DURMO NA RUA

Page 1


S eis testemunhos de pessoas sem-abrigo

LAIA DE AHUMADA
CINTA FOSCH

Publicado por AKIARA books

Plaça del Nord 4 , pral. 1 ª

08024 Barcelona (Espanha) www.akiarabooks.com info@akiarabook.com

© 2025 Laia de Ahumada, pelo texto

© 2025 Cinta Fosch, pelas ilustrações

© 2025 AKIARA, SLU , por esta edição

Primeira edição: outubro de 2025

Coleção: Akivida, 2

Tradução: Catarina Sacramento

Direção editorial: Inês Castel-Branco

Impresso em Espanha: @Agpograf_Impressors

Depósito legal: B 17461-2025

ISBN: 978-84-18972-81-2

Reservados todos os direitos

Este livro foi impresso em papel offset reciclado 100% Nautilus Classic 135 g/m2 e a capa sobre papel Brossulin XT de 250 g/m2

Na tipografia, usaram-se as famílias Adobe Garamond e Franklin Gothic.

A AKIARA trabalha com critérios de ecoedição, otimizando os formatos, escolhendo papéis certificados e optando sempre por uma produção de proximidade, para minimizar o impacto ambiental.

Este produto foi feito com material que provém de florestas certificadas FSC®, geridas de forma responsável, e de materiais reciclados.

de Ahumada

Montse Teixes

Juan Blaya

Ignacio

Anabel Fernández Andrés

RAZÕES PARA ESCREVER

UM LIVRO COMO ESTE

Nunca tinha imaginado que escreveria um livro de entrevistas sobre pessoas em situação de sem-abrigo, mas também nunca tinha imaginado que, vinte e cinco anos antes, seria cofundadora de um centro para acolher pessoas nesta situação, à frente do qual estaria cerca de vinte anos.

E nunca me tinha imaginado a escrever um livro sobre esse tema porque, quando passas tanto tempo ao lado de um coletivo, seja ele qual for, acabas por achar que conheces as necessidades e as dificuldades, a rotina e a dor das pessoas que dele fazem parte, e corres o risco de considerar isso «normal» e de pensar que as suas histórias de vida não interessam a mais ninguém além de ti, que as ouves todos os dias.

É por isso que este livro implicou um longo processo. Tive de me desprender

dos clichés que, com os anos, se tinham entranhado em mim e convencer-me de que podia contribuir para romper com os estereótipos e ajudar a mudar a forma de olhar para a dura e injusta situação de sem-abrigo, nomenclatura que engloba não só as pessoas que vivem na rua como também todos aqueles que habitam em condições indignas.

Assim que me convenci de que a experiência não tinha sido um ónus, mas sim uma vantagem, mergulhei a fundo. E fi-lo com uma intenção muito clara: dar-lhes voz, deixá-los falar, e escrever tudo aquilo que me explicavam, sem introduzir nada da minha autoria no texto, apenas as perguntas, formuladas com a única intenção de clarificar situações e facilitar a leitura.

Ao princípio, não sabia se os entrevistados se sentiriam capazes de me contar

uma vida tão dolorosa como a sua, ou se à última hora recuariam, porque na rua te habituas a não pensar, a não sentir, a não falar. Constróis uma carapaça que te protege do mundo exterior. Por isso, é difícil conhecer a vida destas pessoas, e é necessário proporcionar espaços de escuta para que sejam elas mesmas quem no-la explica. E, acima de tudo, não cair na tentação de falar em seu nome.

Este é um livro de entrevistas a seis pessoas em situação de sem-abrigo, que vivem ou viveram, em algum momento da sua vida, na rua. São quatro homens e duas mulheres, entre os 30 e os 70 anos.

A paridade não foi possível, embora também não exista na rua, onde a percentagem de homens é mais elevada do que a de mulheres.

Dos seis, quatro nasceram na Península, e dois são migrantes. Todos vivem em Barcelona, cidade com um índice muito elevado de insalubridade habitacional, que vai crescendo de ano para ano, apesar dos esforços das entidades que trabalham para o aliviar.

No momento da entrevista, três destas pessoas já tinham deixado a rua: duas viviam num centro de acolhimento e uma tinha arrendado um quarto, e as outras três ainda dormiam na rua.

Como faço sempre, ao acabar de redigir o texto, pedi o aval a cada entrevistado. Costumo fazê-lo por correio eletrónico, ficando à espera das correções

e da aprovação. Neste caso, porém, foi diferente: exceto com uma delas, com quem o fiz por via eletrónica, com os restantes encontrámo-nos e fizemos uma leitura partilhada, em voz alta. Quando terminámos, pude sentir a emoção deles: identificavam-se com o texto, sentiam-se escutados, reconhecidos e dignificados.

O livro já valia a pena!

Com este livro, queremos explicar como se vive na rua e o que pode levar uma pessoa a fazê-lo. Queremos dar a conhecer as situações de violência, de abandono, de solidão; de perda de autoestima, dignidade e alegria que sofrem as pessoas que vivem na rua. E também averiguar se é possível sair dela, como o fazer e porque custa tanto.

Queremos dar a conhecer a problemática da falta de habitação digna com o objetivo de lhe dar visibilidade, abandonar os preconceitos, mudar a perspetiva e descobrir que uma pessoa que vive na rua é como tu, já que, um dia, também podes vir a encontrar-te nesta situação. Nunca se pode dizer: «A mim isto não me vai acontecer», porque num segundo a nossa vida pode mudar.

Também queremos fazer um convite à reflexão sobre o modo como nos relacionamos com estas pessoas; pessoas que se consideram invisíveis porque ninguém as vê, ou não as quer ver. E nós, olhamos para elas? E como é que olhamos para elas? E porque é que achamos normal

haver gente a viver na rua? Será que, no fundo, em vez de sentir empatia, o que fazemos é afastar a culpa pensando que estão na rua porque o merecem? E isso, todos eles o rebatem: «Não é porque queres que vives na rua, hã?»

As pessoas em situação de sem-abrigo têm mais problemas de saúde e maior deterioração física. Envelhecem e morrem mais cedo. À medida que o tempo passa, na rua, perdem a vontade e a força. Sobrevivem sem saber o que lhes acontecerá amanhã. Dedicam o dia a dia à subsistência: encontrar um lugar onde dormir, onde guardar os pertences, onde comer, onde se possam lavar, onde ir à casa de banho, onde carregar o telemóvel… Dormem pouco, porque as ruas não são seguras; têm medo. Estão dependentes das mudanças de tempo: frio, chuva, calor… Vão acumulando menosprezo, incluindo violência, e vão perdendo a dignidade.

Não é nada fácil sair da rua. Mas porque é que se vai lá parar? As razões são diversas: perda de trabalho, rutura de

relações familiares, migração, dependências, perturbações mentais…

A vida na rua desgasta muito, e isto leva a que frequentemente estas pessoas sejam muito exigentes, se queixem de tudo: dos assistentes sociais, dos companheiros, dos imigrantes. Têm urgências que nem sequer conseguimos imaginar porque não nos encontramos nessa situação, e às vezes oferecem-lhes «pseudossoluções que não dão resposta às suas necessidades. E, como não encontram sentido nelas, recusam-nas. E muito bem!» (prólogo de Ferran Busquets em Cent x Cent Carrer, de Pere Escobar). Isto não nos deve levar a estigmatizá-las, mas sim a pormo-nos na sua pele, a compreender a urgência das suas demandas, a perguntarmo-nos quais são as suas necessidades reais e de que precisaríamos nós se estivéssemos no seu lugar.

Devemos dar visibilidade e ouvir estas pessoas, criar vínculos que lhes permitam recuperar a sua autoestima, sentirem-se acarinhadas, reconhecidas, capazes de seguir em frente; e isso está nas nossas mãos. É imprescindível olhar, ver com um novo olhar. É necessário conhecer, porque quem conhece, reconhece e ama.

laia de ahumada

que fica na rua de la Unió, a mais barata. Lá tomava banho e dormia, e, quando se acabava o dinheiro, ia outra vez para a rua, até ao mês seguinte.

Agora já tens um quarto, mas a situação de sem-abrigo inclui também as pessoas que não têm uma habitação digna, um lugar onde possam sentir-se em casa. É isso que acontece contigo?

É mesmo! Faz agora cinco anos que estou num quarto, fora de Barcelona. Pago 350 por mês. Não estou muito bem. Tenho de pedir autorização para tudo: para tomar banho, para me sentar à mesa da cozinha, para cozinhar… Nem sequer posso usar a máquina de lavar roupa e tenho de ir às lavandarias automáticas.

Apesar de tudo, agora que estou num quarto, ajudo as pessoas que vivem na rua com o que posso. Dinheiro não tenho, mas levo-lhes comida, vou visitá-los. Fiz amizade com eles. Digo-lhes sempre: «Se eu saí da rua, tu também podes sair!» Faço o que consigo pelos outros. Também venho ao espaço de mulheres do Centre Heura todas as sextas-feiras e faz-me muito bem.

Mas num quarto deves estar mais sossegada do que na rua…

Quando estou em casa, no quarto, a minha cabeça começa a dar muitas voltas. Há demasiado tempo que não durmo como Deus manda, porque é muita coisa: tenho netos e não os conheço, os meus filhos dizem que estou morta… Com tudo isso vive-se muito mal.

Eu estou sempre na brincadeira, rio-me muito, mas quem vê caras não vê corações. E quando me meto entre as quatro paredes do quarto, não sou a Montse, sou outra.

Por um lado, estou grata, mas por outro… Tenho 70 anos, e que futuro me espera? Que vida me espera? Não tenho nada, não tenho onde cair morta, recebo uma miséria e nem sequer consigo arranjar os dentes. Mas, sim, graças a Deus, ando na rua de cabeça bem erguida.

O que pedirias a quem está no Governo?

Pediria que tivessem um bocadinho mais de consciência e ajudassem as pessoas necessitadas, que há mais do que pensamos. Era isso que teria de se fazer: ajudar, dar habitação digna. Há famílias inteiras, com crianças, a viver na rua. Eu já as vi. Isto é normal?

E outra coisa: não é porque queres que vives na rua, hã?

ESTOU NA RUA DESDE OS 14 ANOS

O Juan está à minha espera no átrio da Obra Social Santa Lluïsa de Marillac, na Barceloneta. Vive há mais de trinta anos na rua, e di-lo como se nada fosse. Já passou por muito e conseguiu sempre seguir em frente, sem perder o sorriso nem a vontade de viver. Uma coisa é certa — repete-me —, gosta de fazer o que lhe dá na gana e, quando quer alguma coisa, não descansa até o conseguir.

No dia em que o entrevistei, contou-me que lhe iam atribuir um apartamento, encontrava-se à espera. Quinze dias depois, telefonou-me às nove da manhã para me dizer que já estava no apartamento e que me estava a ligar da cama!

As pessoas dizem-te que tenhas cuidado, que estejas atento para não seres roubado. Assustam-te. Dão-te um montão de recomendações, mas não sabes como é até teres de dormir ali, no meio da intempérie. Para mim, era algo novo, mas não tinha medo. Deitei-me, pertinho da catedral. Em frente, há uma casa de artigos de desenho que tem vários andares e pus-me a dormir numa das entradas. Na outra, havia outras pessoas. Quando estava a dormir, acordei, não sei porquê, e vi ao meu lado um saco-cama. Não estava a perceber nada. Que se passa aqui? Abri-o, e estava novo! Depois percebi que, possivelmente, alguém de alguma instituição devia ter passado ali e tinha-mo deixado.

Outra noite, estava noutro sítio, a preparar-me para dormir, e passou um rapaz que me oferecia algo. Primeiro pensei que era droga e disse-lhe que não consumia. Ele insistiu, e eram dois euros! Nessa mesma noite, passou outro rapaz com um saco cheio de roupa de marca.

Acontecem coisas assim; não é todas as noites, mas aliviam-te. Há sempre uma alma caridosa, como dizemos na Argentina, ou alguém com empatia e que se aproxima das pessoas como nós, que estamos a viver na rua.

Sim, felizmente não tive nenhuma situação de violência. Nunca me aconteceu estar a dormir e virem acordar-me. No aeroporto, tive uma vez um confronto, mas disse aos seguranças e eles resolveram o assunto.

Quando tinha acabado de chegar, passei duas ou três noites no Raval, à espera de poder ir ao Centro Arrels. Aproximou-se de mim um tipo e disse-me: «Não fiques aqui esta noite, porque amanhã não terás nada». Eu tinha de tudo:

Os casos de violência na rua existem. Mas tu parece que tens tido sorte…

minha avó envelhecia, decidiram, pelo meu grau de incapacidade, que tinha de estar sob tutela, e foi a fundação que se encarregou de mim.

Tenho 68% de incapacidade psíquica e física, mas sou autónoma. Se eu agora dissesse às minhas tutoras que ia para os Estados Unidos, podia fazê-lo. Não me podiam impedir.

Os meus avós já morreram. De família, tenho um primo e uma tia, mas não sei nada deles.

Porque é que dizes que és um bicho mau?

Porque fiz de tudo para sobreviver. Quando vivia com a minha avó, em Santa Perpetua de Mogoda, apanhava o autocarro da aldeia e ia ao bairro chinês de Barcelona vender trankimazines aos ianques: a um euro o comprimido.

Também roubava nos grandes armazéns. Por exemplo, unas calças Levi’s que custavam 300 euros, eu vendia-os por 250 , e assim ganhava a vida.

Uma vez, apanharam-me com mil euros e estive no calabouço, como é normal. Mas eu não me assustava. Dizia para comigo: «Amanhã voltarei a sair, e não faz mal, é normal.» E tornava a fazer o mesmo.

Pudeste estudar?

Fiz a secundária quando estive no Centre Educatiu El Segre, que depende do Ministério da Justiça. Prenderam-me porque pensaram que tinha roubado e matado um homem. Até que o juiz o esclarecesse, era suspeita. Estive presa um ano, cinco meses e vinte e oito dias. Tinha 16 ou 17

anos. Estava lá muito bem. Voltaria a ir. Havia aquecimento. Tínhamos uma horta, um galinheiro e piscina. Durante a semana não podíamos sair, mas ao fim de semana saíamos com os educadores. Um dia, deram-me um fim de semana de licença, de sexta a domingo à tarde, para ir visitar a minha avó, porque ela era idosa e não podia apanhar o comboio para vir ver-me… e violaram-me.

Queres explicar?

Alguma vez tiveste um companheiro?

Tive três. Com o primeiro, estivemos num apartamento arrendado. Era eu quem o pagava todo, porque naquela altura trabalhava numa fábrica de produtos alimentares. Ele batia-me. Bebia cerveja com vinho e, claro, aquilo deixava-o alterado e batia-me. Até que não aguentei mais e contei à minha tutora da Fundação. Ela

Quando acabou o fim de semana, a minha avó acompanhou-me ao comboio. Lá dentro estava um homem que me lembro que tinha vestidas umas calças de ganga cor de laranja. Eu levava uma bebida e não sei o que é que ele deitou lá para dentro que eu apaguei. Levou-me para casa dele. E isso quando eu já estava dentro do comboio, com o comboio em andamento! Ele tinha VIH e contagiou-me… Neste momento, sou indetetável. Isto quer dizer que não posso transmitir o vírus. Tenho as defesas muito bem, e agora, em vez de fazer o controlo de três em três meses, só tenho de fazer de seis em seis. Tomo o antirretroviral, que é o medicamento contra o VIH , todos os dias de manhã. E estou bem!

Sim, custa um pouco mais concentrar-me, porque uma pessoa tem as suas preocupações, mas, bom, eu tenho uma maneira de ser que me permite focar a minha energia em coisas criativas. Seja quando leio ciência ou literatura, seja quando toco guitarra, tento focar a minha mente no que estou a fazer e assim ela não se desvia para caminhos obscuros. Trata-se de manter a cabeça ocupada. Desta maneira, não se pensa em coisas que não vêm ao caso.

Agora é um tempo de espera. Quando tiver os meus papéis, será diferente. Mas por enquanto não há nada mais que possa fazer, além de procurar trabalho, esperar e ter paciência. Não vale a pena desesperar; há que continuar à procura, sempre. Não se sabe em que momento te vai aparecer

um trabalho e tudo pode mudar. Basta prepararmo-nos um pouco. Tudo é uma aprendizagem.

Para ti, esperar não significa estar parado, bem pelo contrário…

Há quase seis meses que sou voluntário na horta do Heura. Sempre quis fazer voluntariado, e é curioso que tenha chegado neste momento da minha vida. Passo muito tempo lá, a partilhar, a conhecer pessoas; lá é onde foco toda a minha energia…

Eu acho que sou um privilegiado por ter esta cabeça que tenho, estes mecanismos, esta capacidade de me pôr a refletir. Há muita gente que não tem estas ferramentas!

AKIVIDA HISTÓRIAS PARA TRANSFORMAR O OLHAR

A MONTSE trabalhava num lar de idosos. O JUAN foi-se embora de casa aos 14 anos. O IGNACIO deixou a Argentina para ter mais oportunidades de emprego. A ANABEL foi abandonada quando tinha três meses. O ANDRÉS chegou da Colômbia à procura de uma vida mais digna. O PEDRO servia à mesa num restaurante de Barcelona. O que une as suas histórias é que todos vivem na rua — ou viveram, nalgum momento da vida.

Com este livro, queremos explicar como se vive na rua e o que pode levar uma pessoa a fazê-lo. Queremos dar a conhecer as situações de violência, de abandono, de solidão; de perda de autoestima, dignidade e alegria que sofrem as pessoas que vivem na rua. E também averiguar se é possível sair dela, como o fazer e porque custa tanto. Duas mulheres e quatro homens que não têm um lar digno explicam-nos como viviam antes, porque perderam a casa onde moravam e como é a sua vida atualmente. São relatos cheios de dor e injustiça, mas também de solidariedade e perdão.

Os testemunhos que apresentamos convidam-nos a transformar o olhar, a abandonar os preconceitos e a repensar a maneira como nos relacionamos com quem perdeu tudo.

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.