3 minute read

AS MELHORAS DA MORTE

As intermitências da morte foi escrita pelo neto do Jerónimo Melrinho e da Josefa Caixinha, o Saramaguinho. Tinha tudo para ser um José de Sousa, mas é o Saramaguinho.

Aobra

Advertisement

Das personagens, só a morte tem nome - chamase Morte e apresenta-se em duas feições que definem dois tempos major: primeiro, a distopia prática de uma primeira intermitência da morte (entre as escritas) num qualquer país monárquico: o barrote nos hospitais, porque parou a morte e não parou o tempo, cada vez se vão acumulando mais velhos mais velhos, mais os acidentados de fresco; a crise dos empacotadores de defuntos; a não-religião do não-purgatório da não-morte que entontece a igreja e a filosofia; o céu que fica às moscas porque a morte das moscas ainda opera. É a vida a tornar-se uma inconveniência por muito que se a peça eterna, muito a fazer lembrar O Velho e o Mar de Hemingway em que o desejo realizado não é o desejo desejado. Mais os que não querem carregar mais que o peso que pesam, velhos que andam que parecem pombos, ou nem andam moídos pior que os com dores de dentes. Os que até se afogavam em água benta para não haver caso de causar ofensa. Coitados. É uma pena de morte. Doentes com fronteiras. Na espanha desse país já se morre regularmente, as carpideiras carpem como sempre carpiram e não há santos que valha aos estrangeiros sem ser o santo dos cravos que, do que oiço dizer, ainda é o mais cumpridor.

Segundo feitio, segundo tempo: o da morte que se emociona, se enamora e vai a um concerto. Passa-se a falar de como a morte lida com quem tem que matar, a morte que é mulher, talvez linda, em osso e osso, vestida ou despida conforme quer. Esta personificada é uma escrivã que, qual som da gaita do amolador que avisa que vai chover, escreve cartas a avisar, com rigor de expediente, a quem vai morrer quando vai abotoar o paletó. Isto até à noite que passa com o violoncelista, o artista. Por coincidência ou por conseguinte - por conseguinte - No dia seguinte ninguém morreu , de novo. A morte deixou-se dormir, claro. A segunda intermitência, bem o título o prometia.

Assim concluo, e julgo ser verdade, que se, no final de Ensaio sobre a cegueira , é atribuído aos sujeitos o poder de fazer de novo, corrigido, a última sentença de As intermitências da morte condena-nos à vontade de Átropos. Nada se pode nem contra o que ela quer nem contra o que não quer. E esta é apenas uma pequena morte, imagine-se.

E leia-se.

“Viver depois de ti” é uma adaptação do romance original homónimo da autoria de Jojo Moyes. Este retrata o interesse amoroso entre a personagem principal Lou, uma rapariga inocente ingénua e humilde, e Will Traynor, filho único de uma família abastada que, devido a um grave acidente de mota, ficou tetraplégico. De facto, após o acidente, Will, outrora um amante de aventuras e diversão, foi perdendo gradualmente o gosto pela vida. Tornou-se deprimido, fechado e o amor que nutria anteriormente pela vida foi gradualmente substituído por um profundo tédio existencial. Em completo contraste, Lou é extremamente positiva e vê a vida como um livro aberto à espera de ser explorado.

A entrada de Lou na vida de Will como sua cuidadora compara-se a um quente raio de sol a entrar numa divisão escura. De facto, vai ser ela que, pelo menos momentaneamente, vai retirar Will da sua situação de angústia e alegrar a sua vida, mesmo perante as dificuldades da sua condição física. Mesmo assim, Will considera inútil viver na sua condição e acaba por cometer suicídio assistido, deixando a Lou uma quantia avultada de dinheiro de modo a que pudesse concretizar os seus sonhos e, efetivamente, viver a vida que o próprio Will gostaria de ter vivido.

Deste modo, a morte tem uma presença bastante marcante no filme, representada nomeadamente pelo suicídio assistido . O modo como o tema é abordado no filme coloca-nos no lugar de Will e obriga-nos a questionarmo-nos se, de facto, valeria a pena continuar a viver na sua condição. Esta é uma questão bastante frequente para pacientes terminais em cuidados paliativos e um tópico alvo de grande discussão ética. No entanto, ainda que esteja tetraplégico e dependente de uma cadeira de rodas até ao fim da sua vida, a situação de Will está longe de ser terminal. Ainda assim, Will vê-se constantemente como uma inconveniência para todos e é incapaz de se conformar com a sua condição física . E é aqui que, para mim, surge o grande ponto fraco deste filme: a tetraplegia é representada como “o fim da vida” e algo impossível de ultrapassar, no típico estereótipo de que pessoas com redução da mobilidade são um fardo e incapazes de ter uma vida autónoma.

Concluindo, o filme “Viver depois de ti” tem a capacidade de inserir temas complicados como a eutanásia e a tetraplegia num cenário romântico sem, no entanto, retirar seriedade a estes assuntos, ainda que caia no uso de estereótipos. Deste modo, neste autêntico triângulo amoroso entre duas pessoas e a morte, o filme estabelece um equilíbrio entre oromance e a realidade da condição que afeta constantemente a vida de Will e outros tantos no mundo.

Viverdepois deti (2016)

Realizador: Thea Sharrock

Data de estreia: 11/08/2016

Duração: 1h 50m

RomanceEditora