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CENÁRIO_O que já foi escrito sobre o tema?
CENÁRIO
O QUE JÁ FOI ESCRITO SOBRE O TEMA?
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Dando seguimento à nossa analogia, é preciso dizer qual o pano de fundo – ou mais especificamente – o cenário em que pretendemos apresentar os capítulos a seguir.
Qual a história da física no Brasil que temos hoje? Em termos mais técnicos, como é nossa historiografia da física? Esse já foi tema de livros e artigos. E a resposta simples concisa é a seguinte: os relatos gerais sobre a história dessa disciplina em nosso país foram em sua maioria escritos por cientistas da área.
Consequências: esses relatos costumam ser personalistas; ter pouca ou quase nenhuma pesquisa historiográfica (documentos, cartas, entrevistas etc.); usar modelos ideológicos que tentam acomodar fatos; apresentar a visão do ‘herói’ ou da ‘heroína’ que faz ciência isoladamente, sem que se leve em consideração o ambiente em que estavam; recorrer à descrição temporal que encadeia mestre e discípulos; empregar a perspectiva enviesada de que apenas uma vertente (em geral, próxima a quem escreve a história) merece ser descrita; ser factual, sem análise histórica que o tema demanda.
Há também nesses relatos ênfase no ‘pioneiro’ – vale lembrar que questões como ‘quem descobriu’ ou ‘quem foi o primeiro’ nem sempre fazem sentido em história da ciência. Caso emblemático é o da detecção do múon: russos, japoneses, britânicos e norte-americanos reivindicam para si a descoberta dessa partícula entre o fim da década de 1920 até meados da de 1940.
Uma história ampla da física no Brasil demandaria esforço vigoroso e interdisciplinar – e os historiadores profissionais da área no Brasil ainda não assumiram para si essa tarefa; talvez, pelo fato de histórias amplas não estarem mais em voga. Uma agravante, nos parece, é o fato de seguir havendo pouco ou nenhum interesse da comunidade científica por sua própria história.
Nesse cenário, há exceção: o amplo trabalho que resultou no livro Formação da Comunidade Científica no Brasil, liderado pelo sociólogo Simon Schwartzman. Mas é improvável que algo com alcance semelhante volte a se repetir no Brasil – pelo menos, não no horizonte visível –, até porque a história da ciência ocupa um tipo de penumbra na academia, uma ‘terra de ninguém’ entre as ciências e as humanidades. Para os historiadores, ela deve ser praticada nos institutos de ciência; para os cientistas, nos departamentos de história.
Em geral, o material que hoje temos sobre história da física no Brasil costuma isolar a ciência do resto do ambiente em que ela está imiscuída. Mais: fatos que possam embaçar a imagem da prática científica ou de seus praticantes – porém, importantes para entender a contextualização e o desenrolar dos acontecimentos – não são mencionados. Ou seja, faz-se ainda uma história da física ‘sanitizada’. Além disso, ela costuma ser pouco crítica e, por vezes, enaltecedora, quase hagiográfica. Corporativismo e ausência de autocrítica ainda são fortes na comunidade científica brasileira – e os físicos não são exceção.
Há também nesses trabalhos pouca comparação com os desenvolvimentos externos – principalmente, com aqueles ocorridos na Europa e nos EUA, onde a física historicamente se desenvolveu com mais ímpeto. A razão para isso parece ser misteriosa – talvez, evitar acentuar as diferenças entre o que ocorria e aquilo que se passava em países com tradição científica.
Ciência segue não entendida como aquilo que ela é: uma cultura que oscila aos sabores do social, econômico, político e cultural. E que não é e nunca foi neutra. Basta lembrar que a instituição mais poderosa do mundo é o chamado complexo tecnológico-militar dos EUA, que reúne estado, indústria e academia e é responsável, ainda hoje, por grande parte das verbas de apoio à ciência naquele país – já em 1949, 96% do financiamento para a pesquisa básica em física dos EUA vinham de agências federais de defesa, como o Departamento de Defesa e a então Comissão de Energia Atômica – esta última sucessora do Projeto Manhattan.
E há temas que seguem como tabus. Por exemplo, a interação da comunidade de físicos com o governo militar. Na Argentina e no Uruguai, a ditadura militar não tinha projeto para os físicos. Mas a do Brasil tinha. E parte dos físicos brasileiros aceitou participar dele, trabalhando em projetos de segurança nacional (telecomunicações, energia nuclear, armamentos, aviação, fibras ópticas etc.).
Ou seja, houve atitude ambígua dos físicos brasileiros no regime militar: oposição ao governo e às perseguições políticas, mas aceitação de verbas estatais e apoio ao novo sistema de pós-graduação e à expansão das universidades federais.
Essas forças de reação e adesão dos físicos atravessaram os 20 anos de ditadura, o que se deu por meio de diálogo constante – mas nem sempre amistoso – com as esferas governamentais.