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ATO Nº 3_Fim de um, começo do outro
ATO NO 3
FIM DE UM, COMEÇO DE OUTRO_ A Colaboração Brasil Japão (CBJ) foi estabelecida em 1962, em momento em que a física de partículas sofria processo de transformação na forma de obter e analisar dados. Naquele período, grandes máquinas assumiam boa parte da responsabilidade por gerar a energia necessária para acelerar partículas e provocar colisões entre elas, para a produção de imagens de suas ‘transformações’ (decaimentos, tecnicamente) em subpartículas.
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Esses decaimentos duram fração diminuta de segundo, mas podem ser registrados por chapas de emulsões fotográficas preparadas com densidade, tamanho e elementos químicos controlados, ou por câmara de bolhas, de forma a criar imagens dos rastros das direções que as partículas e suas subpartículas tomavam.
Uma das características do estudo da física de partículas com aceleradores é o alto investimento financeiro necessário para sua concretização. Isso acaba por limitar esse tipo de investigação experimental a grupos de cientistas e instituições de pesquisa que recebem o suporte de governos com recursos (financeiros, humanos, logísticos e políticos) e que estejam dispostos a arcar com os custos necessários.
Como os aceleradores permitem experimentos controlados, seu grau de reprodutibilidade é muito alto, bem como o número de eventos registrados a partir de uma colisão entre partículas. Porém, mesmo hoje, os aceleradores alcançam energia limitada, o que limita os tipos de eventos que as colisões de partículas podem gerar.
Em décadas passadas, por mais que houvesse controle e possibilidade de reproduzir o experimento, havia eventos que os aceleradores de partículas não podiam criar e reproduzir em laboratório. Do lado da natureza, há os chamados raios cósmicos, núcleos atômicos de origem espacial (solar, galáctica, estelar ou extragaláctica) capazes de produzir fluxo de partículas altamente energético.
Como dissemos, altitude é fator crucial para o estudo dos raios cósmicos. Portanto, cientistas interessados nesse campo procuravam usar técnicas de captação – emulsões nucleares, eletrônica dedicada ou câmera de nuvens – expostas em balões, aviões ou montanhas com altitude de milhares de metros acima do nível do mar.
Atécnica de emulsões nucleares é consideravelmente mais barata se comparada ao investimento para a construção, manutenção e o uso de aceleradores. Essa característica facilita seu uso por grupos de cientistas de países que não tenham acesso a recursos financeiros elevados.
Mas a reprodução dos experimentos feitos com emulsões é dificultada por causa, por exemplo, de sua confiabilidade – além do fato de ser trabalhosa. Exemplo bem conhecido diz respeito a uma das principais firmas que fabricavam essas chapas especiais, a Kodak, que não seguia padrão em suas produções – o que interferia diretamente nos resultados alcançados, pois poderia haver diferença de composição (principalmente, da gelatina) de lote para lote.
Entre a década de 1950 e a seguinte, houve diferentes formas de fazer física de partículas elementares – e estas disputavam verbas, adeptos e resultados. Concorrência é, em princípio, termo exagerado, pois essas técnicas eram usadas, por vezes, para comparar resultados alcançados, e alguns físicos transitavam por mais de uma delas e por diferentes laboratórios – por exemplo, Lattes foi tipicamente um físico experimental ligado às emulsões nucleares, mas também produziu trabalhos com aceleradores.
Os físicos de partículas desse período faziam escolhas sobre que técnica adotar, pautadas pelas virtudes epistêmicas que eles detinham, aliadas às condições oferecidas por suas circunstâncias históricas, ressaltando a importância da localidade na prática científica.
No caso da CBJ, houve a aproximação de práticas científicas com base em virtudes epistêmicas distintas, as quais entraram em contato, trocaram experiências e moldaram nova prática científica – a da exposição de grandes áreas de placas fotográficas e de raios X (as chamadas câmaras de emulsão) em local de grande altitude (monte Chacaltaya).
Vale, assim, compreender melhor o que as comunidades de física de raios cósmicos brasileira e japonesa levaram para a CBJ – no Japão, oito universidades participavam da colaboração.
As iniciativas brasileiras em Chacaltaya exigiram a instalação e o aperfeiçoamento de infraestrutura (prédios, estradas, linhas de alta tensão, transporte de pessoal e equipamentos etc.), bem como certa capacidade organizacional e de administração.
Ainda no início da década de 1950, a chamada Missão Unesco – que reuniu físicos brasileiros e estrangeiros e pode ser vista como antecessora da CBJ – levou uma câmara de nuvens para um laboratório a aproximadamente 5,2 mil m acima do nível do mar, em Chacaltaya.
Esse feito merece ser visto como evento notável na história da física experimental brasileira. Uma câmara de nuvem (ou de Wilson) foi doada pela Universidade de Chicago ao CBPF, para ser instalada naquela montanha boliviana. Mas, apesar dos esforços da equipe internacional, o instrumento nunca funcionou – ou, segundo alguns relatos, funcionou precariamente por curto período de tempo. Com isso, esse grupo, liderado por Lattes, ficou sem detector para seus experimentos.
Vamos nos concentrar, agora, nos físicos japoneses envolvidos com a CBJ. Em particular, vale o esforço de tentar perceber características dessa parte da colaboração que, em geral, não são comentadas na literatura. Percebidas em seu conjunto, essas características valorizavam a autonomia científica e intelectual.
O físico teórico Hideki Yukawa (1907-1981) se formou, em 1929, na Universidade de Kyoto. Yukawa, que havia tido contato com o confucionismo e com o taoísmo em sua juventude, escolheu trilhar seu caminho sem sair do Japão, para não sofrer influência de professores estrangeiros. Em 1935, ele propôs teoria na qual a extensão de uma força estava inversamente ligada à massa das partículas envolvidas com a manifestação daquela força.
Em termos simples, o raciocínio de Yukawa foi o seguinte: se a força eletromagnética, que tem longo alcance, era intermediada por uma partícula com massa de repouso zero (fóton), então, uma força que age em distâncias curtíssimas (no caso, as do núcleo atômico) deveria ser ‘carregada’ por uma partícula massiva.
A partir dessa ideia, ele concebeu que a força nuclear estava relacionada a uma partícula que tinha sua massa entre a massa do próton e a do elétron, com cerca de 200 vezes a massa desta última. Yukawa publicou sua teoria sobre o méson em 1935, em inglês, o que deu novo fôlego para a física teórica em seu país – mesmo que esse resultado não tenha recebido muita atenção fora do Japão.
Em 1941, Yukawa se tornou professor na Universidade de Kyoto, onde dois de seus estudantes eram Shoichi Sakata (1911-1970) e Mitsuo Taketani (1911-2000). Além de estudar física na primeira metade da década de 1930, Taketani também era ativista cultural contra o regime militar no Japão. Ele chegou a fazer parte do corpo editorial do jornal Cultura Mundial, publicação que reunia intelectuais de diferentes campos do conhecimento – e não era manifestamente político.
A contribuição filosófica de Taketani teve bastante influência na física japonesa. Ele elaborou um modelo de três estágios para a compreensão da natureza, com o qual tinha a intenção de orientar a elaboração de toda e qualquer teoria.
Esses estágios eram o fenomenológico, o substancialista e o essencialista. No primeiro, o cientista deveria se preocupar com o fenômeno em si. Era o momento do contato com a natureza e era dada grande importância à sua observação.
O substancialista era o estádio em que o pesquisador devia se concentrar na estrutura do objeto e perceber sua materialidade, sua organização. Por fim, o essencialista seria o momento das descobertas das leis que regem o fenômeno em si, tentando compreender os motivos que orientam a dinâmica de sua existência.
Havia relação direta e constitutiva entre a proposta científica de Taketani e o materialismo histórico de Karl Marx (1818-1883). Taketani também criticava o positivismo, por entender que este era culpado pela estagnação da teoria, pois seu foco principal era o fenômeno.
Em contraposição ao positivismo, a teoria de Taketani vislumbrava alcançar a lógica da matéria por meio da lógica da forma. Sakata também atacava as perspectivas positivistas, que, em sua visão, dominariam as sociedades científicas. Ele entendeu que a teoria de três estágios de Taketani poderia explicar o méson de Yukawa.
Para Sakata, o méson era a via que ligava o estágio substancialista ao essencialista. Por detrás disso, havia também o entendimento de que a natureza tem que ser investigada de formas distintas, segundo as quais não há estádio último da matéria – como defendido na parte filosófica do modelo proposto por Sakata.
Tendo essas bases como suporte para suas pesquisas, em 1953, os físicos japoneses, na Conferência Internacional sobre Física Teórica, em Kyoto e Tóquio, apoiaram o desenvolvimento de trabalhos experimentais sobre os mésons – especificamente, por meio do estudo de raios cósmicos e emulsões fotográficas.
Anos antes, a comunidade de japoneses no Brasil (principalmente, no estado de São Paulo) havia doado milhões de yens para o desenvolvimento de pesquisas científicas no Japão. Esse dinheiro havia sido arrecadado inicialmente para trazer ao país um representante renomado do Japão para dizer aos imigrantes se o país deles havia ou não ganhado a Segunda Guerra – isso mostra o grau de isolamento dessa comunidade.
A pessoa escolhida para vir ao Brasil foi Yukawa – o primeiro Nobel japonês e cidadão tido como acima de qualquer suspeita. Mas, por questões familiares, ele não pôde fazer a viagem.
Membros mais esclarecidos da comunidade de japoneses decidiram, então, que aquele dinheiro deveria ser usado para desenvolver pesquisas em física nuclear no Japão e incentivar a carreira de jovens físicos, incluindo experimentais. Aquelas verbas (substanciais à época) foram também usadas na organização da conferência de 1953 – a primeira de caráter internacional da física no Japão.
Esse grupo elaborou um plano para o futuro dessas pesquisas em um workshop no Instituto Yukawa, em 1956, no qual surgiu a ideia para o desenvolvimento de um detector chamado ‘sanduíche de várias camadas’ (multi-layered sandwich). Esse equipamento, como o nome indica, consistia em camadas de placas de chumbo alternadas com placas de emulsão fotográfica e de raios X, para a detecção dos ‘chuveiros’ eletromagnéticos gerados pelos raios cósmicos – a função das placas de raios X era a de indicar em que ponto os componentes desse chuveiro haviam penetrado o detector.
O instrumento funcionou bem em balões, mas a montanha disponível para sua exposição, o monte Norikura, a 2,8 mil m acima do nível do mar, não oferecia altura suficiente para o estudo de altas energias.
O lugar ideal para expor as novas câmaras-sanduíche, na visão do grupo japonês, era Chacaltaya, com o dobro da altitude. Essas dificuldades foram levadas ao conhecimento de
Yukawa, que escreveu carta a Lattes – redigida por membros do grupo –, expondo a situação e propondo cooperação internacional.
A resposta de Lattes foi rápida e a favor do começo das negociações para o estabelecimento da colaboração. Os primeiros contatos pessoais entre Lattes e representantes japoneses ocorreram na 6ª Conferência Internacional de Raios Cósmicos (ICRC), em julho de 1959, em Moscou (então, USSR), mas as conversas não fizeram avançar os trabalhos rumo à colaboração.
Oprojeto só deslanchou na ICRC de 1961, no Japão, quando lá estavam Lattes e Occhialini, que se reuniram com o grupo de físicos experimentais e teóricos japoneses – incluindo Yukawa. Desse encontro, ficou inicialmente acertado que o Brasil contribuiria com o chumbo necessário para a fabricação das câmaras de emulsões, bem como com as passagens e estadas dos japoneses – as verbas para a física experimental à época eram irrisórias no Japão, segundo relato de membros da colaboração. Ao Japão, caberia entrar com as chapas (tanto as emulsões quanto as de raios X), preparadas pela empresa Sakura, semelhantes às usadas para a exposição no monte Norikura.
Ao longo das décadas seguintes à sua implantação – os trabalhos começaram efetivamente em 1962 –, os resultados obtidos no Laboratório de Física Cósmica de Chacaltaya – principalmente, os dados conseguidos pela CBJ – alimentaram número significativo de dissertações de mestrado e teses de doutorado, muitas delas com base nos chamados eventos exóticos.
Em um dos artigos publicados com os resultados da CBJ, Lattes, Shun-ichi Hasegawa (1928-2008?) e Yoichi Fujimoto (1925-2022) tratam esses eventos exóticos como produção múltipla de hádrons, que ocorre antes de eles se tornarem detectáveis – o que, segundo o modelo de Taketani, corresponderia a um estádio intermediário de matéria. Esse estado teria temperatura elevada e seria composto por mésons que variariam em quantidade e tipos (pi, k, eta etc.).
No domínio sub-hadrônico, ainda na década de 1930, tanto Wataghin quanto Yukawa estavam entre os físicos que trabalhavam com a ideia de que havia um limite para a aplicação da mecânica quântica. Lattes, Hasegawa e Fujimoto, em artigo de revisão publicado em 1980, defendiam a existência de linha de pensamento que começou com os trabalhos de Wataghin e Heisenberg, nos quais era sustentada a hipótese de que a teoria quântica de campos (i.e. eletrodinâmica quântica, a única então disponível) tinha limite de validade, a partir do qual ele não mais funcionaria.
Os dados obtidos pela CBJ eram resultados de choques de hádrons (partículas que ‘sentem’ a força forte nuclear) no arranjo de suas câmaras-sanduíche. O estudo indicou que, entre o momento do choque entre prótons e nêutrons e aquele do surgimento das partículas subatômicas (mésons, múons, elétrons, pósitrons, neutrinos etc.), era possível haver estado da matéria que eles denominaram ‘bolas de fogo’ (fireballs), ou seja, fenômenos exóticos. Em função do tipo de subpartícula gerada e sua quantidade, essas ‘bolas de fogo’ eram classificadas como mirim, açu e guaçu – nomes sugeridos por Lattes, como base em palavras de origem indígena.
Os resultados da CBJ refletem tensão existente na forma de como validar o conhecimento científico, o que se deu a partir de meados do século passado. De um lado, havia a técnica de emulsões nucleares, que forçou seus usuários a desenvolver estratégias para aumentar o número de eventos – normalmente, denominados eventos de ouro, por sua capacidade de elucidar uma nova descoberta, como ocorreu com aqueles publicados em 24 de maio de 1947 em Nature, onde se apresentaram apenas dois decaimentos de um méson pi em um múon (ou mésotron).
A técnica das emulsões – também chamada método fotográfico aplicado à física –necessitava de baixo orçamento (basicamente, chapas de emulsão, reagentes e microscópio). Mas enfrentava problemas, como dissemos, como o de reprodutibilidade, que dependia da fabricação
padronizada de emulsões e da habilidade de microscopistas para encontrarem as trajetórias de novas partículas entre tantas deixadas por partículas já conhecidas.
No outro extremo, estavam os grandes aceleradores que geravam enorme quantidade de partículas (e, portanto, dados), o que obrigava os físicos a construírem argumentos por meio de estatísticas e os limitavam ao estudo de eventos que a energia gerada pela máquina propiciava, inferior à alcançada pelos raios cósmicos.
Os resultados da CBJ foram comparados com os dados de outros laboratórios em montanhas de grande altitude, como os experimentos nas montanhas Pamir (Ásia Central) e o monte Fuji, bem como com exposições de câmaras em balões. O italiano Carlo Rubbia, prêmio Nobel de Física em 1984, realizou, com sua equipe, no CERN, teste em que tentou reproduzir os fenômenos observados pela CBJ, chegando a resultados semelhantes aos alcançados pela CBJ.
A participação brasileira em Chacaltaya deve ser dividida em duas épocas. A primeira época corresponde ao período que compreende a fundação do laboratório em Chacaltaya até a saída de Fernando de Souza Barros (1929-2017) para o doutorado em Manchester (Reino Unido). Os anos aqui referidos são 1952 a 1956.
O segundo período corresponde à fase da CBJ, iniciada oficialmente em 1962. Entre 1957 e 1961, houve presença brasileira em Chacaltaya, mas o laboratório já não representava praticamente nada nos programas científicos das instituições envolvidas – inclusive, em 1961, Leite Lopes questionou, em reunião do Conselho Técnico-científico do CBPF, o interesse em se renovar o contrato entre essa instituição e a Universidade Mayor de San Andrés (Bolívia).
Se caracterizamos Big Science como sendo aquela modalidade de prática científica que envolve administração de recursos financeiros, humanos, logísticos, tecnológicos de envergadura, podemos afirmar que – guardadas as proporções com o que ocorria nos EUA –, a participação do CBPF na construção de Chacaltaya merece ser vista como sendo dessa natureza.
Essa determinação torna-se ainda mais coerente quando nos lembramos de que o CBPF estava longe de ser instituição consolidada – nessa época, seguia ainda como sociedade civil, como havia sido fundada –, bem como a própria realidade científica nacional passava por transformações de monta – nesse sentido, basta citar as criações do CNPq e da Capes.
Se juntarmos a essa lista os eventos políticos ocorridos em 1954 que culminaram no suicídio do então presidente, Getúlio Vargas, pode-se perceber facilmente que as condições externas não eram favoráveis a um empreendimento que demandava, para um país como o Brasil, não só verbas significativas, mas também uma forma de administração e logística com a qual os pesquisadores brasileiros ainda não estavam acostumados.
Em que pese o ‘gigantismo’ econômico, humano e instrumental da empreitada de Chacaltaya, os resultados científicos obtidos nesses primeiros anos (de 1952 a 1962) foram praticamente nulos, com exceção de um único artigo publicado, em 1958, pelo físico de origem tcheca Kurt Sitte (1910-1993) e colaboradores na revista italiana Il Nuovo Cimento – Sitte havia sido contratado pela USP, onde ficou apenas dois anos, para ocupar cadeira de física teórica no lugar do físico norte-americano David Bohm (1917-1992), que havia ido para Israel.
Além das transformações por que passava a ciência no Brasil nos anos imediatos ao final da Segunda Guerra, vale a pena lembrar que a área de raios cósmicos também sofria inúmeras transformações importantes – como, aliás, boa parte da própria física.
O ingresso das grandes máquinas e a formação de grandes laboratórios nacionais – símbolos marcantes da presença Big Science nessa ciência – é frequentemente citado para exemplificar essas mudanças. Para um país atrasado tecnologicamente como o Brasil, seria muito difícil, nas décadas de 1950 e 1960, construir máquinas cientificamente competitivas.
Ainda assim, o país tentou construir aceleradores ou montar máquinas doadas ou compradas no exterior. Em todas essas situações, colecionou insucessos. Vale repetir aqui frase lapidar de Lattes, que, como dissemos, se opôs à construção de um grande acelerador: “Não tínhamos tecnologia nem mesmo para produzir lâmpadas elétricas” – nessa síntese de nossa capacidade tecnológica, ele se referia à produção de vácuo industrial.
Possível explicação para esses fracassos pode ser atribuída ao fato de que, já na década de 1950, os físicos já se dividiam em três categorias: teóricos, experimentais e construtores de aceleradores – esta última passou a ser uma especialidade em si, e o Brasil não tinha técnicos treinados nessa área.
Talvez, por ser país sem tradição relevante nas áreas das ciências naturais – e, principalmente, por querer se equiparar a países que faziam física de ponta à época –, os físicos brasileiros conceberam vários projetos científicos, muitos deles envolvendo instrumentação nova e sofisticada.
Para o Brasil, se mostrava complicada a colaboração até mesmo em projetos experimentais em que os instrumentos eram menos sofisticados e custosos. Não havia nem indústrias, nem recursos humanos com a competência necessária. Portanto, para o país, nunca se concretizou completamente sua participação em experimentos que demandavam a construção dos instrumentos (balões, câmaras de nuvem, foguetes, satélites etc.) necessários para a realização de experiências novas no domínio dos raios cósmicos.
Por curto período de tempo (entre 1959 e o ano seguinte), Lattes e colaboradores participaram das experiências da Cooperação Internacional para Voos de Emulsões (ICEF). O papel dos brasileiros consistia em analisar as chapas de emulsões nucleares expostas a altitudes estratosféricas por balões. Com a morte prematura de Marcel Schein (1902-1960) – líder do projeto e principal contato de Lattes no experimento –, o Brasil deixou de fazer parte da equipe –Schein foi o doador da câmara de nuvens que a Missão Unesco levou para Chacaltaya no início da década de 1950.
Desse modo, incapacitado de participar em experiências que exigiam instrumentos muito sofisticados, o Brasil acabou optando por estar próximo geograficamente de sítios muito altos. Em outras palavras, a escolha por um laboratório numa montanha de grande altitude era natural – e, talvez, óbvia, tendo em vista a realidade brasileira. Mesmo assim, não seria fácil instalar um laboratório em Chacaltaya.
Ainda que pouco citado, fator que causou enorme instabilidade na comunidade de físicos no Brasil foi o retorno definitivo, no fim de 1949, de Wataghin para a Itália. Não houve contratação imediata para substituí-lo. Sem a liderança de um cientista mais experiente, um grupo de três jovens – Andrea Wataghin (1926-1984), Jean Albert Meyer (1925-2010) e Georges Schwachheim (1926-2011), os quais Wataghin tinha formado na USP e que já trabalhavam em raios cósmicos – não teve condições de superar os obstáculos que se apresentaram.
O curioso, nesse caso, é que os raios cósmicos foram a área em que o Brasil conseguiu uma série de resultados importantes e que foram fundamentais para a transformação do cenário cientifico nacional – e não apenas na área da física-: i) a participação de Lattes na detecção do méson pi; ii) a de Wataghin, Damy e Pompeia na descoberta dos chuveiros penetrantes; iii) os resultados da CBJ.
Andrea (filho de Wataghin) e Schwachheim se formaram em física pela USP na mesma turma (1947). Apesar de ter cursado todas as disciplinas do bacharelado em física – também na turma de Wataghin e Schwachheim –, Meyer não se formou, pois não tinha diploma de conclusão do ensino médio.
A chamada ‘Era das Máquinas’ teve início nos EUA na década de 1950 – é possível atribuir a origem dela à detecção do méson pi em Berkeley, em 1948. A enorme quantidade de eventos gerados nesses aceleradores levou, já em meados da década de 1950, ao início do ocaso da física de raios cósmicos, que, como reação, começou a construir detectores terrestres com grandes áreas ou mesmo empregar emulsões nucleares a bordo de foguetes.
Por razões diversas – ocaso da física de raios cósmicos, início da era dos aceleradores, controle sobre os experimentos, dinheiro mais abundante para a pesquisa no estado de São Paulo, formação de nova geração de pesquisadores em máquinas etc. –, os físicos de São Paulo passaram a trabalhar com aceleradores, o que poderia ser considerado ‘fazer ciência em escala Big Science’. Mais tarde, o Rio de Janeiro também reagiria a essa nova forma de fazer física, com aceleradores instalados no CBPF – ainda que de menor tamanho e para fins diferentes.
No caso da USP, a instabilidade causada pela saída de Sitte cresceu a ponto de jovens pesquisadores, como Meyer, recomendarem, já por volta de 1953, a seus estudantes a não ingressarem na área de raios cósmicos. Some-se a isso o fato de o grupo paulistano de raios cósmicos ser oficialmente ligado à cátedra de física teórica e superior, apesar de serem experimentais – essa vinculação explica-se pelo fato de Wataghin ser o primeiro ocupante dessa cátedra, bem como o criador da seção de raios cósmicos.
Enquanto Wataghin esteve na USP, essa relação funcionou bem, pois ele se interessava bastante por essa área. Mas o mesmo não se passou com o seu sucessor, Bohm, que procurou salvar o grupo, mas sem atuar diretamente com ele. A ida de Sitte para a USP foi tentativa de manter vivo o grupo. Porém nem Bohm, nem Sitte se adaptaram ao Brasil e ficaram poucos anos trabalhando lá.
Andrea Wataghin e Schwachheim estiveram em Chacaltaya por curto período, tentando fazer funcionar a câmara de Wilson que havia sido transportada de forma heroica até lá pela Missão Unesco. Eles já tinham experiência em trabalhar a grandes altitudes, pois, em 1952, fizeram experiências em Morococha (Peru), cerca de 4 mil m acima do nível do mar.
Nessa época, os planos de trabalho eram fixados por Wataghin (pai), apesar de ele já ter retornado a Turim. O fluxo de publicações do grupo era bom, e vários artigos foram publicados na Physical Review e nos Anais da Academia Brasileira de Ciências.
Em 1955, o físico austríaco Guido Beck (1903-1988) assume a cátedra teórica da USP e, preocupado com a impossibilidade de manter ativo o grupo de raios cósmicos, propõe – em relatório oficial de atividades por ele realizadas no 1,5 ano que lá passou no instituto – a extinção da seção de raios cósmicos.
Aparentemente, a sugestão dada por Beck não foi acatada pela direção da Faculdade de Filosofia e Letras da USP, mas, mesmo assim, o pequeno grupo de experimentais se desagregou. No momento em que ele fez tal proposta, só Schwachheim e Andrea estavam em São Paulo, e ambos se transferiram para o CBPF.
Schwachheim permaneceu no CBPF até a sua aposentadoria em 1985 e, a partir do início da década de 1960, se dedicou à computação. Em 1956, Andrea se transferiu para a Europa – primeiro para Bristol, onde ficou cerca de dois anos, e, em seguida, para a Itália, onde se radicou. Ele retornou uma única vez ao Brasil, em 1975. No início da década de 1950, Meyer estava na França, para se aperfeiçoar em instrumentação na área de raios cósmicos. Chegou a retornar ao Brasil, mas por pouco tempo. Em 1955, já estava de volta à Europa – na França, teve papel preponderante na construção de aceleradores.
Schwachheim continuou a trabalhar em raios cósmicos por mais tempo que os demais. Participou do Ano Internacional Geofísico (1957-1958), com um monitor de nêutrons que ele montou e usou. Sua participação resultou em artigo escrito em colaboração com físicos argentinos e bolivianos, bem como outro publicado nos Anais da Academia Brasileira de Ciências – este último foi redigido com colaboradores do CBPF.
Além disso, Schwachheim tomou parte num congresso dedicado aos raios cósmicos, em 1959, em Bariloche (Argentina). Além dessas atividades, participou de reuniões científicas em 1961, na Cidade do México, e, no ano seguinte, em La Paz (Bolívia). Foi o representante brasileiro no conselho diretor do Clarc (Conselho Latino-americano de raios cósmicos).
Nesse período, o fluxo de cientistas do Brasil para a Bolívia era grande. O mesmo ocorria no sentido inverso. Bolivianos vinham para o Brasil, para passar períodos mais ou menos longos. Por exemplo, Ismael Escobar (1918-2009) chegou a ser professor titular do CBPF. O apoio financeiro para a permanência deles no Brasil era garantido pelo CBPF, por meio de verbas do CNPq.