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Um ‘Einstein’ gigantesco nos pampas
(Artigo para a revista Ciência Hoje, n. 214, 2005, reproduzido no livro Física Hoje, 2007)
Eles são fragmentos de matéria bilhões de vezes menores que um grão de poeira, mas podem carregar energias macroscópicas, equivalentes àquela de um tijolo arremessado à mão, com toda força, contra um muro, por exemplo. Penetram a atmosfera terrestre, vindos de todas as direções do espaço, e, ao se chocarem com átomos que formam o ar, desencadeiam uma ’chuveirada’ que pode conter bilhões de partículas. Parte desses estilhaços subatômicos chega ao solo e penetra o corpo humano à razão de dezenas a cada segundo.
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Esses viajantes espaciais são os raios cósmicos, as partículas mais energéticas das quais a ciência tem conhecimento. De onde eles vêm? Que mecanismos de aceleração imprimem tamanha energia a eles? Essas são apenas duas das muitas questões ‐ ainda sem resposta ‐ que tornam a pesquisa em raios cósmicos uma das mais instigantes da atualidade.
Neste artigo, o leitor ainda terá a chance de saber como as ideias lançadas há exatos 100 anos por Einstein ajudam a desvendar a origem e as propriedades dessas misteriosas partículas ultraenergéticas.
Aviagem ao Observatório Pierre Auger é longa. Do Rio de Janeiro, toma-se um avião para Buenos Aires – ou a Santiago do Chile - e outro até Mendoza, na Argentina. A sede do observatório fica em Malargüe, cidade no planalto pré-andino, a cerca de 400 km ao sul de Mendoza. Para chegar lá, carro ou ônibus – e carretas pesadas, quando se trata de carregar equipamentos. É uma viagem bonita, em estradas sem muito movimento, acompanhando a cordilheira dos Andes, com vistas espetaculares — em particular, a do vulcão Tupangato.
Malargüe é uma corruptela do nome Malal-Hué, termo que significa ‘curral de pedra’ na língua mapuche, falada pelos povos indígenas que habitam a região. Ao todo, pelo menos 15 horas de viagem. Os 80 km finais da estrada vão costeando a região onde estão sendo instalados os detectores do observatório – 3 mil km2 de área instrumentada, equivalente a três vezes a do município do Rio de Janeiro. Nos últimos seis anos, tivemos duas reuniões por ano para discutir a evolução do projeto, analisar os dados produzidos e definir as estratégias para levantar recursos para completar o observatório. Reuniões com cientistas vindos de toda parte, enfrentando a longa viagem.
Já se vão quase nove anos [2005] desde que começamos esse projeto. A colaboração Pierre Auger — em homenagem ao físico francês (1899-1993) – foi formada em uma reunião realizada na sede da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), em Paris, em novembro de 1995. Nós, pesquisadores brasileiros, juntamo-nos a colegas argentinos nessa reunião para defender a proposta de construir a sede sul do futuro observatório na Argentina. Concorríamos com os sul-africanos, que traziam uma carta de apelo do então presidente Nelson Mandela para que fosse escolhida, como sede do observatório, uma região no oeste da África do Sul, perto da fronteira com a Namíbia. Os argentinos traziam também uma carta de – seu então presidente – nome, hoje, que preferem esquecer.
A outra proposta foi feita pelos australianos, oferecendo uma área que era uma reserva militar, usada como campo de treinamento para bombardeiros. Evidentemente, a hipótese de que teríamos, de tempos em tempos, bombas explodindo perto de nossos detectores eliminou imediatamente esse candidato. Era também o lugar mais longínquo para a maioria dos delegados reunidos em Paris.
O argumento decisivo para a escolha da Argentina como sede do observatório sul foi a existência de uma comunidade de físicos bastante grande na Argentina e no Brasil. A decisão sobre a sede do observatório norte, nos Estados Unidos, foi tomada em outra reunião, seis meses depois.
Mais energéticos do universo Desvendar um dos grandes mistérios da física atual é a motivação da equipe de cerca de 250 físicos, de dezenas de nacionalidades, que está construindo o observatório. O mistério é a natureza dos raios cósmicos, com as energias mais altas que qualquer outro objeto encontrado no universo.
Raios cósmicos são bastante ubíquos – ou seja, vêm de todas as direções do espaço –, atravessando nossos corpos o tempo todo, sem nos darmos conta disso. São parte da radiação natural do meio ambiente. Milhares deles atravessam qualquer metro quadrado da superfície da Terra a cada segundo. Mesmo dentro de edifícios, eles estão presentes. Quando algum experimento científico necessita ser realizado em um ambiente com pouquíssimos raios cósmicos, tem-se que buscar cavernas ou túneis muito profundos, de maneira que o material acima os absorva.
Os raios cósmicos que irradiam a Terra têm energias muito variadas. Porém, quanto maior a energia, mais raros são. Para cada fator 10 no aumento de energia, o fluxo de raios cósmicos – ou seja, o número deles por metro quadrado por segundo – cai por um fator de quase mil. Os de energia mais alta já registrados por sensores na Terra têm um fluxo de cerca de um raio por ano em uma área de mil km2. Portanto, para poder capturá-los, ou temos sensores espalhados por muitos quilômetros quadrados, ou dedicamos centenas de anos ao trabalho! Obviamente, optou-se pela primeira solução.
Os raios cósmicos de mais alta energia são geralmente denominados ultraenergéticos. Se apenas um micrograma desse tipo de matéria atingisse a Terra, a energia do choque seria equivalente ao de um asteroide com a massa do monte Everest – o mais alto pico do mundo – viajando a 200 mil km/h. A energia carregada por um ultraenergético chega a ser macroscópica, ou seja, equivalente àquela a que estamos acostumados no dia a dia. E isso impressiona pelo fato de o fragmento que carrega essa energia ser bilhões de vezes menor que um grão de pó.
Km que viram mm O tema de fundo desta série de artigos que a Ciência Hoje está publicando este ano [2005] é a comemoração do centenário do annus mirabilis (ano miraculoso) de Albert Einstein (18791955). Raios cósmicos com energias extremas têm a ver com os três assuntos abordados por esse físico alemão em seus trabalhos de 1905. Os raios cósmicos são partículas relativísticas, ou seja, viajam a velocidades muito próximas à da luz (300 mil km/s, no vácuo). No caso dos raios que são o objeto de estudo do Auger, a energia é muito maior que a de repouso, definida pela equação mais conhecida da física: E = mc2, onde E é a energia, m a massa e c2 a velocidade da luz no vácuo ao quadrado.
A razão entre a energia e mc2 (E/mc2), conhecido no vocabulário técnico como fator de Lorentz, uma homenagem ao físico holandês Hendrik Antoon Lorentz (1860-1925), regula as transformações do espaço-tempo – contrações espaciais e dilatações temporais –, ou seja, mostra como dois observadores, um em movimento em relação ao outro, observariam o mesmo fenômeno e como mediriam distâncias, velocidades e intervalos de tempo. O fator de Lorentz é consequência de um postulado simples – porém ousado para a época – proposto por Einstein: a velocidade da luz é constante para todos os observadores, estejam eles parados ou em movimento.
Um astronauta viajando com o mesmo fator de Lorentz de um raio cósmico ultraenergético veria a Terra não como uma esfera, mas como um disco com o raio da Terra – cerca de 6 mil km –, porém com uma espessura de cerca de 40 mícrons (40 milésimos de milímetro), bem menos que a espessura de um fio de cabelo! Por outro lado, se estivéssemos observando o astronauta, e ele se dirigisse para Próxima Centauri (estrela mais perto do Sol), mediríamos, a partir da Terra, em 4,24 anos o tempo que ele levaria para chegar lá. No entanto, o relógio do astronauta, que bate em um ritmo muito diferente que o nosso, cronometraria sua viagem em meio microssegundo (ou meio milésimo de segundo)!
Naves espaciais viajando a essas velocidades são irrealizáveis, pois a quantidade de energia necessária para acelerá-la seria despropositada. Porém, observamos o efeito da dilatação do tempo e da contração dos comprimentos nos raios cósmicos. Quando um raio cósmico – um próton, por exemplo – colide com um átomo da atmosfera, entre os fragmentos da colisão encontram-se múons (‘primos’ mais pesados do elétron), que têm uma vida muito breve, cerca de 2 microssegundos, transformando-se, depois disso, em outras partículas. Nesse tempo de vida, viajando praticamente à velocidade da luz, um múon percorre 660 metros. Como essas colisões ocorrem a alturas muito elevadas – 20 km, 30 km ou mais –, não esperaríamos que os múons sobrevivessem e chegassem até a superfície da Terra.
Quase todos chegam.
A explicação está no ‘relógio interno’ dos múons, que está batendo em um ritmo muito mais lento que os relógios parados na Terra. Do ponto de vista do múon, as dezenas de quilômetros da atmosfera estarão contraídas e serão equivalentes a alguns mícrons apenas. Esses mesmos fenômenos são observados também nos aceleradores de partículas, cotidianamente.
Energia que se torna matéria O segundo tema abordado por Einstein foi o efeito fotoelétrico, fenômeno em que elétrons são arrancados dos átomos de um metal pelo ‘impacto’ da luz incidente. Foi um passo revolucionário atribuir à luz um caráter corpuscular, com energia e momento (produto da massa pela velocidade) bem definidos. A demonstração explícita de que a luz tinha momento – em outras palavras, que se comportava como um corpúsculo – só veio a ser realizada em 1923 pelo físico norte-americano Arthur Compton (1892-1962).
Dois anos depois, outros experimentos confirmariam esses resultados e suplantariam as dúvidas sobre a realidade física dos fótons, termo introduzido, em 1926, pelo físico-químico norte-americano Gilbert Lewis (1975-1946), para designar as partículas de luz.
Na década de 1920, chegou-se a suspeitar que os raios cósmicos com energias muito altas poderiam ser fótons igualmente energéticos. Porém, essa hipótese foi logo descartada por experimentos. Hoje, sabe-se que o universo é bastante opaco a fótons energéticos – em contraste, o universo é transparente para os fótons de luz visível, e é isso que permite que o brilho das estrelas chegue até nós. No entanto, os chuveiros atmosféricos – ou seja, os fragmentos da colisão de raios cósmicos com núcleos da atmosfera – têm grande quantidade de raios gama, nome pelo qual os fótons de mais alta energia são conhecidos. Eles têm tanta energia que, eventualmente, a convertem em matéria, transformando-se em um par formado por um elétron e sua antipartícula, o pósitron.
Panquecas atmosféricas A fragmentação do raio cósmico é o efeito que o torna passível de ser observado e toca no terceiro tema de Einstein. A propagação de um raio cósmico pela atmosfera pode ser entendida como o movimento browniano relativístico – no caso, a qualificação ‘relativístico’ se dá pelo fato de essa propagação ocorrer a velocidades próximas à da luz. Einstein, em 1905, também
produziu dois trabalhos sobre o movimento browniano, um fenômeno que designa a trajetória desorganizada de partículas diminutas suspensas em um líquido e que foi descrito em 1827 pelo botânico escocês Robert Brown (1773-1858). Brown notou que grãos de pólen sobre a superfície da água apresentavam um ‘zigue-zague’ errático, mas não soube dar uma explicação para isso. Mais tarde, o movimento browniano – como ficou conhecido – seria entendido como resultado do choque das moléculas do líquido – estas em agitação térmica – contra as partículas suspensas.
No caso dos raios cósmicos, não está em jogo a colisão de moléculas contra partículas macroscópicas – como foi observado por Brown –, mas, sim, o caráter aleatório – ou seja, as flutuações – nas colisões dos fragmentos do raio cósmico contra núcleos da atmosfera.
Uma ‘panqueca’ de partículas é a imagem mais realista para imaginar o que um raio cósmico com as energias mais altas provoca depois de penetrar na atmosfera. Essa panqueca vai se difundindo lateralmente e se propaga rumo à superfície praticamente à velocidade da luz. Na primeira colisão do raio cósmico contra um núcleo atômico de um elemento químico presente na composição do ar – como nitrogênio ou oxigênio –, criam-se fragmentos de núcleos, bem como novas partículas – por exemplo, píons neutros e com carga elétrica. Todos esses fragmentos carregam muita energia e, por sua vez, vão criar novas colisões. Isso faz com que aumente substancialmente o número de partículas em torno do que seria a trajetória original do raio cósmico que originou esse evento.
Os píons carregados eletricamente são as partículas responsáveis pela coesão do núcleo atômico. Depois de serem criados, eles se desfazem em múons e neutrinos (partículas neutras com massa extremamente pequena e alto poder de penetração). Mas muitos desses píons sobrevivem e são detectados na superfície da Terra. Já os píons neutros se desfazem em fótons, que, por sua vez, se materializam em pares elétron-pósitron.
Um raio cósmico ultraenergético pode desencadear uma panqueca contendo cerca de 10 bilhões de fragmentos, com sua energia original distribuída entre todos eles. Quando cada uma das partículas do chuveiro atmosférico – o nome técnico que se dá à panqueca de partículas — tem energia abaixo de um limiar, elas acabam sendo absorvidas pela atmosfera. Em consequência disso, um chuveiro cresce de intensidade até um máximo e, depois, começa a minguar. Mas, mesmo assim, centenas de milhões de fragmentos chegam ao solo, espalhando-se por áreas bem grandes, da ordem de alguns quilômetros quadrados.
Outro dedo de Einstein Portanto, a estratégia para poder medir as características de um raio cósmico é espalhar sensores por grandes áreas, para coletar uma amostragem de pedaços de um chuveiro e, a partir disso, reconstruir sua estrutura. Vários tipos de sensores são usados. No caso do Auger, esses sensores são tanques de água, isto é, barris de plástico com 1,5 m de altura e quase 3,5 m de diâmetro, contendo 12 toneladas de água pura – pura, no caso, para evitar o crescimento de microrganismos no interior dos tanques. Pode parecer um tanto surpreendente usar água para observar raios cósmicos.
Aqui, de novo, há o dedo de Einstein. O efeito por trás disso chama-se radiação Cherenkov, homenagem ao físico russo Pavel Cherenkov (1904-1990), que a descobriu. Esse efeito é análogo ao ‘boom’ sônico gerado por um avião viajando a uma velocidade maior que a do som na atmosfera. Uma partícula de um chuveiro atmosférico viaja a uma velocidade muito próxima à da luz no vácuo. Quando penetra na água do tanque, ela continua com a mesma velocidade. No entanto, a velocidade da luz na água é muito menor - ela é a velocidade da luz no vácuo dividida pelo índice de refração da água, que é 1,33. Portanto, a velocidade da partícula cai de algo próximo a 300 mil km/s para cerca de 225 mil km/s.
A perturbação da passagem da partícula carregada pela água – o efeito Cherenkov não ocorre com partículas neutras – gera uma frente de onda – o chamado ‘cone sônico’ – que é convertida em luz ultravioleta. Essa radiação ilumina as paredes do tanque, que estão forradas por um tipo especial de plástico que difunde a luz ultravioleta. Flutuando na água estão três fotomultiplicadoras, sensores que têm o efeito fotoelétrico como base de seu funcionamento e que são capazes de registrar cada fóton de luz.
A intensidade da luz Cherenkov é proporcional ao comprimento das trajetórias das partículas carregadas atravessando a água. Fotomultiplicadoras são instrumentos muito rápidos, fazendo uma amostragem de luz a cada 25 nanossegundos (25 bilionésimos de segundo). Os tanques ‘falam’ entre si, conferindo, a intervalos regulares, a presença de um sinal coincidente nos tanques vizinhos. Quando três tanques vizinhos detectam a chegada de raios cósmicos em um intervalo da ordem de milissegundos – este é o sinal de que chegou uma panqueca atmosférica —, enviam todos a informação que coletaram para uma central, onde esses dados são analisados, rotulados e armazenados.
Noites sem luar Os fragmentos do raio cósmico dão origem a outro efeito que tornam os chuveiros atmosféricos visíveis por outro instrumento. As colisões desses fragmentos com as moléculas da atmosfera geram uma luminosidade muito semelhante àquela que acontece nas lâmpadas fluorescentes. As moléculas do ar – e, em particular, as moléculas de nitrogênio – são excitadas pela passagem do raio cósmico – ou seja, uma parte ínfima da energia da partícula é capturada por essas moléculas, que a emitem de volta na forma de fótons energéticos, no caso luz ultravioleta. Essa quantidade de radiação é suficiente para ser capturada por telescópios localizados a dezenas de quilômetros de distância.
Evidentemente, essa luz só pode ser vista à noite, quando o luar não é muito intenso. De dia e em noites de lua cheia, esse fenômeno é ofuscado pela luz do Sol ou por aquela vinda diretamente da Lua (luar). A poluição visual gerada pelas grandes aglomerações humanas também ofusca a emissão de luz ultravioleta pelos raios cósmicos e, por isso, experimentos como o Auger só podem ser realizados em lugares com atmosfera seca e pouco habitados, característica do local onde está o observatório.
Há um terceiro efeito gerado por um raio cósmico, mas que ainda não é aproveitado pelos cientistas. São as emissões da radiação pelo chuveiro na região das ondas de rádio (faixa menos energética do espectro eletromagnético). Atualmente, há um grande esforço, em muitos laboratórios do mundo, para desenvolver antenas sensíveis o suficiente para fazer uma ‘radiografia’ de um raio cósmico com energias muito altas.
Radiação extraterrestre Raios cósmicos não eram reconhecidos como cósmicos no início do século passado. A existência de uma radiação difusa que perturbava experimentos eletrostáticos era conhecida havia muito tempo. O físico francês Charles Augustin Coulomb (1736-1806), ainda no final do século 18, notou que uma esfera carregada, pendurada em um fio de seda fino e longo, gradualmente perdia sua carga. A explicação mais plausível era a de que o ar não era um isolante perfeito, e a perda de carga se dava através dele. No final do século 19, passou-se a atribuir esse efeito à radioatividade – fenômeno então recém-descoberto – natural do meio ambiente.
A identificação extraterrestre dessa radiação foi realizada pelo físico austríaco Victor Hess (1883-1964) em uma série de voos de balões entre 1911 e 1913. Munido de aparelhos especiais (eletroscópios), mediu o nível de radiação até 5 km de altura, verificando que lá a radiação era muito maior que no solo. Hess observou que a radiação diminuía ligeiramente até a altura
de cerca de 1 km, quando, então, começava a aumentar continuamente. Um ano antes, o físico e padre jesuíta holandês Theodor Wulf (1868-1946) levou um único eletroscópio ao alto da Torre Eiffel (Paris), a 300 m de altitude, e notou que a radiação era mais intensa que no solo. Mas não foi muito além em suas conclusões.
A natureza da radiação cósmica só foi desvendada no final da década de 1920. O físico norte-americano Robert Millikan (1868-1953) defendia a hipótese de que essa radiação era composta por raios gama e cunhou, em 1925, a expressão ‘raios cósmicos’ para nomeá-la. O físico holandês Jacob Clay (1882-1995) descobriu, em 1928, que a intensidade dos raios cósmicos aumentava com a latitude e sugeriu que eles poderiam ser cargas elétricas defletidas por campos magnéticos. Em 1929, eles foram observados, como trajetórias tênues, em detectores então recém-inventados, as chamadas câmaras de nuvens, pelo russo Dmitri Skobeltzyn (1892-1991). Logo em seguida, os alemães Walther Bothe (1891-1957) e Werner Kolhörster (1887-1946) mostraram que as trajetórias eram curvadas quando submetidas a campos magnéticos, demonstrando definitivamente que raios cósmicos eram partículas carregadas.
Pierre Auger e seus colaboradores posicionaram detectores em regiões altas dos Alpes. Eles mostraram, em 1938, que havia correlação entre os sinais de dois detectores, mesmo quando estes estavam a vários metros de distância. A correlação no tempo persistia mesmo quando a distância entre eles era de 75 m. Eles rotularam esses fenômenos como chuveiros atmosféricos extensos, nome que ainda é usado hoje.
No Brasil, em 1939, o físico ítalo-ucraniano Gleb Wataghin (1899-1986) e os brasileiros Marcello Damy e Paulus Pompéia (1910-1993) identificaram nos chuveiros partículas com alto poder de penetração na matéria – hoje, sabemos que essas partículas são os múons. O estudo mais sistemático dos chuveiros atmosféricos usando redes de detectores em associação se iniciou logo após o final da Segunda Guerra, com experimentos, nos Estados Unidos, do físico italiano Bruno Rossi (1905-1993) e, na então União Soviética, por Georgi Zatsepin.
Ondas de choque O estudo dos raios cósmicos abriu o campo das partículas elementares e gerou importantes descobertas, como a dos pósitrons, em 1932, pelo norte-americano Carl Anderson (19051991); cinco anos mais tarde, a dos múons por Anderson e seu colega Seth Neddermeyer (1907-1988); a dos píons pela equipe do inglês Cecil Powell (1903-1969), em 1947, na qual teve papel muito importante o brasileiro César Lattes (1924-2005).
Com o advento dos aceleradores de partículas, no início da década de 1950, os raios cósmicos deixaram de ser o centro de atenção no estudo das partículas. No entanto, a caracterização dos raios cósmicos prosseguiu até os dias de hoje, usando uma extensa gama de sensores, de pequenos detectores localizados no alto de montanhas a voos de balão, foguetes e satélites, incluindo nesta lista aqueles espalhados por áreas extensas para estudar os raios cósmicos de energia mais alta. As naves Voyager I e II – lançadas ao espaço em 1977 e que hoje estão nos limites do sistema solar – carregam a bordo detectores de raios cósmicos.
Ainda em 1934, o astrofísico alemão Walter Baade (1893- 1960) e o suíço Fritz Zwicky (1898-1974) sugeriram que supernovas (explosões de estrelas maciças no final da vida) seriam a fonte dos raios cósmicos. O físico italiano Enrico Fermi (1901-1954), em 1949, propôs que a aceleração dos raios cósmicos seria feita pelas ondas de choque magnéticas geradas nesse tipo de explosão. Esse mecanismo ficou conhecido como aceleração de Fermi.
Grande parte dos raios cósmicos caindo na Terra é originada em supernovas na Via Láctea. Essas partículas perambulam por nossa galáxia, tendo suas trajetórias distorcidas pelos campos magnéticos até chegarem à atmosfera terrestre. Sua composição química e o fato de elas chegarem a partir de todas as direções do espaço permitem inferir características da maté-
ria interestelar. Porém, os raios cósmicos com energias muito altas provavelmente vêm de fora da galáxia, uma vez que os campos magnéticos nela não são intensos o suficiente para distorcer suas trajetórias.
Espaço ‘enevoado’ Os raios cósmicos trazem a memória de sua origem em sua direção de chegada. Logo depois da descoberta da radiação cósmica de fundo (RCF) – radiação na faixa de micro-ondas que ‘banha’ todo o universo e é remanescente do Big Bang, a explosão que deu início ao universo há cerca de 14 bilhões de anos –, o norte-americano Kenneth Greisen e os soviéticos Georgi Zatsepin e Vadim Kuzmin calcularam a influência da RCF sobre raios cósmicos.
O chamado efeito GZK — iniciais dos sobrenomes dos três pesquisadores – mostrou que a RCF torna o espaço ‘enevoado’ para os raios cósmicos. Assim, aqueles com energias acima de 3 x 1019 elétrons-volt (eV) — unidade de energia comumente usada na física de partículas, mas insignificante se comparada com aquelas a que estamos acostumados no cotidiano – não poderiam se propagar com essa energia por mais que cerca de 50 megaparsecs (cerca de 165 milhões de anos-luz) sem dissipar sua energia em função dos ‘choques’ contra as partículas de luz (fótons) da RCF. Essa distância, pequena em padrões cosmológicos, é cerca de 50 vezes aquela que nos separa de Andrômeda (a galáxia gigante mais próxima da Via Láctea) ou equivalente àquela que a luz, viajando a 300 mil km/s, leva cerca de 160 milhões de anos para percorrer.
Alguns anos antes da publicação do efeito GZK, o físico norte-americano John Linsley (1925-2002) observou, em 1962, em uma rede de sensores concebida por Bruno Rossi e construída em Volcano Ranch, no estado norte-americano do Novo México, um chuveiro atmosférico cuja energia excedia o valor de 1020 eV, ou seja, acima do limite GZK.
Natureza imbatível Hoje, vários outros detectores, usando diferentes técnicas, já mediram chuveiros deflagrados por raios cósmicos cujas energias excedem 1020 eV. O próprio Observatório Auger está entre eles. Para se ter uma ideia, um próton com essa energia viaja a 99,999999999999999999999% da velocidade da luz. E mesmo o mais potente acelerador de partículas do planeta, o LHC (sigla, em inglês, para Grande Colisor de Hádrons), ainda em construção, na Suíça, só conseguirá gerar partículas com energias 10 milhões de vezes menores que esses patamares. Portanto, a natureza ainda continua imbatível.
No entanto, a origem e natureza dos raios cósmicos continuam a desafiar os físicos, apesar de haver hoje várias hipóteses sobre os mecanismos cósmicos que os criam ou aceleram (ver ‘Impulsão e decaimento’). O Observatório Pierre Auger foi concebido para desvendar esses mistérios. Perguntas como ‘De onde os raios cósmicos de mais alta energia vêm?’ e ‘Que mecanismos lhes imprimem tamanha energia?’ são apenas dois exemplos de questões em aberto que fazem dessa área de pesquisa uma das mais instigantes da ciência deste início de século.
BOXE_IMPULSÃO E DECAIMENTO
Acredita-se que os raios de mais alta energia – ou seja, acima de 1020 elétrons volts (eV) — sejam gerados por um desses dois mecanismos: a) forças eletromagnéticas intensas; b) decaimento de partículas exóticas. No primeiro caso, núcleos atômicos são impulsionados por campos eletromagnéticos, e podem levar milhões de anos para atingir essas energias. No segundo, ocorre o oposto: partículas hipotéticas e extremamente pesadas, supostamente relíquias da explosão que deu início ao universo (Big Bang), se desfariam – ou decairiam, no vocabulário técnico – em constituintes da matéria com energia próximas aos 1020 eV.