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O CERN e a física de partículas

(Capítulo do livro Nós, professores brasileiros de física do ensino médio, estivemos no CERN, 2015)

Meia-noite Era quase meia-noite quando vimos nosso primeiro Z0 no monitor, depois de três dias de expectativa. Faltavam segundos para o colisor ser desligado, encerrando a primeira rodada (run, no jargão dos físicos) de tomada de dados, no novíssimo colisor de elétrons (e-) e pósitrons (e+) do CERN, o LEP, sigla derivada de Large Electron-Positron Collider. Maria Elena Pol, física nascida em Rosário, na Argentina, mas parte do grupo brasileiro no Delphi, pilotava o monitor. Do grupo que estava em vigília, faziam parte ainda o Alessandro (Sandro) de Angelis, italiano, o Per Olof Hulth, sueco, e o Nick van Eijndhoven, holandês.

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A aparição do primeiro Z0 nos causou alivio e uma sensação de êxtase, análoga ao que eu imagino ser o momento de revelação para pessoas religiosas. Estávamos vendo o que nenhum outro ser humano havia visto antes. É bem verdade que corriam boatos sobre nossos concorrentes, os outros três detectores instalados no LEP, alegando que cada um deles já teria registrado a presença de Z0s, ao longo dos três dias que tinha durado esta primeira operação do LEP. Por isso, a sensação de alivio – afinal, não ficaríamos de fora da festa.

Mais tarde, viemos a entender o porquê de termos registrado um Z0 apenas nos últimos segundos da operação inicial do colisor. O feixe de elétrons (e-) e de suas antipartículas, o pósitron (e+), estava desalinhado quando passava pelo detector — por isso, não havia interações. No entanto, quando se iniciou o processo de desligar os feixes, eles se realinharam, gerando uma colisão e nos salvando da frustração.

Delphi (acrônimo derivado de Detector with Léptons, Photon and Hadron Identification) era um dos quatro detectores então instalados no LEP – cada detector era operado por colaborações que envolviam, cada uma delas, algumas centenas de físicos e engenheiros. Naquela noite de agosto de 1989, éramos cerca de uma dezena de brasileiros trabalhando no CERN.

Eu estava no CERN havia mais de um ano, tendo recebido uma bolsa de pesquisador visitante, por um período de dois anos. Minha formação era a de físico teórico, tendo feito minha tese de doutorado na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, sobre quebra dinâmica de simetria, tema que tem a ver com a geração de massas para as partículas e, indiretamente, com o recém-descoberto bóson de Higgs – ou, hoje, mais apropriadamente, bóson de Higgs-Brout-Englert.

Quando cheguei ao CERN, fui trabalhar com o Per Olof, e um dos temas que tratamos foi o de examinar quais eram as características que deveríamos buscar nos eventos resultantes da colisão e+ e- que poderiam assinalar a existência desse bóson. Já à época, a busca do bóson de Higgs era um dos principais temas do programa cientifico dos experimentos instalados no LEP. Havia, então, a noção de que, se essa partícula existisse, ela deveria ter uma massa maior do que cerca de 8 GeV – uma suposição baseada em argumentos cosmológicos.

Fomos investigar a literatura para ver se havia alguma evidência experimental para comprovar essa noção e descobrimos, para nossa surpresa, que não havia razão objetiva que limitasse o Higgs a ter uma massa acima de qualquer valor. Assim, preparamos o protocolo para a busca de uma partícula do tipo Higgs com massa muito pequena. Em poucos meses, já havia sido possível estabelecer limites para a massa do Higgs, com valores da ordem de 20 GeV. Nos 11 anos de operação do LEP, esses limites inferiores foram sendo aumentados.

Hoje sabemos que o Higgs, que tem massa de 125 GeV, estava além do limite de produção do LEP. A saga da sua busca só terminou quando, em 12 de julho de 2012, os experimentos Atlas1 e CMS2 anunciaram, no CERN, evidências para a existência de uma partícula com as caraterísticas do bóson de Higgs.

Não é exagero dizer que a descoberta do Higgs marcará nossa civilização como um dos seus pontos altos. Não pela descoberta em si, mas por todo o processo que culminou nesse evento. Para começar, o CERN, fundado na década de 1950, foi um ensaio para o que viria a ser a Comunidade Europeia. Não é pouca coisa. Ir à Lua foi um feito de um único país – talvez, de um segundo, se a China tiver sucesso. Descobrir o Higgs só foi possível por conta do numero de países envolvidos nessa aventura do espirito humano. Um único país não conseguiria essa façanha.

Um novo quark O ano de 1974 – quando eu ainda fazia meu doutorado na UCLA – foi um período particularmente excitante na física. Nele, deu-se o que muitos denominam ‘Revolução de novembro’, quando foi descoberto o quark charm. Difícil expressar o significado e a excitação associada a essa descoberta.

Fui testemunha de um episodio muito significativo do espirito da época. Com outros colegas, estava fazendo um curso sobre física das partículas, dado por Jun John Sakurai, famoso por seus livros-texto sobre mecânica quântica.

A data, lembro com precisão: 12 de novembro de 1974, terça-feira, final da tarde. Tinha como colega de sala o Pham Quang Hung, estudante vietnamita que fazia sua tese com o Sakurai. Somos até hoje bons amigos – ele está na Universidade de Virgínia, nos EUA. PQ, como o chamamos, vinha de uma família abastada no então Vietnã do Sul, e alguns de seus familiares ocupavam altos postos na administração do país. O Departamento de Física da UCLA tinha um sistema de rádio para se comunicar com o grupo que fazia experimentos no CERN e disponibilizara o rádio para que PQ se comunicasse com sua família. Com isso, acompanhamos de perto o fim do regime naquele país e a derrota norte-americana em primeira mão – sabíamos o que se passava lá muito antes das noticias na televisão.

PQ está hoje envolvido num programa de reestabelecimento da física no Vietnã, organizando escolas de verão em Hue. O trabalho de tese dele era desmontar o Modelo Padrão, mostrando que vários fenômenos da física de partículas poderiam ser explicados sem a necessidade do bóson vetorial Z0. O curioso é que a motivação do Sakurai, ao propor esse problema, era criar bases mais sólidas para o que chamamos hoje de Modelo Padrão.

Naquele 12 de novembro, vários dos professores do departamento assistiam ao curso e, naquele dia, o tópico era e+ e-, assunto em evidência à época, por causa da entrada em operação do colisor SPEAR, em Stanford, na Califórnia, em 1972. Em dezembro de 1973, os primeiros resultados do SPEAR foram anunciados por Burt Richter, numa conferência em Irvine, Califórnia. Os resultados foram apresentados na forma da razão entre a seção de choque da colisão entre e+ e-, onde há a produção de hádrons, e a seção de choque entre esta partícula e antipartícula, que resulta na produção de um par de múons, positivo e negativo.

Múons já eram conhecidos pelos físicos desde 1936, quando foram observados em raios cósmicos por Carl Anderson e Seth Neddermeyer.

O que faz os múons especiais é que atravessam grandes quantidades de matéria sem serem absorvidos ou sem mudar muito sua direção. A razão é que são muito parecidos com elétrons – porém, cerca de 200 vezes mais pesados (ou massivos, no jargão dos físicos), sofrendo apenas interações (forças) eletromagnéticas e fracas, em contraste com píons, que sofrem também a chamada interação forte, muito mais intensa.

Pouco antes, em 1968, uma equipe de cientistas do SLAC (sigla para Stanford Linear Ac-

celerator Center, o mesmo laboratório que o Spear), usando um acelerador linear de elétrons, descobriu as primeiras evidências de que prótons e nêutrons tem estrutura interna composta por quarks – ou pártons, como eram denominados por Richard Feynman.

Com a existência de quarks, os teóricos chamavam atenção ao fato de que a razão [R] entre as seções de choque [s] deveria ter um valor constante, igual à soma do quadrado das cargas dos quarks – a menos, para energias maiores que o limiar da massa dos quarks. No entanto, os primeiros resultados apresentados por Richter, em Irvine, indicavam um fator R crescendo com energia. Essa era a situação, naquela tarde de 12 de novembro de 1974. No final da aula, Sakurai casualmente observou: “Ontem à noite, ligou-me um amigo do SLAC e disse que observaram no fim de semana uma ressonância, com centro de massa de 3,1 GeV”. Depois disso, desenhou a figura [gráfico] da ressonância.

Imediatamente, seguiu-se grande excitação entre os professores que assistiam à aula. Para nós, alunos, não era óbvio o significado da ressonância, mas claro que era algo especial. Lembro-me de Ernest Abers, autor de um texto clássico sobre teorias de gauge, perguntar se aquela ressonância não era a mesma vista pelo Samuel Ting, em Brookhaven. Era.

Sakurai terminou a aula explicando o significado da descoberta do quark charm. Começava a ‘Revolução de novembro de 1974’, com a descoberta – que, no momento em que este depoimento está sendo escrito, completa 40 anos – que se tornou um momento transformador na física das partículas.

A data da aula do Sakurai é significativa, pois, se verificarmos a data de submissão dos papers da descoberta da ‘partícula pesada J’, como Ting a batizou, veremos que ela é 12 de novembro de 1974, enquanto a do grupo de Burt Richer – que sugeriu o nome de ψ (3105) – é de 13 de novembro.

A J/psi, como ficou conhecida, era prova indireta – porém, cabal – da existência do quark charm. Ting e Richter dividiram o prêmio Nobel de Física de 1976 por essa descoberta.

É interessante entender a origem da diferença de um dia na data da submissão dos trabalhos, bem como as diferenças entre os experimentos. O experimento de Ting explorava a colisão de um feixe de prótons contra um alvo de núcleos de berílio, examinando pares e+ e- produzidos e extraindo desses dados a massa efetiva do par. É um experimento difícil, com boa chance de contaminação dos resultados por partículas espúrias, exigindo grande cuidado na analise dos dados. Desde agosto de 1974, ouviam-se rumores de que o experimento de Ting estava observando uma ressonância que não podia ser interpretada usando a física canônica de então.

Em contraste, o experimento do Richter media o resultado das colisões e+ e- literalmente on-line. Depois de apresentarem resultados inconclusivos nas conferências do verão (do hemisfério Norte) de 1974 – resultados que, de certa forma, eram incompatíveis com a noção do modelo de quarks –, Richter e colegas decidiram fazer uma varredura, variando lentamente a energia do centro de massa do feixe e+ e-.

Enquanto a energia estava abaixo de 3,0 GeV, os monitores de controle dos eventos produzidos registravam poucos eventos por minuto. No entanto, ao cruzar esse limiar de energia, os monitores figurativamente explodiam com eventos. Cruzaram essa linha na noite de domingo, 10 de novembro, quando um estudante de doutorado estava no plantão do experimento. No dia seguinte (segunda-feira, 11), tinham o paper pronto e colocado no correio na Califórnia e enviado para a redação da Physical Review Letters (PRL), no outro lado dos Estados Unidos, em Brookhaven.

Coincidentemente, Ting tinha uma reunião no SLAC, onde era membro do Comitê Cientifico do Laboratório, e tomou conhecimento da descoberta. Imediatamente, ligou para

seus colaboradores em Brookhaven e determinou que o paper, que já estava pronto, sobre sua versão da descoberta, fosse imediatamente submetido ao Physical Review Letters, com escritório em Brookhaven – portanto, sem a necessidade de postar no correio!

O curioso é que o tema estava tão maduro que cientistas trabalhando no Laboratório Frascati, na Itália, em poucos dias foram capazes de reproduzir os resultados de Richter, e o trabalho deles foi publicado no mesmo número da PRL.

Foi um período riquíssimo de palestras, debates acalorados, mas a consequência final dessa descoberta foi a consolidação do modelo de quarks como estrutura da matéria e do Modelo Padrão para interpretar as interações fundamentais da matéria. Pouco depois da descoberta do quark charm, o mesmo grupo do Spear/SLAC encontrou indícios de um novo membro da família à qual pertencem tanto os elétrons quanto os múons. Esse novo membro foi batizado de tau (τ). O líder desse trabalho, Martin Perl, recebeu parte do prêmio Nobel de Física de 1995 pela descoberta.

Aexistência do quark charm – apesar de sua descoberta ter causado grande surpresa – havia sido prevista por vários argumentos teóricos e, de certa maneira, completava o quadro das famílias de quarks e léptons – este último, nome da família que abrange o elétron, o múon e o tau, bem como seus respectivos neutrinos. Em contraste, a descoberta de um novo integrante dessa família – cerca de 3,5 mil vezes mais pesado que o elétron – foi realmente inesperada, mas, consequentemente, qualquer um poderia prever uma nova família de quarks. Os dois membros da nova família, ainda hipotética, foram rapidamente batizados de top, um quark com propriedades semelhantes ao charm ou o up, e de bottom, semelhante aos quark strange e o down. Os quarks up e down fazem parte de prótons e nêutrons.

A existência de uma terceira família de quarks (top e bottom) havia sido especulada já em 1973, por dois físicos japoneses, Makoto Kobayashi e Toshihide Maskawa, como parte de um mecanismo para explicar a violação da simetria de CP (conjugação de carga-paridade) no decaimento dos bósons do tipo káons neutros. No entanto, esse trabalho não recebeu muita atenção até a descoberta do léptons tau (t).

Kobayashi e Maskawa ganharam o premio Nobel de Física de 2008 por prever essa terceira família de quarks. A descoberta do bottom ocorreu ainda em 1977, quando o grupo do físico norte-americano Leon Lederman observou uma ressonância – análoga à observada por Ting alguns anos antes – de um novo quark em colisões próton-núcleo, no Fermilab.

Para completar o quadro das famílias dos quarks foi necessário esperar outros 18 anos, até 1995, quando os cientistas que trabalhavam em dois experimentos, o CDF e o D0, no Tévatron, no Fermilab. Identificar o quark top foi uma tarefa muito difícil e delicada, pois o sinal tinha um ruído de fundo muito grande – vale lembrar aqui que a descoberta do bóson de Higgs guarda semelhanças com a descoberta do top.

Boatos na cafeteria do CERN Volto ao CERN. Dessa vez, não em 1989, mas, sim, para o verão europeu de 1982, quando eu terminava uma estada de três meses na divisão teórica. O CNPq tinha assinado com o CERN, anos antes, um acordo pelo qual repassava recursos àquele laboratório e este convidava físicos teóricos brasileiros para períodos curtos de trabalho no CERN.

Fui um desses convidados. Havia começado a funcionar pouco tempo antes o Super Proton Synchroton (SPS), então o mais poderoso acelerador de partículas do mundo, que estava operando no modo de colisão prótons-antiprótons. Preparar feixes de antiprótons, juntá-los num feixe e colidi-los com prótons foi um feito de engenharia fantástico, comandado por Simon van der Meer, engenheiro holandês, especializado na física de aceleradores.

O centro nevrálgico do CERN é a cafeteria, o bandejão onde todos se encontram para almoçar – às vezes, jantar – e, principalmente, se reunir às 10h da manha e às 4h da tarde para tomar café e discutir física.

É uma maneira elegante de dizer o que realmente se faz: fofocar sobre assuntos da física, ouvir os boatos, os rumores, saber o que está acontecendo, antes que estas coisas assumam seu papel real, na forma de papers submetidos aos periódicos científicos.

Essa é uma característica da física. Uma descoberta, uma ideia nova, só são levadas a sério quando materializadas num trabalho publicado num periódico cientifico. E a razão é simples: qualquer proposta, anúncio de descoberta, nova ideia, para ter validade deve ser escrutinizada pelos pares de forma independente e organizada – é isso que dá credibilidade à ciência. A cafeteria do CERN é um lugar democrático, onde você vai encontrar físicos de que só ouviu falar como figuras míticas ou que eventualmente tenham estado em Estocolmo para receber um prêmio. E lá na cafeteria uma ou mais dessas figuras podem estar sentadas ao seu lado. Fazer uma selfie, pedir um autografo? Nem pensar!

Na cafeteria, são todos iguais.

Nesse verão de 1982, os boatos na cafeteria do CERN tinham como tema os rumores sobre a descoberta dos bósons W± e Z0, pelos experimentos instalados no SPS. A previsão para a existência dessas partículas está associada à concepção de um modelo que unifica as interações fracas e eletromagnéticas num mesmo esquema formal. O saudoso físico brasileiro Jose Leite Lopes, um dos fundadores do CBPF, foi a primeira pessoa a sugerir a existência de uma partícula com as características do que chamamos hoje a Z0 – isso se deu em 1958.

A Z0 é uma espécie de irmã pesada do fóton, assim como as W± são suas irmãs com carga elétrica. Uma diferença fundamental entre o fóton e essas três irmãs é que o primeiro não tem massa, enquanto as outras três têm. Outra diferença fóton é o agente da interação (força) eletromagnética, enquanto a tríade é a responsável por intermediar a chamada forca fraca.

A explicação de como é possível gerar massa para essas partículas, de modo que mantenham algumas das características que fazem do fóton uma partícula tão especial, foi o que levou a Academia Sueca a dar o Nobel de Física de 2013 a Peter Higgs e François Englert. Em tempo: Higgs e Englert não foram os únicos a formularem essas ideias, o que mostra que elas já estavam maduras, suspensas no ar!

A formulação definitiva da unificação do eletromagnetismo com as interações fracas, numa única estrutura, que tem como característica a simetria das equações por uma transformação que atende pelo nome técnico de simetria de gauge, foi completada poucos anos depois pelo trabalho do físico norte-americano Steven Weinberg e do paquistanês Abdus Salam, ampliando uma formulação inicial de Sheldon Glashow – sim, é homenagem a ele o Sheldon da série The Big Bang Theory). Os três receberam o prêmio Nobel de 1979 por essa proposição.

Havia pouca dúvida de que os novos experimentos no SPS, em operação naquele verão de 1982, o UA1 e o UA2 (as iniciais referem-se a Underground Area), mais cedo ou mais tarde iriam mostrar de forma conclusiva a existência desses bósons, que, juntamente com o fóton, são denominados bósons vetoriais.

Uma das evidências indiretas para o Z0 tinha sido a descoberta das correntes neutras pelo experimento Gargamelle, no CERN, que estudou o espalhamento de neutrinos pela matéria. Os rumores que flutuavam na cafeteria naquele verão só vieram a se confirmar no início do ano seguinte com a publicação dos trabalhos que evidenciavam a descoberta dos W± e Z0. Já em 1984, o físico italiano Carlo Rubbia e o engenheiro holandês Simon van der Meer ganharam o premio Nobel de Física pela descoberta.

Liberdade assimptótica Quando fui trabalhar no CERN, fazendo a transição de teoria para física experimental em março de 1988, o anel de colisão LEP já estava quase completo. O Modelo Padrão já estava consolidado. Não mencionei neste texto outro avanço importante que aconteceu, ainda à época em que eu fazia o meu doutoramento, que foi a descoberta da liberdade assimptótica de teorias de calibre (ou gauge) não abelianas e a consequente inferência de que os quarks, além da característica denominada sabor (nome técnico dado às diferenças entre, vamos dizer, quark up e down), tinham também outra propriedade, com nome técnico de cor, termo cuja origem está na constatação de que essa propriedade vinha em três tipos e, por analogia, foi associada as três cores fundamentais – em inglês red, green e blue – e o nome pegou.

Além das interações eletromagnéticas e fracas, outra interação permeia as relações entre as partículas: a interação forte, da qual já falamos brevemente neste texto. A demonstração da liberdade assimptótica das teorias de calibre não abelianas foi feita pelos físicos David Gross e Frank Wilczek, e por David Politzer, trabalhando na costa leste dos EUA. Os trabalhos fizeram parte das teses de doutoramento de Wilczek e Politzer. Os três receberam o prêmio Nobel de Física de 2004 pela descoberta da liberdade assimptótica.

A estrutura que explica as interações fortes tem como nome cromodinâmica quântica (QCD, sigla derivada do termo em inglês). A QCD previa novas partículas, os glúons, que fazem a ligação entre os quarks e que são responsáveis por trocar a cor nestes últimos. Em contraste com os fótons, bem como com os W± e Z0, os glúons só existem no interior das partículas – não podem ser produzidos isoladamente. No entanto, no final da década de 1970, foram publicadas evidências experimentais para a existência dos glúons por experimentos instalados no anel de colisão Doris, no DESY, Alemanha. Esta impossibilidade de os glúons não existirem de forma livre, isolada, não é tão estranha assim, pois, pela mesma razão, intrínseca da QCD, quarks também não existem em forma livre na natureza, mas aparecem sempre como um conjunto de três ou dois – neste ultimo caso, como pares quark-antiquark.

Naquele mesmo período, o físico holandês Gerardus ‘t Hooft e seu orientador de doutorado, Martinus Veltman, mostraram que teorias da classe das interações eletrofracas e da cromodinâmica quântica eram renormalizáveis, ou seja, eram matematicamente consistentes. Por esse trabalho, receberam o prêmio Nobel de Física de 1999.

Assim, quando cheguei ao CERN em 1988, o Modelo Padrão para as Partículas e Interações Fundamentais da Matéria (ou, simplesmente, Modelo Padrão) já estava consolidado, sendo formado pela combinação de duas teorias independentes: a) as das interações eletrofracas, com os bósons vetoriais fóton, as W± e a Z0 servindo de ponte de ligação entre partículas; b) a cromodinâmica quântica, na qual o papel de ponte de ligação é desempenhado pelos glúons. No Modelo Padrão, além dos bósons que acabamos de citar, há ainda duas classes de partículas: a) os léptons [elétron, múon, tau e respectivos neutrinos], que interagem apenas pela ponte eletrofraca, e b) os quarks [up, down, charm, strange, top e bottom], sujeitos às interações eletrofracas e as fortes (QCD).

Hoje, a esse esquema, adiciona-se o bóson de Higgs, necessário para induzir tanto a massa dos bósons vetoriais quanto a das outras partículas. Em 1988, faltava descobrir-se o quark top, mas havia poucas dúvidas sobre sua existência. Sabia-se que era apenas uma questão de tempo.

Curiosamente, antes da descoberta desse quark, no Fermilab, os experimentos do LEP foram capazes de estimar a massa desse quark com mais precisão do que a massa medida. Essa estimativa tem a ver com fenômenos quânticos observados em processos medidos nos experimentos do LEP e é outra evidencia da solidez do Modelo Padrão.

Ate hoje (final de 2014), não foi observada experimentalmente nenhuma violação do Modelo Padrão, uma das construções humanas mais perfeitas.

Astropartículas Trabalhei no experimento Delphi de 1988 até praticamente o fechamento do LEP para sua substituição pelo novo acelerador, o LHC (sigla para Large Hadron Collider). Em 1995, tomei conhecimento, de forma quase acidental, do projeto de se construir um gigantesco detector de raios cósmicos e, mais acidentalmente ainda, acabei sendo capturado pelo projeto, que hoje é o Observatório Pierre Auger, construído e funcionando na província de Mendoza, na Argentina, para estudar raios cósmicos, área cujo desenvolvimento está na raiz da física do século passado.

A chamada área das astropartículas tem sua origem na criação do Auger, somada ao advento de observatórios de raios gama de altas energias, bem como de neutrinos cósmicos, e o desenvolvimento de novos detectores que têm como objetivo elucidar a natureza da matéria escura (cerca de 70% da constituição do universo) – tema que não abordei aqui, mas que é hoje um dos grandes desafios científicos da física.

A partir do ano 2000, quando já estava engajado na construção do Auger, fui poucas vezes ao CERN, apesar de o Auger fazer parte dos experimentos ‘reconhecidos’ por aquele laboratório – uma maneira de se dizer que o observatório é um experimento de partículas. Porém, muitos colegas que trabalharam comigo no Delphi vieram também a fazer parte do Auger.

Em julho de 2013, recebi em casa [no Rio de Janeiro] o Alessandro de Angelis, o Per Olof Hulth e o Nick van Eijndhoven, durante a realização, no Rio de Janeiro, da Conferência Internacional sobre Raios Cósmicos. Tínhamos todos tomado o caminho das astropartículas. Per Olof e Nick trabalham hoje no IceCube, experimento no polo Sul que mede neutrinos cósmicos de grande energia; Sandro está no Magic, observatório de raios gama nas ilhas Canárias e com quem estou envolvido no projeto e construção do futuro CTA (sigla para Cherenkov Telescope Array), gigantesco observatório de raios gama de altíssimas energias que será construído na América do Sul.

Naquela noite, brindamos com uma caipirinha os 24 anos de outra noite inesquecível, quando observamos nosso primeiro Z0 .

Ronald Cintra Shellard

Diretor do CBPF

* Publicado em Nós, Professores Brasileiros de Fisica do Ensino Médio, Estivemos no CERN. Nilson Marcos Dias Garcia (org.). São Paulo: Editora Livraria da Física/SBF, 2015.

AGRADECIMENTOS_ Bianca Encarnação (Instituto Ciência Hoje), Kurt Riesselmann (Fermilab), Marcos Zibordi (Unicsul/ECA-USP/ANF), Nilson Marcos Dias Garcia (UFTPR), Ana Luísa Videira (designer).

ANTONIO AUGUSTO PASSOS VIDEIRA AGRADECE OS SEGUINTES APOIOS_

CNPq pela bolsa de produtividade (processo n° 306612/2018-6), UERJ pela Bolsa Prociência e CBPF pelo apoio logístico.

“Shellard tinha um compromisso com a ciência brasileira, mas foi além: internacionalizou a competência e a cooperação da ciência brasileira. A última grande contribuição, que nasceu de suas iniciativas, foi a adesão do Brasil ao CERN”.

Paulo Alvim

MINISTRO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÕES

“O que eu mais admirava no Ronald era seu otimismo incorrigível. Por mais que as coisas estivessem se encaminhando na direção errada, ele sempre achava que daria certo... e, geralmente, ele acertava“.

Gilvan Augusto Alves

PRESIDENTE DA RENAFAE

Este livro foi impresso em Dezembro de 2022, pela Leograf Gráfica e Editora, em São Paulo. O papel do miolo é Pólen Bold 90g/m2 e as tipografias utilizadas são Adobe Caslon Pro e Dunbar Tall

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