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ROTEIRO_Quando começar nossa história?
ROTEIRO
QUANDO COMEÇAR NOSSA HISTÓRIA?
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Pergunta que se impõe: em que momento iniciar uma história da física no Brasil? Em geral, a historiografia da área cita dois momentos: i) as primeiras aulas de física, por volta de 1800, no Seminário de Olinda, iniciativa, tudo indica, de José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho (1742-1821), o bispo Azeredo, que parece não ter obedecido ao que pregavam as decisões do Concílio de Trento em relação à educação; ii) a chegada da Família Real ao Brasil, que levou à criação das primeiras instituições com cadeiras de física no país (escolas de engenharia, de medicina, academias militares etc.).
Em período anterior, o Brasil testemunhou a presença de expedições com cunho astronômico e meteorológico. Por exemplo, i) Sanches Dorta e Francisco de Assis Barbosa, entre Rio de Janeiro e São Paulo, na década de 1780; ii) Valentim Stansel, na Bahia, na segunda metade do século 17; iii) Pierre Couplet, na Paraíba, em 1698; iv) ou, décadas antes, medições astronômicas e meteorológicas de George Marcgrave (1610-1644) em um observatório construído em Olinda, no início da década de 1640, na ocupação holandesa do Nordeste e cujos resultados foram publicados como um tipo de apêndice na obra de Guilherme Piso (1611-1678).
Os poucos trabalhos sobre esse período e essas iniciativas têm sido objeto da história da astronomia no Brasil.
Ainda tentando responder à questão acima, vale aqui citar resposta dada a ela por César Lattes (1924-2005). Para ele, os indígenas brasileiros tinham conhecimentos intuitivos de conceitos da física e os aplicavam a práticas de seu cotidiano. Exemplos dados pelo físico experimental brasileiro: a) construção de casas para centenas de pessoas que dormiam em redes (estática e resistência dos materiais); b) uso de machados com ponta (conservação do momento); c) construção de canoas com capacidade para carregar dezenas de pessoas (princípio de Arquimedes e hidrodinâmica); d) pesca (refração da luz); e) arco e flecha (leis da mecânica); f ) produção do fogo por atrito (transformação da energia cinética em calor).
O fato é que parece não haver momento ‘correto’ a partir do qual iniciar uma ampla história da física no Brasil. Ela, certamente, varia segundo o modelo teórico adotado e a área que se quer apresentar.
No entanto, toda a pesquisa história parece convergir para um consenso: a pesquisa sistemática em física no Brasil começa com a chegada ao país do físico ítalo-ucraniano Gleb Wataghin (1899-1986), para trabalhar na então recém-fundada Universidade de São Paulo – voltaremos ao tema adiante.
Otermo ‘sistemática’ é importante: ainda que isolados e sem incentivo do estado ou das instituições, professores de escolas de nível superior no Brasil, a partir do fim do século 19, passaram a fazer pesquisas (a maioria delas teóricas) por conta própria e a publicar resultados até mesmo em periódicos internacionais. Caso emblemático: o de Henrique Morize (1860-1930), na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, que, naquele período, defendeu cátedra em tema pujante para a época sobre raios catódicos e raios X.
Na passagem daquele século para o seguinte, Morize era parte de movimento em prol da instauração da pesquisa em ‘ciência pura’ (ciência básica, hoje) nas escolas de ensino superior – estas refratárias à prática. (Esse movimento, formado majoritariamente por médicos e engenheiros, levou à criação da Sociedade Brasileira de Ciências, em 1916, seis anos depois, rebatizada Academia Brasileira de Ciências) – por sinal, essa passagem de sociedade (‘para todos’) para academia (‘para poucos’) nos parece ir de encontro aos próprios anseios do movimento, mas desconhecemos trabalho sobre o tema. Arriscamos dizer que parece ter havido separação proposital entre ‘profissionais’ e ‘diletantes’.
Ainda no fim do século 19, segundo o historiador da física dinamarquês Helge Kragh, a física lidava com duas grandes questões: i) na área de eletrodinâmica, a relação entre éter (meio que tudo penetraria) e matéria; ii) em termodinâmica, a realidade (ou não) dos átomos. Vale ressaltar conclusão também desse historiador da física dinamarquês: o surgimento da teoria quântica nada teve a ver com a ‘crise da física’ ou a chamada ‘catástrofe ultravioleta’, segundo a qual um corpo aquecido emitiria radiação ionizante (ultravioleta, raios X etc.). Segundo ele, a teoria quântica surgiu em consequência do profundo insight de Planck na área de termodinâmica.
Vale aqui esboçar também o que estava acontecendo na física em termos mundiais, para que se possa, portanto, contrastar com o que se passava no Brasil. Segundo o historiador da física canadense Erwin Hiebert (1919-2012), era período em que a prática da física tinha as seguintes características: i) percepção crescente de que havia uma unidade da física; ii) tentativas de união do muito pequeno com o muito grande; iii) postura mais relaxada em relação a especulações científicas; iv) aumento da colaboração entre grupos de pesquisa.
Esse programa, segundo Hiebert, seria posto em prática com base nas seguintes ferramentas: i) conservação de energia; ii) respeito à ordem dos elementos na Tabela Periódica; iii) culto às ideias sobre eletromagnetismo do físico escocês James Clerk Maxwell (1831-1879), que as apresentou em meados do século 19.
Outra contextualização que nos parece procedente. O historiador da física norte-americano David Cassidy relata que, naquele fim do século 19, nos EUA, havia também movimento de físicos em prol da pesquisa básica. Mas os pleitos diferiam do movimento brasileiro. Lá, havia grande ênfase nas aplicações da física – principalmente, a problemas ligados à agricultura. Cenários bem distintos, como vemos.
Outro problema com a historiografia da física no Brasil – mal do qual sofre também a historiografia da ciência – é não reconhecer o papel de bons administradores da ciência, que, a seu modo, transformaram o ambiente da prática científica no país. Caso emblemático: o do economista José Pelucio Ferreira (1928-2002), um dos formuladores do Fundo de Desenvolvimento técnico-científico (Funtec). Ou seja, há na historiografia da física tendência em valorizar apenas cientistas e seus resultados científicos (importantes).
Possível lição desse viés: ciência, como cultura, é empreendimento coletivo, no qual se pratica divisão intensa do trabalho, o qual é também feito por tecnólogos, técnicos, gestores e trabalhadores de menor qualificação educacional.
Costuma-se apontar Wataghin como o ‘pai’ da física no Brasil, mas sem dar a ênfase à enxurrada de fatos (uma macro-história, em realidade) que levaram à fundação da USP, resultado de mudança de mentalidade de autoridades governamentais paulistas que perceberam que uma universidade e os quadros formados por ela seriam instrumentos importantes para a projeção política e econômica daquele estado. A física (e a ciência) que se praticou desde então se deve a isso.
A conclusão clara é que não haveria um ‘Wataghin’ sem uma revolução frustrada em São Paulo. E, como não há ‘se’ em história, não sabemos em que momento a pesquisa sistemática em física se daria no Brasil.
Para finalizar este tópico, vale dizer, ainda que brevemente, o que vem sendo feito atualmente em história da física no Brasil. A comunidade de historiadores da física no país é ainda diminuta. E, por décadas, suas publicações foram mais voltadas ‘para dentro’, ou seja, divulgadas em língua portuguesa e periódicos nacionais.
Nas últimas duas décadas, pesquisadores em história da física no Brasil – assim como ocorreu, na década de 1980, com a área de altas energias no país – se internacionalizaram, passando a publicar (geralmente, em inglês) em periódicos internacionais com fator de impacto significativo. Houve também aumento da produção de livros em língua estrangeira – apesar de o número destes últimos ainda ser relativamente pequeno.