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Possível início
Por onde começar? Quando há dúvida sobre esse tópico, creio que o melhor é aceitarmos sugestão do dito popular da língua ingles: “As primeiras coisas primeiramente”.
Ronald Cintra Shellard nasceu em São Paulo (SP) em 22 de julho de 1948. Sua identidade foi emitida apenas aos 18 anos de idade, em 1966. Talvez, à época, a maioridade fosse necessária para a emissão do documento. Era muito comum, em São Paulo, até essa altura da vida, usar ou a identidade de estudante, ou a carteira de trabalho como identificação – naquela década de 1960, esta última era preferível quando a pessoa era revistada pela polícia de um estado de exceção. Estudante, para ela, era “playboy”.
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Nunca me havia dado conta de que o ano de nascimento de Shellard coincide com grande feito experimental da física brasileira da produção pioneira do méson pi (ou píons) em acelerador de partículas em Berkeley (EUA), obra do físico brasileiro César Lattes em coautoria com o norte-americano Eugene Gardner.
O tema acima é parte do capítulo 1 deste livro, mas vale contextualização: a detecção dessa partícula, que age como uma ‘cola’ para prótons e nêutrons no núcleo atômico, teve desdobramentos políticos de suma importância para o estabelecimento da chamada Era dos aceleradores nos EUA. Há autores que veem nessa produção o começo da física de partículas. Quanto à importância científica, basta citar a manchete de grande jornal norte-americano: “Raios cósmicos produzidos pelo homem”.
Shellard nasceu em família de classe média (ou alta, dependendo do referencial) de São Paulo. Certa vez, mostrou-me foto da casa onde havia passado a juventude. Era construção que poderia ser classificada como mansão, com várias edificações em um terreno grande, em rua aparentemente calma, no bairro do chamado ‘alto’ Ipiranga.
Por sinal, o Ipiranga foi assunto das primeiras conversas que tive com ele. Depois de me contar em que parte desse vasto bairro ele havia morado, ele me perguntou: “E você?”. Minha resposta: “Da parte baixa, que inunda”.
Ele achou engraçado e, a partir daí, sempre que me apresentava a alguém, repetia essa história, dizendo que havíamos nascido no mesmo bairro, mas... ele na parte alta, “nobre”, e eu na “parte que inundava”. Por vezes, acrescentava, dependendo do grau de descontração da conversa e intimidade com o interlocutor, que, por isso, nem mesmo deveríamos ser amigos, mas, como ele era “generoso”, permitia que “gente como eu” estivesse em seu círculo de amizades. E, às vezes, acrescentava que eu exercia essa profissão de jornalista, esse profissional visto com tanta desconfiança hoje.
Nas décadas seguintes, esse tipo de brincadeira sempre permeou nossas conversas e as tornava agradáveis e descontraídas – voltaremos ao bom humor de Shellard.
Shellard era o mais velho de quatro irmãos: Philip, administrador de empresas; Eleonora, publicitária; e Dora, historiadora e pesquisadora. Ele era curioso sobre suas origens e mantinha, como hobby, anotações sobre o tema.
Os Shellard – até onde a árvore genealógica familiar conseguiu chegar – remontam à Inglaterra e Irlanda do século 19. O avô, inglês, nasce de família irlandesa. Era contador, filho de artista (pintor).
A avó, Dayse Gertrude von Söhsten, tinha familiares que parecem ter trabalhado na Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (poderoso empreendimento comercial do século 17), porque há registros dos von Söhsten em Colombo (Sri Lanka) e grupo grande deles em Pernambuco, invadido pelos holandeses naquele século.
O avô paterno, Charles Josep Shellard, chegou ao Brasil nas primeiras décadas do século passado, para trabalhar em uma companhia de trens no Paraná. Mais tarde, a família se mudaria para São Paulo. Morreu na segunda metade da década de 1940, sem nunca aprender o português. Era muito asmático.
O pai, Charles James Shellard, era contador. Primeiramente, trabalhou na Light, companhia de eletricidade de origem canadense. Por volta de 1960, foi para a Thompson, multinacional do ramo de publicidade. Na década seguinte, trabalhou no Consulado Americano, na capital paulista, emprego no qual se aposentou. Era anglicano, mas só no papel. Na igreja não ia – era frequentador do Clube Inglês da capital.
George Duncan Shellard (Chefe Toby), irmão do pai, foi membro importante e condecorado do escotismo no Brasil. John Robert Shellard, o irmão mais velho, alistou-se no exército britânico no início da Segunda Guerra. Depois de lutar no conflito, continuou morando na Inglaterra.
A mãe, Dora da Silveira Cintra Shellard, era de família tradicional paulista, os Cintra, ligados à cafeicultura e considerados ‘paulistas quatrocentões’, ou seja, ligados à oligarquia do estado. Os avós dela tinham terras em Ribeirão Preto (SP).
Dora teve educação refinada, europeia – talvez, pelo fato de o pai ter nascido em Paris. Saía-se bem com o francês, conhecia algo de alemão e acabou aperfeiçoando o inglês com o marido – ambos só se comunicavam nessa língua. Com os filhos, no entanto, só falava em português.
A atividade artística do bisavô paterno de Shellard foi retomada por uma tia materna, Marília Moreira, apresentadora do Pullman Jr., programa infantil na TV, na década de 1960, na Record, patrocinado pela fábrica de bolos Pullman – seus costumes eram considerados ‘modernos’ para a época.
Os nomes dos filhos refletem essa divisão cultural familiar: os filhos ganharam nomes britânicos, Ronald e Philip, ambos registrados no Consulado Britânico; as filhas, Dora (como a mãe) e Eleonora (homenagem à avó materna). Os filhos foram para o Santo Américo, colégio de padres da capital paulista; as filhas, para o Rainha da Paz, de freiras.
Entre os Cintra, havia um tio engenheiro, Luiz Cintra do Prado, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), da qual foi diretor de 1941 a 1943. Foi um dos pioneiros da pesquisa com materiais radioativos no Brasil, consequência de estudos que fez na Europa, na segunda metade da década de 1930.
Shellard gostava de contar que, entre os Cintra – a linhagem é grande e inclui os Cintra do Prado e Silveira Cintra –, havia Joaquim Pinto de Araújo Cintra, terceiro barão de Campinas, título criado por D. Pedro II – em nossas conversas informais, por vezes, ele exigia ser chamado ‘barão Shellard’.
Shellard e os irmãos nasceram em casa na rua Francisco Leitão, no bairro de Pinheiros. Mais tarde, se mudariam para a rua Marcondes de Andrade, no Ipiranga, onde nasceriam as irmãs. Essa casa, anos depois, foi vendida, para a compra de apartamento, no Edifício Duque de Aragão, à rua Peixoto Gomide, no Jardim Paulista, região de classe alta da cidade.
Shellard (pelo menos, em nossas conversas) citava pouco o pai. De sua mãe, a primeira vez que ouvi falar foi sobre o fato de ela viver numa chácara em Jundiaí (SP) e já estar com algo de senilidade. Dela, ele falava com carinho – e dose de resignação pelo quadro. Ela morreu em 2011; o marido, em meados da década de 1990.
O relacionamento entre Shellard e os pais era harmonioso. Mas ele gostava de irritar a mãe, com temas que, ele sabia, iam contrariá-la. Ela parece ter descoberto método eficaz para finalizar essas discussões: começava a chorar – se ‘lágrimas de crocodilo’, ninguém sabe.
Shellard não parece ter sido influenciado pelo ‘espírito de rebeldia’ típico da juventude da década de 1960, marcado pelo surgimento do movimento hippie, os protestos estudantis de maio de 68 e o psicodelismo.