se, portanto, compreender

epistemologicamente do empirismo

e interpretar a cidade pela sua

à ciência e fenomenologicamente

dinâmica cultural e seus predicados

um retorno às coisas mesmas .

morfológico-funcionais para que, numa ação posterior, compreender

Entende-se que a paisagem cultural,

e interpretar o espaço urbano

a partir da Geografia, da Arquitetura

constitua o acontecimento do objeto

e da História, é um aspecto

observado - a própria cidade.

fundante e peculiar da civilização, representativa do processo de

A conceituação de paisagem cultural

intenção do homem com o meio

das cidades está alicerçada no

natural, considerando o caráter

patrimônio de cultura da sociedade,

dinâmico da cultura com a qual a

formado por bens de natureza

vida e a ciência humana produzem,

material e imaterial, nos quais se

por exemplo, a cidade - suas formas

incluem as formas de expressão,

de organização, suas manifestações

saberes e fazeres, criações

cotidianas, seus ritos, seu ritmo -

científicas, artísticas e tecnológicas,

imprimindo marcas ou atribuindo

as edificações, os conjuntos urbanos,

valores à paisagem urbana.

espaços para manifestações

PAISAGEM CULTURAL – uma questão de método transdisciplinar

artístico-culturais, sítios de valores históricos e paisagísticos, e outros. Com a instrumentalização e os pressupostos teórico-metodológicos

No século 20, o termo cultura

da transdisciplinaridade

apresentou um esgotamento de seu

geoarquitetônica-histórica, ocupa-

significado, restringindo-se a uma

se esta reflexão, que após uma

discussão particular da vida social,

abordagem histórico-evolutiva dos

concebida como um “modo vida

conceitos de paisagem cultural

cultivado” como também no “estado

e, em particular, de paisagem

mental do desenvolvimento de uma

urbana, passa-se da imprescindível

sociedade”. (ORTIZ, 1988, p. 19).

fundamentação epistemológica

E a paisagem urbana entendeu-se

do estudo da paisagem urbana à

pelo caráter dinâmico da cultura e

investigação empírica da paisagem e

da ação humana sobre o território

sua inerente relação orgânica com a

urbano e pela sua convivência

evolução urbanística das cidades.

com as transformações inerentes ao desenvolvimento econômico e

Nesse panorama, uma

social.

problematização se faz possível pela transdisciplinaridade da Arquitetura


164


165


166

e Urbanismo, da Geografia e da

tempo, companheiro das gerações,

História – o entendimento da

e é constituída para além da sua

paisagem cultural como ação para

imagem física, delineando-se por

estruturação conceitual da atividade

um conceito mais amplo e dinâmico

do arquiteto-urbanista no processo

de cidade – paisagem cultural,

e sobre o fenômeno da urbanização

entendendo-se por cultura, como

contemporânea e sua consequente

Vidal de La Blache, aquilo que se

intervenção e preservação.

interpõe entre o homem e o meio, e humaniza as paisagens. Mas é

A constituição do patrimônio

também uma estrutura geralmente

cultural e da memória urbana é uma

estável de comportamento, que

prática característica dos Estados

interessa descrever e explicar.

modernos que, pelos seus agentes, recrutados entre os intelectuais, e

Destarte, apresenta-se como base

seus instrumentos jurídicos, abalizam

metodológica uma abordagem

um conjunto de bens naturais ou

epistemológica aliada a um

construídos na esfera pública. Pelo

substrato legal e a uma ação

valor que lhes é atribuído, como

transdisciplinar, elegendo a

manifestações culturais e como

Geografia, a História e a Arquitetura

símbolos urbanos e naturais, esses

como ambiente investigatório.

bens merecem proteção, visando

Contudo, com raras exceções, as

a sua transmissão às gerações

pesquisas, por exemplo, não se têm

futuras. E, mais do que garantir sua

se envolvido com a sofisticação

transmissão, é necessário também

teórica e nem com o papel no

o entendimento de que a cidade

processo social da paisagem.

como paisagem cultural, no seu tempo presente, é um território

Neste estudo, a paisagem cultural

significante que confere ao morador

é fundamentada e organizada

a noção de pertencer a um lugar

no tempo e espaço da existência

que é único e a um povo que tem

humana; e o tempo está relacionado

identidade própria. A partir do

com a vivência e essa vivência é

patrimônio e da memória urbana,

a experiência temporal no espaço

contextualizam-se não apenas o

vivido, além de representar valores

bem de referência, mas todo o

estruturantes da memória e da

espaço apropriado historicamente e

existência rotineira da vida urbana,

constituído na paisagem urbana. A

nas quais a interação do passado e

paisagem da cidade tem vitalidade

o momento presente estabelecem a

porque tem lastro e porque vive,

tarefa de integração pétrea entre o

inserindo-se dinamicamente no

agora e o antes.


167

E, finalmente, na consolidação do

- e a estrutura transversal de um

tempo e espaço como ambiente da

pensamento geoarquitetural-

práxis social, a paisagem cultural

histórico.

mostra-se transcendente de sua própria representação cultural, por

Entendendo a transdisciplinaridade

não ser apenas um testemunho de

como última fronteira do processo

uma forma de organização dada

cognitivo humano, não só pela

pela cultura, mas por ser também

transversalidade do conhecimento

sua guardiã, conferindo à questão

da Geografia, da História e da

paisagem das cidades status de fato

Arquitetura, mas como também

cultural.

pelo procedimento científico a partir de um pensamento complexo que

Assim, pela abordagem

visa à criação de uma meta e não

fenomenológica da historicidade

de um ponto de vista, inicialmente,

e preservação da essência do

referencia-se, no espaço e tempo,

conteúdo epistemológico da

nos conhecimentos geográficos,

evolução do espaço e tempo

arquitetônicos e históricos - pelas

urbano, este trabalho organiza a

identidades e territorialidades

transversalidade do pensamento

das rupturas epistemológicas

geográfico, arquitetônico e histórico

socioculturais, e no termo paisagem

pelas rupturas epistemológicas e

- pela amplitude e polissemia

paisagens das cidades.

conceitual. O objetivo não está em fazer uma adição de conhecimentos,

Como investigação dos limites da

mas selecionar e organizar

faculdade humana de conhecimento

conhecimentos necessários para o

e os parâmetros condicionantes

entendimento da paisagem cultural

da validade desses conhecimentos

de cidades, advindo da ciência

entende-se a epistemologia da

geográfica e sua linha tênue que

cultura urbana que, juntamente

limita o comprometimento e a

às fronteiras com a pesquisa

autoridade das outras disciplinas –

geográfica, histórica e arquitetônica,

Arquitetura e História.

define-se: Por meio da estrutura de - a análise e os critérios

temporalidades de ruptura e

intermediadores da dinâmica

consequente matriz epistemológica

da aquisição do saber a partir

e transdisciplinar geoarquitetural-

de situação empírica para o

histórica, a paisagem cultural

conhecimento científico;

apresenta-se como um conceitochave, a partir do qual se supõe


168


169


170

a construção de uma abordagem

uma interpretação de base

metodológica mais rica para

fenomenológica e hermenêutica,

o entendimento do termo na

por meio de um observador

contemporaneidade. Assim,

situado no presente, que percebe

dentro de ambientes culturais

as cidades a partir de sua

distintos descritos pelas rupturas

experiência cultural através do

epistemológicas geoarquitetural-

tempo. Este estudo apresenta a

históricas, observa-se que os

questão urbanística referenciada

conceitos de paisagem não

ao itinerário antropológico das

estabelecem unanimidades

cidades, pressupondo a construção

temporais ou disciplinares, mas

cultural da imagem urbana

uma mutação permanente.

associada à identidade do cidadão,

Entendimentos diversificados

no tempo e no espaço, pela atitude

convivem em diferentes momentos

transdisciplinar da Geografia e seus

históricos, mesmo que alguns

limites com a História e a Arquitetura

significados – objetivos e subjetivos,

da cidade.

marca e matriz, real e representação, material e imaterial – apareçam

Desse modo, a questão

dominantes em alguns períodos

metodológica para a compreensão

e conceitos menos evidentes

do termo paisagem cultural firma-

atravessem uma temporária latência

se a partir de uma perspectiva

para uma renovação posterior.

transdisciplinar e pauta-se tanto pela identificação e análise

Este estudo é uma abordagem

de rupturas, paisagens do

investigativa da paisagem cultural

conhecimento geográfico e pela

intencionalizado e fundamentado

análise transdisciplinar – Geografia,

em uma metodologia transdisciplinar

Arquitetura e História.

de pesquisa estabelecida sobre

REFERÊNCIAS

BERTRAND, Georges e BERTRAND, Claude. Une geographie traversiere – l’environnement a travers territories et temporalities. Paris: Edition Argument, 2002.


171


172

BERQUE, Augustin. Paisagem-marca, paisagem-matriz: elementos da problemática para uma geografia cultural. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (Org.). Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. p.83-89. [orig.: ______. L’Espace Géographique, t.XIII, n.1, jan/mar 1984, p.33-34.] BRUNET, Roger. Analyse des paysages et sémiologie: éléments pour un débat. In: ROGER, Alain (Org.) La théorie du paysage en France: 1974-1994. France: Champ Vallon, 1995. p.7-20. [orig.: BOSSÉ, Mathias Le. As questões de identidade em geografia cultural – algumas concepções contemporâneas. In: Paisagens, Texto e Identidade. Org.: CORRÊA, Roberto Lobato e ROSENDAHL, Zeny. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004. p.157 CAPEL, Horacio. La morfología de las ciudades. Barcelona: Ediciones del Serbal, 2002. 544p. [v.I – Sociedad, cultura y paisaje urbano.] CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: Morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, v.2. 1997. DARDEL, Eric. L’homme et la terre – nature de la réalité géographique. Paris: Ed. CTHS, 1990. (1ª edição Paris: PUF, 1952). GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis: Editora Vozes, 1997. HOLZER, Weber. A discussão fenomenológica sobre os conceitos de paisagem e lugar, território e meio ambiente. In: Revista Território, Rio de Janeiro, ano IV, 1996, p. 70 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. – cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. RAPOPORT, Amos. House, form and culture. Englewood Cliff, NJ: Prentice Hall, 1969. RELPH, Edward C. As Bases Fenomenológicas da Geografia. In: Geografia 4(7), pp. 1-25, abril, 1978. ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998. TSCHUMI, Bernard. Architecture and disjunction. Londres: MIT Press, 1999


173


174


175


176


177

De dentro da cidade – espaço urbano, arte e subversão https://www.youtube.com/watch?t=30&v=qaPkMmRBmyo

Cidades: sujeitos, espaços e contradições https://www.youtube.com/watch?t=38&v=N-9BK97K_00

Olhares sobre a cidade https://www.youtube.com/watch?v=rKeArl1bBHA


178


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.