
5 minute read
Editorial
O outro eu, quem somos nós ?
Quando apontamos o que o outro é sem conhecer, podemos dizer que julgamos o que o outro parece ser. Nesta edição queremos mostrar o que somos através das visões sobre sexualidade, do ser mulher, sororidade e empoderamento feminino.
Advertisement
Para tanto precisamos fazer parcerias, nos comunicar com nossos semelhantes, enquanto grupo social de LGBTI+, sempre cientes e exaltando nossas diferenças. Como o do poder de ser mulher e fazer isso sem “carregar nas costas, a culpa pelas desgraças do mundo” (Sheila Costa), muito menos ser ameaçada e morta por isso, vide os altos índices de violência.
Veremos o quanto a sexualidade é ampla, rotular o outro não faz ninguém melhor, só impede a si mesmo de “novas (re) descobertas.” (Luiz Fernando Uchoa). Conhecer o outro o outro é também uma forma de nos conhecermos e entendermos nossa visão do que somos neste mundo. Conheça o outro e faça de você alguém melhor.
Boa leitura! Equipe Alternativa L.


QUANDO A COMÉDIA ENCONTRA UMA MULHER RECONSTRUÍDA – BREVES APONTAMENTOS SOBRE O STAND-UP “HANNAH GADSBY: NANETTE”
A comédia é um entretenimento, comumente, desconfortável para uma multidão de dissidentes: as sapatão, os viado, as gordas, as travestis, as pessoas negras são, não só o foco, como o alvo da maior parte das piadas que a grande maioria de comediantes homens brancos focam em abordar ao subir no palco. Temas como estupro, violência, racismo, misoginia eram (e ainda são em alguns nichos) vistos quase como “temas clássicos” dos especiais de comédia e construção de sketchs, como já abordou o documentário “O Riso dos Outros” e como podemos ver nos diversos casos de comediantes brasileiros que foram processados judicialmente por suas “piadas” que ofendiam, humilhavam e/ou violentavam. Contudo, o que acontece quando uma mulher lésbica comediante sobe ao palco e, sob a luz dos holofotes, diz: “chega”?. Hannah Gadsby é uma mulher, lésbica, gorda, não-feminina, que, por anos a fio, criou comédias auto depreciativas, sua vida era uma piada, literalmente. Hannah subia ao palco onde contava as 6

peripécias de sua vida sexual, afetiva e as tensões e violências que poderiam ter sofrido, usando seu corpo e sua história como foco de construção de uma personagem cômica. Seu especial da Netflix parte justamente dessa proposta, relembrar as histórias que ela contara no palco sobre si. Gadsby começa desnudando sua subjetividade, trazendo as narrati-
vas de tensão, quebrando o gelo com brilhantes desfechos. Na primeira parte do stand-up é impossível não rir com Nanette. Desde sua desconexão com a sociedade, a dinâmica familiar com sua mãe, a vida numa cidade pequena, sua homofobia e a quebra com os

próprios conceitos sobre sexualidade, cria uma narrativa quase ilusória de integração e sucesso nas suas interações. Contudo, há uma tensão no ar que não se dissipa e vai sendo revelada conforme avança o documentário: Hannah Gadsby abandonará os palcos da comédia. Aquela brilhante mulher, cheia de frases de efeito não quer mais, mesmo com seu sucesso, parar a frente do microfone e contar a sua história. Ela parece uma vitoriosa e, numa sociedade de ocidental heterocapitalista como a nossa, ver uma mulher lésbica de sucesso não é algo muito comum, Hannah parece ter superado as dificuldades e se encontrado na frente dos holofotes, lugar almejado por muitas e muitos de nós. O que Hannah escondia era que parte de sua história fora omitida para obter seu sucesso com Nanette, em contrapartida suas sensações duras e cruéis foram crescendo, até o ponto que ou Nanette sobreviveria ou Hannah Gadsby. A comediante e escritora começa a desvelar que a mulher lésbica zangada que aparecia no palco era uma faceta que vinha de uma história não contada, uma história de violência, onde os finais leves e risonhos não eram uma realidade. Com uma vida cercada de violências físicas e sexuais, Gadsby faz com que o cara que comentei lá em cima, o antigo dono da comédia, sinta-se parte de sua vida, posicionado enquanto aquele que precisa ser zombado, tirado do seu lugar de conforto, tirado do seu lugar tão caro e tão naturalizado de “zombador”. A comediante faz um processo em que se aproxima de Audre Lord que nos dizia: “seu silêncio não o protegerá”, desafiando o lugar de pretensa neutralidade dos homens brancos heterossexuais. Sem meios 7
termos. Hannah não dissipa mais as tensões, brilhantemente as coloca no palco, nos sujeitos e no seu stand-up que vai, aos poucos, tornando-se uma apresentação político-cultural que questiona as desigualdades de gênero e sexualidade e as naturalizações dos lugares ocupados por comediantes dentro do mundo da comédia.
Hannah traz debates importantes articulados a gênero e sexualidade, fala sobre arte, saúde mental, cultura, conhecimento e subjetividade, abrindo as portas para uma forma de olhar mais fresca e recheada de sabedoria, que pode ser o nosso ponto de partida para reflexões muito profundas ou então mais uma das formas de usarmos de nossa sensibilidade para olhar para es outres de forma mais justa e mais sensível. Numa sociedade onde precisamos re-existir a cada dia, Hannah Gadsby é uma poderosa força dolorida e um incentivo para seguirmos na luta, na rua, na vida. O stand-up dói na pele, mas traz uma mensagem e uma sensação importante que devem ser partilhadas entre todes nós: não será mais confortável viver num espaço enquanto outres não têm o mesmo conforto. Termino então, com as palavras de Hannah e convido todes a se conectarem com suas histórias, com as minhas histórias, com as nossas histórias e conhecerem Hannah Gadsby em uma viagem inesquecível: “Rir não é o melhor remédio. O que cura são as histórias. O riso é só o mel que adoça o remédio amargo. Não quero me unir a vocês pelo riso ou pela raiva. Só queria que minha história fosse ouvida, sentida e compreendida por indivíduos com pensamentos próprios, porque, queira ou não, sua história é a minha história e a minha história é a sua história. (...) Só posso pedir, por favor, me ajudem a cuidar da minha história.” (Hannah Gadsby).
Hannah Gadsby: Nanette. Original Netflix. 2018. 1h9m. Classificação indicada: 16 anos.

Sobre a autora
Carolina Ribeiro tem 30 anos e é doutora em sociologia. Desde os 12 anos escreve textos literários e poemas que não teve muita coragem para publicar, até agora... Mora na periferia de São Paulo e se interessa por temas como: gênero, sexualidades, decolonialidades, pornografias, ativismo, feminismo e sexualidades.
