VIVER JUNTOS

Page 1

ANAISDASCAP PODEMOS VIVER JUNTOS





Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero (ORG)

VIII SEMANA DE CIÊNCIA, ARTE E POLÍTICA DA PUC MINAS SÃO GABRIEL

ANAIS DA SCAP PODEMOS VIVER JUNTOS

PUC-MG Belo Horizonte 2016


6

FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Semana de Ciência, Arte e Política (8. : 2016 : Belo Horizonte) S471a Anais da SCAP: podemos viver juntos / Organização Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero. Belo Horizonte, 2016. 109 p.: il. ISBN: 978-85-8239-058-0 1. Movimentos sociais. 2. Pluralismo (Ciências sociais). 3. Integração social. 4. Igualdade perante a lei. 5. Política e cultura. I. Quintero, Elisa Cristina de Oliveira Rezende. II. Título.

CDU: 39.01:32


7


8

EXPEDIENTE

Secretário de Comunicação:

Organização e Edição:

Prof. Mozahir Salomão Bruck Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero

Projeto Gráfico, Direção de Arte e Diagramação:

Prof.ª Dulce Albarez

Revisão:

Prof. Mário Francisco Ianni Viggiano

Fotografias:

Tatiane Motta


9

Grão-chanceler:

Reitor:

Vice-reitora:

Dom Walmor Oliveira de Azevedo Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães Prof.ª Patrícia Bernardes

Chefia de Gabinete da Reitoria:

Prof. Paulo Roberto de Sousa

Assessor Especial:

Prof. José Tarcísio Amorim

Pró-reitores:

Prof.ª Maria Inês Martins (Graduação)

Prof. Wanderley Chieppe Felippe (Extensão)

Prof. Sérgio de Morais Hanriot (Pesquisa e de Pós-graduação)

P rof. Paulo Sérgio Gontijo do Carmo (Gestão Financeira)

Prof. Rômulo Albertini Rigueira (Logística e de Infraestrutura)

Prof. Sérgio Silveira Martins (Recursos Humanos)

Secretário de Comunicação:

Prof. Mozahir Salomão Bruck

Secretária de Cultura e Assuntos Comunitários:

Secretário Geral:

Secretário de Planejamento e Desenvolvimento Institucional:

Pró-reitor Adjunto da PUC Minas São Gabriel:

Prof.ª Maria Beatriz Rocha Cardoso Prof. Ronaldo Rajão Santiago

Prof. Carlos Barreto Ribas

Prof. Alexandre Rezende Guimarães

Diretor Acadêmico:

Prof. Cláudio Listher Marques Bahia

Coordenadora de Extensão:

Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero

Coordenadora de Pesquisa:

Prof.ª Aline Aguiar Mendes

Coordenador da Pastoral Universitária:

Assessora de Comunicação:

Frei Mário da Paixão Taurinho Michelle Stammet


10


11

ÍNDICE

EDITORIAL

Cláudio Listher Marques Bahia Elisa C. O. Rezende Quintero

12

O SENTIDO DA POLÍTICA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO: QUANDO AS RUAS QUEIMAM

Vladimir Safatle

16

OS DESAFIOS DA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À IGUALDADE: UM ENSAIO SOBRE A POPULAÇÃO NEGRA BRASILEIRA

VIVER E DEIXAR VIVER

A CIVILIZAÇÃO NUMA ENCRUZILHADA

39

Laura Alves de Oliveira

Marta Neves

72

ÁGUAS E CIDADES: UMA NOVA PERSPECTIVA

José Carlos Carvalho

Marília Carvalho de Melo

82

102


12

EDITORIAL Desde 2012, uma pergunta

convivência, como as Escolas do

formulada pelo sociólogo francês

Encontro (Scholas Occurrentes),

Alain Touraine tem marcado as

projeto do Papa Francisco em que

reflexões da SCAP: Podemos viver

jovens de países “inimigos” e de

juntos? E foi a ela que voltamos

culturas diferentes são convidados

nossas reflexões nesta oitava edição

a estudar e viver juntos em um

do evento.

aprendizado do encontro, do

Observando os novos movimentos sociais possuidores de capacidade transformadora, caracterizada pela defesa da diversidade social e cultural, reconhecendo o pluralismo e as diferenças, chegamos a lógicas diferentes para os que habitam juntos os lugares, lógicas entremeadas. Nesse contexto,

diálogo, do respeito às diferenças. E é justamente o exercício do diálogo, pressuposto básico da democracia, que tem se apresentado como um grande desafio para o país, diante do crescimento de uma pauta regressiva, de violação de direitos no Congresso Nacional.

registramos movimentos como a

O diálogo, a comunicação,

Praia da Estação, o Duelo de MCs,

as formas entremeadas de estar no

o Carnaval de Rua de Belo

mundo, o viver juntos na diversidade

Horizonte, a Ocupação das

apresentam-se como desafios da

Escolas de São Paulo, a Marcha

atualidade e constituem-se objeto

Mundial das Mulheres e tantos

de reflexão destes anais. Diante de

outros conformados em rede

nossa contemporaneidade, como

de comunicação, experiências e

se dá a política? E a diversidade?

afetos reivindicadores, sobretudo,

E a tolerância? E a preservação

da convivência e aceitação

do planeta? Vladimir Safatle traz

das diferenças. Movimentos

uma contundente reflexão em seu

que pressupõem a inclusão e a

manifesto Quando as ruas queimam.

ampliação e, portanto, a quebra

Pensando nesse manifesto, que não

de paradigmas. Os movimentos

é de hoje nem de ontem, no que não

nas redes e em redes não param

conhece a lei do Estado atual, que se

por aí. Observamos o surgimento

encontra nossa imaginação política.

em todo o mundo de iniciativas

E, ainda, lembra Safatle:

que promovem novas formas de

não bastam revolta e crise, não


13

bastam análise e crítica. Uma revolta

antropocentrista e a falsa ideia

é uma revolta, é uma revolta e esse

da inesgotabilidade dos recursos

retorno contínuo sobre si pode

naturais; e, Marília Carvalho de Melo

produzir apenas melancolia e, por

questiona o modelo desenvolvido

fim, derrisão aristocrática.

nas grandes cidades brasileiras, em

Mas quando a revolta e a crítica são

que os recursos naturais não foram

impulsos para a imaginação política,

integrados ao planejamento urbano

então não há mais tautologias.

como elementos de qualidade de

E as ruas queimam.

vida, bem-estar e convívio social.

E queima também aqui a dramática

E ao longo de toda esta edição

poética narrativa de Marta Neves, no texto Viver e Deixar Viver, que, pela diversidade das formas entremeadas de estar no mundo, solidariza-se com pessoas maravilhosas e suas histórias de vida no enfrentamento de tanta intolerância. E não menos graves, os desafios da efetivação do direito à igualdade apresentados na reflexão de Laura Alves de Oliveira. Apresentam-se, ainda, mais outras duas reflexões sobre o planeta e sua preservação: José Carlos Carvalho discute e percebe a civilização contemporânea numa encruzilhada, a partir de visão distorcida influenciada por dois grandes mitos reforçados pela revolução industrial e pelo enfoque materialista do último século: o paroxismo

somos surpreendidos pelas imagens captadas, durante o Carnaval de Rua de Belo Horizonte, pela fotógrafa Tatiane Motta. Se o espaço transformou-se em um instrumento de poder, a ocupação das ruas pela população institui novas espacialidades que apontam para outras formas do viver juntos. A responsabilidade sociocultural da VIII Semana de Ciência, Arte e Política (SCAP) da PUC Minas, unidade São Gabriel, fica documentada nestes anais: Podemos Viver Juntos constituídos numa valorosa reflexão crítica a partir de artigos, ideias e discussões apresentados e desenvolvidos durante sua realização. Leiam e reflitam.

Prof. Cláudio Listher Marques Bahia Diretor Acadêmico da PUC Minas São Gabriel Prof.ª Elisa Cristina de Oliveira Rezende Quintero Coordenadora de Extensão da PUC Minas São Gabriel


14


15


16

O SENTIDO DA POLÍTICA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO: quando as ruas queimam1 Vladimir Safatle2

Gostaria de agradecer o convite da

Brasília. Elas ainda queimarão em

PUC Minas para vir aqui e conversar

muitos outros e imprevistos lugares,

com vocês sobre essas questões

recolocando o que é separado pelo

tão importantes para todos nós.

espaço em uma série convergente

Eu fiz uma pequena modificação,

no tempo. Na verdade, por mais

então, na verdade, mais do que

que alguns procurem se convencer

uma conferência, eu gostaria de ler

do contrário, por mais que agora o

para vocês um manifesto que eu

fogo pareça ter momentaneamente

escrevi e que está saindo agora em

se retraído, as ruas desde então

primeira mão. Ele gira em torno das

não pararam de queimar, elas só

questões que foram sugeridas para

deslocaram suas intensidades.

serem discutidas. O título é “Quando

É importante lembrar disso, pois

as ruas queimam” e eu gostaria de

há algo que pode existir apenas

dizer o seguinte:

quando as chamas explodem em uma coreografia incontrolada de

Haveria de chegar um tempo no

intensidades variáveis. Por isso,

qual as ruas começariam a queimar.

diante de ruas queimando não há

Desde 2008, elas queimam nos mais

de se correr, não há de se gritar,

variados lugares. Em Túnis, em São

há apenas de se perguntar: o que

Paulo, no Cairo, Istambul, Rio de

fala o fogo? O que diz apenas sob

Janeiro, Madri, Nova York, Santiago,

a forma do fogo?

1

Transcrição da conferência proferida por Vladimir Safatle em 29 de agosto de 2016 na PUC Minas São Gabriel.

2 http://lattes.cnpq.br/7208476340192177


17


18


19


20

Quem ouve o fogo a queimar ruas

visibilidade e nomeação, controla

perceberá que ele diz sempre a

o que irá aparecer e como se

mesma coisa: que o tempo acabou.

construirão circuitos de afetos.

Não apenas que não temos mais

Por isso, a negatividade sempre

tempo, mas principalmente que

foi uma astúcia daqueles que

não há mais como contar o tempo

compreendem que a liberdade passa

que está a nascer como uma

pela capacidade de destituir o Outro

possibilidade mais uma vez presente.

da força da enunciação dos regimes

Um tempo que não se conta mais,

de visibilidade possíveis. “Eu sou

que não se narra mais, que não

ninguém” é, na verdade, a forma

se habita mais tal como até agora

contraída de: Eu sou o que você não

se habitou. Este tempo produzirá

nomeia e não consegue representar.

suas narrativas e seus habitantes

Para existir, é necessário fazer a

e queimará o tempo no qual

linguagem encontrar seu ponto de

narrávamos e habitávamos e contará

colapso. Nós somos apenas lá onde

com números que não conhecemos

a linguagem encontra seu ponto

e terá tensões que não saberíamos

de colapso. Na verdade, existir é

como deduzir e despossuirá e não

colocar em circulação um vazio que

será mais medido como instante ou

destitui, uma nomeação que quebra

duração e será outro ao fim e ao

os nomes.

cabo. Contra este tempo e este espaço, Quem ouve o fogo perceberá que

o poder inventa todas as formas de

ele também diz outra coisa: que não

urgências, de ataques terroristas,

há mais lugar. Em 2013, quando no

de crises econômicas, de violência

Brasil as ruas começaram a queimar,

estatal. Ele exige uma solidariedade

uma jornalista entrevistou um

à situação atual forjada no medo e

manifestante. Ao final, ela perguntou

no gozo. Poucos são os que aderem

seu nome: Anota aí, eu sou ninguém.

à situação atual a partir de uma

De fato, a frase não poderia ser mais

ética da convicção; a grande maioria

clara. Como um Ulisses redivivo

adere simplesmente sem crença.

diante dos gigantes Polifemo que

O que não poderia ser diferente,

parecem vir atualmente de todos

já que o poder atual baseia-se na

os lados, ele encontrou na negação

mobilização contínua da ausência de

de si a astúcia maior para conservar

saída, da ausência de escolha.

seu próprio destino. Por mais

Sua lógica é a lógica do

paradoxal que possa inicialmente

sufocamento. Esta é uma das mais

parecer, “eu sou ninguém” é a mais

miseráveis ironias de nosso tempo:

forte de todas as armas políticas.

um regime que prega a livre-escolha

Pois quem controla o modo de

legitima-se através da insistência


21

contínua de que não temos escolha.

o crime não é uma patologia social,

Não há outro caminho, diz o

mas um dispositivo fundamental

mantra dos economistas-jornalistas,

para o fortalecimento da coesão.

consultores de sistemas financeiros

Por isso, nunca houve e nunca

especializados em se salvar na base

haverá sociedade sem crime.

do assalto ao dinheiro público. E só

Através do crime, a sociedade

há uma forma de levar as pessoas a

fortalece seu sentimento de unidade

acreditarem não ter escolhas: há de

contra o dano sofrido,

se gerir e produzir continuamente o

ela volta à vida por ter um risco de

medo, gerir situações de emergência

desagregação à espreita. Ela precisa

que se tornam regra, criar um regime

do crime. Na governabilidade atual,

que se sustenta na contradição

o crime não é algo que se combate,

de ser, ao mesmo tempo, liberal e

ele é algo que se gerencia. Tudo

militarista, permissivo e restritivo,

fica mais fácil quando o governo se

que prega a liberdade individual mas

reduz a um gabinete de crise. Isso

grampeia seu telefone. Um regime

talvez nos explique por que nossa

que invade sua privacidade em

época passará à história exatamente

nome de sua própria segurança.

como o momento em que a crise, em todas as suas formas, virou

Por isso, ele necessita fazer os

uma forma de governo. O ideal

ataques terroristas reverberarem

do neoliberalismo é transformar a

no mundo inteiro, com imagens

prática de governo na gestão de um

se repetindo de forma obsessiva

gabinete infinito de crise.

comentadas por jornalistas com seu espanto ensaiado, para afinal

Isso é facilitado pelo fato de o

alimentar mais ataques com essa

neoliberalismo ser, mais do que

promessa tácita de sucesso de

uma doutrina econômica, um

audiência, para arrastar todos

discurso moral. Sua necessidade se

os que caíram sob a lógica do

impõe a nós como uma injunção

ressentimento social à promessa

moral, como uma moral baseada

de fim do anonimato e de

na coragem enquanto virtude.

protagonismo encarnado no papel

Coragem para assumir o risco de

principal na cena mundial. O gosto

viver em um mundo no qual só se

macabro pela visibilidade de eventos

sobreviveria através da inovação,

de violência espetacular é apenas

da flexibilidade e da criatividade.

a prova da necessidade contínua

Assumir riscos no livre-mercado

de catástrofes e de circulação

aparece atualmente como a

de insegurança como prática de

expressão maior de maturidade

governo. Como já dizia Durkheim,

viril, como saída da minoridade a

e isto nossos governos sabem bem,

que estariam submetidos aqueles


22


23


24

pretensamente infantilizados pela

com todas as suas forças, negar

demanda de amparo do estado-

que o tempo acabou e que o

providência. Esse mantra leva os

lugar implodiu. Eles se servem da

sujeitos a acreditarem que, se eles

abertura produzida pelas chamas

fracassaram economicamente, é por

que queimam nossas ruas para

culpa absolutamente individual, por

usar o fogo na caldeira que cozinha

culpa da minha incapacidade de me

o festim de sentimentos reativos,

reinventar, de me reciclar como uma

sua ressurreição de arcaísmos com

garrafa pet. Enquanto essa moral

seus golpes brancos, suas fronteiras

do risco simulado era brandida

e suas bandeiras. Foram esses

em voz alta, dois economistas

golpes e essas fronteiras e essas

italianos (Guglielmo Barone e Sauro

bandeiras e esses arcaísmos que nos

Mocetti) divulgaram em 2016 um

fizeram perder até agora e inocular

sintomático estudo mostrando

melancolia em alguns daqueles

como o sobrenome das pessoas

que poderiam estar no campo de

ricas em Florença são, em larga

batalha. Mas lembremos a estes de

medida, os mesmos de 1427 a 2011.

forma clara: Não, nós nunca fomos

Certamente, deve ser por mérito e

derrotados.

pela capacidade destas famílias em educar seus filhos para ter coragem

É verdade, nós perdemos várias

diante do risco.

vezes, mas nunca fomos derrotados.

Até porque, podem ficar tranquilos,

Pois nossas derrotas são, na

pois na primeira crise o Estado irá

verdade, o fogo alto que forja o aço

salvá-los, como salvou Citibank,

de nossas vitórias. Toda verdadeira

BNP/Paribas, Deutsche Bank e

vitória é fruto da elaboração

tantos outros durante séculos.

profunda sobre perdas. Ela reverbera

O que se diz atualmente é: contra

o desejo animal de nunca mais

este patrimonialismo explícito

perder. Por isso, só vence quem caiu

travestido de mérito, contra este

e clama com paciência por uma

rentismo que se faz passar por

segunda chance. Ela virá, mais cedo

coragem não há escolha.

do que esperamos. É isso que nos leva a afirmar que tais perdas não

Há de se ter clareza desse ponto

são derrotas alguma. Talvez o traço

para compreender um paradoxo.

mais sublime e incompreendido da

Costumamos acreditar que de

filosofia hegeliana seja a certeza

todo acontecimento emerge um

de que as feridas do Espírito são

novo sujeito político. Mas nosso

curadas sem deixar cicatrizes. Isso

tempo tem mostrado como todo

significa muita coisa, entre elas que

acontecimento produz também

nada, absolutamente nada, terá a

múltiplos sujeitos que procuram,

força de bloquear, de uma vez por


25

todas, a possibilidade de realizar

demorará até entendermos sua

nosso destino. Há momentos em

pulsação. Esta abertura traz

que este destino fala baixo, mas ele

sempre a decomposição das

nunca se cala e é isso o que importa.

formas até então presentes de unidade. No entanto, é nesta

No entanto, é certo que nada nos

hora que mais precisamos de

exime de nos perguntarmos por que

outro corpo para que a perda

nossas perdas são tão constantes

do antigo corpo não produza

nestes últimos tempos. Por que

apenas a fragmentação paralisante

as ruas queimando desde 2008,

de demandas em processo de

por que as nossas ruas queimando

autonomia. Um outro corpo que

desde 2013 não produziram ainda

agencie todas as demandas

as transformações que poderiam

múltiplas em uma constelação,

produzir? Por que esta força efetiva

que desenhe constelações nas

da reação? Várias são as razões

quais os lugares específicos

que poderiam ser levantadas, mas

sejam submetidos a um empuxo

talvez seja o caso de se deter diante

irresistível de indiferenciação e de

de uma, a saber, porque não temos

descentramento. No interior de um

mais um corpo e não há, nem

corpo político construído como

nunca haverá, política possível sem

uma constelação, não há lugar de

corpo. Se quisermos voltar a vencer,

fala, e não há equívoco maior dos

precisaremos de um corpo. Teremos

tempos que correm do que associar

que aprender a dizer, como David

política à constituição de lugares de

Cronenberg: Vida longa à nova

fala, lugares de quem luta contra a

carne. Insurreição não é emergência,

exclusão que acabam produzindo

ou seja, uma insurreição não é

novas exclusões.

necessariamente a emergência de um novo sujeito político.

Ao contrário, no interior da

A insurreição pode ser a explosão

experiência política efetiva há falas

bruta da revolta, mas para que esta

sem lugar, falas que desestruturam

revolta forje um sujeito emergente

a geometria dura dos lugares, há

é necessário ainda mais um esforço.

formas sem figuras.

Só mais um esforço.

Há a monstruosidade caótica de falas sem perspectivas e a beleza

Quando o tempo acaba, a primeira

bruta de singularidades que não

coisa que ocorre é perdermos a

se localizam. Pois construir uma

capacidade de incorporar, de fazer

constelação significa permitir

um corpo político da multiplicidade

a todos os elementos em seu

de demandas sociais. Pois estamos

interior mudar continuamente

a abrir um tempo outro no qual

de lugar, circular em uma zona


26


27


28

de indeterminação na qual todas

de quem é ninguém. Foi quando a

as diferenças se implicam e se

multiplicidade das vozes apareceu

descentram. Uma constelação

como a expressão da univocidade

produz uma síntese sem unidade,

de um sujeito presente em todos

e é isto o que mais precisamos

os lugares, mas com a consciência

atualmente. Ela produz corpos

de sua ausência radical de lugar,

políticos sem hierarquia e

que a revolta deixou de ser apenas

funcionalidade, que transformam

revolta. Pois esta força de síntese

sua força de implicação em empuxo

de outra ordem que aparece através

de indiferenciação.

da univocidade da nomeação era a condição para que a imaginação

Lembremos o que isso realmente

política entrasse em operação,

significa. Tal como o nosso tempo,

permitindo a emergência de um

o século XIX conheceu uma

novo sujeito. De certa forma, é isto

sequência impressionante de

que nos falta: precisamos ser,

revoltas, movimentos e insatisfação

mais uma vez, proletários.

social vindos de crises econômicas profundas por todos os lados da

Ser proletário pode significar,

Europa. Tal como agora, as ruas

principalmente, vincular-se ao que

queimaram em sequência. Mineiros

não tem nome. Lembremos de

da Silésia, operários ingleses,

Antígona e de seu gesto político

tecelões franceses: todos eles

por excelência, a saber, sua decisão

pararam as fábricas, quebraram

de enterrar seu irmão, mesmo a

máquinas, montaram barricadas,

despeito de decreto de Creonte,

desafiaram a ordem instituída.

representante do poder de Estado.

No entanto, essa multiplicidade de

Não enterrar alguém é a figura mais

revoltas só se transformou em um

clara do apagamento do nome e do

fantasma a assombrar o tempo

lugar. Séculos e séculos tentaram

presente quando todas as ruas

deslegitimar a natureza política de

queimando foram vistas como a

seu gesto ao dizer que se tratava

expressão de um só corpo político,

simplesmente da insistência nas

um só sujeito em marcha compacta

relações de sangue no interior da

pelo desabamento de um mundo

família contra as leis da pólis.

que teimava em não cair. Um sujeito

Mas seu gesto era político porque

político emergiu apenas quando os

ela não falava em nome de sua

mineiros deixaram de ser mineiros,

condição de irmã, de mulher, de

os tecelões deixaram de ser tecelões

representante dos interesses da

e se viram como um nome genérico,

família, de filha de Édipo, de cidadã

a saber, proletários, a descrição de

de Tebas, em nome de seu lugar de

quem é totalmente despossuído,

fala. Ela falava em nome do que fora


29

expulso do convívio dos humanos.

imaginação está bloqueada porque

Por falar em nome do que não era

até a forma de nossa crítica usa

mais humano, ela podia falar em

a gramática de quem nos sujeita.

nome dos deuses, pois só os deuses

Nós falamos a linguagem da ordem

podem preservar o que os humanos

contra a qual nós nos batemos.

apagam. E cito o texto de Sófocles,

Desde 2013, subimos à cena política

a resposta de Antígona a Creonte:

para dizer, em larga medida:

Mas Zeus não foi o arauto dessas leis para mim, nem essas leis são as ditadas para os homens pela justiça, companheira de morada dos desuses subterrâneos; e não me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir as leis divinas não escritas e imutáveis; não é de hoje nem de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram.

É no que não é de hoje nem de ontem, no que não conhece a lei do Estado atual, que se encontra nossa imaginação política. Lembremos disto: não bastam revolta e crise, não bastam análise e crítica. Uma revolta é uma revolta é uma revolta e este retorno contínuo sobre si pode produzir apenas cansaço e, por fim, desejo de restauração. A crítica é a crítica é a crítica e este retorno contínuo sobre si pode produzir apenas melancolia e, por fim, derrisão aristocrática. Mas quando a revolta e a crítica são impulsos para a imaginação política, então não há mais tautologias. Perguntemos então de onde vem o bloqueio de nossa imaginação política e veremos que nossa

Eu quero o que é meu, como se o problema todo não estivesse precisamente em falar exatamente que eu também quero a minha parte, eu também quero a minha visibilidade no regime de visibilidade atual, eu também quero meu lugar na axiomática do Estado atual. No fundo e mais uma vez, o que se vê são apenas indivíduos à procura da defesa de suas propriedades. Assim, ao fazer das demandas políticas demandas de autorrealização individual e coletiva (pois neste ponto não há diferença alguma entre dois, o coletivo é apenas um indivíduo ampliado), acabamos por fortalecer uma ordem que afirmará como sempre disse, só existem propriedades e possuidores. Ao reduzirmos nossas demandas à pressão por reparação, fortalecemos aqueles que têm a institucionalidade que pode nos amparar. Nos dois casos, a gramática da revolta é a mesma do poder. O que há de diferente é apenas a demanda para que tal gramática se amplie e seja válida para mim também. Como se, no fundo, todos quisessem ser proprietários do que é a sua parte. Esta foi a maior vitória do neoliberalismo: definir até mesmo a


30


31


32

gramática da nossa revolta. Não é de

parte de um corpo político parece

se admirar que a imaginação política

inicialmente submeter-se a uma

acabe por se bloquear. Melhor seria

direção, como os corpos em sua

se fôssemos aqueles que não são e

pretensa anarquia se submeteriam

nunca serão proprietários, porque

a um centro funcional, a uma

procuram realizar a promessa

organização parte extra parte.

de uma apropriação que não é

É verdade, e há de se reconhecer

possessão, porque eles se orientam

que o que mais destruiu certa

por um tempo no qual não iremos

esquerda e seus corpos foi seu

mais nos perguntar sobre o que é

dirigismo, seja explícito através das

nosso.

decisões opacas de cúpula de suas instâncias dirigentes, seja implícito

No interior deste horizonte, não é de

através de práticas assembleístas

se estranhar que a prática política

que apenas gerem o esvaziamento

acabe por se reduzir atualmente,

produzido como estratégia

em larga medida, ao bloqueio de

de construção de hegemonia.

espaços físicos, ao fechamento da

Conhecemos bem o cortejo

circulação, à paralisação.

tedioso de práticas hegemonistas

Estas são manifestações brutas da

que não dizem seu nome, assim

indignação de quem se sente lesado

como as hierarquias travestidas

e esquecido e calcula a partir do ano

de horizontalidade e os diálogos

necessário a fazer para ser visto.

feitos de imposições em nome de

Mas a política não é apenas

alguma coletividade que nunca teve

exposição da indignação, embora

a capacidade de operar a partir da

isso também lhe seja próprio.

lógica do comum, mas que sonha

Ela é, no seu sentido mais profundo,

no fundo em ser síndica de um

conquista da opinião pública,

condomínio próprio. Não precisamos

produção de aglutinações através

de nada disso mais uma vez.

da emergência de um sujeito dotado de imaginação política capaz de

Contra isso, de nada adianta

implicar qualquer um.

voltar, no entanto, à antiga lógica contra o controle, a autonomia

Isso talvez ajude a explicar por que,

dos indivíduos. Há de se ter muita

muitas vezes, não nos deixamos

ingenuidade para tacitamente

incorporar em um corpo político.

esquecer quanta dominação é

Levantemos duas razões, uma boa e

necessário internalizar para ser

outra má. Primeiro, a boa razão.

reconhecido como indivíduo

Não nos deixamos incorporar

autônomo. Um indivíduo autônomo

porque não queremos mais ser

não é expressão de liberdade, é a

dirigidos e comandados. Fazer

expressão de uma forma insidiosa


33

de servidão. Servidão à disciplina,

Notemos ainda que essa quebra da

servidão à identidade e servidão

autonomia não implica servidão.

ao autocontrole travestido de

Servidão existe quando submeto

maturidade. Ele não é expressão de

minha vontade à vontade de um

multiplicidade, mas de repetição da

outro. No entanto, dentro de um

mesma redução dos desejos à forma

corpo político sou causado por

calculada dos interesses.

aquilo que não é vontade de

Uma sociedade pensada como

outro indivíduo. Sou causado por

associação de indivíduos não é uma

algo que é maior do que a soma

sociedade livre, mas uma sociedade

dos interesses individuais, que

controlada pelo pior de todos os

não calcula como um indivíduo,

policiais: aquele que cada um traz

que tem outro tempo, que faz

dentro de si. Como indivíduos, não

ressoar múltiplas vozes e que,

faremos nada.

por ser ressonância contínua de multiplicidades, constitui sujeitos

Na verdade, contra o medo do

em ressonância infinita, como se

controle, o melhor a fazer é lembrar

tais sujeitos portassem em si uma

o que pode realmente um corpo.

pulsação que os constitui e os

Um corpo pode ser o campo de

destitui em ritmo perpétuo, que

implicação genérica no interior do

lhes joga em processos de contínua

qual somos atravessados por uma

reconfiguração. Por isso, é necessário

pulsão que nos constitui, mas da

perceber-se atravessado por uma

qual não podemos nos apropriar.

pulsão para agir politicamente.

Pulsão é este impulso que causa minhas ações sem que eu possa

Contra esta pulsação contínua

controla-lo, é aquilo que me retira

constituinte e destituinte a política

da jurisdição de mim mesmo por

moderna inventou a representação.

fazer ressoar histórias de desejos

Ele nos fez acreditar que só haveria

desejados que não se reduzem à

sujeitos políticos onde houvesse

minha história. Aceitar a existência

representação, que só seria possível

de uma pulsão é aceitar que há

existir se representássemos algo,

algo em mim que me destitui da

um grupo, um setor, uma classe,

condição de próprio, de portador de

um gênero, uma pauta.

interesses próprios, de enunciador

Ela nos contou o conto de fadas

de uma identidade própria. A boa

dos conflitos sociais que devem ser

questão política será: o que significa

dramatizados como se estivéssemos

falar a partir disto que me destitui da

em uma peça ruim, na qual os atores

condição de próprio?

desempenharão sempre os mesmos papéis.


34

Fora da representação só haveria o caos, e é necessário organizar as vozes de maneira tal que se possa controlar seu tempo de fala, seu lugar de fala, sua perspectiva, suas instâncias decisórias. Essa era a forma mais insidiosa de conservação, e ela está presente tanto nas instituições oficiais quanto nos grupos que se opõem a tais instituições. No cento e nas margens, à direita e à esquerda, vemos como


35

a representação tem suas regras,

transcendência ainda maior a

tem seus regimes de visibilidade,

contextos. Há de se tirar os pés da

tem sua imposições e limites, suas

terra para criar e desejar.

condições de possibilidade. Mas definidas as condições preliminares

Tudo isso exige mais do que a

de existência, define-se tudo.

mera indignação, mais do que a autorização por si mesmo que não

Isso nos explica a necessidade de

mede os efeitos de suas ações, que

nunca se contentar ou aceitar uma

não autocritica continuamente suas

emergência local. Nossa luta não

decisões. Por isso, talvez seja o caso

é local, ela é genérica. A força de

de terminar lembrando que não é

colonização das formas de vida

sentimento que nos falta.

pelas dinâmicas de valorização do

Em um capitalismo que se alimenta

capital não é local, ela é genérica.

das excitações contínuas, que constrói o valor de suas marcas

É verdade que, quando a revolta

através da comercialização de

insurge, há uma tendência a

nossas lágrimas e de nossos

abandonarmos a condição de

risos, não haveria como nos faltar

cidadão do Estado para sermos

sentimento. Todo consumidor fala

membros da comunidade, do

a linguagem dos sentimentos e

coletivo, habitantes do lugar próprio

paixões, dos mesmos sentimentos e

ao território.

das mesmas paixões. O que nos falta

Aqueles que pregam o advento da

é rigor. Sim, rigor: a mais estranha de

comunidade, da territorialidade,

todas as paixões, esta que queima

precisam ter ouvidos para ouvir

e constrói. Nenhuma verdadeira

a limitação que tais conceitos

construção se ergueu sem essa

implicam. Não queremos mais ser

impressionante crueldade de artista

reconhecidos apenas em contextos

que se volta contra si mesmo até

específicos, como portadores de

produzir dos seus próprios desejos

propriedades específicas.

a plasticidade do que faz nascer

Há algo em nós que desconhece

de si toda forma. Só a verdadeira

especificidades e transcende

disciplina, esta que não é repressão

contextos, pois somos gêneros sem

ou submissão da minha vontade à

espécies, como dizia o jovem Max.

vontade de um outro, mas que é

Só faz sentido abandonarmos o

trabalho sobre si, que é produção

Estado-nação, que de fato não passa

de uma revolução na sensibilidade,

atualmente de uma patologia social

salva. Uma disciplina de artista.

paranoica destinada a se alimentar

É ela que falta à nossa política.

de afetos familiaristas, identitários e excludentes, em direção a uma

É isso. Muito obrigado.


36


37


38


39

OS DESAFIOS DA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À IGUALDADE: um ensaio sobre a população negra brasileira Laura Alves de Oliveira1

Resumo: presente nos tratados de direito internacional e também na Constituição da República de 1988, a promoção da igualdade, mais do que um direito fundamental positivado, se apresenta como verdadeiro anseio de uma parcela da população do Estado brasileiro. Ocorre que, não obstante as lutas para efetivação desse direito, sua observância ainda é insipiente na realidade brasileira. Dessa forma, o presente ensaio busca refletir sobre o direito à igualdade, que, por se tratar de tema extenso e de grande relevância, será restrito à análise do direito à igualdade racial. Por meio de breve resgate histórico, pretende-se evidenciar as causas da desigualdade racial, bem como os reflexos percebidos ainda na atualidade. Palavras-chave: Igualdade racial. Racismo. Direito de igualdade. 1 http://lattes.cnpq.br/4448463212144391


40

1. INTRODUÇÃO

de tratamento recebidas pelos negros; após isso, com as teorias

Pilar da revolução francesa,

do embranquecimento, segundo

a igualdade se apresenta na história

as quais a negritude era sinal de

como algo muito mais grandioso do

degenerescência e que apenas o

que um direito sistematizado: trata-

branqueamento poderia salvar a

se de ideal de vida, pelo qual muito

população (ainda que a lógica do

se lutou no decorrer dos séculos.

branqueamento no Brasil fosse

Não obstante sua importância, foram

contraditória com a aplicada em

necessárias revoltas e revoluções em

outros países); e, por fim, a teoria

diversos cantos do globo para que

da democracia ou conformação

se pudesse tentar exercê-la de forma

racial, na qual se afirma que todos

plena ou, pelo menos, de maneira

são iguais e que refuta a existência

mais substancial.

de desigualdade racial na história brasileira.

No Brasil, nem sempre a igualdade foi garantida como direito formal

O tema abordado é relevante não

de todos. Até o ano de 1888, negros

porque a população negra pretende

e negras escravizados tinham com

ser vista como vítima na história

o restante da população a relação

na humanidade, ou mesmo porque

de propriedade/proprietário,

deseja expressar que sua dor pelo

sendo certo que não eram sequer

passado é mais forte do que a de

considerados formalmente como

outros grupos vulnerabilizados, mas,

humanos. Com a abolição da

sim, porque o racismo ainda é tabu

escravidão, formalizada pela Lei

na realidade brasileira. Ainda hoje,

Áurea, as pessoas ex-escravizadas

em 2016, as pessoas afirmam (talvez

se tornaram livres e donas do

com a intenção de se convencerem)

próprio destino. Ocorre que, conferir

de que o racismo não existe e que

liberdade não necessariamente

não há desigualdade formal na

significava em oferecer igualdade,

população brasileira.

seja do ponto de vista formal ou material.

Assim como no passado, responsabilizam negros e negras

Durante os cinco séculos de história

pela baixa escolaridade, por

brasileira foi possível perceber

ocuparem (em maioria) postos de

três tipos de abordagens no que

trabalho pouco valorizados, pela

tange à relação entre negros e

hipersexualização de seus corpos

brancos no país: primeiro, com

e, também, pelo extermínio da

as teorias evolucionistas, que

juventude negra brasileira.

justificavam as desigualdades

No Brasil, o racismo é admitido


41


42

apenas enquanto existe nas relações

pretexto de se buscar pessoas a

privadas, sendo refutada fortemente

fim de repovoar Portugal após a

a ideia de um racismo institucional,

redução drástica da população

uma vez que a Constituição e as leis

em virtude da guerra e de

preveem o direito à igualdade de

epidemias. Nos séculos XVI e XVII

todos e todas, independentemente

os portugueses estabeleceram um

de cor, raça, etnia, religião ou crença

comércio estável de negras e negros

e condição social.

para outros territórios, contrariando o próprio discurso de povoamento

Ademais, o período compreendido

para fins de trabalhos agrícola e

entre 2015 a 2024 foi declarado

doméstico.

pela ONU (Organização das Nações Unidas) como década

De mão de obra e povoamento,

internacional dos afrodescendentes,

os negros passaram a ser tratados

com a justificativa de que é

como mercadorias, que eram

internacionalmente reconhecido

trocadas por objetos pelos seus

que os direitos humanos da

pares e também por europeus

população negra precisam ser

instalados na costa do continente

promovidos e protegidos, o que

africano. A força e intelecto das

apenas reforça a necessidade e

pessoas escravizadas era utilizada

urgência de reconhecimento, estudo

sem qualquer contraprestação à

e combate ao racismo em âmbito

altura. O abrigo e a alimentação

interno e internacional, por meio da

garantidos eram apenas formas de

efetivação da garantia de direitos

fazer com que a propriedade dos

sistematizados, bem como pela

senhores pudesse ser utilizada por

execução de políticas públicas que

mais tempo. Com a escravidão,

atuem nas causas da desigualdade e

houve a total anulação da expressão

não apenas em suas consequências.

das vontades e desejos dos escravizados, porque

2.

RACISMO NO BRASIL: A CARNE MAIS BARATA DO MERCADO É A CARNE NEGRA

O tráfico de pessoas negras para realização de trabalho escravo é fato que precede a chegada dos portugueses ao Brasil. As primeiras expedições lusitanas ao continente africano foram realizadas sob o

a escravidão se caracteriza por sujeitar um homem ao outro, de forma completa: o escravo não é apenas propriedade do senhor, mas também sua vontade está sujeita a autoridade do dono e seu trabalho pode ser obtido até pela força (...) Na escravidão, transforma-se um ser humano em propriedade de outro, a ponto de ser anulado seu próprio poder deliberativo: o escravo pode ter vontades, mas não pode realizálas (PINSKY, 2009, p.11).


43

A escravidão perdurou no Brasil

e brancos. Na obra A escravidão

por quase quatro séculos e é nítida

no Brasil, de Jaime Pinsky (2009),

a permanência de componentes

as únicas menções realizadas de

sociais, econômicos e políticos

forma direta às mulheres negras que

dessa prática abominável. Os livros

foram escravizadas dizem respeito

didáticos de história atribuíram aos

ao casamento, à reprodução e ao

negros escravizados características

comportamento “naturalmente

falaciosas como a selvageria,

lascivo” delas.

a primitividade e a preguiça para realização de trabalhos de

Nesse sentido, o autor afirma que

qualquer natureza. Perceba que, em

havia uma desproporção numérica

alguns casos, tais características

grande entre homens e mulheres

permanecem naturalizadas, a

negras e que, por isso, os próprios

exemplo dos baianos, cuja maioria

senhores de escravos estimulavam

expressiva da população é negra,

as relações efêmeras entre os

e a quem é atribuída a preguiça

negros, a fim de que o maior número

em excesso; ou mesmo aos jovens

de crianças fosse gerado. Segundo

negros que são suspeitos de

ele, era comum que uma mulher

condutas criminosas até que seja

tivesse filhos com vários homens

provada sua Inocência. Nesse

diferentes. Muito embora os negros

sentido, vale destacar trecho da

fossem obrigados a se converterem

música Boa esperança, do rapper

ao catolicismo, o casamento

Emicida:

religioso entre eles era algo raro e

E os camburão o que são? Negreiros a retraficar Favela ainda é senzala jão Bomba relógio prestes a estourar O tempero do mar foi lágrima de preto Papo reto, como esqueletos, de outro dialeto Só desafeto, vida de inseto, imundo Indenização? Fama de vagabundo (EMICIDA, 2015).

não desejado pelos senhores, pois não era visto como ato de fé, mas mera formalidade (PINKSY, 2009). Como consequência desses e de outros comportamentos arbitrários praticados pelos senhores de escravos, temos a hipersexualização da mulher negra, que é vista como a beleza exótica, acrescida de desejo sexual incontrolável e

No que se refere às mulheres

que é adequada para relações

negras, até hoje é possível observar

efêmeras, mas não para cultivar

os reflexos individuais e coletivos

relacionamentos afetivos e

desses mecanismos, especialmente

duradouros:

no que tange à forma como se relacionavam com homens negros

Não se levam em consideração esses elementos, quando,


44


45


46

com enorme carga de preconceito, pretende-se atribuir aos negros características como leviandade nas relações pessoais e promiscuidade sexual. Na verdade, isso não tem, evidentemente, nenhum fundamento biológico, ou mesmo social: era fruto do constrangimento a que eram submetidos, à sua condição. Mesmo porque os senhores se utilizavam da situação para dar vazão à sua atividade sexual geralmente bastante reprimida em casa (grifamos) (PINSKY, 2009, p.62).

Assim, percebe-se que no período em que a escravidão vigia, a mulher negra tinha funções específicas na sociedade para além do trabalho forçado (fosse ele nas lavouras ou doméstico): reprodutora entre os seus e garantidora de prazer sexual, em maioria esmagadora forçado entre os homens brancos: Quanto ao senhor, contudo, não há dúvidas. Cumpria com sua mulher branca as obrigações de reprodutor e marido, mas voltava-se às escravas para o prazer sexual. Entregava-se às negras e mulatas com todo o empenho, buscando usufruir delas a satisfação que não encontrava em sua formal cama de casado. O mito de mulheres quentes, atribuído, ate hoje às negras e mulatas pela tradição oral, decorre do papel que lhes era designado pela sociedade escravista (grifamos) (PINSKY, 2009, p.64).

O movimento abolicionista alcançou espaço significativo no século XIX e se utilizou de vários

aspectos da dita promiscuidade sexual das negras como um argumento contrário à escravidão. Segundo eles, a escravidão e o comportamento lascivo das negras corromperiam a família brasileira. A partir desse momento, diversos instrumentos normativos foram criados a fim de evitar a separação de cônjuges, impedirem a venda de filhos menores e estimular a união duradoura entre os escravos. Ao contrário do que narram os livros de história, por mais de 300 anos a população negra resistiu como pode à escravidão. Fugas individuais e coletivas, criação e manutenção de quilombos, suicídio e aborto realizados como forma de refutar a imposição do poder sobre seus corpos, a compra da liberdade, que se expressava pela carta de alforria eram formas materiais da resistência negra e a negociação com os senhores de trabalho por terras e outras formas de tentar melhorar a própria situação no país (SCHWARCZ, 2015). Aliado a essas expressões de negros e negras, o movimento abolicionista brasileiro fez forte campanha pelo fim da escravidão que, em maio de 1888, se viu realizada por meio da assinatura da Lei Áurea. Ocorre que a liberdade formal veio desacompanhada de qualquer política pública ou planejamento de remanejo dos negros e negras


47

de forma que estes ficaram,

atual população brasileira a que um rastro mais profundo deixou foi por certo a branca segues e a negra e depois a indígena. À medida, porém, que a ação direta das duas últimas tende a diminuir, com o internamento do selvagem e a extinção do tráfico de negros, a influência europeia tende a crescer com a imigração e pela natural tendência de prevalecer o mais forte e o mais hábil. O mestiço é a condição dessa vitória do branco, fortificando-lhe o sangue para habilitá-lo aos rigores do clima (MARIGONI, 2011, p.4).

literalmente, à margem da sociedade, muitas vezes tendo que se sujeitar a condições análogas à escravidão, ou então se abrigar nos arredores das cidades, lugares nos quais se constituíram periferias e favelas. No mesmo sentido, a igualdade entre os ex-escravizados e as pessoas livres era mero desejo, sem qualquer conexão com a realidade vigente. Nos dizeres de Lilia Schwarcz, após a abolição, a liberdade não significou igualdade. Se por um lado a lei tinha garantido a liberdade, por outro a igualdade jurídica não passava de uma balela. Essa era a base para a adoção de um modelo de darwinismo e determinismo racial, em tudo oposto ao liberalismo: se o liberalismo é uma teoria do indivíduo, o racismo anula a individualidade para fazer dele apenas o resumo das vantagens ou defeitos do seu ‘grupo racial de origem (SCHWARCZ, 2012, p. 22).

Na obra Nem preto, nem branco, muito pelo contrário, a antropóloga Lilia Schwarcz narra três principais fases que a diversidade de etnias passou na história do Brasil, quais sejam: as teorias biológicas como argumento para manutenção das desigualdades; a miscigenação como forma de gerar o branqueamento da população brasileira; e a democracia racial, que prega a igualdade desde sempre, a cordialidade nas relações

A partir da segunda metade do

entre as pessoas e a completa

século XIX se iniciou no Brasil

refutação de desigualdade racial no

um processo de tentativa de

país.

embranquecimento da população. Para alcançar esse objetivo, algumas medidas foram adotadas, como, por

2.1 A construção social do povo brasileiro

exemplo, a proibição do tráfico de negros e o incentivo à imigração de

Na primeira fase, que pode ser

europeus. Nesse sentido, destaque

verificada com mais intensidade em

para a citação de Joaquim Nabuco

meados do século XIX, as teorias

de 1885, reproduzida em artigo de

raciais se baseavam na biologia para

Gilberto Marigoni:

fundamentarem a desigualdade

Das três raças que constituíram a

existente e incentivada ao redor


48

do mundo. A característica mais

históricas fossem reduzidas a dados

evidente dessas teorias é a utilização

biológicos inquestionáveis.

do método científico próprio das ciências naturais no desenvolvimento

Importante destacar que, em

das ciências sociais. O darwinismo

virtude dessas teorias, e pela crença

social, por exemplo, considerava

absoluta nas teorias científicas,

natural a agressão e a lascividade

a miscigenação extremada era

da população negra, levando em

vista como algo repugnante,

consideração apenas aspectos

sendo considerada por alguns

biológicos. No mesmo sentido,

teóricos como sinal e condição

afirmava que os europeus se

da degenerescência. Isso porque

encontravam no topo da cadeia

acreditava-se que as raças humanas

biológica entre os homens, e

não eram passíveis de cruzamento,

que, portanto, eles eram os mais

visto que correspondiam a

inteligentes, bonitos, civilizados,

realidades diversas, fixas e essenciais

enfim, o modelo a ser seguido e

(SCHWARCZ, 2015).

espalhado ao redor do globo. foi só no século XIX que os teóricos do darwinismo racial fizeram dos atributos externos e fenótipos elementos essenciais, definidores de moralidades e do devir dos povos. Vinculados e legitimados pela biologia, a grande ciência desse século, os modelos darwinistas sociais constituíram-se em instrumentos eficazes para julgar povos e culturas a partir de critérios deterministas. (SCHWARCZ, 2015, p. 20).

Dessa forma, inclusive os discursos médico e jurídico foram utilizados para legitimar as diferenças de tratamento social com base em características biológicas. Essas teorias foram utilizadas por diversos estudiosos da época, com a finalidade de naturalizar comportamentos sociais, expressões culturais e características, fazendo com que questões políticas e

A partir da metade do século XIX, muitos cientistas, viajantes e intelectuais estrangeiros, apoiados nas teorias científicas e nos (pre)conceitos raciais, haviam pronunciado diversos veredictos extremamente desfavoráveis ao futuro do Brasil. Escritores como Arthur de Gobineau, Louis Couty e Louis Agassis – que estiveram no Brasil durante a década de 1860 –, além do inglês Thomas Buckle, consideravam o Brasil como um “território vazio” e “pernicioso à saúde”, enquanto os brasileiros eram vistos como “seres assustadoramente feios” e “degenerados”. Para esses viajantes, uma conjunção de fatores climáticos e raciais, sobretudo a “larga miscigenação”, era mobilizada para explicar a suposta inferioridade do homem brasileiro e a impossibilidade de o Brasil acessar os valores do “mundo civilizado”. Essas representações negativas sobre a realidade nacional, quando não influenciaram a opinião dos brasileiros sobre o seu próprio


49


50


51


52


53

país, ao menos colocaram em dúvida a viabilidade do Brasil no cenário internacional. Mesmo após a implantação do Regime Republicano – quando algumas vozes já se levantavam na luta contra as teorias deterministas – muitos cientistas estrangeiros, ou mesmo parte da elite política e intelectual brasileira, continuavam propagando a teoria degeneracionista do clima tropical e dos malefícios causados pela miscigenação racial (SOUZA, 2008, p. 147).

e a permanência de variações relevantes, tanto orgânicas como biológicas e cerebrais” (SCHWARCZ, 2015, p. 23). Ele acreditava que nem todos os grupos humanos eram capazes de evoluir de maneira igual, ou mesmo chegar à civilização. Dessa forma, o médico entendia que era necessária, entre outras coisas, a aplicação de leis diferentes conforme a raça das pessoas. Como consequência da naturalização por

No Brasil, foi possível perceber a

meio da biologia de características

atuação do movimento eugenista

sociais, ele entendia que os grupos

brasileiro entre as décadas de 10

raciais tinham noções diferentes

a 30 do século XX. Este foi um

sobre o próprio cometimento de

movimento liderado por intelectuais

crimes e que dessa forma eles não

e cientistas que tinha como

poderiam ser responsabilizados com

objetivo promover a depuração da

punições do mesmo peso. “De certas

população brasileira por meio de

raças se esperava responsabilidade;

seu embranquecimento. Influenciada

de outras, não se podia cobrar o que

pelas teorias darwinistas raciais e

não possuíam”. Em resumo, essa

sociais, profissionais da educação,

era a base teórica que justificava a

do direito e da medicina se uniram

inviabilidade de um código penal

a fim de promover a civilização

único para toda a população

e modernização da sociedade

brasileira.

brasileira. Segundo Nina Rodrigues, explicado Ainda acerca das teorias raciais

por Lilia Schwarcz os crimes são

e eugênicas dar-se-á ênfase às

involuntários em certas raças

ideias defendidas pelo médico

inferiores, que não se pode julgá-los

baiano Raimundo Nina Rodrigues,

com os códigos de povos civilizados

pela conexão direta ao tema ora

“(...) a aplicação da lei deveria ser

trabalhado. Ele entendia que a

condicionada aos diferentes estágios

igualdade era uma espécie de

de civilização e dimensionada

dogma espiritualista, em nada

pelo estudo das raças existentes

compatível com o método científico.

no Brasil” (2015, p. 24). Perceba

Dessa forma, o médico defendia

como a selvageria, a violência e o

a existência de “ontologias raciais

despreparo para convivência em


54

sociedade são entendidos pelo

sociais existentes no Brasil. Ocorre

teórico como aspectos naturais, que

que, em países como os Estados

podem ser facilmente encontrados

Unidos da América e África do

no DNA de qualquer pessoa negra.

Sul, essas teorias defendiam que

Seguir essa linha de raciocínio é

qualquer forma de miscigenação era

reduzir a complexidade do indivíduo

negativa, e que a forma de lidar com

ao determinismo de um destino

as diferenças entre os grupos era

unicamente baseado em critérios

a segregação, ou seja, a completa

que não podem ser escolhidos

separação da população de acordo

quando se nasce.

com as raças, a fim de que os

Culturas são raças, e suas realidades ontológicas não permitiriam arbítrio ou variação. Era como se ele decretasse que, ainda que a liberdade conseguida pela Lei Áurea de 13 de maio de 1888 fosse negra, a igualdade pertencia exclusivamente aos brancos (SCHWARCZ, 2015, p. 24).

A partir da negação da individualidade dos seres e baseando-se na desigualdade natural dos grupos raciais é que os teóricos da época pretendiam a aplicação de leis diferentes e de imputação de responsabilidade para cada grupo. Tal constatação apenas reforça a citação acima, na qual se defende que a igualdade não era algo que se pensava pertencer a todas as pessoas, mas apenas às

degenerados não desvirtuassem ou atrapalhassem o progresso dos outros grupos (SCHWARCZ, 2015). No Brasil, se observa que foram grandes os esforços no sentido de reafirmar que o fim da escravidão foi uma dádiva dos portugueses ao contingente negro que vivia no país, que a escravidão ocorrida no Brasil tinha aspectos positivos e que não houve registros de lutas e revoltas para que ocorresse o fim da escravidão, o que de observou em outros países nos quais a escravidão também foi realidade. Toda essa conformação teve como objetivo auxiliar o entendimento sobre a miscigenação da população. Dessa forma, percebe-se que

pessoas brancas.

houve uma leitura diversa de

A segunda fase trabalhada pela

diversidade racial existente a partir

antropóloga salienta como as teorias raciais foram adotadas de maneira peculiar pelos teóricos brasileiros. Não se refutava a naturalidade impingida às diferenças raciais e

como solucionar o problema da das teorias darwinistas raciais: ao invés de promover a segregação entre os grupos, deveria se estimular a miscigenação positiva, a fim de que, misturando as raças, a população se tornasse cada vez


55

mais branca e, com isso, se atingisse

função da cor/etnia, o racismo agia

o objetivo de demonstrar a evolução,

na esfera privada. A integração dos

modernização e civilização do povo

grupos tem seu ápice e finalização

brasileiro (SCHWARCZ, 2015).

na cultura, visto que no cotidiano a desigualdade de tratamento era

Ao contrário do que previam os

patente. Somente na década de

estudos realizados na época, tal

1970 é que o movimento negro

resultado não se verificou na prática.

organizado aparece de forma

Tem-se então que a partir da

mais insistente, com a finalidade

década de 1930, no governo Vargas,

de questionar as desigualdades

pode se observar a terceira fase

presentes na sociedade brasileira,

trabalhada por Lilia Schwarcz com

que tem como pano de fundo a cor

a construção da identidade nacional

dos indivíduos.

brasileira na figura do mestiço. O abrasileiramento da cultura africana,

Dentre as conquistas alcançadas

a permissividade de expressões

pelos movimentos negros em busca

culturais, tais como o samba, a

da diminuição das desigualdades,

culinária, a capoeira, foram formas

pode-se citar a criação em 2002 da

de, na cultura, realizar a união entre

SEPPIR – Secretaria de Políticas de

os diversos grupos que compunham

Promoção da Igualdade Racial, a

a população, sempre com a ideia de

publicação do Estatuto da Igualdade

harmonia e cordialidade.

Racial e a política de ações afirmativas, cuja mais expressiva é a

Foi nesse cenário que a ideia

adoção de cotas nas universidades.

de democracia racial construída

Embora haja dificuldade entre os

por Gilberto Freyre na obra Casa

próprios brasileiros em assumir

Grande-Senzala se tornou cada

a existência de racismo no Brasil

vez mais popular, passando a

ainda hoje, tal constatação é

compor o imaginário brasileiro

necessária para que as conquistas

no qual se reforçava as ideias

acima descritas não sejam vistas

de uma escravidão bondosa, de

como privilégio, mas como parte da

harmonia nas relações entre senhor

reparação pela ausência de políticas

e escravizado e da ausência de

que diminuíssem as desigualdades

resistência a esse período da história

tão profundas que persistem na

brasileira (SCHWARCZ, 2015).

população.

Nesse período, é possível perceber

Por fim, não se pretende de forma

que, embora não houvesse no Brasil

alguma afirmar que o racismo é

nenhuma lei que discriminasse

um problema que atinge apenas

de forma patente as pessoas em

os brasileiros. Prova disso é que


56


57

o período compreendido entre

opressões, é importante que sua

2015 e 2024 é declarada a década

justa função seja explicitada, ainda

internacional dos afrodescendentes

que como forma de projetá-la para

pela ONU – Organização das

o futuro, não obstante o desejo de

Nações Unidas. Isso significa

vê-la em prática nos dias atuais.

dizer que existiu e ainda existem

As interferências jurídicas no que

desigualdades sociais e econômicas

tange à igualdade são importantes

entre negros e outros grupos em

na medida em que objetivam a

âmbito interno e internacional e

diminuição das desigualdades

que o reconhecimento da existência

causadas pelas diferenças existentes

dessa desigualdade é apenas o

entre os grupos que compõem a

primeiro passo para que se possa

sociedade.

agir de forma efetiva a fim de diminuí-la.

A preocupação em se sistematizar no âmbito internacional a proteção

3. IGUALDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL

a valores como a igualdade e o respeito às diferenças tem seu ápice no período Pós Segunda Guerra

A igualdade material não é

Mundial, com a criação da ONU e da

algo que se encontra pronto na

Declaração Universal dos Direitos

natureza, mas, pelo contrário,

Humanos. Nesse sentido, diversos

é fruto de reivindicações e

são os tratados internacionais

conquistas de grupos que sofreram

de direitos humanos que cuidam

historicamente pela sua falta. Essa

das tentativas de diminuição das

igualdade pode ser buscada por

desigualdades existentes em suas

meio de ações do poder público

diversas modalidades. A título

que visem diminuir as causas/

de exemplo, podemos citar: a

condições das desigualdades. O

Declaração Universal dos Direitos

Direito, dentre outras funções,

Humanos (1948), Convenção nº 111

tem o papel de promover “um

da Organização Internacional do

tratamento equivalente que

Trabalho sobre Discriminação em

assegure a igualdade e de oferecer

Matéria de Emprego e Ocupação

um tratamento diferenciado

(1958) e a Convenção Internacional

que promova a igualdade”

sobre a Eliminação de Todas as

(ROTHENBURG, 2008, p.78).

Formas de Discriminação Racial (1965). Sobre a Convenção de 1965,

Embora se saiba que na realidade

tem-se que entrou em vigor no

o Direito tem funcionado como

Brasil no ano de 1968 por meio do

instrumento de manutenção de

Decreto nº 65.810 e que dispõe de

privilégios e perpetuação de

diversos mecanismos de combate


58


59


60


61

ao racismo e à discriminação racial,

todos os grupos que compõem a

bem como a promoção de ações

sociedade. Em realidade, significa

afirmativas.

dizer que, por meio de leis e políticas públicas, deverá o Estado garantir

Nos limites do tema proposto para

que a diferença existente entre os

o presente ensaio, tem-se que a

grupos não será obstáculo para

igualdade é direito fundamental

que todos eles sejam tratados com

consagrado no caput do artigo

o mesmo cuidado e que tenham

5º da CR/88 (Constituição da

acesso e garantia das mesmas

República Federativa do Brasil de

prerrogativas e deveres.

1988). O texto constitucional afirma categoricamente que todas as

Na perspectiva do Estado

pessoas são iguais perante a lei e

Democrático de Direito, a promoção

que o Estado brasileiro garantirá a

da igualdade está diretamente ligada

inviolabilidade do direito à igualdade,

ao respeito às diferenças, que são

dentre outros direitos fundamentais.

inerentes a qualquer população.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (grifou-se) (BRASIL, 2016).

Perceba que o caput do artigo 5º cuida, ao mesmo tempo, da igualdade formal e material. Formal quando afirma que todos são iguais perante a lei. Material, pois concebe que cabe ao Estado garantir que ninguém poderá violar a igualdade que deve reger as relações entre as pessoas e entre elas e o próprio Estado. Importante consignar também que a promoção da igualdade por parte do Estado não significa que ele irá apenas garantir a aplicação de uma mesma lei para

Dessa forma, o Estado deve atuar pela igualdade na medida em que a diferença inferioriza um grupo em relação a outro e, também, deve promover o respeito às diferenças existentes entre esses grupos, na medida em que a igualdade pode descaracterizá-los (SANTOS, 2003, p. 485).

3.1. Direito à igualdade racial A igualdade racial pode ser entendida como a igual oportunidade de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas públicas e privadas, independentemente de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica. Essa concepção pode ser depreendida do artigo 1º, parágrafo único, inciso I da Lei 12.228/2010 e traz consigo o maior anseio da


62


63


64

população negra na atualidade. Não se pretende afirmar que apenas as pessoas negras possuem dificuldade na efetivação da igualdade racial no Brasil, mas pelos próprios limites do presente trabalho é importante que

de reclusão, nos termos da lei; (BRASIL, 2016).

Ainda que sejam baixos os índices de condenação pela prática do crime de racismo em comparação

tal delineamento seja feito.

ao número de ocorrências

Nesse ponto, será feita breve análise

reconhecimento do crime de

das principais normas que cuidam da desigualdade racial em âmbito nacional. Tal apresentação se mostra necessária para demonstrar que não obstante à existência de diversas leis e tratados sobre o assunto, ainda há muito que se avançar na discussão sobre a igualdade racial, uma vez que ela salta aos olhos no cotidiano

ou de processos ajuizados, o racismo já é um passo enorme no cenário brasileiro, visto a dificuldade da sociedade em conceber a existência e a prática cotidiana de ações discriminatórias. No ano seguinte à promulgação da Constituição da República foi publicada a Lei nº7716/1989 que

de brasileiros e brasileiras.

define os crimes resultantes de

Estabelece o inciso XLII do artigo 5º

sintética, a lei busca criminalizar

da CR/88 que o crime de racismo é inafiançável e imprescritível. Pela primeira vez na história brasileira a defesa da igualdade racial por meio da criminalização do racismo é elevada à categoria de garantia fundamental. Observe: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

preconceito de raça ou cor. De forma ações de evidente discriminação, como impedir o acesso ou negar atendimento em restaurantes, hotéis e outros locais. Nela também se tipifica a prática, incitação ou indução à discriminação racial e imputa a pena de reclusão de um a três anos. A pena é aumentada quando essa prática é cometida por intermédio de meios de comunicação social, visto o grande alcance que elas podem ter. Ocorre que, em 1995, foi publicada a Lei nº 9.459 que, dentre outras

(...)

mudanças, trouxe o §3º do artigo

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena

140 do Código Penal, conhecido como injúria racial. Ainda que o conteúdo da nova norma seja


65

similar ao artigo 20 da Lei nº

Por fim, no que tange à legislação

7716/1989, o dispositivo mais novo

pátria sobre a igualdade racial,

adota tratamento mais brando e

em 2010 foi publicada a Lei nº

a possibilidade de tramitação no

12.228 - o Estatuto da Igualdade

juizado especial criminal. Perceba

Racial. O referido estatuto define

que, se por um lado o artigo 20

discriminação racial como qualquer

permite o processamento do feito

tipo de diferenciação de tratamento

perante a justiça comum prévia

que tenha por base a cor, raça ou

denúncia do Ministério Público, com

etnia do indivíduo e que cause

real possibilidade de reclusão do

diminuição de reconhecimento ou

acusado, por outro, a injúria racial é

fruição de um direito fundamental. O

crime de ação pública condicionada

objetivo principal da Lei é a defesa

à representação e que pode ser

de direitos individuais e coletivos,

conduzida a princípio pela vítima

bem como a promoção de efetiva

desacompanhada de advogado.

igualdade de oportunidades para

Cada procedimento possui suas

a população negra brasileira. O

vantagens e desvantagens, ao se

Estatuto dispõe sobre a garantia de

analisar os aspectos processuais.

direitos fundamentais, em especial no direito à saúde, à educação, ao

Na prática, o que se percebe é que a

trabalho, à liberdade de consciência

maioria das condutas que se adequam

e crença e ao acesso à terra e a

a ambos os tipos penais acaba por

moradia.

ser tipificada nos termos do artigo 140, §3º por ser ele mais brando,

Perceba que, para além da

tanto no processamento quanto nas

Constituição da República de

punições. Ainda existe dificuldade

1988, são diversas as normas

por parte da população e dos sujeitos

que pretendem diminuir as

do direito (advogados, promotores

desigualdades existentes no país

e magistrados) em reconhecer a

oriundas das diferenças de cor,

gravidade da conduta discriminatória

etnia ou raça. Tais normas tipificam

tal como ela é. A responsabilidade por

condutas discriminatórias como

isso é em parte da crença popular de

criminosas e estimulam a criação

que não há racismo no país e parte

de políticas públicas de promoção a

no mito da cordialidade brasileira.

igualdade racial. Não obstante, são

Se somos todos iguais e, ao mesmo

poucas as ações efetivadas nesse

tempo um povo pacifico, não há

intervalo de tempo em comparação

que se falar no cometimento de

com o grau de desigualdade

conduta gravosa como a prática de

observado na realidade brasileira.

discriminação racial, mas tão somente de uma injúria racial.


66


67


68

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse período, o branqueamento da população era o maior objetivo desses intelectuais e cientistas,

Ao final do presente trabalho é

que acreditavam ser possível uma

possível concluir que a profunda

miscigenação positiva. Quanto

desigualdade social e racial

mais branco, melhor. Assim, eles

observada atualmente no Brasil

tentavam modificar a imagem do

tem suas raízes no período de

Brasil e do povo brasileiro, querendo

colonização do Brasil. Durante

demonstrar que era falsa a imagem

quase quatro séculos a relação entre

propagada de selvageria e de não

negros escravizados e o restante da

civilidade. Dessa forma, com o

população brasileira era tipicamente

incentivo para migração de europeus

de proprietário e propriedade,

e pelo estímulo à miscigenação

sendo certo que os negros apenas

positiva, o resultado foi o surgimento

eram considerados como pessoas

do mestiço como identidade

para fins de responsabilização

nacional.

criminal quando eram os autores de crimes. As teorias darwinistas

Observa-se que a partir da década

sociais fundamentavam práticas

de 30 do século XX muito se investiu

como a escravidão baseadas nas

para a naturalização da mestiçagem

desigualdades naturais existentes

e da serenidade como características

entre brancos e negros que se

do povo brasileiro, de forma que, na

diziam insuperáveis.

história oficial do país, a abolição da escravidão é vista como dádiva

A tardia abolição da escravidão

do império português e que desde

desacompanhada de qualquer

esse momento não mais existiam

política de inclusão dos negros

diferenças entre negros e brancos.

agora livres fez com que no país se

Assim, surge a ideia de democracia

formasse um imenso contingente de

racial, que afirma sermos todos

mão de obra barata, desqualificada

iguais em todos os sentidos, não

e indesejada. Nesse período, as

sendo necessário nenhum tipo de

teorias eugenistas surgiram como

interferência ou modificação nas

continuação natural das teorias

relações existentes.

darwinistas e defendiam a pureza das raças, de modo que apenas

Somente com o esforço e trabalho

acentuavam e reafirmavam as

árduo dos movimentos sociais

diferenças existentes na sociedade

organizados é que tem sido possível

com relação aos grupos que as

pautar a existência do racismo como

formaram.

problema estrutural no país que precisa ser reconhecido e combatido


69

tanto em âmbito institucional como

nem mesmo trabalhar de forma

nas relações particulares. Nesse

exaustiva a igualdade como direito

sentido, pode se observar que

fundamental. O presente trabalho

existe vasta legislação interna e

apenas pretende expor alguns

internacional, a fim de propor ações

apontamentos que podem ser

para punir aquelas pessoas que

utilizados para o aprofundamento

cometem atitudes discriminatórias e,

dos debates e das ações que

ao mesmo tempo, estimulam ações

busquem diminuir as desigualdades

para a promoção da igualdade racial,

e promover qualidade de vida

buscando superar as desigualdades

para grande parte da população

existentes até hoje.

brasileira, que ainda acredita estar tão distante da proteção da lei e

Por fim, importante

da Constituição e que, no entanto,

salientar que em nenhum momento

não desiste de lutar por um futuro

se buscou esgotar o tema da

melhor.

desigualdade racial no país,

REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil [1988]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ ConstituicaoCompilado.htm> Acesso em 28 jun 2016. BRASIL. Lei nº 7716, de 05 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/L7716compilado.htm> Acesso em 28 jun 2016. BRASIL. Lei nº 9459, de 13 de maio de 1997. Altera os arts. 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e acrescenta parágrafo ao art. 140 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. . Disponível em: < http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9459.htm> Acesso em: 28 jun 2016. BRASIL. Lei nº12.228, de 20 de Julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2010/lei/l12288.htm> Acesso em: 28 jun 2016.


70

EMICIDA. Boa Esperança. Sobre crianças, quadris, pesadelos e Lições de casa. Sony Music. 2015. MARINGONI, Gilberto.O destino dos negros após a abolição. In Desafios do desenvolvimento. ano 8, ed. 70, 2011. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_ content&id=2673%3Acatid%3D28&Itemid=23>. Acesso em 20 maio 2016. PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil: as razões da escravidão, sexualidade e vida cotidiana, as formas de resistência. 20 ed., 2ª reimpressão, São Paulo: contexto, 2009. ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade material e discriminação positiva: o principio da isonomia. In: Novos Estudos Jurídicos. Vol. 13, nº 2, p. 77-92, jul-dez 2008. Disponível em: < http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/ files/anexos/32745-40386-1-PB.pdf> Acesso em 27 jun 2016. SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: Reconhecer para libertar. Os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 427-461. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. 1ª ed, São Paulo: Claro Enigma, 2012. SOUZA, Vanderlei Sebastião. Por uma nação eugênica: higiene, raça e identidade nacional no movimento eugênico brasileiro dos anos 1910 e 1920. In: Revista Brasileira de História da Ciência. Vol.1, nº. 2, p.146-166, jul-dez 2008. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil. Rio de Janeiro: CEBELA, FLACSO; Brasília: SEPPIR/PR, 2012. Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_cor. pdf.>. Acesso em 20 maio 2016.


71


72

VIVER E DEIXAR VIVER Marta Neves1

Na mais recente edição da SCAP,

Dudu Salabert, do Transvest

em 2016, recebemos no teatro da

(projeto de inclusão social de

PUC Minas São Gabriel um grupo de

travestis, transexuais e transgêneros,

pessoas que se conectam a frentes

que oferece a essa população

de luta pelos direitos de populações

diversos cursos gratuitos).

rechaçadas e violentadas de diversas maneiras pelo mero fato de

Não quero aqui tomar o lugar

serem o que são, de serem mulheres,

dessas pessoas maravilhosas e suas

transmulheres, transhomens,

histórias de vida e enfrentamento de

travestis – por pertencerem a um

tanta intolerância. Na tentativa de

gênero ou por não se identificarem

me solidarizar com elas e com todos

com aquele que lhes foi atribuído

os que passam por agressões várias,

ao nascerem. Estiveram conosco,

com essas tantas vidas, esses tantos

na PUC Minas São Gabriel, Tathiane

“amores esquecidos”, como costumo

Mátia e Bia Zazu, da Casa de

dizer, transcrevo a seguir um trecho

Referência da Mulher Tina Martins

de performance minha e do artista

(que acolhe mulheres em situação

Marc Davi, em que tentamos somar

de violência), e também Tiffany e

diversas narrativas desses corpos

1 http://lattes.cnpq.br/2861637905717664


73


74


75


76

em abandono, numa espécie de rito

as duas, invisíveis de longe, salvo

em que leio textos e Marc canta,

por um detalhe: como a peruca

não para fundarmos uma religião,

anda pela hora da morte, meteram

mas para pensarmos a ideia de base

numas toucas de meia cola branca

dessa palavra: “religar”.

e costura pra amarrar um cabelo falso, louro, soft. Eram perucas de lã.

Segue, então, um trecho sobre duas

Quentes e lindas, algodões coloridos,

travestis da Av. Antônio Carlos,

coisa de boneca que levaram muito

aqui em Belo Horizonte. O texto é

a sério, amorosas com os cabelos

meu, esclareço, com duas pequenas

de poliéster. De longe eram dois

inserções do Nelson Rodrigues, que

fósforos com picumã laranja, dois

seguem aí, sem ABNT, apenas em

cotonetes usados. Mas de perto

negrito, mas com muito carinho.

tinham algum sucesso... vai saber. O caso é que iam juntas, estavam

Estava procurando Deus e, de

juntas, colavam ali, trampinho duro

repente, vem uma pretinha que

e suave, de pau e nylon, envolvidas

estudava comigo. Para diante de

numa conversinha pequena, de olhos

mim, ri para mim. Estávamos sós,

e mãos e lã que não dava pra lavar.

maravilhosamente sós. Seu riso

Um dia passou um carro da polícia.

não tem os dentes da frente. Diz

E aí você sabe: polícia não gosta de

baixinho: - “Eu também tenho

algodões, de chinelo Decoplast, de

piolhos, lêndeas”. E, até hoje, acho

gente que não tem nome, porque

“lêndea” um nome bonito, como

não tem sexo, porque não tem

se fosse de madrepérola. Como o

vergonha. Foi rápido porque quando

Grande Procurado.

uma delas tentou gritar, o cabelo de poliamida travou-lhe a garganta... e

Então vou lhes dizer aqui quem

o mais que se pôde ver foi o carro

mais procura o Grande Cara. Eram

com a outra dentro, luz piscando

duas irmãs – dessas com X. Dois

forte, abafando a lã que sumiu na

espetos pretos ou brancos ou

escuridão da desova. Ficou a do

pardos ou russos, sei lá. Duas

cabelo na garganta ali, na Antônio

magras profundas. Usavam chinelo

Carlos, não muito longe do Ferro

de dedo alternativo, marca Peggy.

Velho Jujuba, agora fechado. Parada,

Short do Natal, blusa estilo top.

sem voz, acho mesmo que eram

Quase não precisavam fazer a barba,

mudas as duas. Nunca mais se viu

novinhas. Desciam para o ponto –

a do carro de polícia. A da garganta

que era também o dos ônibus, sem

de vidro ainda fez ponto por ali

salto e sem concorrência, só gente

mais um tempo, à procura de Deus,

sem graça pulando do lotação.

com seu chinelinho Festpé. O marca

Mas bora fazer vida. Ficavam ali

Peggy, que ela tanto amava, rachou


77


78


79

de vez. De fato, qualquer amor há de

dando boas-vindas, conversando

sofrer uma perseguição concreta e

de coisas pequenas da festa e tal e

assassina.

coisa. De repente, ela solta que era seu aniversário. Eu e meus amigos

Acrescento agora mais um breve

prontamente fomos abraçá-la e ela,

relato. Acho que são, afinal, essas

entre um beijinho e outro, saiu com

diversas passagens de vidas que

essa fala: “estou fazendo 37 anos

melhor nos esclarecem a grande

hoje; comemoro mesmo!

questão fundamental que atravessa

Comemoro, sim! Como não vou fazer

tantas outras relativas ao gênero.

isso? Todo dia enterro uma amiga.

Estive recentemente em uma festa

São várias que já se foram embora

na Casa Nem, no Rio de Janeiro,

e eu tô viva! Vivaaaa!”.

local de acolhimento de pessoas trans, onde há cursos diversos:

Está aí a questão fundamental que

preparação para Enem, fotografia,

mencionei acima e que é parte do

yoga, Libras, costura, sendo

que Tiffany nos disse no encontro da

inspiração para outras iniciativas no

SCAP (“quero ter direito ao amor”,

Brasil.

disse ela): o direito à vida.

Bem, estava em uma das festas da

Resta ainda dizer aqui que a

casa, esperando um desfile de moda

expectativa de existência de uma

acompanhado pela música incrível

travesti no Brasil é de apenas 35

de Martinha do Côco, quando uma

anos.

mulher de cabelão comprido, feliz

E aí, podemos viver?

com sua Catuaba Selvagem na mão,

Deixar viver?

veio se apresentar puxando papo,

Viver juntos?


80


81


82

A CIVILIZAÇÃO NUMA ENCRUZILHADA José Carlos Carvalho1

Desde a revolução industrial de

apenas a estrutura econômica,

meados do século XVIII,

mas criou novos comportamentos

a humanidade vem experimentando

que modificaram, radicalmente,

um progresso material sem

as relações dos seres humanos

precedentes na história da

entre si e com a natureza, em

civilização, deixando marcas

decorrência, também, dos avanços

profundas na organização

das comunicações, da transmissão

socioeconômica e política do

ágil da informação, da comunicação

planeta nos últimos dois séculos,

instantânea e das modernas técnicas

marcadas por transformações

de marketing, com capacidade de

exponenciais na forma de pensar e

influenciar as atitudes das pessoas e

de agir dos seres humanos.

o imaginário coletivo.

Nesse contexto, o século XX

Os novos padrões de produção

evidenciou o período da explosão

industrial e agrícola, vale dizer,

científica e tecnológica, promovendo

os novos sistemas econômicos

avanços e mudanças dos padrões

progrediram numa escala

e sistemas de produção, como

vertiginosa, sem considerar

em nenhum outro período da

nenhum tipo de aspecto ecológico,

civilização humana. Essa realidade

ignorando a capacidade de

não se restringiu em modificar

resiliência dos sistemas naturais.

1

Engenheiro Florestal. Ex-Secretário de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais e Ex-Ministro de Estado do Meio Ambiente.


83

1

Doutor em filosofia pela Universidade de Louvain, BĂŠlgica. Professor de Filosofia da UFMG, aposentado. Primeiro Presidente do DCE da PUC Minas.


84


85


86

Ou seja, cometemos o equívoco de

pela encíclica Laudato Si, do Papa

construir um sistema econômico

Francisco, que, ao fazer uma

apartado dos sistemas naturais,

releitura do Antigo Testamento e dar

ignorando que a economia produtiva

nova interpretação a essa questão à

não funciona sem as matérias-

luz dos Evangelhos, coloca o homem

primas e os insumos retirados da

como parte da criação e não como

natureza e dos seus ecossistemas.

dono das criaturas. Assim, na esfera das religiões,

Essa visão distorcida da civilização

o Papa traz à reflexão uma profunda

contemporânea na sua relação

mudança de conceito para explicar

com o planeta foi influenciada por

a relação seres humanos-natureza e

dois grandes mitos construídos ao

influir nas relações das sociedades

longo do processo civilizatório, mas

humanas com os ecossistemas,

reforçados pela revolução industrial

tornando-as menos perdulárias e

e pelo enfoque materialista que

predatórias e mais amigáveis.

caracterizou o progresso humano nesse último século: o paroxismo

Todavia, não podemos ignorar que,

antropocentrista e afalsa ideia

como ser dotado de inteligência,

da inesgotabilidade dos recursos

o homem exerce o protagonismo

naturais.

no meio social e também no meio natural, pois é o único ser vivo

O antropocentrismo arraigado

dotado de poder de escolha e

criou a ilusão de que os seres

decisão sobre a vida no planeta.

humanos estão acima da teia da

Até aqui tem exercido esse poder de

vida, que poderiam viver como se

forma irracional e insustentável.

fossem uma ilha, atores exógenos

Mas, também, é o único com

da história natural. Ledo engano.

inteligência para refazer o que foi

Como sabemos, o homosapiens

destruído.

não sobrevive sem os demais seres vivos e o meio físico que o

Os novos modelos econômicos e

cerca. No Ocidente, essa visão

os sistemas de produção em escala

sempre foi reforçada pelas religiões

planetária encontram a sua razão de

monoteístas, que colocam o homem

ser noutra distorção das sociedades

como o centro de tudo, como o

ditas modernas – o hiperconsumo,

senhor de tudo, para o qual todos as

o advento de padrões de consumo

coisas foram feitas.

que não guardam nenhuma relação com as necessidades reais de

Essa leitura radicalmente

uma vida digna. Como se sabe, as

antropocêntrica acaba de ser

pessoas consomem por necessidade

contraditada de forma exuberante

e desejo.


87

O marketing comercial e a mídia

existe no mundo, na atualidade,

transformam o desejo numa

mais de 1 bilhão de pessoas vivendo

máquina de consumir,criando um

abaixo da linha da pobreza, com

modelo de consumo supérfluo,

renda diária menor do que $2 (dois

socialmente imoral e culturalmente

dólares), o que significa que estão

perverso, alimentado, ainda,

completamente excluídos dos

pela vocação hedonista visceral

mercados de consumo.

de parcela da sociedade, que deseja fruir o prazer pelo prazer

Nesse contexto, os elevados

sem nenhum limite ético, sem

índices de consumo, a conduta

preocupação com o próximo e o

perdularíssima de parte da

planeta.

sociedade e a deliberada estratégia comercial de abreviar a vida útil

Como essa questão fica restrita ao

dos bens de consumo (in)duráveis,

debate acadêmico e a pequenos

através de uma obsolescência

grupos dos estamentos sociais

perversamente programada,

que trabalham ou se preocupam

concorrem para geração de resíduos

com o tema, essa realidade não é

descartáveis, lançados na natureza,

percebida pelo povo e não se instala

sem destinação ambiental adequada,

no imaginário coletivo, dificultando

representando uma das principais

os esforços, ainda que tímidos, de

fontes de poluição, principalmente

chamar a atenção para a gravidade

no meio urbano. Basta dizer que,

do problema. E o problema está à

no Brasil, mais da metade dos

vista!

municípios ainda depositam seus resíduos em lixões a céu aberto,

Estudos recentes e recorrentes,

afetando o ambiente natural e a

cientificamente comprovados,

saúde das pessoas.

indicam que o consumo de bens naturais já extrapolou a capacidade

A cultura do desperdício amplificada

de suporte do planeta. Aqui, o mito

pelo crescimento populacional a

da inesgotabilidade dos recursos

ser comentado mais adiante tem

naturais está cobrando um preço

provocado a geração de resíduos

alto, pois o volume consumido

sólidos, emissão de gases e

já é superior em 20%, usando os

lançamento de efluentes líquidos

números mais conservadores, do

em quantidade e intensidade sem

que a capacidade do planeta de

precedentes, afetando o planeta

regenerar-se naturalmente.

de forma drástica, com efeitos perigosos e perturbadores para

Esses dados, não incluem,

o equilíbrio ecológico, em escala

lamentavelmente, o fato de que

planetária. Chegou-se a um ponto


88


89


90

tal de incúria nessa questão, que já

pelo aumento médio da temperatura

há ilha formada por lixo no Pacífico

do planeta, fazendo com que os

Norte.

recordes de temperaturas altas venham sendo batidos anualmente,

Nos países do Terceiro

na última década, sem nenhuma

Mundo e naqueles em vias de

perspectiva de reversão, provocando

desenvolvimento, como no Brasil,

acidentes naturais imprevistos e

além dos resíduos sólidos, o

uma anômala variação do clima,

lançamento de esgoto sanitário e

com efeitos econômicos e sociais

águas residuais nos corpos d’água

imprevisíveis.

são a principal causa da poluição dos ecossistemas dos córregos,

A gravidade do aquecimento

rios,lagos, aquíferos e oceanos,

global mobilizou os esforços das

tornando várias fontes de água doce

Nações Unidas que criou, desde

sem potabilidade para o consumo

1992, na Conferência de Meio

humano. A recente crise hídrica

Ambiente e Desenvolvimento

vivida no Sudeste, principalmente

celebrada no Rio de Janeiro e

em São Paulo, nos dá a dimensão

conhecida como a Rio/92, uma

dessa tragédia, pois a capital

Convenção sobre Mudanças do

paulista é banhada por dois rios

Clima. Na sua penúltima reunião,

relativamente caudalosos, o Pinheiro

realizada em Paris, em 2015, foi

e o Tietê, cujas águas não podem

aprovado o denominado Acordo

ser usadas em virtude do elevado

de Paris, prevendo um grande

índice de poluição e contaminação.

esforço conjugado das nações para

Situação idêntica ocorre em Belo

evitar que o o aumento médio da

Horizonte, como a Lagoa da

temperatura global não exceda

Pampulha, que já foi uma das fontes

os 2°C nesse século, com uma

de abastecimento de água da

recomendação adicional de não

cidade.

ultrapassar 1,5°C. Sem a redução dos GEF que são lançados no

Por outro lado, o desenvolvimento

meio ambiente, essa meta não será

global baseado em uma matriz

atingida até o fim desse século,

energética predominantemente

conforme pactuado em Paris.

construída com a produção de combustíveis fósseis, principalmente

Segundo o IPCC, Painel

carvão mineral, petróleo e derivados,

Intergovernamental de Mudanças

responsáveis pela emissão dos gases

Climáticas, na sigla em inglês, um

de feito estufa – GEF, na atmosfera,

aumento de 2°C deixará os países

levou ao aquecimento global e às

insulares do Pacífico em situação

mudanças climáticas responsáveis

de alta vulnerabilidade, com risco


91

de desaparecerem, em virtude do

Embora a economia neoclássica

aumento do nível dos mares. Como

não reconheça, na natureza há uma

em torno de 70% da população

relação de total interdependência

mundial reside nos ambientes

do recursos naturais (solo, água,

costeiros, essa é outra preocupação

floresta e fauna), tudo está ligado

dos cientistas do IPCC, além dos

a tudo. O desmatamento excessivo

efeitos deletérios sobre a agricultura

e a supressão da cobertura vegetal

e outras atividades econômicas

levou ao esgotamento de madeiras valiosas, ao empobrecimento dos

Outra consequência do hiper

solos, ao fim de inúmeras nascentes,

consumo é a escassez de recursos

minadouros e olhos d’água, além

naturais, notadamente, dos

da maior perda de biodiversidade,

recursos renováveis. Para facilitar

desde a extinção dos dinossauros,

o entendimento do tema, basta

especialmente da fauna.

verificar o que está ocorrendo no nosso próprio país, sem precisar de

Madeiras importantes que serviram

recorrer ao que se passa ao redor do

para construir as casas de nossos

mundo.

antepassados, como jacarandá, peroba, braúna, Gonçalo-alves,

A escola brasileira ensina, com razão,

cedro, jequitibá, aroeira e outras

que somos um país continental e um

não existem mais em escala

dos mais ricos em recursos naturais

comercial. O Pau-brasil, árvore

do planeta. Essa realidade, aliada ao

símbolo que deu nome ao nosso

mito da inesgotabilidade, forjou nos

país consta, atualmente, da lista das

brasileiros a cultura da abundância,

espécies ameaçadas de extinção

a certeza da terra da promissão,

da flora brasileira, significando,

o Jardim do Éden. Mas não é isso

simultaneamente, uma tragédia

que a realidade atual nos mostra.

florestal, biológica e cívica. Não fomos capazes, sequer, de proteger

Alguns exemplos são

em escala satisfatória a árvore que

paradigmáticos para explicar como a

dá nome a nossa pátria.

escassez que nos parecia inatingível está nos ameaçando. Comecemos

Outro dado que se contrapõe a

pela Mata Atlântica, que cobria

nossa cultura da abundância é

mais de um milhão de Km do

a perda da fertilidade dos solos.

nosso território, toda a nossa costa

Hoje,dados de vários estudos sobre

atlântica, do Rio Grande do Sul ao

o uso da terra no país demonstram

Rio Grande do Norte, hoje reduzida

que 50% das pastagens encontram-

a menos de 12% da sua cobertura

se em forte estágio de degradação,

original.

o que equivale a uma área em

2


92


93


94

torno de 850.000 km2 de terras,

A crise hídrica do Sudeste é o

equivalente ao território do Estado

resultado de falta de planejamento,

de Minas Gerais.

de incúria gerencial, mas também do efeito das mudanças climáticas, com

Essa é uma das maiores

a consequente variação do clima.

contradições de um país que deixa

Essa realidade veio para ficar, razão

sem uso adequado e subutilizada

pela qual medidas de mitigação e

uma área de terra tão vasta, e

adaptação às mudanças do clima se

continua desmatando o cerrado

colocam como variável fundamental

e a Amazônia para expandir a

do processo de planejamento do

sua fronteira agropecuária, sem

território e das cidades.

minimizar a pressão antrópica que ainda ocorre sobre os escassos

Pela vez primeira na história,

remanescentes da Mata Atlântica e

as populações dessas cidades,

avanço da ocupação na Caatinga e

acostumadas à abundância, ao

no Pantanal.

consumo perdulário da água, foram colocadas diante de uma situação

Além dos inexoráveis problemas

de escassez. Até aqui esse era um

ecológicos, provocados pela

problema crônico nordestino, que,

degradação das bacias hidrográficas,

subitamente, ao chegar ao Sudeste

erosão das terras e assoreamento

rico, ganhou a dimensão de crise.

dos cursos d’água, esse arcaico modus de produção acarreta

Mas,o que importa ressaltar aqui

graves prejuízos econômicos para

é que na realidade lidamos com

os próprios donos dos imóveis

recursos finitos e que só serão

rurais, na medida em que ocasiona

infinitos se forem usados de

a dilapidação dos dois principais

acordo com a capacidade de se

fatores de produção do negócio

regenerarem naturalmente.

agropecuário: o solo e a água.

Para isso é fundamental que os sistemas econômicos dialoguem

Retomamos a análise da recente

com os sistemas ecológicos, em

crise hídrica, que pela primeira vez

busca da sustentabilidade.

na história atingiu o abastecimento público de água de São Paulo, Rio

Outro tema relevante para entender

de Janeiro, Belo Horizonte, Vitória,

as relações homem-natureza diz

Brasília e outras cidades do interior.

respeito à questão demográfica,

Há 10 anos esse era um episódio

infelizmente considerada de

inimaginável, que levaria ao deboche

maneira periférica no debate da

quem, porventura,

sustentabilidade, mesmo nos

tentasse diagnosticá-lo.

meios acadêmicos. Não se pode


95

desvincular o hiperconsumo da

de pessoas, ou seja, a cada período

superpopulação, pois o consumo

de 12 anos, entre os anos de 1987 e

aumenta na medida em que

2011, acrescentamos um contingente

aumenta o número de habitantes e

populacional que levamos 12mil

o consumo percapita.

anos para atingir! Embora pouco citada, uma das marcas históricas

Para se ter uma ideia do impacto

mais contundentes do século

demográfico sobre os temas que

XX, principalmente na segunda

procuramos analisar nesse artigo,

metade do século, foi a explosão

vale a pena mencionar a evolução

demográfica.

populacional ao longo da civilização humana, desde o domínio do homo

Esses dados não podem ser

sapiens e de seu protagonismo

ignorados, porque o planeta Terra,

como a única espécie do gênero

em termos de espaço, é o mesmo

homo.

de 12.000 anos atrás. Além do vertiginoso aumento populacional

Tomando como linha de base

dos últimos 50 anos, houve também

o período em que os humanos

um considerável aumento do

tornaram-se caçadores e coletores

consumo percapita, pelo consumo

de plantas, há aproximadamente 10

de novos bens impulsionados a

mil anos a.C., pode se inferir que a

partir do advento de tecnologias

civilização humana levou 12 mil anos

inovadoras, além da oferta de

para atingir o primeiro bilhão de

novos alimentos propiciada pela

pessoas, o que ocorreu na virada do

engenharia de alimentos.

século XVIII para o século XIX, no

Considere-se, ainda, o aumento da

ano de 1802.

expectativa de vida das pessoas que dobrou no último século.

Do início do século XIX até os dias atuais, ou seja, em apenas três

Não se pode menosprezar o

séculos, a população passou de 1

desenvolvimento científico e

para mais de 7 bilhões de pessoas.

tecnológico como meio para suprir

Se recuarmos apenas à década de

essas novas demandas, mas ele

1960 do século passado, veremos

tem sido insuficiente para evitar a

que a população mundial saltou

escassez de determinados recursos

de 3 bilhões de habitantes em 1961

e nada indica que poderá ser uma

para os atuais mais de 7bilhões.

solução definitiva no futuro, embora

Isto é, em apenas meio século,

seja esta a aposta da economia

mais que duplicamos a população.

neoclássica.

Entre os anos 1987 e 1999 e 1999 e 2011, adicionamos mais 2 bilhões


96


97


98


99

Esses dados explicam sobre o uso

mas como forma de proteger a

de recursos naturais e a razão pela

humanidade dos seus próprios

qual já consumimos mais bens da

desatinos.

natureza do que o planeta pode oferta naturalmente. O crescimento

Daí a necessidade de um novo

exponencial da população somente

modelo de desenvolvimento

nesses últimos 50 anos não deixa

planejado para corrigir a histórica

dúvida de que estamos vivendo

desigualdade regional e de renda,

um momento crucial da história da

para ser socialmente inclusivo e

civilização.

ambientalmente sustentável, com foco no combate à pobrezae na

Não devemos olvidar que o planeta

proteção do meioambiente.

Terra, como lar da humanidade, é um só, não admite expansão,

Vivemos um tempo de incerteza e

não oferece a possibilidade de

insegurança, mas, também, estamos

fazer “puxadinho”. Isso implica na

no início de uma revolução digital de

necessidade de novos paradigmas

efeitos ainda não mensurados em

de produção e consumo, novas

todaa sua extensão e que podem

tecnologias poupadoras de recursos

trazer mudanças mais profundas do

naturais e, sobretudo, mudanças

que a revolução industrial. Talvez

de comportamento da sociedade

tenha chegado a hora de um novo

e de atitudes dos cidadãos rumo à

Renascimento. O momento de agir

sustentabilidade, não como slogan,

é agora!


100


101


102

ÁGUAS E CIDADES: uma nova perspectiva Marília Carvalho de Melo1

A crise hídrica vivenciada no sudeste

Sendo a água um bem de domínio

brasileiro chamou a atenção da

público, ou seja, coletivo, nenhuma

população para uma realidade que

pessoa individualmente pode fazer o

até então parecia estar longe desta

uso desse recurso natural de forma

região: a água é um recurso finito.

a degradá-lo e, portanto, causar também um dano à coletividade.

A Lei que institui a Política Nacional

Como um recurso limitado, impõe

de Recursos Hídricos, 9.433/1997,

ao seu uso a racionalidade. E, enfim,

apresenta no primeiro artigo os

o compartilhamento de competência

fundamentos da política dentre os

e responsabilidade para gerir água

quais se destacam:

impõe ao poder público, à sociedade

• a água é um bem de domínio público;

e aos usuários a função de zelar por esse recurso.

• a água é um recurso limitado; e

Analisando as premissas da Lei

• a gestão das águas deve contar

das águas no contexto da crise

com a participação do poder

público, usuários e sociedade.

1 http://lattes.cnpq.br/0957587548508629

hídrica que enfrentou o sudeste do Brasil e especialmente as grandes


103


104


105


106


107

metrópoles, São Paulo, Rio de

Um exemplo a seguir não está longe,

Janeiro e Belo Horizonte, podemos

apesar de ser em menor escala, mas

levantar as seguintes reflexões.

exemplo na concepção integradora de políticas ambientais, a Cidade de

O modelo em que se desenvolveu

Extrema , no extremo sul de Minas

a maioria das grandes cidades no

Gerais, une o desenvolvimento social

Brasil, os recursos naturais não

e econômico – IDH crescente - com

foram integrados ao planejamento

a preservação ambiental. O projeto

urbano como elementos de

que se iniciou em 2005 e cujos

qualidade de vida, bem-estar e

resultados já são demonstrados

convívio social. Essa afirmativa pode

em mídias, congressos e estudos

ser comprovada observando-se a

acadêmicos tem o nome de

situação da qualidade das águas dos

Conservador das Águas.

rios urbanos que, via de regra, são depósitos de esgotos domésticos

A premissa do projeto é o

ou industriais sem tratamento e de

pagamento por serviços ambientais,

resíduos sólidos. Em consequência

ou seja, proprietários rurais são

desse fato, os rios urbanos foram

ressarcidos pela conservação das

canalizados, o que desencadeou

suas propriedades. Três grandes

problemas de enchentes e

metas são estabelecidas: incentivar

inundações nas cidades.

técnicas conservacionistas do uso do solo, implantação de sistemas

Por outro lado, a urbanização tem

de saneamento rural e implantar

atraído cada vez mais pessoas para

e manter a cobertura florestal em

as cidades - no Brasil a população

áreas de preservação permanentes.

urbana já soma 84% (IBGE, 2010 ) - que dependem da água para

Com isso, os proprietários rurais

se abastecer e para garantir o

têm suas terras mapeadas e são

desenvolvimento de bens e serviços

identificadas as áreas prioritárias

dos quais elas dependem.

para conservação, que incluem primeiramente a matas ciliares, por

Essa dicotomia de degradação do

exercerem uma importante função

recurso natural para a instalação das

de proteção dos rios. Além disso, o

cidades e uma população crescente

projeto identifica a conectividade

que depende desses recursos é

entre as áreas de cada propriedade,

o grande desafio de uma nova

principalmente os topos de morros,

perspectiva de desenvolvimento

formando corredores ecológicos

urbano.

para reduzir a fragmentação de florestas existentes e conectar áreas


108


109

que serão recuperadas e assim

A perspectiva do município de

conservar e ampliar a biodiversidade

Extrema se aplica, por exemplo,

local.

aos mananciais de abastecimento da Região Metropolitana de Belo

E, após comprovadas o

Horizonte, que se localizam em

cumprimento das metas de

áreas periurbanas com potencial

conservação, os proprietários

para políticas de pagamentos

recebem o equivalente a 100

por serviços ambientais pela

dólares por hectare reflorestado e

conservação do solo e das florestas.

conservado. Este é o caminho para uma nova Apesar do objetivo inicial do projeto

perspectiva para a gestão das

estar voltado à preservação dos

águas urbanas: uma política de

rios, a restauração florestal é hoje na

recursos hídricos que seja capaz

literatura considerada a única forma

de resultar no abastecimento de

de reverter o aquecimento global.

água em quantidade, qualidade e disponibilidade imediata para

Os resultados do projeto

consumo humano, para a produção,

Conservador das Águas são

inclusive para o lazer e para a

até o momento mais de 3.500

manutenção de valores sociais

hectares de áreas reflorestadas e

tangíveis, como a igualdade de

que, comprovados por meio de

direitos de acesso, e intangíveis,

monitoramento, melhoraram a

como a paisagem e a cultura.

qualidade e quantidade de água

A política eficaz visa ainda à

disponível nos corpos de água da

manutenção de corpos de água

região .

descontaminados e à drenagem adequada das águas.


110


111



Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.