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James Cronin (1923-2016): legado atemporal

(Texto publicado no portal do CBPF, 2016)

Do norte-americano James Cronin, bastaria dizer que ele é Nobel de Física de 1980. É o tipo de informação que resume um currículo – e uma vida. Mas, obviamente, ele, em vários aspectos, foi bem mais do que alguém que ganhou um prêmio importante. Para a física brasileira, por exemplo, teve importância ímpar.

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O Nobel de Cronin veio por conta de experimento que mostrou, em termos simples, que a natureza privilegia a matéria em detrimento da antimatéria, o que, de certa forma, explica o universo visível – e a nossa existência, indiretamente.

Aqueles resultados – assimetria matéria/antimatéria, ou, mais tecnicamente, violação de CP – de Cronin e de seu colega norte-americano Val Fitch, com quem dividiu o prestigioso prêmio, são ainda hoje tema de intensa pesquisa e esbarram em fronteiras filosóficas. Afinal, por que não vemos uma abundância de antimatéria no universo, já que, segundo a física, elas foram criadas na mesma proporção há cerca de 14 bilhões de anos, quando um processo deu origem ao universo?

No final da década de 1980, Cronin – doutorado pela Universidade de Chicago (EUA), em 1955 – mostrou-se um pouco desiludido com os rumos que a física de altas energias havia tomado naquele período. Decidiu, então, mudar os rumos de seus interesses. E, a partir de então, voltou seu olhar para os raios cósmicos, protagonistas de um dos grandes mistérios que assolavam a física deste o início do século passado: qual a origem e a natureza dessas partículas ultraenergéticas que bombardeiam a Terra a todo instante e que, ao se chocarem contra núcleos atômicos da atmosfera, criam ‘chuveiradas’ de fragmentos de matéria que viajam velozmente em direção ao solo.

Naquele período, Cronin convenceu, entre outros, o físico britânico Alan Watson – que seria seu amigo pelos próximos 30 anos – a participar de um projeto de proporções gigantescas que seria inaugurado oficialmente em 2005: o Observatório Pierre Auger, nos pampas argentinos, aos pés das cordilheiras dos Andes, onde, em uma área de 3 mil km2, estão distribuídos detectores para capturar e estudar essa radiação.

CERN SEM ACELERADORES

O Brasil foi participante de primeira hora no Observatório Auger, ainda em meados da década de 1990, durante o período de planejamento inicial do projeto. E o entusiasmo e energia de Cronin foram fundamentais para amalgamar essa colaboração.

O Auger, de certa forma, fez com que a América do Sul retomasse a tradição de usar sua natureza (desertos, montanhas, planícies, cordilheiras etc.) em prol do estudo dos fenômenos naturais. Na física, de certa forma, essa tendência foi inaugurada com o então jovem brasileiro César Lattes (1924-2005), que, em meados de 1947, expôs emulsões nucleares (chapas fotográficas especiais), no alto do monte Chacaltaya (Bolívia), para capturar, nesses detectores, as partículas então recém-descobertas chamadas píons, responsáveis pela coesão do núcleo atômico – Lattes teve papel importante naquela descoberta. No início da década de 1960, também sob a tutela de Lattes, Chacaltaya foi também palco da Colaboração Brasil-Japão, também voltada para o estudo da radiação cósmica.

Sem dúvida, Cronin e o Observatório Auger impulsionaram a ideia recente de se fazer um tipo de ‘CERN sem acelerador’ na América do Sul, aproveitando a geografia da região para a implementação de projetos científicos de grande envergadura, como já é o caso do Auger, na Argentina, e de telescópios, no Chile. Há também planos para que se retome Chacaltaya como

observatório para o estudo da radiação cósmica e raios gama, bem como para a construção de um laboratório subterrâneo nas cordilheiras dos Andes, no qual os experimentos estariam protegidos da radiação indesejável (múons, por exemplo). O Chile segue sendo o sítio para a construção da colaboração CTA (sigla, em inglês, para Rede de Telescópios Cherenkov), para a busca de novas fontes cósmicas de radiação gama.

Vale repetir: Cronin foi bem mais do que um prêmio Nobel. Para a física do Brasil e da América do Sul, foi um amigo, cujo entusiasmo e motivação deixam um legado atemporal que, certamente, a partir de agora, deve ser continuado pelas novas gerações.

Abaixo, a homenagem do CBPF a James Cronin.

Caros Colegas:

Recebemos a triste notícia do falecimento nessa quinta-feira (25/08) do Professor Jim Cronin, um dos fundadores – e a alma – do Observatório Pierre Auger, na Argentina.

James Watson Cronin compartilhou o Nobel de Física em 1980 com outro norte-americano, Val Fitch (1923-2016). O prêmio foi concedido a ambos por uma das mais importantes descobertas na física, a chamada ‘violação de CP’, fenômeno essencialmente associado à existência da flecha do tempo.

Jim – como era conhecido pelos colegas – foi professor na Universidade de Chicago (EUA) e, mês que vem, completaria 85 anos.

Aqueles que o conheceram certamente passavam a entender, com mais profundidade, o sentido da expressão ‘uma pessoa inspiradora’! Quando dava palestras, tinha sempre o cacoete de esfregar um dedo no outro. Os amigos sabiam que isso era um sinal de que deveriam prestar muita atenção no que ele diria a seguir. Quando na audiência, era comum, da parte dele, depois da apresentação de resultados complexos, emitir a seguinte observação: “Mas não seria mais simples assim?”.

E ele sempre tinha razão.

Em Malargue, na Argentina, onde está instalado o Observatório Pierre Auger – voltado para o estudo da radiação cósmica –, Jim era considerado um ‘local’, um amigo para os habitantes daquela cidade aos pés da cordilheira dos Andes. Lá, ele estabeleceu uma escola – que também tinha aulas em inglês – com o apoio de fundações norte-americanas. Em homenagem mais do que justa, a escola leva seu nome.

Apesar do diabetes, era grande fã de um bom uísque, que sempre carregava na mala – “Just in case!”, justificava ele. Era um homem de grande vigor físico e porte atlético. Lembro-me de uma passagem que ocorreu há muito tempo – quando eu ainda era capaz de correr grandes distâncias. Fomos, juntamente com colegas do Auger, visitar uma montanha em Utah (EUA), onde pretendíamos construir o sítio norte do observatório. Ao subirmos um terreno íngreme, de uns 200 m, em areia, eu e colegas mais jovens, quase ao final da jornada, já exaustos, assistimos a Jim nos ultrapassar, como se estivesse andando no plano.

Foi graças à sua visão e energia – e com a inestimável ajuda do físico britânico Alan Watson, amigo de longa data de Cronin – que conseguimos, comandados pela batuta de ambos, construir o Observatório Pierre Auger, um feito que orgulha a todos os seus colaboradores.

Jim deixa esposa, duas filhas e um filho. E um profundo sentimento de orfandade em toda a comunidade Auger. Seu legado já é, sem dúvida, atemporal.

Ronald Cintra Shellard

Diretor CBPF

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