XXXVI Edição Revista RESSONÂNCIA

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Pallium, um étimo compassivo que acredita na proximidade humana, mas que hoje gera desconfiança e divisão.

A arte paliativa propõe abrigar o doente da tempestade de dor, angústia e desespero associado à doença grave ou fatal. O sofrimento invade-nos como um ser estrangeiro e, pior que um vírus, multiplica-se e alastra-se. Só permanece um sentimento de enorme vazio que coloca em cheque o cerne da nossa humanidade. Nisto, quem somos? Miramos pecaminosamente a cara caquética da nossa enfermidade: voltámos ao estado lactente, e dependemos do outro.

Isto é Pallium. É iluminar aquele que escurece e cobrir o que esfria. É segurar o que cai e suavemente amparar a sua subida. Proteger o doente que, mesmo não estando em final de vida, pode beneficiar de cuidados dirigidos. Cuidados estes que não só melhorem a sua qualidade de vida e compreensão da doença, como também criem uma rede de apoio à família, de forma humana e empática.

A par do que acontece em tantos outros países, Portugal está num limbo no que toca aos cuidados de saúde. Em Portugal, morremos mal, e num país com um envelhecimento demográfico galopante, a necessidade de explorar e investir no acesso aos Cuidados Paliativos é cada vez mais inegável.

A intervenção paliativa trata de celebrar a dignidade da vida, mais do que aventurar-se numa tentativa hercúlea de evitar a morte. Enfrentar sem medos o doente que sofre, zelando pela integração do sofrimento do doente e da sua família. Mas, acima de tudo, de deixar cada doente Ressoar, através do encontro íntimo com a sua fragilidade, e estar em paz consigo e com o mundo.

Ambicionamos que a XXXVI Edição da Revista RESSONÂNCIA seja um Pallium. Um Pallium irreverente, que desvele a controvérsia do estado atual dos Cuidados Paliativos em Portugal. Um Pallium litúrgico que repousa sobre o valor da vida humana e questiona o futuro. Mas, sobretudo, queremos que este Pallium te provoque a seres paliativo.

Por fim, um agradecimento especial a todos os colaboradores da Revista RESSONÂNCIA, e em especial aos autores que se juntaram para tornar a discussão deste tema tão nobre.

Alexandre Oliveira e João Correia Coordenação-Geral da Revista RESSONÂNCIA

Quando

Grande Entrevista Eutanásia: se sim, porquê?
Onde está a Piedade? A Dor da Idade
o cuidado não cuida
Escafandro e a Borboleta
dignidade na morte ou morte da dignidade?
Cuidados Paliativos em Portugal - Quo vadis? AS MELHORAS DA MORTE Arte em Fim de Vida A velha guarda não está assim tão bem guardada “Viver depois de ti”- o amor e o suicídio 4 29 12 18 6 23 20 8 24 26 10 25 CRÓNICA CRÓNICA CULTURA
O
Eutanásia:
Os

CRÓ NICA

ONDE ESTÁ A PIEDADE?

“Pois é, meu caro, aqui somos todos mais máquina que outra coisa!”,

dissera-me a Dona Piedade, da cama do lado, logo nas minhas primeiras horas na enfermaria. E com razão, pois de certa forma todos dependíamos delas ali – uns dos monitores e aparelhos, para sobreviver à doença que os trouxe ao hospital, outros dos programas televisivos que não mudam, para se tentarem alhear da angústia e tudo mais que vem depois.

“Está aqui há muito tempo?”, perguntei uma vez

Ela respondeu com um sorriso, sempre com um sorriso. “Nem sei bem, filha. Uma pessoa perde a conta aos dias, mas já vi muitos a entrar e a sair, isso sim. Agora é esperar que seja a minha vez, nem que tenha de me escapulir num daqueles caixões de metal que às vezes passa!” O seu riso pesado ecoou pelo quarto.

Posso dizer que conheci bem a Dona Piedade. Falámos muito durante os dias em que fomos vizinhas, e nas suas palavras “sempre é melhor que a televisão!” Com o seu humor descabido e boa disposição, todos os profissionais que iam ver dela saíam a rir. Ainda assim, ela sabia que não havia muito mais a fazer, que o mais certo era não voltar a casa. Nem tinha ninguém em casa para quem voltar.

“Na altura ainda se tentou arranjar vaga nos cuidados paliativos”, disse-me um dia. “Mas sabe como é, está tudo cheio, as camas não chegam e as equipas muito menos. De maneiras que, olhe, aqui estou.”

“E tem medo?”

“Medo? Não! Não, não, tive uma boa vida. E longa, muitos não têm essa sorte. Mas tenho pena, sabe? Sempre achei que ia durante a noite, na minha casinha, com vista para a horta e para a serra. Enfim, há coisas que não se escolhe.”

“Esta não devia ser uma dessas coisas.”

“Pois não. Quem sabe, no seu tempo.” Mas nem mesmo o seu otimismo apaga da minha memória os dias em que o psicólogo não aparecia e a morfina não chegava, nem as noites em claro preenchidas por gemidos e lamentos.

Dias e noites que se repetiam cada vez mais, em que apenas existia dor, e a vida parecia profundamente cruel. E eu, na cama do lado, de coração partido, e amarrada por um sentimento de impotência. Se há destino certo é a morte, mas como pode ser humano deixar alguém em tanto sofrimento, que o fim é já só o que deseja?

Lembro-me como se fosse ontem daquele dia, em que a auxiliar perdeu a voz quando entrámos no quarto. Eu sabia o que aí vinha, mas nada me podia ter preparado para a visão daquela cama vazia. Por entre o frio que me envolveu, ouvi dizer que foi rápido, “ao menos isso”. Não fui capaz de conter as lágrimas.

Onde está a piedade?

CRÓNICA
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QUANDO O CUIDADO NÃO CUIDA

Noimaginário popular, o vocabulário médico é, tradicionalmente, um mundo de aberrantes polissílabos: desde estruturas anatómicas a fármacos, passando por cascatas de sinalização e agentes patogénicos, a medicina raramente é associada a nomenclaturas simples. Contudo — paradoxo anticlimático — todos esses nomes complicados desembocam, por norma, em definições relativamente lineares e estanques. Por mais que o conhecimento médico se expanda a um ritmo galopante, uma enartrose será sempre uma articulação com movimento nos três eixos do espaço. É que, por vezes, as grandes dificuldades conceptuais da medicina quotidiana não estão nas nuances científicas, mas sim na sua natureza fatalmente humana. Quando a vida do outro se lhe dilui irreversivelmente nas mãos, é também o médico que se torna, momentaneamente, um caco de vidro, um doentinho raquítico a tremer de frio nas urgências da sua própria impotência.

É neste sentido que desenhar o contorno do conceito de cuidados paliativos se revela uma tarefa mais trabalhosa do que à primeira vista se poderia cogitar. Segundo a definição da Organização Mundial de Saúde, conforme referenciada na página web do Serviço Nacional de Saúde, Cuidados Paliativos (CP) são cuidados de saúde holísticos e ativos que procuram melhorar a qualidade de vida dos doentes, das suas famílias/cuidadores pela prevenção e alívio do sofrimento, através da identificação precoce,

diagnóstico e tratamento adequado da dor e de outros problemas, sejam estes físicos, psicológicos, sociais ou espirituais [1]. São aplicados sobretudo a indivíduos com doenças crónicas, nomeadamente de natureza cardiovascular, neurológica, oncológica e infecciosa [2], a título de exemplo.

Apesar da elegância da definição oficial, ao leigo pouco diz todo este floreio. As pessoas sabem, ou pensam — o que, em Portugal, é quase o mesmo que saber — que os cuidados paliativos são aqueles que se prestam, quase por misericórdia, quando o doutor diz que já não há nada a fazer . Trata-se de um preconceito que só poderá ser desconstruído a partir de uma aceitação que as sociedades ocidentais, num sentido lato, ainda têm dificuldade em gerir: a medicina não é omnipotente e não vence sempre a batalha . Sendo a sede de conflito uma característica tão singelamente humana, não é de espantar que, de um modo talvez um pouco inconsciente, se procure humanizar os conceitos de vida e de morte , tão próximos e tão distantes de cada um de nós. Efetivamente, a intuição faz crer que a vida e a morte são cargas eletricamente opostas, rosnando e salivando numa guerra que só terminará quando uma das duas tiver cedido o seu lugar à outra. Ora, a medicina é arte e ciência, mas não é milagre. Isto obriga a um certo pragmatismo que permite caminhar, com a devida diligência, na ponte quebradiça

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da condição humana, sem, no entanto, perder de vista o rigor e o distanciamento imparcial que caracterizam a legislação da bioética e, em última instância, a profissão médica. É precisamente neste espírito moderado que, de seguida, se abordarão globalmente os cuidados paliativos.

Os cuidados paliativos são, portanto, cuidados de saúde prestados a indivíduos que padecem de doenças sem opções de tratamento curativo e cujo prognóstico pressupõe sofrimento prolongado para o doente e para os seus entes queridos, perturbando o seu bem-estar físico, emocional, psicológico, espiritual e socioeconómico. Nestes intervêm equipas multidisciplinares que elaboram estratégias terapêuticas que proporcionem ao doente, durante tanto tempo quanto possível, o maior alívio não só de sintomas, mas também de problemas de diferentes índoles que este enfrenta. Visa-se o envolvimento dos familiares e dos cuidadores, que são capacitados, de um modo tão personalizado quanto possível, para a prevenção de crises e para a gestão equilibrada do luto. A pessoa é o foco dos cuidados, sendo livre de participar ativamente na sua jornada terapêutica, comunicando e decidindo, desde que inequivocamente lúcida. Procura-se dignificar o doente através do respeito pela sua autonomia, opiniões, valores e direitos, entendendo o fim da vida como um processo e não como um momento pontual. Cuidados tão dependentes de princípios éticos e planeados com tanta antecedência são, naturalmente, rigorosamente regulamentados.

No entanto, segundo a Organização Mundial de Saúde, mundialmente, apenas 14% dos indivíduos que necessitam de cuidados paliativos estão atualmente a recebêlos [2]. Com efeito, só em 2014 foi definida a primeira resolução global especificamente direcionada para os cuidados paliativos,

estabelecendo uma série de objetivos no sentido de fortalecer a qualidade e o reconhecimento dos serviços de cuidados paliativos à escala mundial [2]. Estes dados ilustram claramente a compreensão meramente teórica que ainda se tem da abordagem paliativa na saúde, mesmo nos países mais desenvolvidos e nos sistemas de saúde mais robustos e holísticos. É, portanto, imperativo investir não só no aprimoramento material e técnico dos serviços de cuidados paliativos, mas também na educação da população em geral relativamente à sua importância: para os doentes, para os seus familiares e cuidadores, e para a sociedade como um todo [3].

Enquanto estudantes de medicina e futuros profissionais de saúde, possuímos o direito e o dever de aprender a comunicar aspetos biomédicos com a sensibilidade que um tema tão delicado, mas incontornável, exige. Importa conhecer e compreender os métodos e procedimentos implementados no contexto da terapêutica, saber como atuar com diligência e respeito no contexto relacional do modelo biopsicossocial, e ter algum tipo de exposição a cenários hipotéticos de comunicação entre médico e pessoa em situação de doença dita terminal , nomeadamente sob a forma de simulações. Neste sentido, seria altamente pertinente apostar na valorização dos cuidados paliativos nos currículos das faculdades de medicina: só assim se poderão formar médicos efetivamente capacitados para atenuar a dor e o sofrimento de quem, na ausência destes cuidados, teria de se sujeitar a um prolongamento cruel de algo inferior à vida.

[1] Cuidados de saúde in Serviço Nacional de Saúde. Disponível em: https://www.sns.gov.pt/sns/cuidados-paliativos/ Consultado em: 19/11/2022 [2] Palliative Care in World Health Organization. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/palliative-care Consultado em: 19/11/2022 [3] Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. Disponível em: https://apcp.com.pt Consultado em: 19/11/2022

QUANDO O CUIDADO NÃO CUIDA
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OS CUIDAODS PALIATIVOS EM PORTUGAL - QUO VADIS?

António Lopez

OS CUIDADOS PALIATIVOS EM

PORTUGAL - QUO VADIS?

Os cuidados paliativos tornaram-se, ao longo das últimas décadas, um bem necessário e imprescindível para toda a população, tendo vindo a desempenhar um papel cada vez mais decisivo na nossa sociedade. Estes são considerados um direito humano, sendo transversais a diversos contextos de saúde, desde os cuidados primários aos terciários. [1-3]

Este aumento crescente de relevância pode ser explicado quer pelo aumento da esperança média de vida, quer pela prevalência de doenças crónicas (e suas comorbilidades), consequência também das melhores condições de vida e cuidados de saúde, bem como da adoção de novos estilos de vida. [1-3]

Segundo dados recentes, em Portugal, 71% das mortes de adultos e 33% das mortes de crianças devem-se a doenças que necessitam reconhecidamente de cuidados paliativos. Apesar da Lei de Bases dos Cuidados Paliativos ter assegurado o direito de acesso dos cidadãos portugueses a estes cuidados e criado a Rede Nacional de Cuidados Paliativos, ainda existem défices e grandes assimetrias de cobertura, assim como entraves na referenciação e falta de recursos humanos.[1-4]

Portugal quase não possui serviços de cuidados paliativos pediátricos e as suas necessidades são crescentes. O cancro é responsável por uma parte cada vez maior das mortes com necessidades paliativas (34% nos adultos e 38% nas crianças). Urge avaliar a sustentabilidade do modelo atual para acomodar estas necessidades que só tendem a crescer. [1-4]

A Organização Mundial de Saúde identifica como barreira à prestação de cuidados paliativos a formação limitada ou inexistente dos profissionais de saúde neste domínio, o que limita bastante uma resposta eficiente às necessidades paliativas dos doentes. A verdade é que nos diversos cursos da área da saúde, a maioria dos estudantes não detém conhecimentos suficientes sobre cuidados paliativos - qual o seu propósito, quando devem ser prestados, como devem ser prestados. [1-4]

Em Portugal, a formação dos profissionais em cuidados paliativos constitui uma grande limitação para que possa haver uma expansão destes serviços. Por conseguinte, têm sido desenvolvidos esforços no sentido de fomentar a formação pré-graduada em cuidados paliativos, com prática clínica, nos planos curriculares de todas as escolas de medicina, enfermagem, psicologia e serviço social. [1-2]

Existem também questões base que traduzem a forma como a sociedade portuguesa lida com as doenças avançadas e as questões do fim de vida. Se por um lado, existe uma tradição de apoio familiar alargada – tentamos cuidar dos nossos em casa (missão muito associada ao lado matriarcal da família), por outro, a verdade é que somos extremamente dependentes dos hospitais. Existe a crença que é nos hospitais que vamos encontrar os melhores cuidados de saúde. Bárbara Gomes, docente da FMUC, salienta que este “modelo dual” culmina em que tenhamos uma das mais altas taxas de morte hospitalar do mundo, sobretudo em idades mais jovens e no cancro. O chamado “modelo hospitalocêntrico” é algo que é insustentável tanto no presente como no futuro. Os cuidados devem ter sempre o foco nos

[1] - Oliveira, S., Santiago, L. M., Dourado, M. (2021). Conhecimento sobre Cuidados Paliativos em Estudantes de Medicina da Universidade de Coimbra. Acta Medica Portuguesa, 34(4). [2] - Frazão, P., & Reis-Pina, P. (2021). Os Cuidados Paliativos no Ensino Médico Pré-Graduado: Perspectivas dos Estudantes Finalistas De Medicina e dos Internos de Formação Geral. Medicina Interna, 28(1), 13-21. [3] - Neto, I. G. (2020). Cuidados Paliativos: Conheça-os melhor. Fundação Francisco Manuel dos Santos. [4] - https://noticias. uc.pt/artigos/investigacao-revela-elevada-necessidade-de-cuidados-paliativos-em-portugal-tanto-para-adultos-como-para-criancas/ (consultado em 21/11/2022) [5] - Forjaz de Lacerda, A., Gomes, B. (2017). Trends in cause and place of death for children in Portugal (a European country with no Paediatric palliative care) during 1987–2011: a popula-

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doentes e na família, e não o contrário. A vida humana deve ser cuidada e nunca prolongada de forma a sustentar uma estatística , porque nada é “para a vida toda” (como canta Carolina Deslandes). É preciso quase uma revolução Copernicana na forma como damos suporte e apoio às pessoas com doenças avançadas e as suas famílias.[4-6] O verbo inovar vem do latim inovare que significa “criar algo a partir de”, e é o que se torna necessário - pensar e repensar no modelo atual, criar novas soluções. Torna-se premente, tal como afirma Isabel Galriça Neto, ultrapassar o tabu de falar do fim de vida. O ser humano tem uma tendência natural e (ir)racional a ganhar pavor, até

desdém, do que não conhece, tal como quando somos crianças e tememos o escuro (porque não sabemos o que está “contido nele”). Os cuidados paliativos não encurtam o tempo de vida, muito pelo contrário, prolongam muitas vezes o mesmo, aliado a um aumento da qualidade de vida de cada doente.[7-8]

Recorrendo a algumas estatísticas - nas crianças, a idade mediana de morte aumentou de 6 meses em 1987 para 4 anos de idade em 2011. A questão é que, tal como afirma Ana Lacerda, médica pediatra no IPO de Lisboa, este aumento da longevidade, 8 em cada 10 mortes estão a dar-se em contexto hospitalar,

quando o mais provável é que os doentes e as suas famílias preferissem que a morte ocorresse noutro local. Portugal, presentemente, tem um dos piores índices de qualidade de morte no Mundo e não parece estar a melhorar. Esta tendência, seja em que idade for, só pode ser reversível se houver uma mudança de paradigma - uma melhoria da formação dos profissionais, um forte investimento na criação de serviços de cuidados paliativos com forte apoio domiciliário, que acompanhem os doentes e famílias durante todo o seu percurso. [3-6]

Tem- se discutido o porquê de não haver uma aposta forte nos cuidados paliativos, e

crê-se que o problema esteja tanto ligado a lobbies como a um conjunto de préconceitos, sendo um dos porta-estandartes a opiofobia. Tal como escrevia Paracelso, “a diferença entre o remédio e o veneno está na dose”, e é importante desconstruir estes mitos (tal como tem vindo a ser feito). [9,10]

Em suma, é importante salientar que o sofrimento não é inevitável, não é uma fatalidade. Hoje, a Medicina tem recursos para deixar que o mesmo seja disruptivo, e a isso chamamos de Cuidados Paliativos. Porque para vivermos mais e melhor, só precisamos de abrir a nossa mente e focarmo-nos no que realmente mais importa - a vida.

tion-based study. BMC pediatrics, 17(1), 1-11. [6] - Gomes, B., Pinheiro, M. J., Lopes, S., de Brito, M., Sarmento, V. P., Lopes Ferreira, P., Barros, H. (2018). Risk factors for hospital death in conditions needing palliative care: nationwide population-based death certificate study. Palliative medicine, 32(4), 891-901. [7] -- https://www.dn.pt/sociedade/os-cuidados-paliativos-nao-encurtam-a-vida-pelo-contrario-dao-lhe-mais-qualidade--15274978.html (consultado em 22/11/2022) [8] - https://www.rtp.pt/acores/sociedade/isabel-galrica-neto-apresenta-livro-sobre-cuidados-paliativos-video_78293 (consultado em 22/11/2022) [9] - Santos, M. H. P. (2019). O uso da morfina na gestão da dor crónica: perspetiva dos profissionais de saúde (Master’s thesis). [10] - Silva, S. M. C. (2018). Dor crónica: a doença, o Impacto e a Opiofobia (Doctoral dissertation, Universidade de Lisboa (Portugal)).
OS CUIDAODS PALIATIVOS EM PORTUGAL - QUO VADIS?
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A VELHA GUARDA NÃO ESTÁ ASSIM TÃO BEM GUARDADA

Negligência Geriátrica à Portuguesa

Estava um bom cidadão português no seu mais pacato dia 22 de setembro de 2022, embebido na rotina de sentar no sofá e ligar a televisão com objetivo de absorver o que ocorre fora da sua rotina quando se depara com a notícia de mais um idoso negligenciado pelo seu país, desta vez uma senhora encontrada no lar onde residia coberta de formigas e com uma ferida aberta.(1) E este outro cidadão, desta vez no dia 13 de outubro? Uma idosa agredida, humilhada e maltratada por uma dona de um lar ilegal.(2) E aquele outro que comenta com os seus amigos que a sua mãe de 85 anos está à espera de vaga num lar onde possa passar o resto dos seus dias?

Os anos passaram e com eles fenómenos bonitos se sucederam, tais como o aumento da esperança de vida. Segundo alguns dados provenientes do Instituto Nacional de Estatística (INE) em Portugal a esperança de vida entre 2018 e 2020 foi estimada em 78.07 anos para indivíduos do sexo masculino e 83.67 anos para indivíduos do sexo feminino.(3) Já o índice de envelhecimento aumentou cerca de 155% desde 1961 e o índice de dependência de idosos cerca de 24%. (4)(5)Terão fim estes valores? Sim, é verdade que somos um país da velha guarda. Sim, é verdade que estourámos a

escala quanto ao número de cidadãos com idade superior a 65 anos por cada 100 jovens de idade inferior a 15 anos, mas o que são números comparado com a diferença que cada um de nós pode fazer?

Com a crescente possibilidade de chegar a idades estonteantes veio também aquela voz acelerada dos anúncios de fármacos que nada mais serve do que para declarar aquilo que não querem que escutemos. Esta indica-nos os efeitos secundários da vida pois é certo que tudo traz consequências e a velhice não é exceção. Voltemos então às matemáticas: a proporção de óbitos causados por doenças do aparelho circulatório foi a mais elevada na população total, cerca de 29,4 %; também a mortalidade proporcional por doenças do aparelho respiratório na população total correspondeu a 11,5 % dos óbitos. Está provado também que, com a idade, aumentou a proporção dos óbitos por doenças do aparelho circulatório e do aparelho respiratório, em ambos os sexos.(5) Fora estas doenças, o risco de desenvolvimento de osteoporose e défices visuais e auditivos, entre outros, também é crescente. Concluímos portanto que “ficar mais velho” é de facto um fator de risco para diversas doenças, pelo que o aumento da fragilidade neste grupo etário é

A VELHA GUARDA NÃO ESTÁ ASSIM TÃO BEM GUARDADA
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inevitável.

Pergunto se gostaríamos, como futuros exercedores da prática médica e clínica, de ver um idoso profundamente olvidado num recanto do hospital apenas pelo triste delito de não ter para onde ir ou por simplesmente ter caído na desventura de se encontrar doente no âmago da pandemia. Decerto que não é pasmo nenhum que o auge da vulnerabilidade desta pequena porção de terra colada ao mar incide nos lares de idosos.

“Os problemas que foram surgindo com a pandemia da Covid-19, com um elevado número de infeções e de mortes de residentes nos lares não foram previstos (...) grande número de infeções foi trazido por inadvertência para dentro dos lares, pelos próprios cuidadores”, palavras do Prof. Doutor Manuel Oliveira Carrageta, Presidente da Sociedade Portuguesa de Geriatria e Gerontologia (SPGG) que numa mensagem escrita e publicada em maio de 2020 no site da SPGG refere fatores como realização insuficiente de testes, a falta de equipamento de proteção pessoal e a falta de treino adequado como condicionantes para o agravamento da negligência geriátrica em Portugal durante a guerra contra este monstro epidémico.(6)

Em 2020, a COVID-19 foi responsável por mais de 7.000 mortes em Portugal (quase 6 % de todas as mortes), sendo que dois terços dessas mortes ocorreram em idosos com 80 anos ou mais(7), muitos destes valores foram provocados pela falta de cumprimento de regras e normas de segurança, falta de sensibilização face à proteção destes doentes risco, e acima de tudo falta de garantia de cuidados por parte do nosso Serviço Nacional de Saúde, que em tempos difíceis como estes não conseguiu responder a todas as necessidades, sobretudo aos grupos de idosos nas zonas mais isoladas do país. Bem disfarçada ou não, isto é negligência.

Fiel combatente a estas iniquidades é a Sociedade Portuguesa de

Geriatria e Gerontologia (SPGG), fundada em 1951 pelo médico Dr. José Reis Jr. em sessão realizada na Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa (SCML).(8)(9) Entre os seus diversos feitos no ramo da medicina, nomeadamente da geriatria, destaca-se o Congresso Português de Geriatria e Gerontologia, que se realiza anualmente desde outubro de 1980. A sua 42ª edição teve lugar nos dias 23, 24 e 25 de novembro de 2022 em Lisboa. Estes eventos têm como principal foco a sensibilização dos profissionais portugueses para a importância da gestão das síndromes geriátricas e procuram discutir estratégias de gestão de doentes idosos, de forma a melhorar a qualidade dos cuidados multidisciplinares prestados às pessoas mais velhas.(10)

Numa nota final, sempre nos foi dito a nós jovens que idosos são como crianças com uma grande experiência de vida. Porquê? Porque precisam de cuidados, companhia e, acima de tudo, respeito pelas pessoas que foram e que são. Devemos olhar por eles e pensar na velhice como uma amiga de longa data que veremos cada vez mais no futuro.Tiremos a Negligência Geriátrica do menu deste país.

2022. https://www.jn.pt/justica/idosa-coberta-de-formigas-lar-so-instaurou-inquerito-tres-meses-depois-15187077.html

idosa: “Imagens que perturbam e não deixam ninguém indiferente””.SIC,13 de outubro de 2022.https://sic.pt/programas/casafeliz/dona-de-lar-ilegal-filmada-a-agredir-idosa-imagens-que-perturbam-e-nao-deixam-ninguem-indiferente/ (3)INE, Esperança de Vida em Portugal. Disponível em https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&indOcorrCod=0008459&contexto=bd&selTab=tab2 (4)PORDATA, Indicadores de envelhecimento. Disponível em https://www.pordata.pt/portugal/indicadores+de+envelhecimento-526-3744 (5)PNS 21-30, Cap.3: “Saúde da população em portugal”. Disponível em https://1nj5ms2lli5hdggbe3mm7ms5-wpengine.netdna-ssl.com/files/2022/04/Cap-3-Saude-da-populacao-em-Portugal.pdf (6) Mensagem Dr. Manuel Carrageta, presidente da SPGG: “Lares de Idosos: O calcanhar de Aquiles da pandemia”. Disponível em https://www. prismedica.pt/wp-content/uploads/2020/05/20_05_30_Prof_MCarrageta.pdf (7) : OCDE/Observatório Europeu dos Sistemas e Políticas de Saúde (2021), Portugal: Perfil de Saúde do País 2021, Estado da Saúde na UE, OCDE, Paris/Observatório Europeu dos Sistemas e Políticas de Saúde, Bruxelas. Disponível em https://health.ec.europa.eu/system/files/2021-12/2021_chp_pt_portuguese.pdf (8)SPGG, Site oficial. Disponível em https://www.spgg.com.pt/ (9)SPGG,História da SPGG. Disponível em https://www.prismedica.pt/wp-content/uploads/2020/04/20_04_11_HISTORIAL_SPGG.pdf (10) Prismedica, informações sobre o 42º Congresso Português de Geriatria e Gerontologia. Disponível em https://www.prismedica.pt/event/42o-congresso-portugues-de-geriatria-e-gerontologia/

A VELHA GUARDA NÃO ESTÁ ASSIM TÃO BEM GUARDADA
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(1) Rodrigues, Marisa. 2022.”Idosa coberta de formigas: lar só instaurou inquérito 3 meses depois”. Jornal de Notícias, 22 de setembro de (2) SIC. 2022.”Dona de lar ilegal filmada a agredir

GRANDE ENTRE-VISTA

Anamélia De Oliveira e Carolina Afonso

PROFESSOR DOUTOR PAULO REIS-PINA

Q1: Como é que o seu caminho o levou aos Cuidados Paliativos (CPAL)?

Verifiquei logo durante o internato que tinha muitos utentes idosos com várias necessidades paliativas, quer na consulta, quer no internamento. Depois, o Dr. José Luís Portela, anestesista fundador da 1.ª Unidade de Dor em Portugal, convidoume a fazer parte da Clínica Multidisciplinar de Dor do IPO Lisboa. A maioria dos utentes, para além de dor descontrolada, tinha outros sintomas físicos, psico-emocionais, sociais e espirituais. Já tinha feito o Mestrado em Geriatria na FMUC e senti a urgência de fazer o Mestrado em CPAL da FMUL. Mais tarde viria a incluir a Equipa intrahospitalar de CPAL do IPOL.

Q2: O que sente o coração de um médico após uma vida a acompanharfinsdevida?Oque significamosCPALparasi?

O meu coração sente-se pleno de felicidade após cada intervenção com um doente em fase paliativa e seus entes próximos. Poder acompanhar o processo de morrer e da morte de vários utentes é uma oportunidade grandiosa de crescimento pessoal e espiritual para um médico. Sentir essa conexão relacional nesse momento magistral, intimista, irrepetível da vida de um indivíduo é uma experiência transformadora. O apelo do outro, o acolhimento da vulnerabilidade, a política de não-abandono, a humanização do cuidado, o empoderamento da pessoa na sua diretiva antecipada de vontade, são momentos tão especiais que consubstanciam a razão de eu ter escolhido exercer Medicina.

GRANDE
ENTREVISTA
Entrevistámos o Professor Paulo Reis-Pina, especialista em Medicina Interna e com um amplo leque de competências na área da Medicina Paliativa, Geriatria, Medicina da Dor. É ainda Regente de Cuidados Paliativos, no 4.º ano do MIM; e integra a Comissão Científica do Mestrado em Cuidados Paliativos, na FMUL.
O apelo do outro, o acolhimento da vulnerabilidade, a política de não-abandono, a humanização do cuidado, o empoderamento da pessoa na sua diretiva antecipada de vontade, são momentos tão especiais que consubstanciam a razão de eu ter escolhido exercer Medicina
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Q3:Comoseintegraafamílianoprocessodecuidadosao doente paliativo, assegurando que as suas necessidades individuais não interfiram na decisão e autonomia do doente?

O apoio à família, juntamente com o controlo de sintomas, a comunicação e o trabalho em equipa, é um dos pilares dos CPAL. Sendo que, às vezes, não há família, e os paliativistas precisam de tentar perceber se existem laços considerados significativos pelo doente com vizinhos, amigos, colegas, etc. Esses entes próximos são vitais visto que representam o apoio social que o utente pode ter em casa, no lar, e todos eles são arrastados para o sofrimento, sendo mandatório um plano estruturado de intervenção. Há que perceber as capacidades e competências destes elos sociais, perceber o impacto da doença nas suas existências, avaliar as necessidades multidimensionais, atender ao luto antecipado, entre outros.

A participação e a integração dos entes próximos no cuidado holístico do doente não interferem com o princípio da autonomia da pessoa humana. Se o doente estiver cognitivamente capaz, as suas decisões são sempre soberanas. A tomada de decisão éticoclínica deve privilegiar o princípio da subsidiariedade, caso o doente não esteja autónomo, sendo consultados os próximos para perceber se o sistema de valores do doente não está ameaçado por qualquer ato que se pretenda empreender. Se o doente tiver uma diretiva avançada de vontade, segundo a lei 25/2012, ou tiver nomeado um procurador de cuidados, a família é ouvida (por simpatia) mas a sua opinião/deliberação não tem qualquer poder vinculativo.

Q4: Sabemos que os CPAL devem ser assegurados por uma equipa interdisciplinar. Enquanto médico, quais as maioresdificuldadesencontradasnestaáreadamedicina diferente de outras que lidam com processos de “cura”? Comoéo“cuidar”nadoençaprogressivaeincurável?

A principal dificuldade é a iliteracia entre profissionais e leigos em relação aos CPAL.

Estigmatizar o doente como “sendo” paliativo tende a afunilar o seu acesso a outras especialidades médicas. Pelo contrário, o doente “tem” necessidades paliativas que não definem a sua identidade. Precisa de um seguimento cooperativo e integrativo, onde o utente não se sinta etiquetado como “não valendo a pena”o investimento na pessoa humana é a razão de ser de toda a medicina. O modelo integrativo defende que o doente deve ser referenciado para CPAL no momento do diagnóstico de uma patologia que ameace a vida e possa ser indutora de sofrimento. Ser paliativista não quer dizer “moribundista” ou “agonicista”. A segunda parte da questão revela parte da problemática. Nós não “cuidamos” da doença progressiva e incurável.

PROFESSOR DOUTOR PAULO REIS-PINA
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A principal dificuldade é a iliteracia entre profissionais e leigos em relação aos CPAL.

Nós cuidamos da pessoa que tem uma doença progressiva e incurável, cuja progressão aporta uma série de sintomas que devem ser aliviados, procurando a “qualidade de vida restante e do processo de morrer e da morte”.

Q5:OConselhoNacionaldeÉticaparaasCiênciasdaVida relataque70%dosdoentesportuguesesemfaseterminal nãotêmacessoaosCuidadosPaliativos.Comoseriapossível mitigarafaltadestesserviçoseresponderàsnecessidades destesdoentesacurtoprazo?E,tendoemcontaocontexto atual, como se poderia assegurar os Cuidados Paliativos numpaíscomtaxascrescentesdeenvelhecimentoedoenças crónicas?

Muitos doentes não têm acesso pois a referenciação é tardia, pelos motivos que atrás mencionei. Depois, a Rede Nacional de Cuidados Paliativos, criada em 2012, está obsoleta em matéria de operacionalização, carecendo de uma intervenção urgente. Atualmente, a entrada na rede é determinada pelo tempo de espera desde a referenciação, o que viola o princípio da equidade de acesso - deveria entrar na rede quem mais precisa e não quem está à espera há mais tempo.

Na base do seguimento em CPAL está uma abordagem paliativa em qualquer consulta em que se privilegie o atendimento ao sofrimento (escuta ativa, comunicação empática, atenuação de sintomas, etc.), com acompanhamento “generalista” do doente e as suas necessidades por qualquer médico de família, internista ou oncologista. No topo da pirâmide estão as equipas especialistas de CPAL que seguem os casos mais complexos, seja na comunidade, seja nos internamentos hospitalares. Uma Unidade hospitalar de CPAL é o equivalente a uma Unidade de Cuidados Intensivos.

Precisamos de mais equipas de CPAL nos cuidados primários, de mais médicos treinados em CPAL para providenciar cuidados em qualquer enfermaria. Tenho a certeza que desta forma haverá mais responsabilidade ético-clínica, mais limitação do esforço terapêutico desproporcionado, evitamento da obstinação terapêutica e diagnóstica, mais conciliação terapêutica, aceitando que a incurabilidade não é um fracasso clínico, somente uma limitação do conhecimento científico atual.

Q6: Quais são para si os maiores obstáculos ao desenvolvimentodosCuidadosPaliativosemPortugal?

Há quem pense que os Cuidados Paliativos são uma moda nova ou uma epifania imposta, mas a Associação Portuguesa de CPAL tem 27 anos de existência, pautados pela luta pelo reconhecimento do valor dos CPAL. Em Portugal, infelizmente os CPAL estão distantes do seu potencial, pois são confundidos com o “não há nada a fazer”. O que mais vejo ocorrer é uma imitação precária do modelo inglês de “Hospice care” em que a referenciação de doentes é feita nos seus últimos meses/dias de vida.

O maior obstáculo, repito, é a iliteracia. Veja que são poucas as Escolas Médicas que têm os CPAL no currículo obrigatório. A FMUL foi pioneira, mas falta criar condições para assegurar aos alunos estágios e práticas de qualidade. Depois da Lei de Bases de CPAL é necessário vontade política e institucional para implementar equipas de CPAL em todo o País, que laborem exclusivamente na área - é preciso perceber que há profissionais a trabalhar a 25%, 50% nestas equipas. Para quando uma equipa de suporte comunitário de CPAL por cada 100-150 mil habitantes? Há zonas de Portugal sem este tipo de resposta. Sem equipas no terreno, a maioria da população com necessidades de CPAL desloca-se a um serviço de urgência nas imediações, sendo tratada no modelo de “cuidados agudos”, podendo morrer nesse serviço. Para quando uma Unidade de CPAL em todos os hospitais universitários e IPO? São necessárias 40-50 camas hospitalares por cada 1 milhão de habitantes. Há ainda muito a fazer.

Aguardamos o novo Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos CPAL 2023-2024. Oxalá.

GRANDE ENTREVISTA
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A FMUL foi pioneira, mas falta criar condições para assegurar aos alunos estágios e práticas de qualidade.

EUTANÁSIA

EUTANÁSIA

Filipa Dias

Que não se queira iniciar uma discussão sobre assunto algum sem primeiro esclarecer exatamente do que se quer falar. Portanto: o que é a eutanásia? É o ato de provocar a morte de um doente por parte de um profissional de saúde com o objetivo último de terminar o sofrimento que a doença em questão lhe causa. Atualmente, divide-se em ativa vs passiva e voluntária vs involuntária. A eutanásia passiva consiste na interrupção ou não começo de medidas terapêuticas em doença grave e irreversível na sua fase final, com vista ao conforto e qualidade de vida do doente, um conceito que já se aplica nos cuidados de saúde atualmente. Relativamente à eutanásia involuntária, poder-se-á dizer que é a subclassificação que reúne maior consenso: é imoral, ilegal,

dos países? Parece-nos mais drástica a ideia de eutanásia ativa, mas a eutanásia passiva não só produz o mesmo resultado na prática, como mesmo assim pode prolongar um estado de sofrimento por mais tempo em comparação com a ativa. Claro está que, caso ambas fossem uma opção, a decisão só poderia ser do doente.

Uma das outras temáticas que mais causa atrito entre defensores e opositores à eutanásia é o alegado desrespeito ao Juramento de Hipócrates com a legalização da mesma. Ora, consagrar a vida ao serviço da Humanidade, exercer a arte da medicina com consciência e dignidade, considerar a saúde do doente como primeiro cuidado e guardar respeito absoluto pela vida humana são todos pontos do juramento e todos eles

E U TA N ÁS I A: S

impensável. Refere-se normalmente a doentes cognitivamente inaptos de tomar uma decisão consciente sobre se querem continuar a sua vida e, por isso, veem essa decisão ser feita por outrém. O que aqui se pretende explorar é a moralidade da eutanásia ativa e voluntária, particularmente os argumentos favoráveis à mesma.

Como o nome indica, a eutanásia ativa e voluntária define-se pela interrupção da vida de um doente num momento exato no tempo a pedido do doente. A linha entre uma decisão voluntária e uma involuntária é bastante clara, mas não se pode dizer tanto sobre a que separa a ativa e a passiva. Costuma-se dizer que a inação é, por si, uma ação. E não é verdade que na eutanásia passiva o resultado é o mesmo que na eutanásia ativa (a morte)?

Porque é só a eutanásia passiva é atualmente aplicada nos cuidados de saúde na maior parte

são compatíveis com dar a oportunidade a um doente de ter uma vida e morte dignas. Respeitar a vontade de um doente é servir a Humanidade com consciência e dignidade; acabar com o seu sofrimento é pôr a saúde dele em primeiro lugar; e guardar respeito pela vida humana é também reconhecer quando esta já não fornece nenhuma felicidade ao doente. Por outro lado, médicos que recusam a legalização da eutanásia por motivos religiosos, devem atentar no ponto do juramento que dita: “Não permitirei que considerações de religião, nacionalidade, raça, política ou condição social, se entreponham entre o meu dever e o meu doente” .

No fundo, aqueles que se apoiam em Hipócrates para rejeitar a eutanásia, particularmente com o ponto que diz “Não farei uso dos meus conhecimentos médicos contra as leis da humanidade”, apoiam-se também no Princípio

EUTANÁSIA:
SE SIM, PORQUÊ?
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da Beneficência, enquanto que a larga maioria dos defensores da eutanásia apoiam-se mais no Princípio da Autonomia. São ambos princípios bioéticos bem estabelecidos e aceites. O problema reside na interpretação que cada um infere do primeiro. Maximizar o benefício e minimizar o prejuízo no ato médico não é necessariamente manter um doente vivo o mais tempo possível, pelo menos não quando, nesse tempo, não lhe é possível ter qualquer qualidade de vida. Por outro lado, reconhecendo um doente como um ser racional, dotado de consciência e com vontades e desejos próprios, reconhece-se também que a duração da sua vida é uma decisão somente dele, que vai ao encontro do segundo princípio falado. Por que razão a vontade do profissional de saúde se sobreporia àquela que é do doente? Dito isto, por essa

sua transgressão. Se assim sempre fosse, não teríamos qualquer lei implementada. É também de reforçar que a eutanásia não é nem se deve tornar uma substituta dos cuidados paliativos, área que merece o seu devido investimento.

Ninguém pediu para nascer, muito menos numa vida de sofrimento. O livre arbítrio de um indivíduo pressupõe a existência da pessoa. No entanto, a eutanásia é a forma de restituir o exercício da liberdade que nunca se teve à nascença no que toca à vontade de existir. A morte é inevitável, mas viver em sofrimento deve ser uma opção e não uma certeza para estes doentes.

ES I M , P O RQ U Ê ?

mesma lógica, caso a eutanásia fosse legal, não seria correto exigir que qualquer profissional de saúde a deva exercer, conservando o seu direito à objeção de consciência.

Há ainda quem argumente que a legalização da eutanásia seria um caminho aberto para abusos, tais como a eutanásia involuntária, particularmente no contexto de falta de recursos para cuidados paliativos. Fala-se também de um possível sobreuso no acesso voluntário à eutanásia, no sentido em que qualquer um a poderia pedir, mesmo que a sua situação não fosse assim tão grave. Para ambas as questões a resposta é a mesma: a legalização da eutanásia implica também uma cuidada regulamentação e penalizações bem estabelecidas para o respetivo incumprimento , tal como todas as questões desta importância. Não se pode rejeitar uma boa medida apenas com base na

WMA International Code of Medical Ethics (2006) World Medical Association. Disponível em: https://web. archive.org/web/20100428131219/http://www.wma.net/ en/30publications/10policies/c8/index.html (Consultado a: 20 de Novembro de 2022).

Alexander, L. and Moore, M. (2020) Deontological ethics, Stanford Encyclopedia of Philosophy. Stanford University. Disponível em: https:// plato.stanford.edu/entries/ethics-deontological/#PatCenDeoThe (Consultado a: 20 de Novembro de 2022).

O significado da Palavra Eutanásia. Medicina Paliativa. Disponível em: https://medicinapaliativa.pt/itools/upload/document/ blog/181227210657.pdf (Consultado a: 20 de Novembro de 2022).

EUTANÁSIA: SE SIM, PORQUÊ?
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EUTANÁSIA: DIGNIDADE NA MORTE OU MORTE DA DIGNIDADE?

Quandose trata de perceber o que é mais importante para nós, qual o nosso valor, direitos e deveres enquanto seres humanos, somos criaturas curiosas... e a verdade é que não sabemos, ficamos indecisos: olhamos para um lado e para o outro à procura que nos digam em que acreditar – de um lado estão cartazes a dizer “Não matem os velhinhos!” e, bem, não queremos matar a nossa avó... Do outro, é habitual serem mais subtis: “Deixem-me ser livre até (e no) final da minha vida”... Bem, isto parece fazer sentido! Sim, mas... fará mesmo?

“Eu sou morto” não é lógica. Simples, Tão simples como haver valores que se sobrepõem a outros, porque destes dependem: não sou livre se não estiver vivo, então o valor da vida vale mais do que o da autonomia. A autonomia supõe a vida. Não pode invocarse a autonomia contra a vida, pois só é livre quem vive . [1]

Os valores da liberdade e da autonomia são dos mais importantes para o ser humano, com isso tenho de concordar. Aliás, o 1.º Artigo da Carta Universal dos Direitos Humanos é “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.”. O que é curioso analisar é como podemos argumentar “Todos os seres humanos são livres”, sem nos ouvirmos a dizer “são”. Ora, não posso ser o que quer que seja se não estiver vivo; da mesma forma a frase

Mas os sistemas de crenças são tantos quanto nós e, podendo considerar que o valor da liberdade é imperativo, será a eutanásia a melhor expressão da mesma? Afinal de contas, que liberdade é a minha se, numa situação de sofrimento atroz, para poder morrer tenho de pedir a uma equipa de autoridades (médicos, psicólogos e legisladores) que avaliem se sou um caso realmente dispensável?

Se tenho de pedir autorização, se tenho de me provar inferior, a eutanásia não é uma expressão de liberdade.

É uma expressão do desprezo pela vida dos mais frágeis:

EUTANÁSIA:
DIGNIDADE NA MORTE OU MORTE DA DIGNIDADE?
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– tu és dispensável com o teu nível de sofrimento, se quiseres, podes sair.

– tu não, não és um caso perdido, mesmo que não queiras, vamos lutar por ti.

Ainda assim, não fica por aqui a incoerência, essa teia onde tropeçamos como sociedade e espécie vezes e vezes sem conta. Celebramos o fim da pena de morte porque “na dúvida, por mais ínfima, prevalece a vida”, mas o critério que aplicamos a juízes e advogados não tarda a cair quando falamos da incerteza na decisão dos doentes em sofrimento e situação de fragilidade… Mas não parece um destes mais provável de se arrepender?

E se continuarmos no mundo das leis, vamos inevitavelmente encontrar os artigos 134º e 135º do nosso Código Civil, que punem o homicídio a pedido do próprio e a ajuda ao suicídio, “mas na eutanásia... parece diferente, não é bem um homicídio…” Pois, mas se um doente em absoluto e irremediável sofrimento te pedisse a eutanásia mas tivesses de a executar com uma arma de fogo, ainda o farias?

A verdade é que o homicídio não deixa de ser homicídio por ser consentido pela vítima, nem por ser executado através de um procedimento clínico.

“Procedimento? Não, tratamento!” Quanto a isso…

Um tratamento resolve o sintoma ou alivia-o. A eutanásia elimina não o sofrimento, mas a pessoa que sofre. Logo, nós, que sonhávamos tratar pessoas e salvar vidas, que no final do curso vamos jurar isso pela nossa honra...

Talvez o façamos com as mãos sujas e, na boca, um sabor amargo a mentira. Isto se nos chegarmos a dar conta de que deixamos de lutar contra a doença para lutar contra o doente.

Em junho, abrimos a porta à despenalização da eutanásia e a um labirinto de subtilezas, que assustam e devem assustar! A nova redação aprovada estabelece a eutanásia “em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável”, mas todos os dias pedimos a doentes para avaliar a sua dor de 0 a 10 e nem isso consideramos objetivo... O que é um sofrimento de grande intensidade? Não pode ser psiquiátrico? E as crianças não podem também tê-lo? Onde paramos?

Em 2017, foi morta a primeira criança por eutanásia na Bélgica[2], em que esta também está acessível a doentes psiquiátricos[3].

E tu, Portugal, para onde caminhas?

O futuro em Portugal é, desde este ano, um futuro com eutanásia, mas sem equipas multidisciplinares de dor nos hospitais. É um futuro que acaba com a vida de doentes em sofrimento intolerável, mas que não tem médicos especialistas em Cuidados Paliativos.

É um futuro que tem aspeto de dignidade na morte, mas tresanda a morte da dignidade.

[1]

[2] https://edition.cnn.com/2016/09/17/health/belgium-minor-euthanasia/index.html

[3] Verhofstadt, M.,

EUTANÁSIA:
DIGNIDADE NA MORTE OU MORTE DA DIGNIDADE?
AFONSO, Pedro; NETO, Isabel Galriça; PATTO, Pedro Vaz – “Quando o Doente Pede Ajuda Para Morrer” in AFONSO, Pedro, coord.; CABRAL, Miguel, coord. – Reflexões Sobre Ética Médica. 1ª Edição. Cascais: Editora Principia, 2019. ISBN 455231/19. pp.203-223
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Audenaert, K., Van den Broeck, K. et al. Belgian psychiatrists’ attitudes towards, and readiness to engage in, euthanasia assessment procedures with adults with psychiatric conditions: a survey. BMC Psychiatry 20, 374 (2020). https://doi.org/10.1186/ s12888-020-02775-x

CULTURA CULTURA CULTURA CULTURA

O ESCAFANDRO E A BORBOLETA

OEscafandro e a Borboleta foi o único livro escrito por Jean-Dominique Bauby, o editor-chefe da revista francesa de moda ELLE. O texto descreve a sua experiência depois de ter acordado, numa cama de hospital, 20 dias após um AVC que o mergulhou para sempre no seu escafandro, um dos termos que Bauby apelida (não tão carinhosamente) o coma profundo ao qual estaria preso para o resto da sua vida. O autor tinha sido diagnosticado com locked-in syndrome: a sua mente estava intacta, mas perdera virtualmente todo o controlo do seu corpo, exceto o movimento da pálpebra esquerda.

Através de 28 curtos episódios, pedaços soltos da sua memória, Bauby descreve-nos detalhadamente a sua perspetiva. De reflexões acerca do glamour da sua antiga vida ao simples prazer de poder tomar um banho ou ouvir a voz distante dos seus filhos, estas histórias contêm muita verdade e dureza, mas também ironia em doses saudáveis de cinismo. As suas memórias são de incrível valor. Um relato poderoso, que nos mostra a brilhante dignidade de uma alma danificada na recusa em desaparecer, sem mais nem menos, sem antes poder despedir-se do mundo enquanto pessoa e não apenas como doente.

Embora seja percetível o desamparo na sua escrita aquando do confinamento a uma cadeira de rodas desconhecida (tal como um escafandro que se fecha e não volta a abrir), Bauby mostra-nos a pluralidade da condição humana e a força do espírito presente em cada um de nós, apesar da incapacidade e do desespero. O autor decide então ser uma borboleta, livre, bela e despreocupada, deambulando a sua alma pelos corredores do hospital e atravessando as tarefas rotineiras dos seus cuidados com um humor eloquente.

A própria composição do texto foi um feito extraordinário em si. Incapaz de escrever ou falar,

Bauby compôs cada capítulo mentalmente, letra por letra. Uma copista recitou depois meticulosamente um alfabeto ordenado por frequência até que Bauby escolhesse uma letra, piscando o olho uma vez, para significar “sim”. Por fim, num último ato heróico de vontade, Bauby sobreviveu apenas o tempo suficiente para ver suas memórias publicadas, na primavera de 1997. Morreu dois dias depois.

Deixo, para concluir, as últimas ponderações do autor, depois de ter revisto toda a sua obra. Um manifesto de esperança para ele, mas também para nós, futuros médicos, para que nunca deixemos de procurar o voo leve de uma borboleta, para nós e para os nossos doentes:

Existirão neste cosmos chaves para abrir o meu escafandro? Uma linha de metro sem estações? Uma moeda suficientemente forte para resgatar a minha liberdade? É preciso continuar a procurar. É o que vou fazer.

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CULTURA
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O Escafandro e a Borboleta.

AS MELHORAS DA MORTE

As intermitências da morte foi escrita pelo neto do Jerónimo Melrinho e da Josefa Caixinha, o Saramaguinho. Tinha tudo para ser um José de Sousa, mas é o Saramaguinho.

Aobra

Das personagens, só a morte tem nome - chamase Morte e apresenta-se em duas feições que definem dois tempos major: primeiro, a distopia prática de uma primeira intermitência da morte (entre as escritas) num qualquer país monárquico: o barrote nos hospitais, porque parou a morte e não parou o tempo, cada vez se vão acumulando mais velhos mais velhos, mais os acidentados de fresco; a crise dos empacotadores de defuntos; a não-religião do não-purgatório da não-morte que entontece a igreja e a filosofia; o céu que fica às moscas porque a morte das moscas ainda opera. É a vida a tornar-se uma inconveniência por muito que se a peça eterna, muito a fazer lembrar O Velho e o Mar de Hemingway em que o desejo realizado não é o desejo desejado. Mais os que não querem carregar mais que o peso que pesam, velhos que andam que parecem pombos, ou nem andam moídos pior que os com dores de dentes. Os que até se afogavam em água benta para não haver caso de causar ofensa. Coitados. É uma pena de morte. Doentes com fronteiras. Na espanha desse país já se morre regularmente, as carpideiras carpem como sempre carpiram e não

há santos que valha aos estrangeiros sem ser o santo dos cravos que, do que oiço dizer, ainda é o mais cumpridor.

Segundo feitio, segundo tempo: o da morte que se emociona, se enamora e vai a um concerto. Passa-se a falar de como a morte lida com quem tem que matar, a morte que é mulher, talvez linda, em osso e osso, vestida ou despida conforme quer. Esta personificada é uma escrivã que, qual som da gaita do amolador que avisa que vai chover, escreve cartas a avisar, com rigor de expediente, a quem vai morrer quando vai abotoar o paletó. Isto até à noite que passa com o violoncelista, o artista. Por coincidência ou por conseguinte - por conseguinte - No dia seguinte ninguém morreu , de novo. A morte deixou-se dormir, claro. A segunda intermitência, bem o título o prometia.

Assim concluo, e julgo ser verdade, que se, no final de Ensaio sobre a cegueira , é atribuído aos sujeitos o poder de fazer de novo, corrigido, a última sentença de As intermitências da morte condena-nos à vontade de Átropos. Nada se pode nem contra o que ela quer nem contra o que não quer. E esta é apenas uma pequena morte, imagine-se.

E leia-se.

CULTURA
As intermitências da Morte Autor: José Saramago
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Ano da 1ª edição: 2005 Porto Editora

“Viver depois de ti” é uma adaptação do romance original homónimo da autoria de Jojo Moyes. Este retrata o interesse amoroso entre a personagem principal Lou, uma rapariga inocente ingénua e humilde, e Will Traynor, filho único de uma família abastada que, devido a um grave acidente de mota, ficou tetraplégico. De facto, após o acidente, Will, outrora um amante de aventuras e diversão, foi perdendo gradualmente o gosto pela vida. Tornou-se deprimido, fechado e o amor que nutria anteriormente pela vida foi gradualmente substituído por um profundo tédio existencial. Em completo contraste, Lou é extremamente positiva e vê a vida como um livro aberto à espera de ser explorado.

A entrada de Lou na vida de Will como sua cuidadora compara-se a um quente raio de sol a entrar numa divisão escura. De facto, vai ser ela que, pelo menos momentaneamente, vai retirar Will da sua situação de angústia e alegrar a sua vida, mesmo perante as dificuldades da sua condição física. Mesmo assim, Will considera inútil viver na sua condição e acaba por cometer suicídio assistido, deixando a Lou uma quantia avultada de dinheiro de modo a que pudesse concretizar os seus sonhos e, efetivamente, viver a vida que o próprio Will gostaria de ter vivido.

Deste modo, a morte tem uma presença bastante marcante no filme, representada nomeadamente pelo suicídio assistido . O modo como o tema é abordado no filme coloca-nos no

lugar de Will e obriga-nos a questionarmo-nos se, de facto, valeria a pena continuar a viver na sua condição. Esta é uma questão bastante frequente para pacientes terminais em cuidados paliativos e um tópico alvo de grande discussão ética. No entanto, ainda que esteja tetraplégico e dependente de uma cadeira de rodas até ao fim da sua vida, a situação de Will está longe de ser terminal. Ainda assim, Will vê-se constantemente como uma inconveniência para todos e é incapaz de se conformar com a sua condição física . E é aqui que, para mim, surge o grande ponto fraco deste filme: a tetraplegia é representada como “o fim da vida” e algo impossível de ultrapassar, no típico estereótipo de que pessoas com redução da mobilidade são um fardo e incapazes de ter uma vida autónoma.

Concluindo, o filme “Viver depois de ti” tem a capacidade de inserir temas complicados como a eutanásia e a tetraplegia num cenário romântico sem, no entanto, retirar seriedade a estes assuntos, ainda que caia no uso de estereótipos. Deste modo, neste autêntico triângulo amoroso entre duas pessoas e a morte, o filme estabelece um equilíbrio entre oromance e a realidade da condição que afeta constantemente a vida de Will e outros tantos no mundo.

Viverdepois deti (2016)

Realizador: Thea Sharrock

Data de estreia: 11/08/2016

Duração: 1h 50m

RomanceEditora

“VIVER DEPOIS DE TI”- O

Ofilme
25 CULTURA
AMOR
Manuel Fronteira
E O SUICÍDIO
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ARTE EM FIM DE VIDA OU UM NOVO PRINCÍPIO

Autilização de arte como forma de terapia na terceira idade tem vindo a demonstrar ser capaz de reduzir a ansiedade, incentivar socialização e integração dos elementos na sua comunidade, desta forma combatendo o isolamento e marginalização que muitos indivíduos destas faixas etárias sentem. Mais tempo livre e o aproximar de um dos perenes dilemas da humanidade, a morte, serve também como fonte de inspiração para muitos, iniciando aquilo que pode ser um período florescente de criação artística.

Manoel de Oliveira morreu em 2015, com 106 anos, deixando na história do cinema um legado de mais de 80 anos. Na sua história vemos refletida a ferocidade da sua garra de sonhador que perseguiu o seu sonho a vida toda, tendo a sua carreira ganho ímpeto a partir de 1970, quando este já tinha 75 anos, continuando até à sua morte e foi neste intervalo que produziu grande parte da sua obra. Manoel de Oliveira é apenas um exemplo num mar de artistas que produziram as suas peças mais marcantes durante as últimas décadas de vida, o culminar de todo o seu percurso.

Claude Monet, o pintor impressionista, é outro exemplo. Na sua terceira idade alguns dos seus trabalhos começaram a sofrer uma transposição para tonalidades mais escuras e vibrantes, isto devido ao desenvolvimento de cataratas que alteravam a sua percepção visual. Esta alteração foi revertida após a cirurgia de remoção da condição. Sendo que nas últimas décadas criou alguns dos seus quadros mais conhecidos, nomeadamente a sua série Nenúfares .

Quando as conversas são insuficientes e o isolamento aperta, a arte tem uma capacidade inata de expressão, de liberdade, de permitir pôr no papel, em notas, em imagem, os nossos pensamentos e emoções mais profundas, e assim, de certa forma, os partilharmos. O fim da vida é acompanhado por sentimentos de medo e isolamento que para muitos de inspiração servem, tornando a Morte ubíqua na expressão artística.

Confrontados com o término de vida, com o aproximar desta a largos passos (ou devagar (como no caso de Manoel de Oliveira), a arte torna-se uma arma contra a solidão e a tristeza, ou uma forma de passar o testemunho, as aprendizagens de toda uma vida. Como estes grandes artistas nos mostram, nunca é tarde demais para criar a nossa obra prima, e mesmo que não criemos “a Obra Prima”, podemos sempre capturar aquilo que nos vai na alma e talvez sentir algum alívio ao deixar no papel imortal a nossa história e marca, mesmo que acabe perdida após a nossa partida.

CULTURA
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A arte torna-se uma arma contra a solidão e a tristeza

CRÓ NICA

A DOR DA IDADE

DonaLurdes acordou, estremunhada.

Lá estavam os filhos dos vizinhos do andar de cima a correr pela casa na hora de sair para a escola. O sono ainda lhe pesava nas pálpebras. Esfregou os olhos com os dedos deformados pelas artroses.

Mais um dia…

Virou-se para a mesa de cabeceira e pegou nos óculos, que colocou. Olhou para a fotografia do marido, que tanto amara e que há tanto tempo havia falecido, e sentiu a saudade invadir-lhe o ser com a mesma pungência de sempre.

Levantou-se. Os joelhos já vacilavam, mas por enquanto ainda conseguiam suportá-la. Na cozinha, tomou o pequeno-almoço e os cinco comprimidos do costume que lhe arranhavam a garganta todas as manhãs.

Foi então que reparou num papelinho manuscrito em cima da mesa, no qual leu que tinha consulta com o médico de família. Nem se tinha lembrado na véspera!

“Estranho nome esse, médico de família, para um médico que trata de idosos sozinhos como eu“, pensou.

Lamentou-se consigo própria por a sua memória ser já tão falível. Ao chegar ao centro de saúde, tirou a senha e sentou-se na sala de espera.

Na consulta, contou ao médico que andava muito cansada e que as artroses lhe davam muitas dores.Ele auscultou-a e consultou as últimas análises sem proferir palavra. Por fim, lá disse que o culpado era o coração.

Não havia muito a fazer. A Dona Lurdes já sabia que tinha uma insuficiência cardíaca. Sim, ela já o sabia. Esboçou um sorriso amargo. Pensou em quanto tempo lhe restaria neste mundo e quantas vezes poderia ainda abraçar a filha e os netos, mas guardou a sua dor para si mesma. Perguntou-se se o médico conseguiria ler no seu rosto o que lhe passava pela mente, mas este continuava mergulhado no computador para lhe prescrever os medicamentos. Imprimiu as receitas e entregoulhas.

A idosa despediu-se e seguiu, pensativa e triste, o caminho para casa. O autocarro vinha cheio de jovens barulhentos, que conversavam utilizando vocabulário impróprio e ouviam música num volume assaz elevado. Tudo isto enquanto ocupavam os lugares reservados para idosos.

Dona Lurdes não conseguia compreender o que os levava a agir daquela forma. Que prazer retiravam destes comportamentos?

Sentia tanta falta dos seus tempos de juventude, em que cultivava os campos com as suas irmãs e amigas, pastoreava o rebanho dos seus pais, e vivia todo o ano ansiando pela festa da aldeia, em que dançava com o seu futuro marido noite fora. Isso sim, eram divertimentos inocentes, que não prejudicavam nem incomodavam ninguém. Mas tudo tinha ficado perdido, lá longe, no campo e no século passado.

Estes jovens podiam fazer chacota dela por pedir ao motorista que esperasse um bocadinho para se sentar ou por não saber usar o telemóvel; mas ela sabia que eles não conheciam a beleza do nascer do Sol no campo, nem a mulher bonita e inteligente que ela fora outrora, ou a dor que todos os dias sentia.

A dor de ser idosa, viúva, doente e só.

CRÓNICA
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