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ATO Nº 1_A pesquisa sistemática

ATO NO 1

A PESQUISA SISTEMÁTICA_ Armando Sales (1887-1945), interventor federal de São Paulo entre 1933 e 1935, designou o engenheiro e matemático Theodoro Ramos para chefiar comissão de professores para ir à Europa convidar cientistas naturais para fundar departamentos na recém-projetada Universidade de São Paulo (USP).

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Ramos chegou à Itália em 13 de março de 1934. Um dos professores com os quais a comissão se reuniu foi o matemático italiano Francesco Severi (1879-1961), o qual sugeriu que o governo paulista deveria criar, também, uma faculdade de ciências – e esta devia incluir um curso de física.

Seguindo essa orientação, o físico italiano Enrico Fermi (1901-1954) foi procurado por Ramos, para criar e organizar esse departamento. Entretanto, Fermi não demonstrou interesse em vir para o Brasil. Apesar da recusa, indicou o Gleb Wataghin para essa posição em São Paulo.

Entre 1922 e 1923, Wataghin obteve os graus de doutor em física e matemática na Universidade de Turim. Ao longo da década de 1920, demonstrou interesse nas noções da teoria quântica sobre matéria e radiação. Era um jovem físico que, como seus colegas de geração, estava interessado em empregar a recém-desenvolvida mecânica quântica para estudar a matéria em escalas cada vez menores, alcançando o nível dos núcleos atômicos.

Foi nesse período que ele escreveu, no formato de notas, seus primeiros artigos, os quais tomavam como base as discussões entre o dinamarquês Niels Bohr (1885-1962) e o alemão Werner Heisenberg (1901-1976) sobre o princípio da incerteza.

Em 1931, Wataghin participou de conferência sobre física nuclear em Roma, a Reale Accademia d’Italia, Convegno di física nucleare – da qual foi um dos secretários científicos. Esse percurso indica que Fermi, ao indicar Wataghin para vir para o Brasil, considerava que o colega ítalo-ucraniano reunia as qualidades para a implementação de um departamento em física no Brasil, em consonância com o que ocorria em centros de pesquisa tradicionais no hemisfério Norte.

Levando-se em conta a inexistência de pesquisas sistemáticas em física no Brasil naquele momento, não é de se estranhar que Wataghin tenha relutado em aceitar o convite: aos olhos dele, vir para o Brasil no início de sua projeção profissional poderia não ser bom para sua carreira.

Mas, por mais que o isolamento da comunidade científica europeia fosse algo que, em alguma medida, certamente iria ocorrer – caso ele aceitasse o convite de Ramos –, havia motivos que pesavam a favor de sua vinda. Wataghin ocuparia posição importante em departamento a ser criado e no qual seus interesses de pesquisa poderiam orientar a organização dos cursos e do laboratório. Além disso, ele poderia ir à Europa todos os anos, para se manter atualizado com relação às pesquisas feitas no continente. Isso significava que Wataghin poderia liderar um grupo de pesquisa que trabalhasse as questões que ele julgava importantes.

Ao chegar ao Brasil, Wataghin criou e assumiu a condução das cadeiras de física experimental, física teórica e de mecânica celeste na USP. Em seu trabalho de criação do departamento de física da USP, havia a necessidade de conceber linha de pesquisa experimental em raios cósmicos (tema de fronteira à época), a qual envolvia projetar e dar forma a um laboratório, adquirir instrumentos, contratar técnicos etc. Por meio dessa pesquisa, Wataghin estabeleceu relações próximas com estudantes, tendo como modelo, acreditamos, o sistema orientador-orientando que conheceu e experimentou na Europa.

Marcello Damy de Souza Santos (1914-2009) e Paulus Aulus Pompeia (1911-1993) já eram hábeis estudantes de engenharia quando Wataghin chegou ao Brasil. Damy lembra que o trabalho com raios cósmicos foi iniciado por volta de 1937 na USP. Um dos primeiros instrumentos construídos nessa universidade foi um circuito de contadores de coincidência, sobre o qual os técnicos da oficina mecânica e Damy se debruçaram antes que este fosse para Inglaterra fazer estágio, no fim de 1938. Depois da ida de Damy para Cambridge, Wataghin precisava encontrar alguém com habilidades em montagem de instrumentos científicos para suprir a ausência de seu ex-estudante – o que não foi muito difícil, pois Pompeia já estava na USP nesse período.

Os trabalhos que Wataghin, Damy e Pompeia estavam fazendo os levaram a assinar artigos publicados na Physical Review, em 1938 e 1939, que indicavam a existência de componente nos raios cósmicos capaz de atravessar pelo menos 17 cm de chumbo. Esse poder de penetração era maior do que o de fótons de alta energia, partículas que, à época, acreditava-se serem as constituintes dos raios cósmicos.

Eles montaram dois arranjos experimentais, que produziram os dados para chegar a essa conclusão. O primeiro dos arranjos foi feito com quatro contadores Geiger-Muller posicionados um acima do outro (dois deles sobre os outros dois) para gerar coincidências nas passagens de partículas carregadas num intervalo de até 1,8 x 10-6 segundo.

Os contadores superiores foram acondicionados em aparato no qual havia 8,5 cm de chumbo sobre eles e a mesma espessura desse metal entre estes e os contadores inferiores. O segundo arranjo foi montado com dois contadores, sobre os quais havia camada única de 17 cm de chumbo.

Nessa experiência, os três físicos observaram a passagem de partículas carregadas em coincidência por seus contadores, mas eles não tinham elementos para precisar suas identidades. Como não possuíam as condições técnicas – o equipamento indicava apenas a passagem das partículas – para identificar com precisão quais partículas eram aquelas, por eliminação, concluíram que o fenômeno observado não poderia ser causado por fótons, pois estes não teriam a capacidade de atravessar a quantidade de chumbo sobre os contadores e gerar as coincidências observadas. Dessa forma, resolveram denominar ‘partículas penetrantes’ os eventos observados.

Outro aluno de destaque de Wataghin foi o pernambucano Mário Schenberg (1914-1990) – um dos primeiros estudantes formados pela USP – que se dedicou sempre à física teórica, apesar de, em momentos de sua carreira, ter também se ocupado de análises fenomenológicas de eventos físicos (principalmente, relacionados a raios cósmicos).

A carreira de Schenberg foi marcada por sua enorme habilidade matemática. Talvez, por influência de Wataghin, ele preferia trabalhar em temas ousados, como problemas que envolviam a natureza do elétron.

Schenberg foi para Europa em 1938, para trabalhar sob a supervisão de Paul Dirac (19021984), em Cambridge. Mas esses planos acabaram não se concretizando, porque, ao desembarcar na Itália, rumo à Inglaterra, Schenberg encontrou Wataghin, em férias. Wataghin levou o ex-aluno ao instituto de Fermi para visita, oportunidade em que o físico pernambucano recebeu – e aceitou – proposta feita por Ugo Fano (1912-2001), então assistente de Fermi, para trabalhar em Roma. Nesse período, Schenberg trabalhou na integração numérica das equações de formação dos ‘chuveiros’ de partículas penetrantes.

Em seguida, Schenberg passou curta temporada, de dois ou três meses, no fim de 1938, em Zurique (Suíça), com Wolfgang Pauli (1900-1958). Seus interesses por arte o levaram a Paris, onde ficou também por curto período, mas o suficiente para dar seminário no grupo de Frédéric Joliot (1900-1958), no Collège de France.

Diante da imprevisibilidade da situação europeia sobre a eclosão de uma guerra, Schenberg retornou ao Brasil em março de 1939, ano em que conheceu o físico ucraniano George Gamow (1904-1968), que estava no Rio de Janeiro a convite de Wataghin.

No ano seguinte, Schenberg foi para os EUA, com bolsa da Fundação Guggenheim (1940-1941), onde interagiu inicialmente com Gamow e com quem publicou trabalhos seminais em astrofísica nuclear – um deles o efeito Urca. Pouco depois, obteve segunda bolsa, da mesma fundação, agora para trabalhar com Subrahmanyan Chandrasekhar (1910-1995), também aplicando física nuclear ao comportamento de estrelas, tentando entender a evolução desses corpos. O artigo publicado com o físico indiano é, como o efeito Urca, marco relevante na compreensão dos processos evolutivos das estrelas.

Schenberg e Gamow se encontraram no cassino da Urca, na então capital federal, e graças a isso batizaram ‘efeito Urca’ o processo em que uma então recém-proposta partícula (hoje, neutrino) era responsável por carregar grande parte da energia dissipada por estrelas massivas que explodem no fim da vida, fenômeno que os físicos denominam supernova – a analogia era com o fato de o dinheiro ‘sumir’ da mão de apostadores com a mesma facilidade com que os neutrinos dissipavam energia naquelas explosões estelares.

Apesar de guardarem semelhanças importantes em relação às suas perspectivas em física teórica, Schenberg e Wataghin não publicaram trabalho juntos.

Elemento que consideramos fundamental para o sucesso do tempo de Wataghin no Brasil foi a relação entusiasmada com a investigação científica e a construção de ambiente de informalidade e camaradagem com seus estudantes.

Oscar Sala (1922-2010), ex-estudante e colaborador de Wataghin, lembra-se do entusiasmo invulgar de seu professor quando, por exemplo, este teve que recorrer a Ademar de Barros (1901-1969), interventor federal em São Paulo, entre 1938 e 1941, para conseguir financiamento para pesquisas sobre a penetração de chuveiros de mésotrons (hoje, múons) – as tais partículas penetrantes.

O entusiasmo e experiência de socialização científica que Wataghin experimentou na Europa vieram com ele para o Brasil. A manutenção do contato com pesquisadores de outros países era importante não só do ponto de vista da troca de informações sobre o andamento dos trabalhos, mas também (e sobretudo) para estabelecer uma rede que poderia ser usada para fomentar o envio e a recepção de estudantes e de outros profissionais.

A criação de um laboratório de física na USP foi ponto importante para o plano de desenvolvimento de seu departamento. O laboratório foi criado e, rapidamente, ajudou a física experimental a se tornar a atividade principal do grupo. Esse êxito não foi obra do acaso. Wataghin atuou de forma a ter em seu laboratório o técnico que ele julgava ser o mais competente para trabalhar na montagem da instrumentação de seu grupo. Francisco Bentivoglio Guidolin (anos de nascimento e morte ignorados), mecânico lotado na Escola Politécnica, prestava serviços ao Departamento de Física desde sua fundação. Ele era “mistura de torneiro mecânico, carpinteiro, eletricista, motorista e áspero filósofo do cotidiano”, segundo Alfredo Marques (1930-2021), pesquisador emérito do CBPF.

Para que o laboratório da USP se tornasse um centro produtivo, foi também importante a presença do físico italiano Giuseppe Occhialini (1907-1993), que, ao chegar a São Paulo, em 1937, fugindo do ambiente fascista em sua Itália natal, logo passou a colaborar com Wataghin.

Occhialini desenvolveu pesquisas sobre a componente ‘mole’ dos raios cósmicos, bem como medições envolvendo elementos radioativos. A personalidade alegre e espontânea dele fortaleceu o ambiente já descontraído estabelecido por Wataghin. Occhialini contribuiu igualmente para acentuar o caráter coletivo do departamento, publicando artigos científicos

com Schenberg e Sonja Ashauer (1923-1948), ambos teóricos, bem como Yolande Monteux (1910-1998), a primeira mulher formada em física no Brasil.

Sua colaboração com a instituição permaneceu mesmo depois de ter retornado à Europa em 1944. Foi graças a carta enviada por ele a César Lattes (1924-2005) que este jovem físico tomou a decisão de embarcar para Bristol, logo após o final da Segunda Guerra Mundial.

Uma característica do laboratório do Departamento de Física da USP era a de que seus professores, auxiliares e estudantes construíam seus próprios instrumentos. A construção desses equipamentos – na qual foi fundamental a presença de Occhialini, bem como a de Damy e Pompeia, formados em engenharia – colocava os físicos da USP diretamente em contato com possíveis dificuldades técnicas, o que podia gerar maior compreensão do fenômeno a ser estudado.

Aconstrução dos próprios instrumentos era usada como argumento de economia – frente ao alto preço para adquiri-los já prontos – nas negociações por verba com a administração da universidade – eis bom exemplo das qualidades administrativas de Wataghin.

Não foi só na administração de seu departamento que Wataghin obteve sucesso. Pensamos que outro motivo do êxito das atividades ligadas ao laboratório era o fato de o departamento conjugar pesquisa e ensino, os quais Wataghin tentava equilibrar por meio de trabalho de orientação que oferecia a seu grupo de estudantes e recém-formados. Se atentarmos para as áreas de pesquisa desenvolvidas pelo grupo em seus primórdios, elas são, grosso modo, continuações das investigações que interessavam a Wataghin na Europa.

Na Segunda Guerra Mundial, a circulação internacional de cientistas e periódicos sofreu redução significativa. Exceção se deu em 1941, quando se organizou, na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, simpósio sobre raios cósmicos que contou com a presença do norte-americano Arthur Compton (1892-1962), prêmio Nobel Física de 1927, e colaboradores – é preciso lembrar que, nesse momento, o conflito estava restrito à Europa e Ásia, sem ainda envolver países do continente americano. Só no segundo semestre de 1945 é que, aos poucos, o caráter internacional da ciência começou a ser retomado.

Wataghin e Damy foram convidados pela Fundação Rockfeller para se familiarizarem com os avanços ocorridos na física durante o conflito mundial e para selecionar equipamentos para introduzir a física nuclear experimental na USP. Era um momento em que uma nova configuração de influências, capitaneada pelos EUA, se espalhava pelo mundo, tendo o Brasil ficado sob a égide das estratégias de relações diplomáticas do governo norte-americano.

Wataghin pôde aproveitar a viagem para fazer conferências em cinco universidades norte-americanas sobre a pesquisa em raios cósmicos feita em São Paulo. É pertinente mencionar que ele procurou Ernest Lawrence (1901-1958), o construtor do cíclotron na Universidade de Berkeley, e pediu a esse também Nobel de Física (1939) sugestões de equipamentos para a investigação sobre o núcleo atômico destinados a seu laboratório, em São Paulo. Também requisitou autorização para visitar o acelerador.

A resposta de Lawrence não tardou. Ele expressou entusiasmo em poder receber os dois físicos do Brasil em seu laboratório para lhes dar as orientações solicitadas; mostrar o cíclotron de 60 polegadas – o qual Wataghin queria conhecer. Na ocasião, fez oferta ao físico ítalo-ucraniano: conhecer uma nova máquina, a de 184 polegadas. Lawrence deu acesso a Wataghin ao projeto do sincrocíclotron que os cientistas de seu laboratório estavam desenvolvendo.

Os intercâmbios internacionais voltaram a ocorrer com regularidade, com o fim da Segunda Guerra, e os primeiros físicos do grupo de Wataghin enviados ao exterior foram Paulo Bittencourt (anos de nascimento e morte ignorados), Sala, Ashauer e Lattes.

Bittencourt foi para o laboratório de Donald Kerst (1911-1993), na Universidade de Illinois (EUA), em 1946. Sonja faleceu precocemente em São Paulo depois de terminar doutorado, em Cambridge (Reino Unido), com Paul Dirac (1902-1984). Em setembro de 1946, foi a vez de Sala ser enviado também a Illinois, na companhia de Bittencourt, trabalhar com Maurice Goldhaber (1911-2011) e se aperfeiçoar na área de medidas de tempos curtos – na casa do microssegundo (10-6 s) –, técnica que poderia ser aplicada para medir a vida de fenômenos nucleares.

Lattes saiu do Brasil pouco antes do que Sala, chegando a Bristol em fevereiro de 1946. Ele foi trabalhar no desenvolvimento do método de emulsões nucleares para a detecção de partículas na equipe de Cecil Powell (1903-1969), na Universidade de Bristol, a convite de Occhialini, que havia sido seu professor na USP no início dos anos 1940.

A chamada técnica das emulsões nucleares começou na década de 1910, com estudos voltados para a área da radioatividade. Ao longo das décadas seguintes, ela sofreu avanços importante, principalmente, na década de 1930 e, com mais intensidade, na seguinte, na Europa, quando empresas fotográficas desenvolveram, a pedido dos físicos, chapas fotográficas sensíveis ao elétron.

O detalhe pouco conhecido sobre o tempo de Lattes em Bristol é que ele operou o Cockcroft-Walton do Laboratório Cavendish e começou ali a adquirir familiaridade com aceleradores de partículas, o que contribuiu sobremaneira para que pudesse dominar o processo de produção, captura, observação e identificação de mésons, em 1948, no Laboratório de Radiação, em Berkeley, onde estava o sincrocíclotron de 184 polegadas.

Observada por perspectiva ampla – abrangente o suficiente para incorporar os 15 anos que passou no Brasil –, a trajetória de Wataghin no país permite afirmar que seu medo inicial não se concretizou. Ele não se isolou da comunidade científica internacional e ainda pôde retornar à Itália para ocupar cátedra em Turim, cidade onde vivia antes de sua partida para a ‘aventura tropical’.

Entre sua linha inicial de pesquisa quando chegou ao Brasil – eliminar os infinitos que acometiam a eletrodinâmica quântica – e a confirmação da presença do méson pi, em Berkeley, por Lattes, em 1948, seu nome não caiu no esquecimento.

A competência científica e a personalidade de Wataghin certamente foram elementos relevantes para que seu período brasileiro possa ser considerado muito bem-sucedido. A fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP representou decisão capital, porque permitiu às ciências naturais desenvolvimento relativamente autônomo no país, não sujeito às regras e aos costumes das engenharias.

Depois da volta definitiva de Wataghin para a Itália, no fim da década de 1940, todos seus ex-estudantes tornaram-se lideranças científicas no Brasil. Eles não só obtiveram resultados científicos dignos de citação, mas souberam formar outros jovens, bem como criar novas instituições científicas, as quais ainda hoje desempenham papel relevante na ciência brasileira.

Em que pese as transformações ocorridas na sociedade brasileira desde 1934, com a criação do Departamento de Física da USP, essa área, no Brasil, pôde crescer de modo vigoroso. Os físicos brasileiros souberam encontrar e propor soluções para os problemas que encontraram.

É certo que essas soluções nem sempre foram implantadas ou deram os frutos esperados. Mas, em certa medida, foram elaboradas a partir de modelo sugerido por Wataghin. Autonomia, persistência, criatividade e satisfação foram valores transmitidos por ele e assimilados por seus discípulos.

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