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Espelho quebrado: a paridade violada
(Texto publicado na seção ‘Memória’ da revista Ciência Hoje, n. 233, 2006)
Em 1956, dois jovens físicos teóricos chineses mostraram que a natureza fazia uma distinção entre esquerda e direita. Ou seja, era ‘malcomportada’.
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Essa proposta – ousada à época – foi comprovada ainda nos últimos dias daquele ano, por uma equipe liderada por uma física, também chinesa, madame Wu.
O impacto desses resultados foi tão marcante para a comunidade mundial de físicos que Tsung-Dao Lee e Chen Ning Yang levaram o Nobel praticamente um ano depois de terem publicado o artigo, em uma das decisões mais rápidas da Real Academia Sueca de Ciências.
A violação da paridade nas interações fracas – um nome pomposo para o que pode ser pictoricamente resumido na possibilidade de se distinguir entre um objeto e sua imagem no espelho – é a história sobre como uma concepção da natureza baseada no ‘senso comum’ pode ser enganosa.
Quando olhamos no espelho, podemos distinguir nosso lado esquerdo do direito mexendo a mão com a qual escrevemos. Se a pessoa é destra, então a imagem dela é canhota. Mas imagine um mundo em que exatamente metade dos seres humanos fosse destra, e a outra metade, canhota. Não haveria meio para designar qual é a mão esquerda e qual a direita. Teríamos que designar ‘João Cândido’ como sendo destro, e assim o resto da humanidade saberia se são destros ou canhotos por comparação com nossa personagem fictícia. Mas, em nosso mundo real, há mais destros que canhotos, e, portanto, foi escolhida a convenção: o lado da mão que a maioria da população escreve é o direito. Portanto, no mundo real há uma assimetria entre direita (predominante) e esquerda.
Por puro preconceito, até meados do século passado, os físicos achavam que a natureza não era igualmente preconceituosa em relação à direita e à esquerda. Em outras palavras, a paridade, que pode ser entendida como a semelhança indistinguível entre um fenômeno físico e sua imagem especular, era sempre conservada nos processos físicos. Ou seja, como se a natureza optasse pela simetria, criando sempre a mesma quantidade de ‘destros’ e ‘canhotos’. A partir de 1 de outubro de 1956, a concepção de uma natureza sem preferências – como a da mãe que ama igualmente seus dois filhos – caiu. E mergulhou a comunidade mundial de físicos em profunda surpresa. Naquele dia, a prestigiosa revista The Physical Review estampou o artigo de dois jovens físicos teóricos chineses, Tsung-Dao Lee e Chen Ning Yang, ambos na Universidade de Chicago (Estados Unidos).
Porém, essa história – como toda descoberta em ciência – tem antecedentes. O conceito de paridade foi introduzido ainda em meados da década de 1920 pelo físico alemão Otto Laporte (1902-1971), mas com um aspecto ainda algébrico. Essa quantidade – ou seja, a paridade, para a qual eram atribuídos valores positivos ou negativos (+1 e -1) – deveria ser conservada, por exemplo, no processo em que um átomo absorvia energia e a devolvia para o meio através da emissão de uma partícula de luz. Três anos depois, o físico de origem húngara Eugene Wigner (1902-1995) associou essa conservação à simetria esquerda-direita ou, dito de outro modo, ao fenômeno físico e sua imagem especular.
Por quase 20 anos, os físicos acreditaram que a paridade era conservada pela natureza. Porém, no final da década de 1940, na mesma época da descoberta do píon nos raios cósmicos – pelo grupo em Bristol (Inglaterra) do qual fazia parte o físico brasileiro César Lattes (19242005) –, dois físicos britânicos na Universidade de Manchester, Clifford Butler (1922-1999) e
George Rochester (1908-2001), usando detectores especiais (câmaras de nuvens) expostos aos raios cósmicos, descobriram as partículas V, mais pesadas que o píon (este com massa entre a do elétron e a do próton). Era o primeiro exemplar das chamadas partículas estranhas. Outros exemplares foram identificados e, em particular, um par de partículas que aparentavam ter a mesma massa, bem como permanecer estáveis pelo mesmo período de tempo, antes de decaírem (ou se transformarem) em outros componentes da matéria.
Massa e tempo médio de vida iguais eram um forte indicativo de que se tratava de uma mesma partícula. No entanto, o estranho em relação a essas duas novas partículas, batizadas teta (θ) e tau (τ), era que o decaimento delas se mostrava diferente: a primeira gerava dois píons; a segunda, três. Porém, voltando um pouco à ideia inicial de Laporte, já se sabia que a paridade dos píons era negativa (-1). Portanto, o teta deveria ter paridade positiva, ou seja, (-1) x (-1), enquanto o tau deveria ter paridade negativa: (-1) x (-1) x (-1). Ainda em 1953, o físico australiano Richard Dalitz (1925-2006) desconfiou de que algo de incomum estava ocorrendo com esse par de partículas, o que levou o problema a ser denominado ‘quebra-cabeça teta-tau’.
Em um encontro internacional de física, em 1956, na Universidade de Rochester (Estados Unidos), Lee e Yang resolveram apresentar uma solução para esse problema. Para eles, algumas partículas se apresentavam com dois tipos de paridade (ideia que se mostrou equivocada). Porém, nessa reunião científica, o físico norte-americano Richard Feynman (1918-1988) sugeriu, com base na opinião de um colega, a ‘heresia’ de que a paridade poderia não se conservar em certas interações.
O que Feynman quis dizer com ‘certas interações’? Há quatro tipos de força (ou interações, como preferem os físicos) no universo: a gravitacional, que nos mantém presos ao solo; a eletromagnética, responsável pelo atrito, por exemplo; a força forte nuclear, que mantém os núcleos atômicos coesos; e a força fraca nuclear, que está por trás de certos processos radioativos e do decaimento das partículas. É esta última que nos interessa aqui, e foi a ela que Feynman se referiu.
Lee e Yang, depois da sugestão de Feynman, resolveram investigar se os experimentos com a força fraca davam alguma indicação de que a paridade era conservada. Para surpresa deles, concluíram que não, diferentemente do que acontecia nos fenômenos que envolviam a força forte, para a qual os dados experimentais mostravam, com precisão, que a paridade era mantida.
Depois de alguns meses, Lee e Yang – ou TD e Frank, como são chamados – apresentaram seus resultados: o quebra-cabeça teta-tau podia ser explicado se a paridade não fosse conservada. Para os físicos, isso implicava abrir mão de um princípio quase sagrado, algo como alegar que o princípio da conservação de energia (popularmente conhecido como ‘nada se cria; tudo se transforma’) passasse a não valer mais.
Entra em cena a física, também chinesa, Chien-Shiung Wu (1912-1997), então na Universidade Colúmbia. Com base em uma sugestão dos próprios Lee e Yang, madame Wu’, como era conhecida, quase imediatamente deu início à montagem de seu experimento. Para isso, teve de procurar colegas do Escritório Nacional de Padrões, pois a experiência exigia resfriar núcleos atômicos do elemento químico cobalto a temperaturas próximas ao zero absoluto (algo em torno de 0,01 kelvin) e submetê-los a campos magnéticos intensos. As dificuldades experimentais foram tremendas nos meses seguintes. Mas, nos últimos dias de 1956, a equipe de Wu provou que a paridade era violada nos processos físicos que envolviam a força nuclear fraca.
Para entender, ainda que de modo simplificado, a experiência de Wu é preciso imaginar um núcleo de cobalto como um diminuto ímã, que fica alinhado com as linhas de força do campo magnético externo. Além disso, de cada um dos polos desse ímã são emitidos elétrons,
resultado de um processo radioativo – na época, já conhecido – que envolve a força fraca (mais especificamente, alguns nêutrons do núcleo de cobalto se transformam em prótons e emitem, nesse processo, elétrons e uma partícula neutra, o neutrino, que, para nossos propósitos aqui, pode ser ignorada). Digamos, agora, com base em pura convenção, que, se o núcleo de cobalto girar da esquerda para a direita, o polo norte estará acima e o sul, abaixo. Mas a imagem especular desse núcleo teria uma rotação contrária (da direita para a esquerda), o que, com base em nossa convenção, causaria a inversão dos polos (sul acima, norte abaixo).
A conservação da paridade nesse processo implica ter a mesma quantidade de elétrons emitida pelos dois polos – nesse caso, seria impossível distinguir o núcleo real da imagem especular dele. Mas, se um dos polos emitisse mais elétrons (caso em que a paridade seria violada), chegaríamos a uma situação paradoxal: do núcleo real, partiriam mais elétrons do polo norte, por exemplo; da imagem especular, esse fluxo mais intenso, teria origem no polo sul. Em resumo: seria possível distinguir entre objeto e imagem, pois haveria uma assimetria entre o fenômeno e a imagem especular dele. Dito tecnicamente, o experimento de Wu mostrou que a paridade não era conservada nos processos físicos que envolvem a interação fraca. Indiretamente, isso resolveu o problema teta-tau, que são hoje diferentes estados de partículas conhecidas como káons,
A comprovação experimental das ideias de Lee e Yang quebrou o espelho e afetou a imagem da natureza, vista, de certo modo, a partir de então, como ‘malcomportada’. Logo em seguida, outro experimento corroborou os resultados da equipe de Wu e praticamente dissipou o ceticismo de parte da comunidade de físicos. Ficou somente a profunda surpresa e uma pergunta até hoje não respondida: por que a natureza não conserva a paridade nos processos que envolvem a força fraca? Por que ela distingue entre esquerda e direita, ou entre o fenômeno e a imagem especular dele?
A resposta, talvez, valha um novo Nobel, prêmio que Lee e Yang – e não Wu e sua equipe – receberam em 1957, praticamente um ano depois da publicação do artigo – uma das premiações mais rápidas da Real Academia Sueca de Ciências.
Ronald Cintra Shellard
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ) e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro