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ENSAIOS_Preparativos para o que viria adiante

ENSAIOS

PREPARATIVOS PARA O QUE VIRIA ADIANTE

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Para entendermos a história relatada nos próximos quatro atos, vale comparar aquilo que ocorria no Brasil na área de física na década de 1930 com os avanços no exterior. E, mais uma vez, os contrastes são marcantes, como veremos.

A física atual tem dois pilares, a relatividade, teoria que lida com os fenômenos do ‘gigantesco’, de massas acima das estelares e corpos que viajam próximos à velocidade da luz no vácuo (cerca de 300 mil km/s); e a mecânica quântica, que se ocupa, digamos, do outro extremo, o mundo liliputiano dos fenômenos, dos átomos e suas partículas, em definição igualmente simples – programa atual (ainda em andamento) é a fusão dessas duas ferramentas em um só corpo teórico.

Essas duas teorias tiveram seus desenvolvimentos principalmente na Europa, nas primeiras três décadas do século passado. No Brasil, essas duas teorias começaram a permear o ambiente acadêmico a partir do início da década de 1920, como resultado do trabalho isolado de engenheiros que passaram a se dedicar a esses temas. Aqui, vale citar Manuel Amoroso Costa (1885-1928), que publicou livro e trabalhos sobre a relatividade geral, e Theodoro Ramos (1895-1935), com artigos sobre a teoria quântica do átomo de hidrogênio – estes ainda com caráter relativamente básico quando comparado aos desenvolvimentos dessa teoria no exterior.

Pouco antes, ainda na década de 1910, em consequência da Primeira Guerra, a física havia passado por transformações significativas, como descreve o historiador da física russo Alexei Kojevnikov: i) a Primeira Guerra Mundial aumentou a percepção pública da profissão de cientista; ii) estreitaram-se os laços entre ciência, tecnologia e militarismo; iii) cresceu o interesse dos governos pela política científica; iv) um novo sistema de pesquisa e desenvolvimento – conhecido como modelo soviético de ciência – iniciou-se, e sua principal característica era a fundação de institutos de pesquisa desvinculados das universidades – na Rússia, isso foi resposta à oposição que os bolcheviques sofriam de lideranças universitárias que viam as mudanças com desconfiança.

Segundo Kojevnikov, o modelo soviético de ciência influenciou reformas significativas em países como Reino Unido, França e EUA, promovidas ou apoiadas por lideranças científicas. E a linha geral dessas mudanças – algumas vingaram, outras não – era uma ciência centralmente planejada e financiada pelo governo; criação de institutos de pesquisa; e laboratórios nacionais, voltados à pesquisa militar.

Como vemos, nada semelhante ocorria no Brasil nesse período, país então periférico economicamente e com pouca tradição científica. Mas isso não significa que nossa elite acadêmica não se mantivesse a par do que ocorria no exterior. Dois exemplos nesse sentido são os trabalhos de Morize, ainda no fim do século 19, e a chegada às livrarias (especialmente, as

do Rio de Janeiro) de obras relativamente atuais sobre ciência – por exemplo, os primeiros livros escritos sobre a relatividade, depois que se deu a comprovação histórica dessa teoria em 1919, em eclipse observado por expedições em Sobral, no Ceará, e na Ilha de Príncipe, na costa ocidental africana.

No momento em que havia essa introdução teórica, ainda que tímida, da relatividade e teoria quântica no país, a parte experimental, por sua vez, era praticamente inexistente. Naquela década de 1920 – em que ocorria, na Europa, o desenvolvimento de uma nova mecânica, a mecânica quântica –, a documentação histórica indica que, no Brasil, a área experimental se restringia a laboratório didático montado por Morize na Escola Politécnica do Rio de Janeiro – sem que, até onde sabemos, fosse usado para qualquer tipo de pesquisa – exceção para a tese de concurso para professor apresentada por ele em 1898.

A fundação da Academia Brasileira de Ciências e, anos depois, da Associação Brasileira de Educação é indício de que se acreditava que o país deveria investir nessas duas frentes, caso quisesse se igualar às nações ditas civilizadas. Mas, para a física, pouco resultou dessas iniciativas em termos de avanços.

Marco importante, realmente, se deu com a fundação da USP e a vinda de Wataghin para seu Departamento de Física – como discutiremos mais adiante. Vale aqui mencionar, ainda que brevemente, o cenário da física europeia e norte-americana no momento em que a física passava a ser feita de forma sistemática no Brasil.

As décadas de 1920 e a seguinte foram marcadas por avanços teóricos e experimentais de suma importância para a física. Como dissemos, na década anterior, se deu o desenvolvimento da mecânica quântica na Europa. Alguns dos avanços nesse sentido: a proposição de que a matéria tinha comportamento dual (corpuscular e ondulatório); a prova experimental de que o fóton tinha realidade física; a descoberta de que certas grandezas (posição e velocidade) não podiam ser determinadas simultaneamente com precisão absoluta (princípio da incerteza); a descoberta tanto teórica quanto experimental da antimatéria; a detecção do nêutron, expandindo a estrutura do núcleo atômico para duas partículas; a compreensão do chamado decaimento beta, ou seja, a transformação de um nêutron em próton, elétron e neutrino – esta última partícula, lançada como hipótese, foi prontamente aceita para explicar aparente incoerência energética desse decaimento; a proposição de uma partícula (méson pi ou píon) como intermediário da chamada força forte nuclear; a obtenção da chamada radioatividade artificial; a captura experimental do mésotron (hoje, múon), cuja capacidade de penetrar a matéria levou à crença de que a mecânica quântica era válida apenas até certos patamares de energia; a fissão (quebra) do núcleo e a obtenção da chamada fusão controlada, fenômeno que possibilitou a construção de bombas atômicas.

Havia – principalmente, na década de 1930 – certa resistência dos físicos em aceitar proposições teóricas de novas partículas, o que ocorreu, por exemplo, com o píon, o múon e, em certa medida, com o neutrino, que só foi comprovado experimentalmente duas décadas depois – o nêutron foi exceção, pois era vislumbrado desde o início da década anterior.

A descoberta ‘oficial’ do múon (1936) gerou impasse importante na física. Inicialmente confundido com o píon, essa partícula penetrava a matéria de modo que não podia ser explicado pelos modelos à época. Esse mistério se estendeu por cerca de 10 anos e envolveu, nas tentativas de sua resolução, a elite teórica e experimental das comunidades europeias e norte-americana. E, como veremos, só foi resolvido de forma definitiva com a detecção do píon, em 1947, por um grupo da Universidade de Bristol no qual Lattes trabalhava à época. Nesse momento, ficou clara a distinção entre o ‘carregador’ da força forte nuclear (píon) e o múon, partícula da família do elétron.

Em 1948, Lattes e um colega norte-americano, Eugene Gardner (1913-1950), produziram e detectaram o píon em um acelerador na Califórnia. Há textos históricos que indicam esse feito como o início da física de partículas (mais tarde, de altas energias) – mesmo que, como já dissemos, primazias sejam assunto, por vezes, opaco em história da ciência.

Como citaremos mais adiante, há desdobramento subliminar (porém, importante) nesse resultado: o acelerador em que a detecção foi feita usava tecnologia recente e avançada para a época, a chamada estabilização de fases. Com a detecção dos mésons (tanto o positivo quanto o negativo), ficou demonstrado que a técnica funcionava e, portanto, poderia ser usada em máquinas de maior porte, o que ocorreu na década seguinte nos EUA.

Mais: naquele momento, a física experimental de ponta deixava uma Europa destruída pela guerra para se alojar, nas décadas seguintes, nos EUA, onde dezenas de aceleradores passaram a funcionar nos anos seguintes. A física de bancada – feita por pequenos grupos – perderia espaço, e uma nova forma de fazê-la: surgiriam aceleradores, laboratórios nacionais, centenas ou milhares de físicos, engenheiros de diferentes especialidades, administração semelhante à empresarial, verbas volumosas. Era a Big Science.

Essa transformação foi impulsionada por nova geopolítica que Kojevnikov denomina “metafísica da Guerra Fria”, ou seja, conhecimento passou a ser sinônimo de poder político, econômico e militar.

O Brasil respondeu a isso em moldes próprios. Com campanha pública ampla, calcada na divulgação dos feitos de Lattes, envolvendo vários setores da sociedade civil e militares, envoltos em ambiente de nacionalismo e desenvolvimentismo. Essa iniciativa desembocou na criação de um centro voltado para a pesquisa em física onde os cientistas podiam trabalhar em tempo integral e serem remunerados para isso – pleito que vinha desde a década de 1930 no Brasil.

Dessa nova instituição, brotaria um laboratório no exterior, no alto de um pico com mais de 5 mil m de altitude em relação ao nível do mar, no qual a instalação de equipamentos demandou salto significativo para a física experimental brasileira, em termos de pessoal, logística e verbas.

A história que relataremos a seguir tem como pano de fundo o que foi relatado nos tópicos acima, e muitos deles voltarão a se repetir nesses ‘Atos’.

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