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Extraordinário Higgs

(Texto publicado na seção ‘Opinião’ da revista Ciência Hoje, n. 296, 2012)

Oanúncio recente da descoberta do bóson de Higgs, no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), é, certamente, um dos eventos mais extraordinários da história da civilização. E mais: enche-nos de esperança de que os problemas que enfrentamos hoje são passíveis de solução. Mas, vale desde este início, enfatizar: se o CERN tivesse anunciado que ‘O bóson de Higgs não existe!’, isso teria sido também extraordinário.

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De modo simples, essa partícula pode ser entendida como a responsável por conferir a propriedade massa à maioria de suas companheiras subatômicas. Ela completa um sistema ontológico sobre a estrutura da matéria que nos permite descrever parte substantiva da natureza e cuja origem está nas primeiras décadas do século passado, quando se desenvolveu uma teoria sobre o mundo atômico e subatômico, a chamada mecânica quântica.

O motor da concepção intelectual do que hoje chamamos Modelo Padrão para as Interações Fundamentais da Matéria – ou, simplesmente, Modelo Padrão, que pode ser entendido como a síntese do conhecimento que a humanidade reuniu nos últimos 2 mil anos para responder à pergunta ‘Do que as coisas são feitas?’ – foi inspirado por noções de beleza e elegância (na visão peculiar dos físicos) e de consistência matemática.

O Modelo Padrão é resultado do trabalho de centenas de cientistas espalhados pelo mundo todo. Até chegar ao que é hoje, um sem-número de caminhos errados foram trilhados. E isso caracteriza o avanço da ciência: para cada boa ideia que frutifica, muitas ficam pelo caminho, descartadas. O quadro da matéria que temos atualmente foi construído como um mosaico, peça a peça, testando cada uma delas para ver se se encaixava no conjunto, validando experimentalmente as previsões teóricas.

Muitos prêmios Nobel estão no caminho do Higgs. O modelo teórico estava essencialmente pronto em 1967, mas sua validação experimental levou 45 anos. Para isso, foram construídos aceleradores e vários detectores de partículas, bem como desenvolvida gama de tecnologias para explorar a matéria em sua intimidade.

O leitor pode estar se perguntando: “E eu com isto? Onde está o extraordinário? Já fomos à Lua, muito mais complicado!”

Sim, os norte-americanos foram à Lua, e isso levou seis anos, entre a decisão de ir e chegar lá. Feito de um único país – e, talvez, em breve, a China faça o mesmo. Mas, para chegar ao Higgs, foi necessário o esforço conjunto de dezenas de países. Nenhum país, sozinho, seria capaz de realizar esse feito. O acelerador LHC (sigla, em inglês, para Grande Colisor de Hádrons) começou lá atrás, em 1954, quando os países europeus decidiram unir esforços para construir um laboratório, o CERN, em Genebra – por sinal, ensaio para o que, mais tarde, viria a ser a Comunidade Europeia. Os norte-americanos, em paralelo, construíram o Fermilab, em Chicago. Nesses dois laboratórios, conviviam cientistas do mundo todo – em particular, de países que, na época, eram denominados ‘bloco soviético’.

Na década de 1980, o CERN construiu o acelerador LEP, um anel gigantesco (27 km de extensão) onde ocorriam colisões de elétrons e suas antipartículas, os pósitrons. Hoje, esse mesmo túnel abriga o LHC. No meio do caminho, o CERN inventou a world wide web, a www, ferramenta para facilitar a comunicação entre cientistas. A revolução que as páginas da internet causaram já justificaria, por si só, todo o investimento feito, até então, no laboratório.

Domínio público E aqui cabe uma reflexão. As ferramentas criadas no CERN são de domínio público, pois isso é uma forma de dar retorno ao investimento público. E, graças à essa política, a www teve disseminação tão rápida para fora do ambiente dos físicos. E deu no que deu.

As tecnologias desenvolvidas para a idealização e construção dos detectores do CERN levaram a, pelo menos, duas consequências práticas: i) número significativo de instrumentos de diagnóstico médico hoje são detectores de radiação disfarçados, e aceleradores de partículas são atualmente usados em terapias de tratamento de cânceres; ii) a eletrônica miniaturizada, embutida em telefones celulares, notebooks e outros equipamentos pessoais, foi induzida pela necessidade que os físicos e engenheiros do CERN tiveram (e têm) de compactar componentes eletrônicos em espaços exíguos.

Entre a decisão de construir o LHC e o início de suas operações, passou-se quase um quarto de século. Quando foi concebido, muitas das tecnologias necessárias não estavam ainda disponíveis; no entanto, foi possível fazer um mapa do que seria preciso desenvolver para chegar ao que se pretendia. Ao fazer esse mapa, os físicos e engenheiros usam um misto de tecnologias já disponíveis (mas que precisam de modificações para serem usadas no projeto) e aquelas que devem ser desenvolvidas (com boa chance de dar certo). Essa combinação acaba sendo muito bem-sucedida: no caso, o LHC terminou dentro do orçamento e do cronograma previstos.

Gerenciamento ‘mágico’ O que foi dito acima revela outro lado de um projeto dessa natureza; seu gerenciamento – ao qual, em geral, a mídia não dá muita atenção. A construção do LHC e de seus quatro detectores (Atlas, CMS, LHCb e Alice) envolveu não só o CERN, mas também uma miríade de fornecedores industriais, bem como centenas de universidades, além de milhares de cientistas pertencentes a culturas distintas. Universidades e cientistas não têm, em geral, boa reputação em executar tarefas com cronogramas, o que é mais característico de ambientes empresariais. No entanto, a ‘mágica’ que leva um projeto dessa envergadura e complexidade a bom termo é certamente alvo de estudos sociológicos – e, nesse quesito, pelo menos, as empresas têm uma ou duas coisas a aprender com os cientistas. E vale ressaltar que temas como salários, prêmios por produtividade, comissões – que estão sempre nas agendas de gestores de bancos e empresas – são quase tabu no meio científico.

Outras áreas da ciência tiveram sucesso na abordagem cooperativa de problemas complexos, em que só a reunião de qualificações distintas permite resolvê-los. É o caso de grandes observatórios astronômicos e dos mapeamentos genéticos, para ficar em dois exemplos. Isso revela outro fato importante: alguns dos grandes desafios de nossa época – mudanças climáticas, limitação do impacto humano no meio ambiente ou, mais essencialmente, assegurar a sustentabilidade e bem-estar das gerações futuras – são passíveis de solução.

O Brasil caminha para se tornar país-membro associado do CERN. É um passo importante em nossa trajetória, pois passaremos de coadjuvantes a protagonistas da agenda científica mundial. Não basta termos excelentes equipes de físicos trabalhando na descoberta do bóson de Higgs. É necessário envolver, nesse processo, engenheiros, técnicos, professores do ensino médio e empresas. Fazemos todos parte dessa aventura extraordinária do espírito humano!

Ronald Cintra Shellard

Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ)

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