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ATO Nº 4 _Brasil: altas energias (1980-2022
ATO NO 4
BRASIL: ALTAS ENERGIAS (1980-2022)_ O quarto e último ato deste breve esboço da história da física experimental de altas energias no Brasil levanta suas cortinas após a reforma universitária de 1968 e o início oficial da pós-graduação no país, o que se deu naquela altura.
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Não só o sistema universitário de ensino e pesquisa passava por reforma profunda e necessária, mas também a área da física, no país, sofreria transformações significativas cujas consequências perdurariam por décadas.
Quase três anos após a criação da Sociedade Brasileira de Física (julho de 1966), seis físicos foram aposentados compulsoriamente por meio do Ato Institucional n. 5 (AI-5), privando as mais importantes instituições brasileiras de física de suas lideranças históricas.
A área de altas energias, por exemplo, não pôde mais contar com as contribuições de Jayme Tiomno (1920-2011), Leite Lopes, Schenberg e Elisa Frota-Pessôa (1921-2018) – esta última, experimental e uma das pioneiras da área de física no Brasil. Essas cassações correspondiam a deixar a área acéfala. Esses expurgos – que atingiram até mesmo pesquisadores sem militância política – representavam retrocesso enorme para a física no país como um todo. No caso das altas energias, a área teve que se adaptar aos novos tempos, procurando novas lideranças e locais onde pudesse sobreviver.
Foram principalmente dois os locais onde a física de altas energias se refugiaria a partir de finais da década de 1960: o Departamento de Física da PUC-Rio e o Instituto de Física Teórica, na capital paulistana. Na instituição carioca, formou-se grupo teórico, liderado por Erasmo Ferreira, Nicim Zagury, Jorge André Swieca (1936-1980) e Antonio Luciano Leite Videira (1935-2018). Em São Paulo, estavam os irmãos Paulo Leal Ferreira (1925-2005) e Jorge Leal Ferreira (1928-1995), bem como Abraham Zimmerman. Mas nenhuma das duas instituições produziu resultados experimentais em física de altas energias.
Oagora Instituto de Física da USP, que também perdeu lideranças, viu diminuída sua capacidade de contribuir para a área. Muitos jovens foram enviados ao exterior para se doutorarem, retornando ao Brasil anos depois.
O principal nome na universidade paulistana no fim da década de 1960 foi Yoshiro Hama, físico teórico. Na área experimental, a principal realização da USP nesse período foi a inauguração, em 1972, do Pélletron, máquina para o estudo da física nuclear – sua energia era insuficiente para a pesquisa em partículas elementares.
A fase mais recente no desenvolvimento da física de altas energias no país começou de forma lenta e tímida no início da década de 1980, por meio do envolvimento de Anna Maria Freire Endler e seu grupo, do CBPF, em pesquisas com câmaras de bolhas no CERN, no experimento NA22 (North Area 22).
Essa colaboração se deu a partir de sugestão de Gerhard Otter, da Universidade de Aachen (Alemanha), que passou período trabalhando com Endler no CBPF. Como desdobramento, foi estabelecido acordo formal entre o porta-voz do NA22, Wolfram Kittel, e o então diretor do CBPF, Roberto Leal Lobo e Silva Filho.
Endler sempre se dedicou à área de altas energias, desde o seu ingresso no CBPF, ainda na década de 1950. Por cerca de 10 anos, entre meados da década de 1960 e a seguinte, atuou na CBJ, até se mudar para a Alemanha – ela foi casada com o matemático Otto Endler (19291988), que trabalhou no Brasil por diversos períodos.
A colaboração entre o CBPF e o CERN mostrou-se muito produtiva, sendo publicados cerca de 60 trabalhos em revistas indexadas. Mas, talvez, por ter sido estabelecida em época ainda dominada pelos expurgos provocados pelo regime de 1964, a cooperação não ultrapassou os limites do CBPF – instituição, cabe recordar, desfalcada de suas principais lideranças nesta área da física.
A participação de Endler é, sem dúvida, o marco inicial da entrada do Brasil na física de altas energias no sentido mais moderno do termo.
Com a anistia de 1979, os físicos cassados puderam retomar suas posições na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na USP e no CBPF. A essa altura, vários jovens haviam sido formados, recebendo títulos de mestre e doutor em física. Havia, portanto, mais recursos humanos disponíveis para a pesquisa em altas energias.
O impulso mais importante para que a física de altas energias no Brasil pudesse incluir experimentos, de forma mais ampla, em nível nacional, veio de fora. Desde o fim da década de 1970, o então diretor do Fermilab, Leon Lederman (1922-2018), prêmio Nobel de Física em 1988, mantinha forte interesse em ampliar as colaborações internacionais de seu laboratório – talvez, preocupado com a expansão de seu ‘concorrente’ europeu, o CERN.
Vale lembrar que, no CERN, estava Roberto Salmeron (1922-2020), que havia pouco tinha retomado seu emprego no Brasil, depois da demissão coletiva da Universidade de Brasília, em meados de 1965, em resposta à interferência militar na recém-criada instituição. Nas décadas seguintes, Salmeron – como consequências de sua rede de contatos internacionais – promoveu o estabelecimento de parcerias e colaborações nas áreas de altas energias para o Brasil.
Em fins de 1981, Lederman enviou convite a Tiomno, para que este participasse de reunião que ocorreria no início de janeiro do ano seguinte em Cocoyoc (México). Essa reunião inaugurou a série de simpósios pan-americanos dedicados à física de partículas elementares.
Tiomno foi ao encontro como membro de comitiva oficial de físicos brasileiros, organizada pela SBF. Seus companheiros de viagem foram H. Moysés Nussenzveig (1933-2022), então presidente da SBF e ainda na USP – no ano seguinte, ele se transferiria para o Departamento de Física da PUC-Rio–; Souza-Barros, da UFRJ; e Fernando Zawislaki, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
A presença dos físicos brasileiros permitiu que o elemento essencial que faltava à física experimental de altas energias no Brasil fosse concretizado: a participação em colaborações internacionais de envergadura – desta vez, estabelecida com órgão federal, o CNPq.
No Brasil, os primeiros anos da década de 1980 eram vividos sob o clima de mudanças políticas importantes. O regime militar mostrava-se exaurido, caminhando para impasse que só poderia ser superado (sem mais violência) com o retorno de civis à Presidência da República. Enquanto essa transição não acontecia, a extinção da validade do AI-5 e a anistia devolveram certa normalidade também à prática da ciência.
A física brasileira – que, até então, não tinha avançado no ritmo desejado pelos próprios físicos – procurava recuperar o tempo perdido com as cassações e perseguições políticas. Os físicos brasileiros voltavam a fazer grandes planos para a construção de novos laboratórios. Como exemplo, vale citar o caso do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, que, anos mais tarde, entraria em funcionamento no estado de São Paulo – o historiador da ciência argentino Diego Hurtado vê nesse empreendimento o início da Big Science no Brasil.
Ao receber o convite de Lederman, Tiomno já estava de volta ao CBPF desde 1980. Não apenas ele, mas também Elisa. Leite Lopes, ainda na França, pensava em retornar de forma definitiva. O retorno de fundadores fez com o que o CBPF recuperasse algo do espírito empreendedor que tanto o caracterizou em seus primeiros anos de existência.
Tiomno tornou-se o principal avalista da participação brasileira na colaboração que se desenhava com o Fermilab. E, talvez, incensado por essa liderança, retomou seu interesse pela física de partículas elementares, área na qual havia ganhado reputação internacional – desde a cassação, ele se dedicava à relatividade geral.
Uma das primeiras iniciativas de Tiomno a partir da perspectiva aberta por Lederman foi encontrar pesquisadores do CBPF que quisessem ir para o Fermilab. Naquela altura, a única pessoa que trabalhava na área experimental era Anna Maria Endler, quem, por conta de sua colaboração com a Alemanha, não pôde assumir novos compromissos.
Ressalte-se que o Brasil, à época, não tinha tradição em colaborações internacionais e, portanto, não havia mecanismos administrativos para financiamento de viagens de curto período de brasileiros ao exterior.
Foram físicos teóricos do CBPF que perceberam que estavam diante de oportunidade importante. Alberto Santoro, João Carlos dos Anjos e Moacyr Henrique Gomes e Souza (1944-2016) atenderam ao convite de Tiomno e aceitaram fazer estágios de pós-doutoramento prolongados no Fermilab, migrando, assim, para a área experimental.
Aos três, se juntou um quarto físico, paulistano, igualmente teórico, Carlos Ourivio Escobar. Em meados da década de 1980, os quatro estavam no laboratório norte-americano, onde permaneceriam por dois anos – entre 1984 e 1986, aproximadamente.
Até a ida dos quatro físicos para os EUA, o CBPF, em parceria com a SBF, procurou promover reuniões de trabalho, para organizar a participação brasileira no Fermilab. Um desses encontros ocorreu no próprio CBPF, em 5 e 6 de abril de 1982. Outro, na PUC-Rio, foi o II Simpósio Pan-americano de Colaboração em Física Experimental, entre os dias 29 de julho e 3 de agosto do ano seguinte.
Apesar de a década de 1980 poder ser vista como período de avanços políticos – retorno ao regime democrático, promessa de nova constituição, anistia a cassados e exilados políticos, liberdade de imprensa e de expressão etc.) – muitos problemas permaneceram, e outros surgiram com a crise fiscal: em 1982, o Brasil ‘quebrou’, por causa, principalmente, do peso da dívida externa nas contas nacionais.
Como sempre foi frequente no país, as dificuldades econômicas foram sentidas em setores menos valorizados, como educação e ciência. Os cortes sofridos pelas agências de fomento colocaram em risco a continuidade da colaboração com o Fermilab. Para evitar que a presença dos cientistas brasileiros fosse prejudicada, Lederman tomou a decisão de que o Fermilab apoiaria financeiramente os quatro físicos.
A migração de Santoro, Escobar, Souza e Anjos para a física experimental pode ser entendida como momento importante no processo de consolidação da participação brasileira em experimentos na área de altas energias. Ainda na década de 1980, Ronald Cintra Shellard (1948-2021) – mais um teórico de partículas que migrou para a área experimental de altas energias – solicitou apoio do CNPq para passar mais uma temporada no CERN, onde já tinha estado em meados de 1982, ainda como teórico.
Shellard, perto do fim de seu período de dois anos no laboratório europeu, escreveu ao então presidente da SBF, Nussenzveig, longa carta – que pode ser lida no capítulo 3 deste livro. Nela, defendia a necessidade de firmar colaboração com aquela instituição – e não apenas com o Fermilab. As negociações com o CERN não tardaram – em parte, isso se deu graças à mediação feita pelo físico português Mário Pimenta, com quem Shellard colaborou por anos.
Essas colaborações simultâneas com Fermilab e CERN não eram percebidas como excludentes. Talvez, o mais acertado seja dizer que refletiam estratégia deliberada de multiplicar frentes e extrair o máximo de proveito delas.
O contato frequente com cientistas estrangeiros – em particular, com aqueles que trabalhavam em grandes aceleradores – se mostrou importante para a consolidação internacional da física brasileira de altas energias. Consequência disso foi o Brasil sediar mais uma vez o encontro mais importante da área no continente: entre 19 e 23 de outubro de 1987, ocorreu, no CBPF, o III Simpósio de Colaboração Pan-americana em Física Experimental, que teve Alberto Santoro como um dos dois secretários científicos – o outro foi o norte-americano Roy Rubinstein.
Para um país que, até o início da década de 1980, contava com reduzida participação na área de física de altas energias, o Brasil, a partir de 1982, viu a multiplicação de iniciativas nesse campo. A chave para essa rápida e bem-sucedida inserção no mundo dos grandes aceleradores foi apostar nas colaborações internacionais.
Ao longo das décadas de 1980 e da seguinte, físicos brasileiros passaram, em número cada vez maior, a participar de experiências, seja no Fermilab, seja no CERN, que levaram a descobertas importantes, como o quark top e os bárions charmosos.
O ingresso do Brasil nos grandes laboratórios internacionais não fez com que os raios cósmicos fossem esquecidos – basta lembra que, na década de 1980, a CBJ continuava ativa. A profissionalização e internacionalização da física brasileira se deu por meio de seus resultados em raios cósmicos (chuveiros penetrantes, méson pi, eventos exóticos etc.) e foi por meio dessa área que o Brasil iniciou suas primeiras colaborações transnacionais (Missão Unesco, Chacaltaya, ICEF etc.). Permitiu também que o Brasil fizesse pesquisa de ponta de forma barata (balões, detectores de coincidência, emulsões nucleares, por exemplo).
No período em que físicos brasileiros trabalhavam no Fermilab, James Cronin (19312016), Nobel de Física em 1980, passou a se interessar por raios cósmicos – segundo ele, a física experimental de altas energias, seu campo até então, tinha ficado “grande demais”.
Cronin desempenhou papel crucial na criação do projeto Pierre Auger. Tal como Lederman, fez várias viagens em busca de colaboração. Em 1995, por exemplo, ajudou na organização de reunião em Bariloche – onde, décadas antes, já haviam acontecido reuniões sobre raios cósmicos, para discutir a criação de um laboratório internacional no hemisfério Sul. Em novembro daquele ano, na sede da Unesco, em Paris, foi tomada a decisão de que a Argentina seria o país a receber a sede austral do Observatório Pierre Auger. O Brasil foi representado por físicos do CBPF, da PUC-Rio, USP e Unicamp.
A participação de físicos, engenheiros e técnicos brasileiros tanto na construção de instrumentos (participação da indústria nacional) quanto no planejamento de experiências no Auger foi visível desde o início do projeto, voltado para o estudo de raios cósmicos ultraenergéticos, com base numa rede imensa de detectores terrestres (tanques com água pura e eletrônica dedicada) espalhados por milhares de km nos pampas argentinos.
E, como ocorreu em outras colaborações internacionais, as contribuições científicas e tecnológicas foram crescendo com o decorrer do tempo. Em parte, esses resultados foram obtidos pelo aumento da participação de instituições nacionais nas colaborações. Em pouco menos de uma década, o Brasil marcava presença em experimentos e laboratórios internacionais, como CERN, Fermilab, Pierre Auger.
Mais tarde, vieram outras colaborações, como CTA (sigla, em inglês, para Rede de Telescópios Cherenkov), para o estudo de radiação gama, e, mais recentemente, SWGO (sigla, em inglês, para Observatório Austral de Campo Amplo para Radiação Gama), fusão de projeto idealizado por brasileiros, portugueses e italianos (Lattes) com experimento alemão e norte-americano (SGSO).
O aumento das atividades da comunidade brasileira em experimentos internacionais se deu em consonância com a realização periódica de atividades de divulgação voltadas para estudantes e professores do ensino médio. Três delas: a Lishep (originalmente, LAFEX International School of High-Energy Physics) desde 1993; o CERN Masterclass; e a visita anual a esse laboratório europeu de professores de física do ensino médio.
No início deste século, decidiu-se pela criação de organismo que coordenasse as atividades dos grupos brasileiros na área de altas energias. Em 2008, foi criada a Renafae (Rede Nacional de Física de Altas Energias), que trabalha em prol das seguintes metas, segundo descrição de seu portal: 1. promover no país o avanço científico e tecnológico da investigação das propriedades das partículas e suas interações fundamentais; 2. consolidar e ampliar a pesquisa em física de altas energias, expandindo a capacitação científica e técnica necessária para explorar os benefícios resultantes dos desenvolvimentos associados e suas implicações tecnológicas; 3. desenvolver um programa de mobilização de empresas instaladas no Brasil para atuar no desenvolvimento da instrumentação e do software para as colaborações internacionais da área; 4. caberá ao CTC da Renafae coordenar as atividades dos grupos atuantes em física de altas energias e, em particular, as atividades associadas às grandes colaborações internacionais.
Os objetivos da Renafae ecoam conjunto de sentimentos e ideais presentes entre os físicos brasileiros desde que se profissionalizaram, ainda em meados dos anos 1930: contribuir para o avanço da ciência em escala internacional, ao mesmo tempo que colaboram para o desenvolvimento científico e cultural do país.
A recente adesão do Brasil ao CERN como membro associado inaugura nova etapa, sem que possa ser compreendida como ruptura com o passado. Ao contrário, ela deve ser percebida como continuidade com as ações que Wataghin e colaboradores realizaram na primeira metade do século passado – e dos esforços individuais de cientistas brasileiros que se dedicaram à pesquisa sem que houvesse ambiente e apoio estatal para essa prática no país.