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ATO FINAL_Comentários gerais
ATO FINAL
COMENTÁRIOS GERAIS_ Este ensaio – ainda que breve e, certamente, com lacunas e omissões – nos oferece a oportunidade de analisar parte da história da física no Brasil – no caso, a da área de altas energias.
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No Brasil, a área de altas energias tem suas origens nos raios cósmicos – campo que, por sinal, foi importante para o estabelecimento da física experimental em vários países da América Latina, com destaque para México, Argentina, Bolívia e Chile. Os resultados obtidos por Lattes, na década de 1940, ‘contaminaram’ o ambiente científico de vários países da região. O caso emblemático foi o surgimento de pequeno grupo de estudantes – liderados pela física Estrella de Mathov (1911-1991), na Argentina – que passou a fazer pesquisa nessa área, incensados pelo fato de a técnica das emulsões nucleares ser barata.
A construção de um laboratório no monte Chacaltaya, no início da década de 1950, demonstrou tremendo salto quantitativo e qualitativo da física experimental no Brasil. Mas o empreendimento, pouco anos depois, praticamente mingou, em consequência de problemas técnicos, falta de mão de obra especializada em máquinas, escândalo financeiro no CBPF e a instabilidade política proveniente do suicídio de Vargas. Some-se a isso, a inflação que pouco depois afetaria os salários de pesquisadores daquela instituição, fundada como sociedade civil e dependente de verbas tanto do setor privado quanto governamentais.
Oescândalo financeiro pôs fim a projeto de grandes proporções – um acelerador de 400 MeV – que já demonstrava estar fadado ao insucesso, pela falta de capacidade tecnológica do país. Com isso, a vertente de um ‘Brasil grande’ (pelo menos, para a física) estagnou.
Aos poucos, o CBPF – cujo ‘B’ é de brasileiro – teve diminuída sua influência tanto científica quanto política, deixando de ter a envergadura nacional e internacional que se esperava da instituição. A partir de meados da década de 1950, inflação, golpe militar e incerteza financeira jogaram o centro em situação que só iria se resolver de modo definitivo cerca de 20 anos mais tarde. Esse período – com raras exceções de resultados científicos importantes, como a proposição de nova partícula, o k linha – pode ser classificado como ‘de sobrevivência’ do projeto como um todo.
A proximidade do CBPF com setores militares – e a presença na instituição dos chamados ‘cientistas de farda’ – permitiu que não só a crise de 1954 (escândalo financeiro) quanto a de 1975 (crise salarial) fossem solucionadas por militares de alto escalão – na primeira, o general Macedo Soares (1901-1989), que trouxe com ele novo administrador financeiro; na segunda, o general Ernesto Geisel (1907-1996), então presidente da República, que assinou a transferência do CBPF para o CNPq.
A entrada do país nesse campo das colaborações internacionais foi tardia, se comparada aos padrões de países com tradição científica. Deu-se inicialmente por causa de acordo entre uma instituição europeia (CERN) e a participação nele de pequeno grupo do CBPF. No entanto, esse marco – e assim podemos chamá-lo –, por vezes, é omitido em relatos (ainda que informais) sobre o desenvolvimento da área no Brasil. Costuma-se dar prioridade para o primeiro acordo institucional, que ocorreu entre um laboratório norte-americano e um órgão do governo brasileiro.
Essa questão sobre a primazia, no entanto, nos revela algo subjacente ao modo como, no Brasil, os próprios cientistas gostam de contar a história: não há amálgama entre passado e
presente. Há, sim, relatos com cortes temporais e espaciais que refletem justamente aquilo que relator se propõe a contar, conforme seus interesses. Por exemplo, o Observatório Pierre Auger não foi visto como ‘sucessor’ da CBJ até que um dos líderes do primeiro pedisse – ainda que diplomaticamente – autorização a Lattes para levar adiante o novo experimento sobre raios cósmicos.
Ahistória relatada pelos pesquisadores de altas energias no Brasil parece ter (pelo menos, historicamente) vários ‘começos’, vários ‘pioneiros’ e várias ‘primazias’. Ou seja, é exemplo de uma história fragmentada, sem coesão – talvez, pelo fato de o país nunca ter tido política de Estado para a ciência.
Lederman, sem dúvida, teve papel preponderante na criação de grupos de física de altas energias no Brasil – Salmeron teve mais influência na física portuguesa nessa área, mas, mesmo do exterior, contribuiu para projetos nessa área no Brasil.
Os motivos que levaram Lederman a essa iniciativa ainda não são claros. Os relatos mostram que havia ‘afinidade’ dele com físicos brasileiros e latino-americanos. Porém, não sabemos se essa aproximação se deu por escolhas meramente pessoais ou i) por temor de que o concorrente europeu, CERN, ampliasse sua influência no continente, ou ii) em resposta a uma possível geopolítica norte-americana para a América Latina, um tipo de soft power, como se costuma designar. São temas abertos para trabalhos em história da física.
Não é incomum que pesquisadores da área de altas energias não reconheçam ligação daquilo que fazem com projetos anteriores – principalmente, se de outros grupos e outras universidades ou centros de pesquisa. Mas, paradoxalmente, costumam citar com frequência os feitos dos ‘pioneiros’ (Lattes, Tiomno, Leite etc.) como argumentos para justificar a importância das pesquisas que realizam.
Deslocamento importante com a física de raios cósmicos parece ter se dado no 2º Simpósio de Colaboração Pan-americana em Física Experimental, em 1983, na PUC-Rio, quando a tradição dessa linha de pesquisa foi deixada de lado, assumindo-se que a área havia sido dominada por máquinas de grande porte – estas, obviamente, no exterior. O encontro alavancou a ida dos primeiros brasileiros para o Fermilab.
Para o CBPF, a ida de três de seus pesquisadores para o laboratório norte-americano, fez com que o ‘B’ do CBPF fosse reforçado. Mais: que fosse retomada a internacionalização, marca do centro à época de sua fundação. Esse processo, interrompido ainda em meados da década de 1950, estava agora sendo responsável por nova fase na história da instituição.
De que forma a abertura política e anistia influenciaram esse marco da física de altas energias ainda permanece sem resposta. O fato é que ele ainda se deu dentro do regime militar – cujo fim só ocorreria em 1985 –, com o qual a comunidade de física no Brasil teve relações ora de aproximação, ora de atrito, mas com participação em projetos de segurança nacional.
A inclusão do Brasil em grandes projetos internacionais sempre foi motivo de polêmica envolvendo os próprios físicos, bem como cientistas de outras áreas. A razão é o alto volume de verbas necessário para essas iniciativas. De um lado, tanto a física quanto a astrofísica alegam (com razão) que, hoje, não é mais possível fazer pesquisa de ponta sem participar de grandes colaborações internacionais.
Essas críticas, em geral, vêm de físicos teóricos ou daqueles de áreas em que ainda não demandam equipamentos tão custosos – ou seja, em que ainda se pode fazer pesquisa de bancada’. E o argumento segue mais ou menos a seguinte linha: nesses montantes (em geral, na casa de milhões de dólares) poderiam ser investidos no desenvolvimento de várias (outras) áreas de pesquisa.
A entrada no Brasil no CERN suscitou esse tipo de debate – astrônomos e astrofísicos brasileiros enfrentaram situação semelhante com projetos de grandes telescópios, por exemplo. Críticos alegam que o papel do país será secundário no laboratório europeu; os defensores rebatem, alegando que haverá vasta formação de mão de obra, compartilhamento de tecnologias de ponta, bem como a possibilidade de a indústria nacional participar de licitações para os experimentos, entre outras vantagens da filiação.
Essa discussão traz à tona outro problema que, a nosso ver, aflige a ciência brasileira como um todo: o Brasil tem ‘geopolítica científica’ pífia. Países com PIBs bem inferiores ao nosso costumam ter representantes em posições importantes de organismos ligados à ciência ou à representação de entidades científicas – bem como prêmios Nobel. A entrada do Brasil no CERN é passo para diminuir essa falta de representação política em termos globais.
A participação do Brasil em projetos internacionais de física de altas energias trouxe resultados significativos para o aumento do impacto mundial da ciência brasileira, a ponto de, em pesquisas que medem esse fator, haver o costume de excluir a área para se ter quadro mais ‘realista’ da qualidade da física feita no país.
A partir de 2005, o programa Helen (sigla, em inglês, para Rede Europeia-Latino-americana para a Física de Altas Energias), apresentado à União Europeia com chancela do CERN, praticamente triplicou, em cerca de quatro anos de atuação, o número de pesquisadores latino-americanos no laboratório europeu – o programa incluía também o Observatório Auger. Em 2009, essa cifra já alcançava 125 pesquisadores mais pós-doutorandos. Estiveram envolvidas no Helen 22 instituições da América Latina, de oito países da região – e sete da Europa.
O programa – que dispendeu cerca de 3 milhões de euros entre 2005 e 2009 – também instalou na América Latina centros de computação avançada para análise de dados.
Um dos idealizadores do Helen, o físico italiano Luciano Maiani, a partir de 2011, criou o EPlanet, que garantiu a participação no CERN de aproximadamente 250 pesquisadores e pós-doutorandos latino-americanos, mas o programa – por mudanças de orientação da Comunidade Econômica Europeia em relação à América Latina – foi descontinuado em 2015. Depois de um pico em 2017 (267 pessoas), tem havido declínio significativo da participação de pesquisadores da região no CERN.
Desde a década de 1980 – quando houve o acordo com o Fermilab e CERN –, pesquisadores brasileiros participaram de equipes que fizeram descobertas importantes, como o quark top, Z0 e bóson de Higgs, sem contar um sem-número de novas partículas. E o país, a partir do fim da década de 1990, começou a prover os experimentos (Selex, Focus, Auger, Dzero etc.) com hardware especializado. O Brasil tem hoje representantes nos quatro grandes experimentos do CERN (Atlas, LHCb, Alice e CMS), bem como no Alpha.
Ainda no Fermilab, o Brasil também participou dos experimentos sobre partículas com quarks strange (híperons) e charm (bárions charmosos).
Também houve participação brasileira, por meio de grupo do Instituto de Física da USP, em experimentos no RHIC (sigla, em inglês, para Colisor de Íons Pesados Relativísticos), no Laboratório Nacional Brookhaven (EUA), a partir de meados da década de 1990.
Há, no Brasil, desequilíbrio marcante que tem a ver com o modo como se deu o desenvolvimento da física no país: em cada 100 físicos, 13 trabalham em partículas e campos e, entre estes últimos, apenas 3% são experimentais. Isso reflete quadro geral da física no país, onde 46% dos físicos são experimentais, e 54% teóricos – em países desenvolvidos, experimentais estão em torno de 75%. Esses números são de 2000, mas, com algum grau de certeza, correspondem ao quadro atual.
Uma das características da própria área – o fato de, não raramente, milhares de cientistas
assinarem um artigo – tem como consequência o ‘anonimato’ dos próprios pesquisadores – o destaque, em geral, sempre vai para os líderes do experimento, e são estes que, geralmente, ganham renome internacional e são recipientes de prêmios.
Como foi dito, a Era das Máquinas fez com que a física se deslocasse do continente europeu – onde ela historicamente se desenvolveu – para os EUA, o que ocorreu principalmente depois da Segunda Guerra. Mas, no início da década de 1990, o cancelamento do que seria o maior acelerador de partículas do mundo, o SSC (Superconducting Super Collider), previsto para ter cerca de 80 km de circunferência, deixou a física de altas energias nos EUA em compasso de espera.
Com a inauguração do LHC, no CERN – máquina que entrou em operação em 2008 –, a física de altas energias retornaria à Europa, e os físicos de altas energias nos EUA se encontraram num tipo de penumbra, pois vários aceleradores de grande porte encerrariam os trabalhos, tanto na costa leste quanto oeste. Neste momento, o foco está voltado para a física de neutrinos – principalmente, com a construção (ainda em andamento) de um novo acelerador de prótons no Fermilab para esse propósito.
Hoje, a física de altas energias no Brasil tem boa estrutura. A Renafae – apesar de palco de disputas entre grupos – tem garantido a continuação em bons termos dos avanços da área. Falta ainda maior colaboração com a indústria nacional – algo que os físicos sempre desejaram. Parece haver empecilhos e incompreensão dos dois lados, pela dificuldade desses setores em entender o ethos um do outro. Se esses obstáculos são superáveis, só o tempo dirá.
A física de altas energias é historicamente geradora de grande número de inovações, que acabam na indústria e, por conseguinte, em vários setores do mercado internacional, trazendo bem-estar e riqueza para as nações – o que é inegável. O CERN tem, porém, outro papel importante e pouco divulgado: seu surgimento conseguiu unir nações europeias que haviam estado em guerra cerca de 10 anos antes de seu início, em meados da década de 1950. E, desde então, tem mantido esse papel diplomático por meio da ciência – em outros termos, o CERN amalgamou o que a política desuniu.
A entrada do Brasil como membro associado do CERN inicia, certamente, nova fase da área no país. É uma história que está por se construir e, portanto, não sabemos de que modo ela alterará os rumos de nossa física experimental de altas energias.
Vale dizer que agências de fomento tiveram papel preponderante na disponibilização de verbas para o desenvolvimento da física experimental de alta energias, com destaque para o CNPq, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Outras agências contribuíram, mas em menor escala.
Uma história da física de altas energias no Brasil mereceria, sem dúvida, pela riqueza e diversidade dos fatos, bem como por sua importância histórica no desenvolvimento da ciência no país, projeto de estudo amplo e minucioso. O que oferecemos aqui a quem leu estas páginas é, como foi enfatizado, só um ensaio, com boa dose da visão pessoal dos autores.
AGRADECIMENTOS_ Alaor Chaves (UFMG), Sérgio Ferraz Novaes (IFT/Unesp), Takeshi Kodama (UFRJ), Anna Maria Freire Endler (CBPF), João do Anjos (CBPF), Ignácio Bediaga (CBPF), Gilvan Alves (CBPF), José Abdalla Helayël-Neto (CBPF), Vicente Pleitez (IFT/Unesp), João Torres de Mello Neto (UFRJ), Ulisses Barres (CBPF), Lauro Tomio (Unesp), Edison Shibuya (Unicamp), Alexandre Bagdonas (UFLA), Heráclio Duarte Tavares (UEMT) e Akinori Ohsawa (Universidade de Tóquio).
1. Gleb Wataghin (Crédito Arquivo IFUSP)
2. Leite Lopes em seu concurso para a cátedra de física teórica na Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil, em 1948 (Crédito CBPF)
3. Mário Schenberg (Crédito Arquivo IFUSP)
4. César Lattes e Eugene Gardner no sincrociclótron na Universidade da Califórnia em Berkeley em 1948 (Crédito CBPF/Time-Life)
5. Da esquerda para a direita Juan José Giambiagi, Jayme Tiomno, Luiz Marques, Samuel MacDowell, Erasmo Ferreira (Crédito CBPF)

6. Em sentido horário, começando pelo alto à esquerda Lattes, Yukawa, Schützer, Tiomno, Leite e Hervásio, em Princeton (Estados Unidos), em 1949 (Crédito CBPF)
7. Chapas de emulsões nucleares com o decaimento de um méson pi (traço horizontal, acima) em um múon, com dedicatória de César Lattes, Giuseppe Occhialini e Cecil Powel (Crédito CBPF)
8. Câmara de emulsões da Colaboração Brasil Japão, no monte Chacaltaya (Bolívia) (Crédito Edison Shibuya)
9. Vista geral do Observatório de Física Cósmica, no monte Chacaltaya (Bolívia)
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1. Da esquerda para a direita, Joaquim da Costa Ribeiro, César Lattes e Giuseppe Occhialini

2. Equipamentos científicos embarcando da primeira sede própria do CBPF para o monte Chacaltaya no início da década de 1950 (Crédito CBPF)
3. Gleb Wataghin (à frente) fazendo experimentos sobre raios cósmicos a bordo de avião (Crédito Arquivo IFUSP)

4. Detector Delphi, do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, com sede em Genebra (Suíça) (Crédito CERN)
5. Um dos detectores (tanque de água pura com eletrônica dedicada) do Observatório Pierre Auger, em Malargue (Argentina), para o estudo dos raios cósmicos (Crédito Observatório Pierre Auger)
6. Detectores do Observatório Pierre Auger – à frente, tanque de água pura com eletrônica dedicada – ao fundo, telescópio "olhos de mosca" (Crédito Obsrevatório Pierre Auger)
7. Foto de César Lattes na Galeria dos Notáveis na Universidade de Bristol (Reino Unido)
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PARA MIM, SEMPRE FOI SHELLARD
IMPRESSÕES PESSOAIS SOBRE UM AMIGO GENEROSO
